Dez anos das jornadas de junho de 2013: sentidos materializados em manchetes jornalísticas


resumo resumo

Anderson de Carvalho Pereira
Juan Monteiro



Introdução

Há dez anos, em junho de 2013, manifestações e protestos acalorados nas ruas brasileiras aparentavam centrar-se na reivindicação pelo não aumento de uma tarifa de vinte centavos de real no bilhete de ônibus urbano da cidade de São Paulo. Poucos dias transcorridos do início dos protestos, ficaram visíveis outras demandas, como explicações para os gastos públicos dos dois grandes eventos esportivos a ocorrer (Copa do Mundo de Futebol da FIFA, de 2014 e as Olimpíadas de 2016); a Copa, sobretudo, roubou a cena, em um cenário desafiador para uma análise, seja ampla e/ou mais detalhada.

Neste artigo, procuramos mostrar por quais processos discursivos a mídia atual recorta sentidos em movimento acerca dos acontecimentos de uma década atrás, seja por meio de nomeações, de breves relatos e/ou de arranjos sintático-semânticos que, outrossim, deslocam eixos da memória coletiva (discursiva), e reinstalam evidências ideológicas marcadoras de posições do sujeito do discurso. Todo este périplo conceitual faz parte do dispositivo teórico-metodológico aqui mobilizado para a análise de um corpus formado por manchetes jornalísticas.

Defendemos que é por estes caminhos discursivos que a mídia brasileira recorda as jornadas de junho de 2013 e seus fatos históricos, a partir dos quais recorta sentidos em parte possíveis de serem recuperados e analisados, na esteira de discursividades já apontadas por outros gestos analíticos, como os de Faenello e Silva (2017), Mazzola (2020), Villela e Chiaretti (2020).

 

Aspectos teóricos

Junho de 2013: das redes de memória(s) das cidades aos relatos da imprensa

O espaço urbano organizado do ponto de vista da ameaça à ordem pública em um itinerário que passa pela vigilância dos pobres pelo sanitarismo e por dramas beligerantes como o de Canudos faz parte da rede de sentidos que no Brasil põe o espaço público em movimento como arena de disputas entre grupos negligenciados ou privilegiados pelo Estado (WISSENBACH, 1999).

Esta marca da formação social em questão inclui como herança, em nosso processo histórico, disputas linguístico-discursivas de natureza variada, como ocorreu no século XVII com os efeitos de sentido sobre povoamento e suas nomeações: vilas, cidades, povoações, mocambos e santidades (NUNES, 2014).

A cidade, como parte de territórios em que é significada pela concepção empírica dominante de espaço urbano e a sobreposição que resulta em um viés abstrato e descontextualizado, é tomada como ponto de partida de nossas reflexões sobre as jornadas de junho de 2013 no Brasil; todavia, considerando que as manifestações de rua fazem parte do retorno do urbano sobre a cidade, pela rede de relações sociais de valor político, que ali estabelecem (ORLANDI, 2011).

Este efeito de retorno, de giro do olhar, do dominante em que a cidade é vista pela ordem da empiria dos prédios e centros comerciais, para território de disputas em processos discursivos nos remete ao enunciado “Vem pra rua”, posto a circular em junho de 2013.

Sem nos atermos ao processo de significação deste enunciado, recortamos na moldura daqueles acontecimentos parte do imaginário da propaganda, no caso uma propaganda da fabricante de automóveis Fiat em que se ouvia/lia o jingle publicitário em forma de canção interpretada pelo grupo “O Rappa”: “vem vamo pra rua/ pode vir que a festa é sua/que o Brasil vai tá gigante/gigante como nunca se viu”.

Como se pode notar, temos um dos discursos transversos (PÊCHEUX, 1993), que retoma o significante “gigante”, cuja paráfrase emplacou como convocação dos protestos de rua. Rua, festa, gigante. Significantes caros ao imaginário, dadas as contradições entre casa e rua (MATTA, 1997).

Àquela época o entoar da propaganda automobilística pelos manifestantes apareceu parafraseada no grito “O gigante acordou”. O grito que une, tal como um hino que marca uma unidade de Estado-nação e, portanto, de defesa comum de ideais, de território, de combate, de inimigo em comum. São estes os sentidos em jogo e algumas evidências do corpo Estado-nação, linearizado pelo “patriotismo”. Àquela altura, líamos a manchete: “Campanha ‘vem pra rua’ da Fiat vira ‘hino’ de protesto. Geralmente a propaganda usa a cultura popular, desta vez as posições se inverteram” (ROGENSKI, 2023, aspas no original).

Esta inversão aventada pela manchete é materializada no modo como o posicionamento de marca está em jogo nas aspas utilizadas pela reportagem, ao tratar a circulação do enunciado “vem pra rua” como insígnia da cultura popular. A retomada que esta última teria feito de um enunciado de propaganda sedimenta o sentido de um movimento popular e disfarça algumas heterogeneidades discursivas (AUTHIER-REVUZ, 1998), que pretendemos desalinhavar neste artigo.

Estes modos de falar de si, pelo dispositivo da propaganda, são modos reificados também presentes em slogans do cotidiano e em capas de revista. Podemos nisto incluir as manchetes que compõem nosso corpus. Isto porque são materialidades simbólicas que vem pondo em circulação sentidos em que o sujeito pode se espelhar a partir de um lugar suplementar, reificado e universal, na linha de um ideal de fabricação do bom sujeito. (TFOUNI, 2019).

