Vivências periféricas generificadas: narrativas de resistência em Maricá-RJ


resumo resumo

Naomi Orton
Ana Carolina Machado



Introdução 

A pesquisa inicial tem origem no Trabalho Final de Graduação apresentado ao curso de arquitetura e urbanismo da UFF, que buscava investigar as transformações vividas na cidade de Maricá, em decorrência do processo de urbanização ocorrido em meados do século passado3. Tais processos teriam dado à cidade, de modo de vida rural, o status de periferia da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, como também aconteceu com outras cidades dessa mesma macrorregião. 

Os estudos se embasaram em pesquisa bibliográfica, que ajudasse a compreender o contexto e o processo histórico vivido por Maricá e pelo Brasil, bem como nos textos do viajante Auguste de Saint-Hilaire (1941), nos estudos sobre dispersão urbana de Holzer (2016) e também nos de Mello (2017), sobre comunidades tradicionais da cidade. Apoiaram-se também, de forma relevante, em treze entrevistas realizadas com velhos trabalhadores rurais e outros mais jovens que acompanharam esse processo de alteração socioespacial, com um recorte temporal da década de 1940 a 1990. 

Desse modo, o foco era observar as mudanças ocorridas na paisagem, na dinâmica e nas relações sociais que se estabeleciam naquela cidade, que, até a década de 1970, tinha destaque no Estado do Rio de Janeiro na produção de pescado e na produção agrícola de cítricos. A urbanização em Maricá, iniciada na década de 1940, veio acompanhada do crescimento dos empreendimentos imobiliários, em um momento em que o país vivia um processo de modernização de sua produção agrícola. Como efeito, ocorreu uma intensa e gradual alteração dos meios de vida dos trabalhadores rurais na cidade, com a passagem de uma economia de subsistência, encontrada no início do século passado para uma economia aberta, moderna.

Este artigo é fruto de uma colaboração posterior entre a 1ª e 2ª autora, em que os dados de uma entrevista com a participante Sarafina são reexaminados a partir de uma lente discursiva, focalizando atravessamentos de gênero e periferização (Butler, 1990; Goffman, 1979; Litosseliti et al. 2019; Brandão; Ramos, 2023), a partir da pergunta Até que ponto papéis de gênero convencionais são reinscritos e/ou reforçados nas práticas identitárias emergentes das narrativas? Dessa forma, o trabalho reúne contribuições do campo do urbanismo, a respeito da relação entre o processo de urbanização e periferização, e do campo do discurso, permitindo que as narrativas e as interações que se desenvolvem nas entrevistas sejam vistas de novos ângulos. 

A seção a seguir apresenta uma contextualização do estudo inicial, que dá as bases para o desenvolvimento deste artigo. Em seguida, delineamos nossa perspectiva epistemológica, introduzindo o recorte feito para esse artigo, nossa participante Sarafina e os procedimentos metodológicos seguidos. A próxima seção expõe as contribuições teóricas da área de análise de narrativa das quais lançamos mão, bem como sua relação com as estruturas reguladoras de gênero. A seguir, passamos a análise discursiva propriamente dita, a qual se debruça sobre três momentos narrativos. Finalizamos com uma discussão das análises microdiscursivas e sua possível relação com o contexto macrossocial no qual se inserem.

 

Contextualização do estudo

A cidade de Maricá tem se destacado no cenário atual por suas políticas públicas inovadoras, que contam com moeda social e transporte público gratuito. Talvez esse contexto ajude a compreender o crescimento expressivo vivido pelo município, superior a 54%, segundo dados do último censo (IBGE, 2022), representando o maior crescimento do estado do Rio de Janeiro. Segundo Lamego (1946), na virada do século XIX para o XX, Maricá possuía uma população de cerca de vinte mil habitantes, em um modo de vida majoritariamente rural. Em 2022 foram contabilizados cerca de 197 mil habitantes e mais de cem mil domicílios, sem que ainda tenham sido divulgadas informações sobre sua situação, entre rural e urbana. De todo modo, os censos anteriores já apontavam para uma realidade predominantemente urbana: em 2010, dos mais de 67 mil domicílios contabilizados, apenas 935 seriam rurais. Atualmente, a cidade de Maricá pertence à região metropolitana do Rio de Janeiro, ganhando status de centralidade no território do estado. Por outro lado, possui posicionamento periférico dentro da macrorregião, em relação ao centro econômico, localizado na cidade do Rio de Janeiro e arredores, que concentram as infraestruturas, os serviços e as oportunidades.

