A crônica jornalística brasileira em João do Rio


resumo resumo

Carla Roselma Athayde Moraes



Introdução

Neste trabalho, propomo-nos a delinear, na escrita de um cronista brasileiro, João do Rio, um quadro que nos revele traços caracterizadores da primeira etapa da produção de crônicas no Brasil, à época, particularmente, da profissionalização de nossa imprensa, fins do século XIX e início do XX. Para isso, selecionamos trechos de crônicas de João do Rio, retirados da obra A alma encantadora das ruas, organizada por Raul Antelo (2008), para, com esta análise, evidenciar elementos – traços caracterizadores da crônica como gênero – que já se delineavam nas crônicas de nossos representantes iniciais, na imprensa que também se modernizava no Brasil. A revelação de tais traços configuracionais da crônica como gênero constitui, no nosso País, uma importante tarefa para os estudiosos dos gêneros discursivos.

A forma como esse gênero se configurou ao longo dos anos na nossa imprensa, sempre preservando traços essenciais de sua constituição, foi responsável por atrair uma gama dos mais variados tipos de leitores. Esse gênero benquisto, muito lido em nosso País, acreditamos, por sua temática intimista, o cotidiano, pela forma condensada como se apresenta, seja na modalidade oral ou na escrita, e pelo seu estilo de fala que busca o apreço, a emoção do interlocutor, a comunhão de ideias e ideais, justifica que busquemos sempre, como estudiosos do discurso, observá-lo e trazer à luz conhecimentos a seu respeito.

A escolha do escritor João do Rio justifica-se pela maestria de sua escrita, pela sensibilidade e engajamento com os quais já observava a sociedade brasileira nessa época, nossos problemas sociais, e pela excelência como já selecionava motivos e personagens que mereciam reflexão pela escrita e leitura da crônica, ensejo de observarmos a cultura brasileira, os modos de vida, as mazelas da população. Para que, também, resgatemos sua figura exponencial, entre tantos grandes mestres das crônicas de sua época, como Machado de Assis, José de Alencar, Olavo Bilac, entre outros.

Do ponto de vista da ancoragem teórica, nosso trabalho se inscreve na área de estudos enunciativos, discursivos, examinando um gênero discursivo, a crônica; um locutor, o cronista, em estudos que contemplam teóricos da enunciação, autores como Bakhtin (1997); Todorov (1980); na leitura do renomado crítico literário Antonio Candido (1992) e do historiador Michel de Certeau (2007), com seus estudos a respeito da temática do cotidiano; Antelo (2008), com seus estudos sobre João do Rio. Os estudos enunciativos hoje possuem o compromisso de estenderem o estudo do sistema de gêneros (TODOROV, 1980); neste nosso caso, de considerá-lo um sistema aberto, isto é, em permanente transformação. Na próxima seção, trabalharemos com alguns aspectos teóricos relativos ao gênero em estudo, para prosseguir também com a aplicação teórica nas abordagens analíticas que fizermos dos escritos de João do Rio, na seção que se segue à próxima.

 

1. Considerações teóricas - A crônica: constituição e peculiaridades

  A crônica fundou suas bases na Antiguidade Clássica, como um gênero resultante da desintegração dos diálogos socráticos, conforme nos diz Bakhtin (1997). À época havia um gênero muito praticado chamado de Publicística Atualizada. Seus traços essenciais, resguardadas as especificidades das práticas sociodiscursivas da época, são muito similares aos traços da crônica presente nos jornais brasileiros em nosso século e nos dois últimos anteriores ao nosso. A peculiaridade desse gênero curto, contido do ponto de vista de sua escrita ou fala não o priva da profundidade no tratamento da temática maior que lhe é própria, o cotidiano das nossas cidades, da nossa sociedade. O gosto desse gênero por tais temas celebra o fato de que é impossível que um veículo midiático como o jornal impresso ou televisivo se configure, tome forme apenas com informações.

O texto de opinião, a crônica, entre outros, surgem diariamente nas mídias para demonstrar isso. É característico do espírito humano a emissão de juízos de valor, o comentário, enfim o que chamamos comumente de ponto de vista, que possui relações muito estreitas com o fenômeno da argumentatividade, essência da linguagem verbal humana, como uma das formas mais efetivas e, geralmente, legítimas de interferir na realidade, de mudar ou transformar formas de pensar e agir.