Um sentido implícito da reportagem da Exame também seria o de uma antevisão, uma aposta teleológica que a marca Fiat teria a respeito dos protestos. O totem mercadoria falaria antes, alhures, oferecendo modos de dizer para quem está na rua. Por isso, o anonimato da cidade se filiaria a este enunciado e não a qualquer outro. Ocorre que em AD não se tem uma visão teleológica dos processos históricos; o materialismo histórico relido por Pêcheux (1993) se ocupa das formações sociais dos processos históricos, e da interpretação de sentidos postos em circulação por materialidades simbólicas atravessadas por formações imaginárias. Voltaremos a este ponto na análise do corpus.

Outro ponto relevante do debate sobre as jornadas de junho de 2013 é que este acontecimento histórico cresceu e se (re)modelou por meio de convocações para os protestos, veiculadas majoritariamente pelos ambientes virtuais da rede mundial de computadores e/ou em constante diálogo com estas, no momento em que os protestos já estavam em curso.

O ativismo por meio da rede social virtual Facebook, por exemplo, foi considerado por Fidelis e Lopes (2015), ao analisarem as fan pages Movimento Passe Livre (MPL)-DF e Movimento Popular da Copa-DF. As autoras chamam a atenção, por meio de uma tabela que comuta dados do Facebook à época, para a diferença entre temas/pautas reivindicativas postadas e datadas para ida às ruas; destacamos algumas: “Protesto Pacífico na Copa das Confederações; Marcha do vinagre na festa dos 5 milhões; apoio aos manifestantes de São Paulo e de todo país + Copa pra quem? (...)” (FIDELIS; LOPES, 2015, p. 47).

A análise da linha do tempo destas fan pages com data marcada e compartilhadas com alta frequência indicam estratégias que misturavam decisões no ambiente virtual com a ida às ruas, por muitos que diziam que nunca haviam participado de protestos antes, articuladas algumas vezes com convocatórias diretas de movimentos sociais já organizados. Em um aglomerado que redesenha uma nova estética das manifestações, na linha do Occupy Wall Street e da Primavera Árabe, é possível notar a capilaridade densa de uma nova forma de manifestação de massa. (FIDELIS; LOPES, 2015)

Abreu e Leite (2016) também analisaram sítios de relacionamentos da plataforma Facebook e destacam estes novos formatos de aparição no espaço público como novos repertórios de confronto, relacionados com novas manifestações históricas de expressividade.

O alcance destas redes para organizações mais visíveis e formais ou mais informais, e também beligerantes, como modos ostensivos de reagir às incertezas do mundo contemporâneo indicam um sujeito disperso, dividido entre a divulgação em fan pages (no plano de um tipo de reconhecimento público ainda hoje a ser decifrado, considerado o admirável mundo novo, trazido pelas redes virtuais sociais) e as estratégias de retorno às ruas. Portanto, entre as remodelagens do simbólico e o âmbito das formações imaginárias (a quem e o que se demanda?), determinados pelo político.

A análise de Dias (2016) sobre a tessitura entre a fibra óptica, os sinais wi-fi e as redes de interação em sua complexidade, apontam para este confronto entre o simbólico e o político. Os dispositivos tecnológicos, afirma a autora, empreendem certa ordem, porque têm eficácia técnica e pragmática, sendo que disso decorre que a eficácia simbólica dessas tecnologias reordena o espaço urbano afetado pelo digital, reinstalando diferenças. Portanto, ela explica, passa a haver mobilidade no parado, e aparente estagnação no movimento. Sendo assim, o digital sempre interfere na cidade conectada, e em seus trajetos políticos.

No caso das jornadas de junho de 2013, afetadas por uma mobilidade rarefeita, ou seja, uma textualização do sujeito pelas redes, estas últimas lhes indicaram espaços físicos e simbólicos de aparição e essa assunção lhe permitindo uma re-textualização nas redes.

É este périplo de instalação de diferentes reivindicações, por vezes dispersas e sem unidade, ressignificando a aparência da voz massificada com que estávamos acostumados, que estas manifestações se intensificaram como acontecimento histórico. Independentemente da quantidade de convocatórias feitas para manifestações de rua, se de dentro e/ou fora do espaço físico de uma casa, escritório, ou mesmo da rua, onde em muitas grandes cidades há na parte central sinal wi-fi, estas novas formas de reconhecimento público, de algum modo, já estavam em questão.

Brossaud (2003) já alertava para o segundo ponto decisivo para nossa reflexão, o da dimensão de ficção da reivindicação do direito à cidade. A autora ensina que as cidades são decisivamente cidades-corpos, corpos estes compostos de uma projeção de imagens, que, como notamos, são virtualidades em movimento e atravessamento. Estas projeções virtuais no mosaico que compõem o corpo da cidade ratificaram o personalismo que as cidades-corpo reivindicam por meio de um reconhecimento individual para um evento específico, como se pode depreender das reflexões da autora, por meio do testemunho de outrem: o “eu estava lá” (DULONG 1998 apud BROUSSAUD, 2003). Portanto, a ficção é postada para além das fibras ópticas.

Como queremos mostrar, esta maneira de relatar esta experiência entre a imprensa e o sujeito comum se localiza em um desnível. A manchete que instala o marco produz um sujeito do conhecimento para recobrir esta virtualidade. O testemunho relatado e estampado pela imprensa, como vamos mostrar aqui, faz um uso da memória que se procura neutro, distante, factual, no marco textual dos “dez anos” repetido pela imprensa.

Esta marca do “eu estava lá” ganha a forma do “sempre-já-aí” escandida por Pêcheux (1993) e que inscreve o sujeito como operador que supõe um esquecimento, não apenas como aparador das arestas do campo mais amplo do Outro a que não tem pleno acesso (por conta do recalque), mas que tenta debelar o equívoco real dos fatos históricos imprimindo nestes o lugar de sujeito do conhecimento. Da dispersão chegamos a um ponto possível a partir do qual se narra.