As inquietações que levaram a esta pesquisa nasceram de uma dimensão subjetiva. Parte da experiência de uma das autoras, com origem em uma família de antigos pequenos agricultores do município de Maricá, que compreende-se periférica quando passa a se relacionar com o centro, para ter acesso às oportunidades ligadas à educação. Ou seja, relaciona-se com a dimensão objetiva, do reconhecimento do produto social localizado no centro e das desigualdades de acesso a ele, na relação entre centro e periferia. Tal noção de periferia não se limita unicamente a características geográficas, mas diz respeito também a uma posição social.

No caso de Maricá, a urbanização veio acompanhada de uma ideia de modernidade civilizatória, revestida de colonialidade (Quijano, 1997), marca da velha estrutura colonial,  que agiu no sentido de expropriar os saberes ligados à cultura da roça e às possibilidades de auto manutenção no trabalho rural. São impostos padrões estéticos e econômicos hegemônicos homogeneizantes sobre as periferias, campos e demais espaços estigmatizados. Nesse sentido, não apenas nos aspectos econômicos, mas também o avanço de uma cultura moderna contribuiu para o hibridismo entre o trabalho rural e as atividades que davam subsídios às novas demandas da urbanização, associadas aos empreendimentos imobiliários que surgiam, que logo se sobreporiam às formas de sociabilidade da roça. 

Com esses processos de mecanização do campo e avanço da especulação imobiliária na década de 1940, a pesquisa aponta que nas décadas seguintes teriam ocorrido mudanças significativas em Maricá. Nos anos  de 1970, Mello e Vogel (2017), em seus estudos sobre os pescadores do bairro de Zacarias, em Maricá, descrevem o trajeto de ônibus do centro da cidade até este bairro pesqueiro, com um sem número de anúncios dos empreendimentos imobiliários, que ofertavam oportunidades na região da Barra de Maricá. As entrevistas nos permitem pensar que houve uma diminuição da contribuição do trabalho na roça na dieta dessas famílias do campo, que têm sua alimentação mais mediada pelo dinheiro. Assim como outras atividades ligadas à manutenção da família, como à confecção da casa, das roupas, dos utensílios, o lazer, passam a ser mais mediadas pelo dinheiro, em práticas que se tornariam mercadorias, deixando de ser produzidas no núcleo familiar. As famílias da roça são inseridas em um ethos do consumo, ligado às demandas da cidade que surgia, tornando-se dependentes de suas dinâmicas, à medida que são destituídas de suas práticas tradicionais.

Outro ponto relevante foi que o avanço dos empreendimentos imobiliários, com seus loteamentos, também teria dificultado o acesso dos trabalhadores à terra, antes ocupadas com moradias, produção de alimentos e criação de animais. A modernização da agricultura torna a produção na escala familiar pouco rentável para os pequenos trabalhadores, que vão encontrando em ofícios ligados à construção civil e cuidados domésticos, solução para sua necessidade de reprodução social, através do acesso ao dinheiro. Os trabalhadores rurais vão gradualmente se ajustando a um modo de vida urbanizado, mas numa posição subordinada na distribuição do acesso às novas oportunidades ligadas à cidade. 