É necessário também dizer que a crônica costuma contar com um sujeito cujo olhar arguto está sempre pronto a captar as ocorrências, os eventos significativos ou que podem tornar-se significativos, dentro do movimento do cotidiano das pessoas, que passam pelo seu crivo de avaliação e, não raramente, transformam-se, figuram em textos sedutores e, ao mesmo tempo, motivadores de reflexões profundas por parte de seus interlocutores. Não deve faltar ao cronista a credibilidade, que vai se refletir na confiança que seu interlocutor deposita nele e nas suas temáticas discursivas, mas, ao mesmo tempo, o cronista há que contar com uma certa ousadia, que captará a emoção, a paixão admirativa do interlocutor pelo seu texto, pelas ideias defendidas.

No discurso cronístico, o impulso que leva à interação nos é revelado de uma forma explícita pelos pontos comuns que o locutor faz questão de estabelecer e manter com o leitor. Esse passo em direção ao outro afeta a própria alteridade funcional que separa os dois actantes do discurso, que se vê reduzida sempre que o leitor responde positivamente ao convite do locutor, com ele se identificando, numa relação de empatia, conforme constatamos em Charaudeau (2006).

Esse movimento em direção ao parceiro nos leva a afirmar que a produção cronística formaliza a pretensão de gerar um efeito patêmico no outro, uma vez que não se limita a um mero ato informacional por parte do locutor, mas implica um movimento desse no sentido de exercer influência (persuasão, sedução) sobre o leitor, provocar sentimentos, emoções variadas naqueles que o leem, enfim, desencadear as paixões que, além da razão, alimentam o espírito humano.

Da mesma forma, do ponto de vista da recepção, percebe-se que os sentimentos vivenciados pelo leitor não se devem apenas à operação interpretativa que lhe cabe efetuar, mas resultam do seu envolvimento com o contexto imediato e mediato em que o escritor se acha circunscrito. Com isso, o envolvimento da instância receptora não se justifica apenas pelo contato com o texto em sua materialidade, mas, também, pela assimilação do modo como a instância produtora conduz seu ato discursivo.

Portanto, conforme apregoa Todorov (1980), todos os gêneros provêm do discurso humano; o discurso, então, não se encontra despido daquilo que constitui o aparato do espírito humano: razão e emoção, crenças, valores compartilhados que defendemos, julgamos como adequados ou não. Estão em jogo nesse ato discursivo a forma como é tecida a interação, o diálogo em sua qualidade de troca, resposta, rejeição ou de aquiescência às ideias do outro, enfim ao processo dialógico como um todo.

 

2. João do Rio: cronista de rua e de janela

Pretendemos, a partir desta seção, aplicar os princípios teóricos apontados neste trabalho, a fim de examinar o discurso de um dos nossos primeiros cultores do gênero crônica. João do Rio, cumpre esclarecer de antemão, é o pseudônimo do escritor João Paulo Alberto Coelho Barreto, dentre outros como: Claude, Cara d’Ache, Joe, José Antônio José, que eram usados de acordo com o título do jornal em que era veiculada a sua crônica. Estes são os jornais de que foi colaborador: A Cidade do Rio, ao lado de José do Patrocínio; Gazeta de Notícias; A Notícia; Semana; Cosmos; A Cigarra; A Bruxa; A Rua.

 Na opinião de vários especialistas, foi João do Rio o primeiro a consolidar a crônica como gênero de cunho social. Grieco assim retrata esse escritor, em sua face de cronista:

 

[...] esse bárbaro da América, em cujo sangue pesavam atavismos africanos, foi um mestre da crônica, dominando como ninguém um gênero [...] híbrido e borboleteante, mosaico bizantino por ele convertido em pura obra de arte, seja pela insolência da sátira, seja pela bela desordem lírica de certos trechos descritivos (GRIECO, 1933, p. 177-178).

 

João do Rio cronista, retratado com exímia habilidade por Grieco, pratica genuinamente o gênero, pelo fato de a crônica ser, no Brasil, realmente híbrida, carnavalizada, dotada de explícita polifonia. Nela cabem diferentes modos de organização do discurso: entre eles a narração, o comentário. Diferentes posturas enunciativas por parte do locutor: um locutor ora irônico, ora indignado, ora cético; estilos diversos de fala, articulados a partir das posturas assumidas por cada um deles, por cada mise en scène discursiva articulada pelo cronista.