Este processo midiático do sujeito do conhecimento do fato histórico afetado pelo esquecimento número um permite um lugar de sujeito do discurso; por esta voz anônima, trivial, emerge outro lugar do sujeito, formatado em sujeito do conhecimento, o lugar do sujeito da imprensa. No discurso jornalístico, a veracidade da recuperação dos fatos decorre também da determinação sobre outra camada discursiva, a do esquecimento número dois, que legitima uma forma possível de conhecer os fatos históricos, como única aparentemente possível.

Ou seja, seu modo específico de recordar (e recortar sentidos) pelos quais incidem formulações sobre os enunciados, ocorre na forma de esquecimentos e repetições que desnivelam ao mesmo tempo que apagam traços de desigualdades nos discursos.

 

Algumas questões sobre as condições de produção das manchetes analisadas

Uma vez que deslocado do modo do sujeito comum emergir na forma de sujeito do conhecimento sob a possibilidade de narrar sobre as “jornadas de junho de 2013”, o analista de discurso, como uma vertente científica que representa o pesquisador, e o discurso jornalístico, como “parte integrante da institucionalização da sociedade como realidade objetiva” (SCHWAAB, 2007, p. 14), percorre rumos do sentido que arranjam, cada um a seu modo, os desníveis e repetições acima mencionados.

Corroboramos a reflexão de Schwaab (2007) sobre o discurso jornalístico cujos efeitos são determinados pela organização da empresa jornalística, que direciona a interlocução com o público leitor e o uso das fontes, ou seja, manuseia a base material do sentido; bem como, faz uso de um “sistema perito” (expressão do autor, p. 20)

Isto porque o discurso jornalístico coordena dispositivos não apenas de seu campo, mas de outros universos discursivos, e aparece como um “discurso sobre” (expressão do autor, itálico no original, p. 20), porque envolve “[...] os interlocutores de um processo discursivo, a leitura e a interpretação”, sendo esta última em lugar de entremeio, que vai da escolha do que apresentar ao leitor à garantia de sua legitimidade.

Por conta disso, nesta seção também vamos tratar da interpretação do sujeito comum, a do analista e de algumas questões relativas às condições de produção das manchetes do corpus. Os gestos interpretativos que assinalam formas-sujeito emergem da trama de sentidos que são tecidas em função de fatos de linguagem e de acontecimentos históricos e discursivos (ORLANDI, 2022).

O gesto do analista é o de desvelar e não apenas de compreender e refletir os movimentos interpretativos do sujeito do discurso. A interpretação é constitutiva da atividade linguageira do sujeito comum, mesmo porque não há sujeito sem linguagem e fora da estrutura simbólica desta última. Não há metalinguagem. Ocorre que o sujeito comum pode não se dar conta de alguns gestos de interpretação; e, claro, o analista não depreende todos os gestos possíveis, posto que também é interpelado pela ideologia. (ORLANDI, 2007a).

Todavia, o dispositivo teórico mobilizado pelo analista diferente do modo pelo qual o sujeito comum, muitas vezes, é recrutado pelas formações ideológicas em um aglomerado de indivíduos e não sujeito do discurso. (ORLANDI, 2007a).

Mas poderia o sujeito comum ocupar um gesto analítico? Esta questão a nosso ver sempre estará em aberto em AD. A depender do corpus, do modo como movimentos sociais e organizações políticas problematizam a interface entre língua, inconsciente e História, esta possibilidade emerge, o que indica que não abordamos aqui gesto do analista versus gesto do sujeito comum como uma dicotomia, mas em relação de alteridade, como parte de um processo contraditório.

 Acrescentamos que o modo pelo qual mobilizamos o arcabouço teórico para realçar o compromisso ético e político que, da posição de analista de discurso, não se prende a dogmatismos quantitativos, categorias, metas organizacionais, etc. Um lugar sujeito que emerja de deslocamentos da ordem social e política impostas, que possa marcar a assunção de um lugar que estranha os sentidos dominantes, portanto.

Por isso, fatos históricos, marcados por possibilidades de acontecimentos discursivos, como no caso das jornadas de junho de 2013 têm destaque. O real da História traz efeitos como a produção de causação provisória para o que é falha constitutiva. Este debate opera um movimento de retorno aos trabalhos inaugurais em AD sobre o discurso político, mas não vamos nos ater a esse retorno.

Como já foi mencionado acima, o gesto de leitura (interpretação) das manchetes a serem analisadas, por sua vez, ocupam o lugar do sujeito do conhecimento. Existem procedimentos de natureza pragmática no campo do discurso jornalístico (SCHWAAB, 2007); aquilo que constitui o lugar do sujeito-leitor e a interlocução está de antemão marcada pelo lugar de legitimidade conferido à imprensa de modo geral na construção do que se denomina opinião pública. Existe uma literalidade aparente imposta pelo encadeamento sintático, que negam o equívoco e o real da História para aparentar fidelidade e veracidade aos fatos históricos e reforçam esta legitimidade previamente atestada por modos de recortar a memória discursiva.

Chama a atenção que estas manchetes se organizam como proto-narrativas. Consideramos estas como narrativas embrionárias, em que há lacunas a serem preenchidas pelo sujeito-leitor e/ou pelo texto jornalístico que segue, desde o chapéu da notícia, até o chamado texto-reportagem propriamente dito, para persuadir o interlocutor. O argumento central é mobilizado pelo formato narrativo, portanto; o que não garante o funcionamento do discurso narrativo, mas não vamos nos ater neste ponto.

Motta, Costa e Lima (2004) explicam que o uso de narrativas como dispositivo argumentativo para resgatar eventos encadeados a cada manchete e/ou notícia é uma estratégia comumente utilizada pela grande mídia, o que permite manter um tema/assunto por até anos. A veracidade se dá por um contrato implícito de confiança feito com a população e um efeito “logomítico” (termo dos autores, p. 35) da linguagem utilizada.