Cabe ressaltar que a pesquisa apresentada não pretende romantizar o modo de vida marcado pela economia de subsistência, mas busca visibilizar que a urbanização não garantiu a esses trabalhadores rurais, periferizados, desfrutar plenamente dos saldos de seu produto social, como também identificou Antônio Cândido em seus estudos sobre comunidades caipiras em São Paulo (1975). Por outro lado, embora a urbanização tenha representado o avanço de uma cultura do consumo, individualizante, também foi possível identificar permanências de formas de sociabilidade mais coletivas, ligadas à cultura da roça. Dessa forma, a pesquisa buscou, através das entrevistas, fazer circular as histórias dos sujeitos do campo, que ainda se expressam nas práticas periféricas do cotidiano, na ajuda mútua, nas celebrações e vivem nas memórias e na tradição oral da roça.

 

Perspectiva epistemológica, recorte e procedimentos metodológicos

O presente artigo segue uma perspectiva pós estruturalista da linguagem como ação performativa que provoca diferentes efeitos no mundo social (Gergen; Gergen, 2006; Fabrício, 2006, Moita Lopes, 2001). Como afirma Moita Lopes (2001, p. 58), esta posição implica em estudar “os processos de construção do significado a partir de práticas discursivas em que os participantes possam ser situados nos seus esforços de fazer o significado compreensível [...] para o outro”, uma vez que todo discurso se dirige a alguém4. Ou seja, a realidade sobre a qual a pesquisa busca compreensão é produzida e reproduzida nessas práticas situadas, seja nas entrevistas de pesquisa realizadas, seja na escrita deste artigo.

Para a pesquisa mais ampla da qual este artigo representa um recorte, foram realizadas entrevistas semiestruturadas (Mishler, 1986), no intuito de propiciar um ambiente em que vozes tradicionalmente marginalizadas poderiam ocupar o piso conversacional. Além disso, por entender a entrevista de pesquisa como uma interação social em vez de uma simples coleta de dados (Mishler, 1986), a participação da entrevistadora na construção de significados não foi minimizada e sim contemplada na interpretação dos dados. As entrevistas ocorreram entre 2018 e 2019.

A partir das treze entrevistas realizadas para o estudo maior, como já sinalizado, para este trabalho, foram escolhidos trechos da entrevista com a participante Sarafina, uma vez que o discurso dessa entrevistada condensa fenômenos identificados no corpus como um todo que gostaríamos de problematizar neste artigo. Para os fins desse trabalho, optamos por manter o nome real da participante. Na pesquisa social, o anonimato busca preservar a identidade dos participantes, embora não possa garanti-la; a conduta ética exige discussões contínuas com os participantes a respeito dos possíveis riscos de sua participação (Simons; Piper, 2015; Sugiura et al. 2017). No mais, como afirmam Simons e Piper (2015, p. 57) “há algumas situações onde o anonimato não é caminho certo a seguir”. Nesse caso específico, Sarafina, infelizmente, faleceu após a realização das entrevistas, durante a pandemia da covid-19. Sendo assim, o uso do nome real busca auxiliar o processo de luto, mantendo o falecido “vivo”. Já o uso do anonimato, “equivale a uma morte dupla” (Simons; Piper, 2015, p. 57-8).

Sarafina nasceu no ano de 1931, em Maricá, em uma família que vivia em um sistema de economia de subsistência. Em sua infância, o trabalho do núcleo familiar supria a maioria de suas necessidades. Mas sua família, assim como foi possível observar nos relatos de outros entrevistados, teve sua capacidade de produção afetada pelo avanço dos loteamentos, que reduziu a disponibilidade de terras, prejudicando sua dieta e o volume de produtos vendidos. Então, a família buscou na atividade de confecção de esteiras; uma forma de suprir suas necessidades de reprodução social. As esteiras eram produzidas a partir de uma planta, chamada taboa, colhida nos brejos (porção de terra encharcada, onde nasce essa planta que vira palha quando seca). Assim, as necessidades da família passam a ser mais mediadas pelo dinheiro e menos produzidas no núcleo familiar.