Tudo isso, tendo como material fundamental de linguagem e de discurso um gênero que acolhe o hibridismo como constitutivo dele: há crônicas travestidas de oração, por exemplo; crônicas que trabalham a polifonia, dando um espaço de fala quase total à fala que se opõe à do cronista e que ele abriga no seu texto, a fim de que seja usada, por exemplo, como recurso argumentativo. Enfim, é característico dela abrigar todas as manifestações que engrandecem o gênero e o tornam rico do ponto de vista dialógico.

Transcrevemos, agora, o trecho de uma das crônicas publicadas por João do Rio no jornal Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, no ano de 1905. Cronista de rua e de janela e flâneur como os cariocas que perambulam por suas crônicas, ele assim descreve, apologeticamente, a “rua”, componente e símbolo por excelência das cidades, dos aglomerados urbanos que se iam constituindo na época. Eis, pois, o nosso autor instituído como o FLÂNEUR por excelência de suas crônicas em A alma encantadora das ruas, aqui examinada, bem como da cidade onde nasceu e viveu, o Rio de Janeiro.

 

“A rua” (excerto I)

João do Rio

 

É preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo incompreensível […] Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. […] E de tanto ver o que os outros quase não podem entrever, o flâneur reflete. [...]. É vagabundagem? Talvez. Flanar é a distinção de perambular com inteligência. Nada como o inútil para ser artístico (RIO, 2008, p. 178-186).

 

Ainda que apresentadas em trecho sucinto, as considerações acima nos remetem a uma das propriedades de autores da crônica, considerada típica por esse autor: a de “olheiro”. De fato, João do Rio entendia a crônica como a projeção de um olhar agudo que se entretinha com as ruas, com as pessoas que por elas andavam, bem como com toda sorte de acontecimentos ocorridos no dia-a-dia. Afinal, era esta a missão dos estetas do cotidiano, expressão que nos parece ideal para nomear os cronistas: espiar as ruas, procurando guardar em seu espírito os acontecimentos, as figuras, os tipos selecionados para fazer parte dos seus relatos e das suas reflexões.

Infere-se daí, portanto, que a temática da rua já era saborosa, na época, e variada na forma como era abordada e descrita pelos cronistas. Exemplo ilustrativo desse sentimento nos é dado em fragmento como o de abaixo, transcrito de texto do autor aqui examinado. Ele solidifica suas observações a respeito do que se passa nas ruas, focalizando, no caso, o triste fim do dia dos operários de uma fábrica do Rio de Janeiro:

 

“As mariposas do luxo” (excerto II)

João do Rio

 

[…] É a hora indecisa em que o dia parece acabar e o movimento febril da rua do ouvidor relaxa-se […] os operários vêm talvez mal-arranjados, com a lata do almoço presa ao dedo mínimo. Alguns vêm de tamancos. Como são feios os operários ao lado dos mocinhos bonitos de ainda há pouco.

[…]

As raparigas ao contrário: vêm devagar […] olhando, discutindo, vendo. Por trás do vidro polido [...], sedas, plumas, rendas.

Repara só, Jesuína …

Ah! minha filha. Que lindo!

Elas, coitadas! passam todos os dias a essa hora indecisa e parecem sempre pássaros assustados […]. Aquela rua não as conhecerá jamais. Aquele luxo será sempre a sua quimera (RIO, 2008, p. 168-170).

 

 

Embora escrita numa linguagem leve e aparentemente despretensiosa em seu toque de oralidade, o texto nos mostra um autor engajado política e socialmente, que faz do jornal uma espécie de “república do pensamento”, é a locomotiva intelectual, democrática, reproduzida todos os dias, levando em si o frescor das ideias e o fogo das convicções, confirmando-se, com isso, a observação de Certeau (2007, p. 201), segundo a qual, nessa época, a escritura assumia a dimensão de “figura histórica”.

Os diferentes espaços abertos pela evolução tecnológica e pelas formas de organização topológica e social observadas nos “tempos modernos” coetâneos àquele período (segunda metade do século XIX) demandavam a divulgação de informações acerca do que ocorria nos centros urbanos. Já se sentia na sociedade capitalista sinais de degenerescência, daí a necessidade que, aos poucos, impunha-se ao povo, de ver e de ser visto, conforme observa João do Rio, a seguir.