Embora de outro lugar teórico, este termo usado pelos autores é interessante porque permite uma leitura discursiva a respeito de como estas narrativas permitem um deslocamento de quem pode reelaborar lugares acessíveis para o leitor rever, como em um espelho, seu mito individual, para usar dois termos lacanianos. A linguagem objetiva, afirmam os autores, provocam certo distanciamento, mas também permitem identificações mais particulares.

A nosso ver, com estas estratégias de natureza pragmática, o discurso jornalístico alimenta a ilusão de completude do sentido, por fazer crer que preenche plenamente partes faltantes de uma narrativa fraturada, esburacada, lacunar.

O lugar da manchete como eixo organizador e, portanto, simbolizador de elementos do real da História que clamam por significação, significação ainda não estabilizada semanticamente, seja como acontecimento histórico ou discursivo, escapa às redes de sentido, mas são transmitidas ao leitor comum como lacunas plenas de sentido.

Mesmo os gestos da leitura silenciosa e espontânea (ORLANDI, 2007a) são administradas por uma determinação em que a autonomia do jornalista, do sujeito-leitor e da interlocução é controlada por efeitos de historicidade delimitados inclusive por uma memória construída pelo próprio discurso jornalístico (SCHWAAB, 2007). Este, por sua vez, sustenta um uso do efeito de exterioridade que o atesta em suas formulações sobre o processo histórico como mais fiel a um código que estaria acima, como uma metalinguagem.

Esta busca por mostrar fidelidade e veracidade tem um elemento performático ligado, conforme Charaudeau (2016), à manipulação da opinião pública, de modo que esta possa ocorrer de forma pouco notada, seja através de articulações pautadas num discurso que lhe pareça contrário, seja num discurso que impressione aquele que é manipulado, com nuances sedutoras e dramáticas.

Os enunciados analisados por gestos analíticos, tal como vemos em Singer (2013), Faenello e Silva (2017), Mazzola (2020) e Villela e Chiaretti (2020) nos ajudam a deslocar o eixo do sujeito do conhecimento, em alguns pontos convergente com o sujeito idealizado pelas manchetes. Isto porque estes autores interpretaram partes deste processo discursivo de negociação entre vozes anônimas (do sujeito comum) e modos dos efeitos de exterioridade serem linearizados textualmente instalando discursividades (ORLANDI, 2007a). É o que veremos adiante.

 

As discursividades de junho de 2013 e o gesto interpretativo do analista

Em AD, não trabalhamos com Estado da Arte, nem com revisão integrativa, nem tampouco com revisão bibliográfica datada ou restrita a alguma área do conhecimento, uma vez que não está em jogo o indivíduo empírico nem categorias sociais, aportes que, por vezes, alinham-se a uma abordagem cumulativa do conhecimento. As discursividades que elencamos aqui indicam parte do debate conduzido por trabalhos que operaram gestos analíticos.

Singer (2013) conduz seu debate partindo, sobretudo, da questão “Jornadas ou acontecimentos?” (p. 23). Para o autor esta indagação evoca o lugar histórico-discursivo enunciado em 1848, relacionado a acontecimentos como a rebelião de fevereiro e a Segunda República Francesa, que em junho de 2013 havia também uma diferença gritante entre interesses classistas ali amalgamados, mas sem o “desenho inserrucional” francês, pois “Ninguém seriamente imaginou estar em curso uma tentativa de revolução” (SINGER, 2013, p. 24).

Faenello e Silva (2017, p. 1), por sua vez, relembram que “desde a Diretas Já!, em 1984, e as manifestações pelo impedimento de Fernando Collor de Mello, em 1992, a grande classe média não ia às ruas manifestar-se politicamente”. As autoras enfatizam estes acontecimentos para tratar sobre o retorno da classe média às grandes manifestações de rua, tornando-se ponto relevante da atual realidade sociopolítica brasileira, ainda que esta presença deva ser avaliada com muito cuidado, pois diferentes posições-sujeitos não são saturadas por “classes” quando o assunto é embate político.

O aumento e a pluralidade de demandas do precariado (SINGER, 2013) também determinou a base material do sentido. É o que as analistas Villela e Chiaretti (2020) ratificam, a saber:

 

O crescimento do número de manifestantes, por sua vez, foi acompanhado pelo número de elementos na pauta das manifestações, resultando em uma disputa pelos sentidos das e nas manifestações e, com isso, uma série de derivas dos dizeres que apontavam para diferentes pautas que iam além da questão do transporte público e se dedicavam a questões outras relacionadas, de modo geral, ao sistema político e econômico do país (VILLELA e CHIARETTI, 2020, p. 14).

 

É importante, como fizeram Villela e Chiaretti (2020), analisar “a disputa de sentidos e a dispersão da autoria e dos gestos de interpretação” (ORLANDI, 2001 apud VILLELA e CHIARETTI, 2020, p. 15). Ao abordarem o uso das hashtags, em especial a tag #nãoésópelos20centavos, Villela e Chiaretti (2020) salientam que há um processo perifrástico por meio desta repetição, mas que em meio a este processo, as possibilidades de novos sentidos dão abertura para a polissemia.

Como é possível destacar, a polissemia está atrelada ao equívoco e isto ocorreu de forma muito acentuada nos sentidos em jogo nos discursos (re)produzidos nas manifestações. A autoria do discurso “Não é só pelos 20 centavos” é dada supostamente a uma instituição: Movimento Passe Livre (MPL). No entanto, ao ser deslocado de um espaço-tempo de autoria – considerando sua gênese – para os diversos acontecimentos e modos de circulação distintos, para as autoras, a instituição que enuncia deixa de emitir seu efeito perifrástico (VILLELA e CHIARETTI, 2020).