Mais tarde, já na década de 1950, o núcleo familiar formado por Sarafina e seu marido, Benedito,  seguiu conciliando a pequena produção agrícola, focada em limão, com a confecção artesanal de esteiras. Mas, aos 34 anos, uma fatalidade afetaria drasticamente as condições de vida daquele núcleo familiar. Benedito morre, ao cair de um cavalo, que era comumente usado como meio de transporte naquele contexto, e deixa Sarafina viúva, com 6 filhos. Sarafina, que atuava na roça, no brejo, nos cuidados com os filhos e na indústria familiar, buscará no aumento da confecção de esteiras a saída para a manutenção do sustento de seus filhos, que tinham entre 4 meses de vida e 11 anos de idade. Diminui, portanto, a capacidade produtiva da família, tornando-a mais dependente do dinheiro, como meio de mediação de sua dieta e outras necessidades.

O avanço da economia aberta teria afastado ainda mais aquele núcleo familiar da produção agrícola, com baixa rentabilidade da pequena produção agrícola naquele contexto. Ao mesmo tempo, surge uma grande demanda por trabalhadores para os empreendimentos imobiliários que cresciam na cidade: pedreiros, eletricistas, porteiros, caseiros, empregadas domésticas. Sarafina, já depois dos 50 anos, vai trabalhar como empregada doméstica, nessa nova dinâmica urbana que se impunha.

Da entrevista com Sarafina, em que a participante narra essas experiências, selecionamos três momentos narrativos distintos impulsionados por perguntas feitas pela 1ª autora deste artigo: (i) o momento em que Sarafina iniciou o trabalho no brejo; (ii) a maternidade que perpassa toda sua trajetória e (iii) o momento em que iniciou o trabalho de empregada doméstica. A entrevista toda durou em torno de duas horas. A narrativa a respeito do trabalho no brejo surge após dezesseis minutos e dura aproximadamente três minutos, enquanto as narrativas a respeito da maternidade e do trabalho enquanto empregada doméstica emergem em um trecho contínuo, após aproximadamente vinte-seis minutos. Este segundo trecho, composto por narrativas breves, dura em torno de cinco minutos ao total.

Para este recorte, elegemos uma pergunta específica para guiar a análise discursiva propriamente dita: Até que ponto papéis de gênero convencionais são reinscritos e/ou reforçados nas práticas identitárias emergentes das narrativas? A partir dessa análise mais micro, buscamos refletir sobre a resistência de sociabilidades outras frente ao avanço do desenvolvimento capitalista e a imposição de um apagamento da cultura da roça. 

É importante salientar que Sarafina era a bisavó da 1ª autora. Durante a entrevista estavam também presentes outros membros da família: Marieta e Victalino (filha e genro de Sarafina e avôs da 1ª autora), bem como Luiz (o neto mais velho de Sarafina e pai da 1ª autora), para quem o repertório narrativo de Sarafina já era conhecido. Embora a relação entrevistadora/entrevistada tenda a ser assimétrica, já que a entrevistadora estabelece o roteiro e os tópicos, bem como a duração de respostas e o recorte a ser feito para fins de análise, não consideramos nenhuma relação social estática (Mishler, 1986). Neste caso específico, acrescentam-se as relações familiares pré-existentes entre as duas e os consequentes papéis sociais que podem ser tornados relevantes durante a interação. A título de ilustração, embora a 1ª autora solicite histórias específicas consideradas relevantes para os fins da pesquisa, em diversos momentos, Sarafina se refere à pesquisadora como menina ou minha filha, invertendo uma relação mais tipicamente assimétrica de pesquisadora/entrevistada ao sublinhar sua relação de parentesco, bem como a relativa juventude da pesquisadora.