 

“Os dias passam” (excerto III)

João do Rio

 

O carioca vive à janela. Você tem razão. Não é uma certa classe; são todas as classes. […] Passe você às noves horas. […] Passe ao meio-dia. […] Passe às três da tarde, às sete da noite, às nove, às dez, está tudo sempre cheio (RIO, 1912, p. 345-346).

 

Raul Antelo, organizador da coletânea A alma encantadora das ruas, comenta que, da janela, ao mesmo tempo em que se vê o outro, é-se visto por ele. No seu modo de pensar, a janela “marca o ponto em que se tocam o próprio e o alheio, o espaço e o tempo” (ANTELO, 2008, p. 9). Por isso o ato de caminhar caracterizava o espaço urbano, onde, segundo afirma Certeau (2007, p. 171): “vivem os praticantes ordinários da cidade […], caminhantes, pedestres, cujo corpo obedece aos cheios e vazios de um ‘texto’ urbano que escrevem sem poder lê-lo.”

Nesse sentido, o flâneur possui uma peculiaridade que o distingue dos demais caminhantes: ele prefere ver a ser visto. Esse tipo é uma espécie de caminheiro errante, que “ganha” as ruas para testemunhar as experiências da sociedade. Daí, nos perguntarmos: na cidade, quem é que se expõe nas ruas? Por que as pessoas o fazem? Para o próprio João do Rio, nosso padrão de flâneur da época,

 

[…] a rua nasce, como o homem, do soluço, do espasmo. Há suor humano na argamassa do seu calçamento. […] A rua sente nos nervos essa miséria da criação, e por isso é a mais igualitária, a mais socialista, a mais niveladora das obras humanas (RIO, 2008, p. 30).

 

Em tom ainda mais determinado e irônico, completa ele o seu raciocínio da seguinte maneira:

“A rua” (excerto IV)

João do Rio

 

Algumas [ruas] dão para malandras, outras para austeras; umas são pretensiosas, outras riem aos transeuntes e o destino as conduz como conduz o homem, misteriosamente, fazendo-as nascer sob uma boa estrela ou sob um signo mau, dando-lhes glórias e sofrimentos, matando-as ao cabo de um certo tempo (RIO, 2008, p. 178-186).

 

 

De certo modo, confirma-se aqui a ideia de que a vida da crônica jornalística no Brasil – e, como não poderia deixar de ser, do próprio cronista-flâneur – começa ao “rés-do-chão”, conforme afirmação do crítico literário brasileiro Antonio Candido (1992).

Dessa sorte, João do Rio, um dos precursores dessa verdadeira mania nacional de escrever crônicas, configurava-se como um espectador fascinado, que dava forma linguística pessoal ao texto urbano, possibilitando, assim, que as pessoas pudessem lê-lo. Nesses textos, ele buscou incorporar tipos sociais variados aos quais se ajuntava ele próprio, conforme uma de suas confissões a esse respeito:

 

“A rua” (excerto VI)

João do Rio

 

Quando o flâneur deduz, ei-lo a concluir uma lei magnífica por ser para seu uso exclusivo, ei-lo a psicologar, ei-lo a pintar os pensamentos, a fisionomia, a alma das ruas. E é então que haveis de pasmar da futilidade do mundo e da inconcebível futilidade dos pedestres da poesia de observação...

Eu fui um pouco esse tipo complexo, e, talvez por isso, cada rua é para mim um ser vivo e imóvel (RIO, 2008, p. 178-186).

 

Mais que espectador, esse flâneur apresenta, em seus retratos e autorretratos, traços comuns aos de seus personagens, aos da cidade, cenário híbrido que, em sua época, abrigava grupos singulares – estivadores tatuados de hieróglifos, costureirinhas líricas, poetas nefelibatas, pessoas gananciosas, escravos nus, senhores em rede, matronas conservadoras, índios batidos, negros presos a ferro, chineses bêbados de ópio, marinheiros embrutecidos pelo álcool, feiticeiras ululando canções sinistras –, todos eles gente que protagonizava o drama social vivido pelos homens.

Deduz-se de tal situação que, na realidade, os protagonistas flâneurs de João do Rio exercem o papel de anti-heróis, revelado tanto em termos de sua posição social quanto das práticas discursivas e sociais e da linguagem que utilizam.

Na crônica intitulada “Modern girls”, por exemplo, o autor aborda o tema da pedofilia, relatando um caso de prostituição infantil testemunhado por ele, numa confeitaria.