Deste ponto de vista, quando “os dizeres se deslocam das ruas de São Paulo para as redes há a produção de uma nova cena enunciativa que acarreta um novo acontecimento produzindo, dessa forma, uma temporalidade outra para as definições do que foram os protestos” (VILLELA e CHIARETTI, 2020, p. 17-18). Assim, novos gestos de interpretação acontecem com novas cenas e consequentemente novos sentidos em meio ao turbilhão de informações e atribuições por parte dos sujeitos que interpretam ou que enunciam. Todo este processo não garante que o efeito perifrástico da circulação funcione, havendo deslocamentos no meio do caminho, podendo estes serem ditos da mesma forma, mas com sentidos diferentes.

Uma das decorrências possíveis destes deslocamentos, pode ser buscado em Mazzola (2020, p.91), para quem há uma: “[...] diferença aguda entre o registro histórico produzido pela mídia impressa e por aquele produzido pelas redes sociais”.

Ainda conforme Mazzola (2020), sobre capas publicadas em relação às manifestações de junho de 2013, “o jornal Folha de S. Paulo vincula-se a uma certa formação ideológica tida como “conservadora” no Brasil – ou seja, que a produção de seus enunciados é regida pela matriz semântica (sema) “ordem”” (p. 101). Isso é importante para este artigo porque as manchetes em análise dialogam com capas ou imagens estampadas, embora não seja este nosso foco.

Os desencontros entre imagem e legenda analisados por Fanaello e Silva (2017), ou pelas capas (MAZZOLA, 2020) ou de deslocamentos das cenas enunciativas e suas táticas perifrásticas (VILLELA e CHIARETTI, 2020) para um caminho da manipulação da opinião pública (CHARAUDEAU, 2016) encaminham nossa questão para ratificar Orlandi (2007a) quando afirma que o discurso da imprensa multiplica meios, à medida que tenta esvaziar o determinante político dos sentidos.

 

Análise do corpus

Dividimos em dois campos de sequências discursivas (da SD 1 à SD 8), recortadas de duas zonas de unidades de sentido (cf. ORLANDI, 1987) mais amplas (os recortes R 1 e R 2), a saber:

R 1 – a legitimação do fato histórico pela cronologia dada pela imprensa

 

SD 1 – Manifestações de junho de 2013: relembre os fatos importantes. Veja um resumo cronológico de um dos mais importantes protestos da história do Brasil (STARLLES; MELO, 2021)[1].

 

Nesta SD, vemos o estabelecimento do “resumo cronológico” dos “fatos importantes” de “um dos mais importantes protestos”. De modo indireto, mesmo sem usar a terminologia “fato histórico” a manchete se refere a estes, uma vez que o arranjo sintático faz retroação entre “história do Brasil”, “protestos”, “fatos importantes” “manifestação”. Ora, depreende-se que são fatos históricos.

O sentido de memória histórica datada é imposto pela manchete, de forma cooptada pelo discurso pedagógico (DP), no sentido dado por Orlandi (1987). Isto porque o referente (objeto do discurso) está apagado para que o sujeito-locutor possa inculcar no sujeito-leitor a evidência de que a manchete lhe garante uma transmissão de informação objetiva. Os recursos do DP, como a objetalização (“é porque é”, cf. ORLANDI, 1987) garante extrair “fatos importantes” de um “dos mais importantes protestos”. Em suma, maximizar a transparência do mais importante entre o que é já foi eleito como importante.

A substituição de “manifestações” por “protestos”, por sua vez, sustenta uma falsa sinonímia (PÊCHEUX, 1993). Somado a isto, vemos que a topicalização marcada em “manifestações”, anteposta a “protestos” articula um efeito de sentido de que estes últimos foram atos minoritários e relação ao campo mais amplo das “manifestações”. O sentido de revolta, insurgência de “protestar” (e aqui vale mencionar esta mudança para o verbo substantivado) organiza uma proporcionalidade evidenciada pela manchete.

Esta recuperação de “manifestações” por um significante que instala uma dispersão no sentido também ocorre na SD2, quando temos a marcação dos dez anos decorridos:

SD2 – Dez anos dos protestos de junho de 2013: Movimento que convocou atos que têm origens em SC. Manifestações que completam 10 anos neste mês tiveram como protagonistas grupo surgido após “Revolta da Catraca” (LAURINDO, 2023).

Neste caso, “Revolta da Catraca” foi um movimento urbano organizado em Santa Catarina, contrário ao aumento da tarifa de ônibus. A reivindicação de um marco de “início”, inaugural para este movimento desloca a evidência de que a “origem” estaria ligada ao emblemático valor de 0,20 centavos de real que estampava as manchetes sobre São Paulo. Souza (2020), por exemplo, menciona o início em 3/6/13, na periferia de São Paulo/SP, no bairro Capão Redondo. O mesmo autor esclarece que em 2005 já haviam ocorrido por parte do MPL, vários “catracaços”, ou seja, protestos mobilizados nas catracas do transporte público.

A retroação entre “revolta”, “manifestações”, “movimento” e “protestos” também vale uma análise. “Movimento” pode se referir ao MPL e ao MPC-DF. Ao tentar acompanhar a cronologia feita pela manchete, temos: os “protestos” teriam surgido de “Movimento” que, por sua vez, deriva de “manifestações” surgidas em uma “Revolta”.

Cabe um estranhamento. A manchete fala em “protagonistas”. Este seria um grupo que por sua vez surgiu da “Revolta da Catraca”. Ocorre que há um apagamento ao mencionar “Revolta da Catraca”. “Catraca” é um dispositivo de cobrança de tarifa de ônibus urbano que não se revolta. Este deslocamento da “revolta” do grupo para “catraca” cria um efeito de sentido de anonimato. Nem “grupo”, nem “Movimento” é nomeado.