A análise das narrativas de Sarafina desenvolvida para os fins desse artigo se beneficia de dois ângulos de visão distintos, proporcionados por dois motivos principais. Primeiramente, as duas autoras partem de posições diferentes em relação ao campo: a 1ª ocupa o papel de “insider”, por ser nascida e criada na cidade de Maricá, além de manter laços afetivos com os participantes, possibilitando uma compreensão mais ampla do contexto em que as narrativas se encontram inseridas (Lawson, 2013). Já a 2ª autora ocupa o papel de “outsider”, por ser moradora da cidade do Rio de Janeiro, um grande centro urbano próximo a Maricá e não possuir laços com os participantes da pesquisa, trazendo, desta forma, um olhar externo aos dados. Além disso, cada autora advém de um campo de saber distinto, com suas próprias bases epistemológicas: a 1ª autora parte de sua formação enquanto arquiteta e urbanista, enquanto a 2ª é linguista e lança uma lente discursiva aos dados gerados nas entrevistas pela 1ª.  

Em função da relação próxima entre os interlocutores presentes no momento da entrevista, a construção de significado se apoia em conhecimento compartilhado, não somente da vizinhança e seus habitantes, como também das tradições e da cultura da roça. A título de exemplo, a transcrição refinada aqui reproduzida foi feita a duas mãos, uma vez que necessitava não apenas conhecimento das convenções propostas pelos estudos da fala-em-interação (Sacks et al., 1974), ou da identificação de fenômenos discursivos, como também de conhecimento local específico conforme proporcionado pela 1ª autora, arquiteta e ex-moradora do local. As convenções de transcrição propostas por Sacks foram eleitas para a realização deste estudo uma vez que possibilitam o registro de fenômenos interacionais. Isto é, permitem a análise da participação da entrevistadora na produção dos significados, em consonância com nossa visão da entrevista como interação social (Mishler, 1986) e da narrativa como prática sociodiscursiva situada e dialógica (Moita Lopes, 2001), perspectiva a ser apresentada em mais profundidade na próxima seção.

O conhecimento local ao qual nos referimos também assume um papel importante na geração de narrativas na entrevista, possibilitando que sejam solicitadas. A centralidade dada à narrativa enquanto unidade discursiva passível de análise se dá pela compreensão de que ao engajar nesta prática as participantes da interação conferem significado às suas vidas, negociando suas identidades e visões de mundo. Elegemos essas interações micro como ponto de partida da pesquisa social (Goffman, 1967; Velho, 1980), entendendo que as noções macrossociais, como estruturas generificadas (Butler, 1990; Goffman, 1979), só podem ser investigadas a partir das atividades sociosemióticas nas quais se expressam e se atribuem valor. Dessa forma, a narrativa enquanto unidade analítica micro possibilita a observação da contestação de conceitos como as normas de gênero, ou noções neoliberais a respeito das relações de trabalho, tomando como princípio a ideia de que desestabilizar esses construtos é um papel da pesquisa no campo das ciências sociais (Velho, 1980). No mais, embora a agência dos atores sociais seja sempre limitada, apostamos nos interstícios emergentes na prática narrativa, nos quais discursos hegemônicos podem ser reinscritos (De Fina, 2021; Moita Lopes, 2001).

 

A narrativa como prática social: elos entre pequenas e “grandes” narrativas

A chamada “virada narrativa” isto é, o crescente interesse em dados narrativos no campo das ciências humanas e sociais pode ser atribuída aos trabalhos pioneiros de Labov (Labov; Waletsky, 1967, Labov, 1972). Labov (1972, p. 359) originalmente definiu a narrativa como “um método de recapitular experiências passadas, combinado com uma sequência verbal de pelo menos duas orações e uma sequência temporal de eventos que [infere-se] ocorreram de fato” (Labov, 1972, p. 359). Para além desta definição estrutural, o autor ressaltou que a narrativa precisava articular um ponto — relacionado à conversa em andamento, e devia atender ao critério de reportabilidade, sendo assim aceita como digna de ser contada pelos interlocutores.