 

 

 

Modern girls (excerto VII)

João do Rio

 

As modern girls! Não imagina você a minha pena quando as vejo sorrindo com imprudência, copiando o andar das cocottes, exagerando o desembaraço, aceitando o primeiro chegado para o flirt, numa maluqueira de sentidos só comparável às crises rituais do vício asiático!... Elas pedem o louvor, o olhar concupiscente, como os artistas, os deputados, as cocottes; as palavras de desejo como os mais alucinados títeres da Luxúria (RIO, 2008, p. 186-188).

 

De outra feita, eis-nos diante da história do mendigo Justino:

 

[...] estava inteiramente dominado, escravizado àquela figura esfingética da lama urbana, não tinha forças para resistir à sua calma e fria vontade. Oh! Ouvir esse homem! Saber-lhe a vida (RIO, 2008, p. 46).

 

Assim, vai-se formando a galeria de tipos humanos e situações sociais emergentes, registrados pelo autor quase sempre com espírito cético, pessimista e, por vezes, cínico. Esse sentimento serve de moldura para um quadro real da vida que muitos brasileiros levavam naquele tempo e que ele assim descreve:

 

“A rua” (excerto VIII)

João do Rio

 

Todos esses pobres seres vivos tristes vivem do cisco, do que cai nas sarjetas, dos ratos, dos magros gatos dos telhados, são os heróis da utilidade, os que apanham o inútil para viver, os inconscientes aplicadores à vida das cidades daquele axioma de Lavoisier: nada se perde na natureza […] (RIO, 2008, p. 178-186).

 

Pelo que se lê a seguir, também, nem mesmo os festejos do carnaval escapam à sensibilidade de sua pena e na forma como ela abriga modos de organização do discurso que surpreendem, como os versos. Eles trazem à prosa da crônica a musicalidade da canção, num ato de genuína e habilidosa polifonia.

 

“A rua” (excerto IX)

João do Rio

 

Senhor Deus! Era a loucura, o pandemônio do barulho e da sandice […] tínhamos chegado a uma esquina atulhada de gente […]. Dançando e como que rebentando as fachadas […] estavam os do Prazer da Pedra Encantada e cantavam:

Tanta folia, nenê! Tanto namoro;

A Pedra Encantada ai! ai! Coberta de ouro!”

(RIO, 2008, p. 178-186).

Na prática escriturística de João do Rio, é patente a construção cuidadosa e paciente de uma poética, de um lirismo tratado em prosa de crônica, o que nos revela uma de suas peculiaridades: o andar movido pela inquietude. No tecido urbano ele parece procurar um lugar e, ao mesmo tempo, inscrever, legitimar, resgatar os lugares dos outros, seus próximos. Do mesmo modo, busca recuperar as vozes da oralidade, encaixando-as no espaço da língua escrita jornalística, literária, onde se sentem soberanas. “Fotógrafo itinerante”, João do Rio inaugura, em suas crônicas, espaços habitados e ocupados – no mais das vezes, obscuros –, compondo, assim, a sua história, escrevendo a sua biografia, num verdadeiro caleidoscópio de vozes, de polifonia.

O retrato em crônicas da “populaça”, das agonias, da tristeza, do mesquinho do cotidiano, da frivolidade, enfim, geram no cronista a verve do lirismo, da poesia em plena crônica. Por isso, afirmamos, com Todorov (1980), que o “prosaico” e o “poético” nada mais são que dimensões distintas da vida e do mundo.

Ao se referir às modinhas e cançonetas do povo nas calçadas, num de seus escritos, ele assim nos fala da origem dessas músicas, confundindo-as, a nosso ver, com a do gênero que cultiva:

 

“A musa das ruas” (excerto X)

João do Rio

 

Nessas quadras mancas vivem o patriotismo, a fé, a pilhéria e o desejo da populaça, desses versos falhos faz-se a sinfonia da cidade, proteiforme e sentimental. A modinha e a cançoneta nascem de um balanço de rede, de uma notícia de jornal, do fato do dia, do namoro e da noite, assunto particular (RIO, 2008, p. 239).