Há uma manobra também com o uso da relativa em “Movimento que convocou”. O valor da adjetiva restritiva neste segmento do enunciado realoca o valor de “protagonistas” e “origens” fazendo com que a posição do sujeito do discurso esteja em “Movimento que convocou”. O uso da relativa com o “que” indica que não se trata de qualquer movimento, mas não o menciona. Mencioná-lo poderia deslegitimar a marcação da origem dada pela manchete.

Mas por que o sujeito do discurso jornalístico se preocuparia com as origens das jornadas de junho de 2013? A marcação temporal “dez anos” se repete em várias manchetes. Ora como “dez anos dos” (SD2), ora como “durou dez anos” (SD3), ora com a partícula “das” em “dez anos das” (SD5). Os efeitos de sentido sobre estas marcações temporais que inclusive, recuperam o lugar de legitimidade sobre este acontecimento histórico serão nosso foco nas SDs 3 e 4.

 

SD 3 - 13 de junho de 2013: a noite que durou dez anos.

 

Dando sequência às reflexões anteriormente apresentadas, notamos que a marcação temporal continua a ser um marcador para atestar a legitimidade da manchete. Todavia, a precisão que a data traz é questionável. Os fatos históricos não podem ser organizados de forma datada, mesmo transcorridos. Uma das questões que podemos formular a este respeito é: por que marcar 13/3/13 para o início, uma vez que se pode considerar dia 7/6/13, por exemplo, uma vez que nesta data em SP já houve manifestações do MPL, e meses antes, em vários Estados?

Uma das explicações pode se firmar no fato histórico de que no referido dia ocorreu o aumento da tarifa de ônibus urbano, que ficou conhecida como “batalha da consolação”; aumento este revogado pelo prefeito e pelo governador de São Paulo, no dia 19/6/2013 (SOUZA, 2020). Stochero e Passarinho (2014), por exemplo, marcam temporalmente as referidas jornadas neste acontecimento. Nesta ocasião, no lugar físico da rua que nomeia a batalha, houve dura repressão policial sem negociação pela prefeitura.

Souza (2020), ao relembrar os catracaços de 2005 que mencionamos acima, analisou a pluralidade de itinerários no espaço urbano que tomados pelas jornadas, o que torna ainda mais arriscado a marcação temporal, seja esta em que data for, para abordar as referidas jornadas.

Como já foi dito, mesmo assim, há uma arbitrariedade, posto que os dias anteriores também podem ser denominados “jornadas de junho de 2013”, pois mais de uma semana transcorrida do referido mês. A data tal como exibida também forma um número palíndromo numérico, a saber: 13/6/13 que assim exibido serve de espetáculo midiático.

A SD mostra também uma paráfrase do título do documentário “O dia que durou 21 anos” (TAVARES, 2013). Neste caso, o marcador temporal é aquele que se atribui ao período de ditadura civil militar (1964-1985). No referido documentário, os diálogos protagonizados pelo presidente Lyndon Johnson por telefone e pela tomada do exército nas ruas brasileiras, no referido Golpe de Estado, com papel central do governo dos Estados Unidos é destaque.

O funcionamento, portanto, do que não está dito na superficialidade linguística da manchete reivindica a sinonímia entre dois fatos históricos de natureza simbólica diversa. O modo como a AD analisa as formas da materialidade simbólica registrar para descrever, o que já indica um modo de, principalmente, interpretar indica que não se pode tornar diretamente equivalentes estes dois eventos.

Após algumas iniciativas de governo pré-1964, como o comício do presidente Goulart na Central do Brasil, as ligas camponesas, greves; ou mesmo, imediatamente, pós-1964, como a tentativa de privatização do Ensino Público Superior por meio do acordo MEC-USAID, o Caso Para-Sar, se filiam a outras redes de sentido. Em uma ditadura prestes a ocorrer ou recém instalada, os protestos e manifestações de rua eram reconhecidos publicamente, atrelados aos movimentos sociais, sindicais e político-partidários organizados quando ocorreu o golpe a que se refere o documentário recuperado pela manchete (VALLE, 2016).

A manchete cristaliza todos estes eventos com o verbo “durou”; no caso, das jornadas de junho de 2013 com o uso de “noite” (no lugar de “dia”), o que indica um período em tese mais obscuro do que o da ditadura. Um sentido implícito é o da ditadura como “(luz do) dia” e o das jornadas de junho de 2013 como “(da escuridão) da noite”, para mobilizar duas formas clichês comuns no imaginário.

Em 2013, as jornadas de junho ficaram conhecidas por momentos em que “[...] ativistas à esquerda do espectro político também denunciavam o racismo, a homofobia e as desigualdades brasileiras, mas foram paulatinamente suplantados pela ‘onda verde-amarelista’ que ocupava a Paulista” (SOUZA, 2020, p. 144, aspas do autor).

Ratificando esta citação, então cabe perguntar: que República é esta, cuja deriva em torno de luz e escuridão clama por sentidos? Esta pergunta nos leva a SD 4.

 

SD 4 – Dez anos das jornadas de junho: do fim da Nova República ao nascimento da República digital (ESTADÃO, 2023).

 

Quais sentidos giram em torno e atravessam a nomeação “Nova República” e o seu “fim”? O que seria a “nascimento da República digital” na manchete acima?

Do ponto de vista “oficial”, tivemos sete constituições, uma Monárquica (1824) e seis consideradas Republicanas (1891, 1934, 1937, 1946, 1967, 1988). A este respeito consultar em nossas referências a seção “Constituições brasileiras”, no site “Senado notícias”.

Podemos inclusive corroborar Souza e Cazarin (2015) para quem a Constituição de 1988, considerada “cidadã” tem como marca ter se ocupado de um ordenamento jurídico da ordem social. Afinal, todas as outras estiveram envolvidas em golpes de Estado. Somado a isto, vale citar a análise de Orlandi (1989 apud COSTA; COSTA, 2016) sobre o nome “Nova República” dado por Tancredo Neves em sua pronunciação de vitória no Colégio Eleitoral, que apagou outras possibilidades de formas de governo e que o que veio antes foi uma ditadura. Ou seja, a manchete ratifica este apagamento.

De volta ao sentidos sobre “dia” e “noite” acerca do par oposto entre “ditadura” e “democracia” e sua deriva dos enunciados, vale lembrar que há heranças na Constituição de 1988 de sentidos restritos para Direitos Humanos Fundamentais possíveis de serem recuperados de movimentos parafrásticos, da Constituição de 1969; muito embora seja considerada a de 1967 a Constituição elaborada pela ditadura militar instalada, em 1969, após o AI 5, o texto de 1969 seja uma Emenda à de 1967, pode ser considerada também uma Constituição (SOUZA; CAZARIN, 2015).

A nomeação “nascimento da República digital” opera um movimento de evidência de que uma nova República teria surgido, uma vez que a esta estaria atrelada uma nova forma de participação dos cidadãos. Trata-se de uma nomeação que naturaliza o sentido de que toda participação (mesmo virtual) é legítima, é uma participação cidadã. Uma região do sentido que reivindica a fibra óptica como marca desta participação apaga os efeitos da automação, da possibilidade de envio de mensagens por robôs e parece indicar que as convocatórias feitas pelas plataformas digitais (FIDELIS; LOPES, 2015; DIAS, 2016) seriam naturalmente democráticas. Todavia, este rumo dos sentidos permanece em aberto, como questão em aberto na nossa democracia contemporânea.

Afinal, a manchete indica que haveria uma “República digital” e indica de forma implícita que haveria outra “real”. O sentido de real, como concreto, visível, faz parecer que haveriam duas Repúblicas, dois universos distintos.

 

R 2 – efeitos de sentido sobre “causa e consequência”

 

Nesta zona de sentidos, temos arranjos sintático-semânticos pelos quais as manchetes tentam marcar uma relação de causa e consequência entre as jornadas de junho de 2013 e fatos históricos dos dias atuais.

 

SD 5 - Dez anos após protestos, política brasileira carrega marcas e consequências das jornadas de junho (MOLITERNO, 2023).

 

A SD 5 trata do título de publicação realizada no dia 03 de junho de 2023 pelo canal de notícias CNN Brasil em endereço eletrônico. Nesta sequência, a evidência do sentido em torno do significante “marcas” deriva de um caráter histórico dos acontecimentos ocorridos em junho de 2013. Nesta mesma direção, o significante “consequências” evidencia que tais marcas ocasionaram em uma gama de novos acontecimentos, também marcados por outras zonas de sentidos. De todo modo, estas zonas de sentidos escapam, de modo que se “cria uma visão de utilidade, fazendo com que o DP apresente as razões do sistema como razões de fato” (ORLANDI, 1987, p. 18).

A SD busca através do DP demonstrar que ocorreram pautas difusas: algo que atualmente está evidente para muitos e, para os que eventualmente caducam acreditando que as jornadas de junho foram manifestações com um propósito unitário, foram cooptados por este efeito de sentido. As causas que aparecem, de forma implícita, como “marcas” (difusas, o que instala uma dispersão dos possíveis lugares do sujeito do discurso) contornariam as “consequências” da mais recente cena sociopolítica brasileira, da crise em que ainda nos encontramos ainda “marcados”, constituídos por “consequências”, como chamada atual “polarização política”.

O controle da deriva em torno de “marcas” e “consequências”, como se nota, é sustentado pela tipologia autoritária do discurso pedagógico, marcada pela restrição da reversibilidade das posições-sujeito, sedimentação da paráfrase (uma vez que a marca “X porque Y”, ou causa e consequência se pretende universal, e é usada como um modalizador argumentativo) como fixação de um lugar distante e neutro da manchete, e também para atender a uma fabricação de um consenso (ORLANDI, 1987). Estariam claras, para todos, as causas e as consequências; inclusive sem que o locutor necessite demonstrar quais seriam cada uma. 

É preciso que não apreciemos os dados meramente como fatos. Tudo aquilo que está no nível discursivo deve ser compreendido no nível ideológico. Para refletir acerca dos dados – e neste sentido é preciso que seja feita uma reflexão acerca do estudo da linguagem que permite passar de dado para fato – é necessário passar pela materialidade simbólica nos processos históricos (ORLANDI, 2007a).

Ocorre que esta SD está organizada, do ponto de vista sintático, de modo que para o significante “política brasileira”, em torno qual orbitam “marcas (causas)” e “consequências” parece haver um sentido dominante tácito antecipadamente sabido pelo sujeito-leitor. Assim encontram-se os sentidos, em dados discursivos, que somente através de sua discursividade – relação do sujeito com a exterioridade, com o real (aquilo que fala antes, o já dito) – no/do interdiscurso.

 

SD 6 - Junho de 2013: entenda o cenário de insatisfação que levou a protestos. Pesquisadores avaliam que período é marco na história política do país (MELLO, 2023).

 

Novamente, notamos o funcionamento do DP, porque é a manchete que vai fornecer elementos (modalizadores, marcadores argumentativos, etc) para o entendimento do leitor.