 

  Perguntamo-nos, então, a respeito de João do Rio, o que ele próprio se perguntou a respeito do lirismo das modinhas: “Como é possível, na miséria da urbs, no pó, na secura, na sujeira das vielas sórdidas, nas escuras alcovas das hospedarias reles, vibrar tamanha luz de poesia?” (RIO, 2008, p. 248). Nos nossos exemplos, o texto reflete o arroubo dos sentimentos que lhe vão na alma e que não consegue conter. Percebe-se que, no seu jeito de flanar pela crônica, João do Rio a concebe (e produz) num nível de habilidade e destreza semelhantes aos grandes de sua época: José de Alencar (2007), Machado de Assis (2007), Bilac (2007) entre outras figuras representativas dessa fase, dessa época.

 

 

Considerações finais

Para finalizar as reflexões aqui apresentadas, gostaríamos de dizer que a forma encontrada de explorar a vida do gênero crônica em João do Rio foi surgindo das leituras que fizemos, naquilo que elas tinham de preocupadas com os objetos de discurso que se configuravam nas suas crônicas. Contemplar a vida do gênero numa grande fase que ele viveu (fins do século XIX e início do século XX), com tantas transformações sociais e históricas que o mundo e o gênero viveram, como se comportou e se comporta a sua essência, a sua integridade, quando sabemos que ele influencia e, ao mesmo tempo, sofre a influência das formas de ação e de discurso em sociedade. Nas lições que nos fornece João do Rio a respeito do modo de ser da crônica, procuramos depreender e apontar, com as análises, os traços considerados por nós como típicos desse gênero. No nosso modo de ver, eles nos revelam, pelas crônicas produzidas, um quadro dos primeiros, e grandes, passos duradouros do cultivo desse gênero no Brasil.

Assim é que, movido por uma temática centrada em tipos humanos que habitavam as cidades de maior porte, o cronista descreve, num misto de entusiasmo e de decepção, o processo de transformação por que passavam nossas capitais, rumo a um estado de vida completamente diferente do que imperara até então. Fonte documental, jornalística e literária indispensável, a crônica registra tanto os aspectos positivos quanto negativos desse cotidiano, expressos, discursivamente, por seu locutor que, ora se mostra surpreso, ora indignado e/ou frustrado diante do quadro social que se esboça à sua frente e de que sente fazer parte.

Nesta breve incursão pelos escritos de um autor de fins do século XIX e início do século XX, selecionado para estudo, procuramos demonstrar como a crônica era entendida por ele e como se estruturava a sua prática escriturística, para analisar um dos caminhos que o gênero estava tomando no Brasil daquela época.

Aprendemos com Bakhtin (1997) que, para que um gênero se desintegre, é preciso que se perca a sua essência (archaica). Se não, ele é capaz de reaparecer, transfigurado, renovado de alguma maneira, como formas renovadas de vida e de circulação social dos textos. Acreditamos que o gênero crônica sempre se renovou e se renova no Brasil, seduz o leitor pela forma como lidam com ela grandes cronistas, escritores brasileiros. Um deles foi João do Rio.

Enfim, o que este trabalho buscou foi examinar a natureza do discurso intimista da crônica jornalística praticada no Brasil, cujos autores eram e são ainda grandes literatos, pelos fragmentos representativos da escrita de João do Rio, aqui examinada, e por sua análise de tipos humanos e situações sociais sobre os quais reflete, premiando-nos com seus escritos. O trabalho realizado por ele com o objeto de discurso da crônica, o cotidiano, observa com sensibilidade o nível do pathos, a postura estética tão cara às crônicas ainda hoje, num linguajar próximo de tudo e de todos, revelando com maestria o trabalho de persuasão do interlocutor, ao mesmo tempo em que consolida os traços considerados como identificadores do gênero no Brasil.

 

Referências

ANTELO, Raul (Org.). A alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

CANDIDO, Antonio et al. A crônica, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp/Casa Rui Barbosa, 1992.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 2007.

CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2006.

GRIECO, Agripino. Evolução da prosa brasileira. Rio de Janeiro: Ariel, 1933.

RIO, João do. Os dias passam. Porto: Imprensa Moderna, 1912. p. 345-346.

RIO, João do. As mariposas do luxo. In: ANTELO, Raul (Org.). A alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 168-170.

RIO, João do. A rua. In: ANTELO, Raul (Org.). A alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 178-186.

RIO, João do. Modern girls. In: ANTELO, Raul (Org.). A alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 186-188.

RIO, João do. A musa das ruas. In: ANTELO, Raul (Org.). A alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

TODOROV, Tzvetan. Os gêneros do discurso. São Paulo: Martins Fontes, 1980.

Data de Recebimento: 16/02/2022
Data de Aprovação: 25/03/2022