O uso do imperativo em “entenda” também indica a voz autoritária do DP. Além disso, temos o apagamento do sujeito da oração; está implícito “entenda [você]”. “Você” tem efeito de sentido genérico, como em uma conversa trivial “você tem [...] você pega [...] você faz”, no sentido de um “tu” da interlocução. Neste caso também o DP funciona porque a manchete que anuncia e antecipa a reportagem controlaria o sentido de “cenário” e daria informações mais seguras, transparentes e verdadeiras ao leitor, mas cabe a este entender por si só.

A manchete idealiza um sujeito obediente, um “bom leitor”, na linha do basteamento ideológico do “bom sujeito” (TFOUNI, 2019) também fabricado pelas manchetes jornalísticas. O entendimento segue uma prescrição. Somente se entender o “cenário” (causa) o leitor pode entender os “protestos”, pois X (cenário) levou a Y (protestos). Se não entender, não entende os protestos. Esta dicotomia entre o entendimento e o não entendimento é garantido pela manchete por assegurar que controla as contingências dos fatos históricos.

 

SD 7 - Há 10 anos, atos das jornadas de junho chegavam a Brasília e alertavam Dilma (ALVES, 2023).

 

Esta SD indica um anúncio de que manifestações servem para enfrentar desafios da democracia, alertar a então presidenta Dilma Rousseff. Ocorre que parece fácil atribuir estes sentidos já tendo transcorrido grande parte dos acontecimentos; enquanto havia abertura do real dos sentidos não daria para enunciar “alerta” para Dilma nem que aquele seria “momento raro para enfrentar os desafios da democracia”, nem enumerar “marcas e consequências”. Isto somente foi possível após o golpe de 2016, que destituiu a presidenta; a ascensão do neofascismo bolsonarista; ou seja, após um processo de simbolização dos acontecimentos históricos já postos, significados a posteriori.

Por conta disso, nesta zona de sentidos marca uma evidência de que a mídia daria conta de sustentar uma postura teleológica. Vejamos:

 

SD 8 - Junho de 2013, jornada de contradições. Desperdiçamos momento raro para enfrentar os desafios da democracia (PELLEGRINO, 2023).

 

Em “jornada de contradições” no título da manchete do Jornal Folha de São Paulo há uma lacuna do sentido. Este espaço vazio pode derivar para um espaço imaginário entre interlocutores, pois, afinal de contas, de quais contradições estaríamos tratando? Apesar de estar evidente que são várias as contradições, também são várias as possibilidades de atribuições de sentidos de todos esses lugares contraditórios do sujeito do discurso jornalístico que enuncia assim como do sujeito que lê e/ou interpreta o enunciado.

Após uma breve pausa marcada por um ponto de seguimento, o circuito se fecha em “Desperdiçamos momento raro para enfrentar os desafios da democracia”. Trata-se agora de um único momento. Talvez as coisas pudessem ser mais abertas já que se trata de apena um “momento” e não várias “contradições”, mas contraditoriamente, definir este “momento raro” abre a deriva dos sentidos para os diversos momentos contraditórios em que as posições-sujeitos disputaram a dominância de sentidos em torno das manifestações que ocorreram em junho de 2013.

Sejam as “contradições ou o “momento”, em ambos os casos ocorre “o silêncio fundador, aquele que existe nas palavras, que significa o não-dito e que dá espaço de recuo significante, produzindo as condições para significar” (ORLANDI, 2007b, p. 24).

Assim, de modo implícito, quando é dito que houve “desperdiçamos momento raro”, marcado por “contradições” para o enfrentamento de “desafios da democracia”, se diz de modo implícito , conforme estabelecido nesta zona dos sentidos denominada “causas e consequências” que estas poderiam ser controladas.

O lugar do locutor é o de que assevera que poderia controlar as contingências históricas. Este controle, em tese, poderia vir a partir de uma formação imaginária compartilhada tal e qual com o interlocutor, em “desafios da democracia”. Da ordem do “já sabido”, do acordo tácito entre ambos, um sentido naturalizado sobre as “contradições” silencia (cf. ORLANDI, 2007b) o real da História, pois o sujeito-leitor teria pleno compartilhamento do sentido de “desafios da democracia” naturalizados pela manchete.

 

Considerações Finais

Procuramos mostrar de que formas o discurso jornalístico, ao recordar as jornadas de junho de 2013, mobilizam algumas formações imaginárias, sobretudo, localizadas em duas zonas de sentido: a que legitima o fato histórico por uma cronologia dada pela imprensa e efeitos de sentido sobre causa e consequência.

Estas cooptações dos sentidos recortados a partir do “objeto” do discurso “Jornadas de junho de 2013” marcados por formações imaginárias em torno destes fatos históricos, é sedimentado por um apagamento de antecedentes histórico-discursivos pelos quais o uso da memória feito pelo discurso jornalístico voltado às manobras destas formações imaginárias em uma superficialidade linguístico-textual que silencia o real da História.

É sabido que os acontecimentos históricos em questão foram marcados por elaborações da materialidade simbólica no curso da determinação da base material do sentido (processos econômicos) contingenciados por questões ainda em aberto. No entanto, as manchetes analisadas indicam uma narrativa para a qual aparenta ter havido um fechamento, cooptadas por um efeito de saturação ideológica. 

 

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Data de Recebimento: 24/07/2023
Data de Aprovação: 20/09/2023

 

[1] Não nos ativemos estritamente a SDs datadas de 2023; no caso desta, embora datada de 2021, trata-se de texto reportagem que procura listar fatos em ordem cronológica. Foi a partir desta SD que foi organizada a análise, cujo gesto interpretativo inicial se deu pelo estranhamento do modo da imprensa recordar as jornadas de junho de 2013. Outra observação importante: nesta e na SD2 também analisamos o chapéu da notícia embora o foco seja voltado às manchetes.