A partir de seus estudos, Labov (1972) também elencou algumas características típicas que poderiam auxiliar na identificação de uma narrativa: resumo, orientação, ação complicadora, avaliação, resolução e coda. O resumo sintetiza a narrativa, comunicando o assunto, como, por exemplo, “(isso foi o melhor) aí que fez dinheiro mesmo”5.  Já a orientação estabelece o contexto, indicando aspectos como tempo, local, participantes e situação, assim como “já era viúva”. No entanto, os únicos elementos obrigatórios seriam a ação complicadora e a avaliação. Na definição do autor, a ação complicadora se refere a locuções ordenadas cronologicamente, tal como “cortei o brejo todo (.) com a ira que tava (.) acabei com quase o brejo todo” e assim por diante. A avaliação, por sua vez, expressa as emoções do narrador e pode se manifestar ao longo da narrativa. A resolução finaliza a sequência de eventos no passado e a coda indica o fim da narrativa, trazendo os participantes de volta ao presente. Na definição laboviana, é a avaliação que estabelece o ponto da narrativa e assim, sua reportabilidade, comunicando que o evento narrado não foi banal ou cotidiano, mas sim extraordinário.

​​A noção de avaliação é posteriormente ampliada por Linde (1993, 1997) que propõe a definição seguinte: “qualquer instância em que o falante indique o significado social ou o valor de uma pessoa, um objeto, um ocorrido ou uma relação” (Linde, 1997, p. 152). Para esta autora, é possível pensar em duas dimensões avaliativas: referência à reportabilidade e referência às normas sociais. A primeira diz respeito à prática de relatar eventos fora do comum, ou seja, à excepcionalidade da narrativa (Bruner, 1997; Labov, 1972; Sacks, 1984) que justifica a tomada de um turno mais longo, tal como a avaliação “a comida pior do que a nossa”. Já a segunda faz referência a comentários morais e visões de mundo veiculadas durante a narrativa “sugerindo como o endereçado deveria se comportar em uma circunstância parecida em sua vida” (Linde, 1993, p. 113), tal como “o que que eu ia fazer mais né (.) era só trabalhar e dar de comer aos filho que trabalhava dia e noite”.

O trabalho de Linde (1993) centra-se na análise do que a autora chama de “histórias de vida”, conceito que compreende crônicas, explicações e narrativas nas quais os interlocutores costuram os acontecimentos de sua vida e constroem coerência. Nesse processo, a negociação das identidades sociais na interação com outro comunica sua compreensão e respeito para com os valores da sociedade em que se vive. Ressaltamos que as contribuições da autora foram desenvolvidas a partir de entrevistas com estadunidenses, majoritariamente brancos de classe média. Para estes interlocutores, a construção de coerência a respeito da trajetória profissional se dá a partir do estabelecimento de uma cadeia de causalidade, levando à escolha da presente profissão, na qual a própria agência desempenha um papel central. Caso as ocupações anteriores do narrador não condigam com sua posição presente, é possível lançar mão de estratégias discursivas que produzam uma separação maior entre o protagonista do mundo narrado (self da história) e o narrador do mundo narrativo (self da interação). O conceito de mundo ou evento narrativo foi originalmente proposto pelo folclorista e antropólogo estadunidense Richard Bauman, (1986) em seus estudos sobre narrativas orais e diz respeito às interações que se desenvolvem ao longo da narrativa, durante as quais o mundo narrado ganha vida. Neste trabalho, por exemplo, o mundo narrativo seria o contexto da entrevista, da qual participaram diferentes membros da família de Sarafina, entre eles a 1ª autora deste artigo. A partir dessas interações, estes participantes coconstroem a história de vida de Sarafina – o mundo narrado que é o objeto principal da nossa análise.

Para além do nível micro das interações, Linde (1993) também sugere que a estruturação da experiência em narrativa socialmente compartilhável envolve a criação de sistemas de coerência a nível macro. Tais sistemas podem ser compreendidos como dispositivos culturais “que representam um sistema de crenças e relações entre crenças” (1993, p. 163). Encontram-se entre o senso comum e sistemas de expertise, dos quais decorrem. A título de exemplo, no trecho a seguir6, ao narrar sua experiencia de maternidade, é possível interpretar que Sarafina se apoie em um sistema de coerência feminista, sem precisar fazer referência explicita ao movimento ou a uma atuação dentro dele.

 

hhh fiquei viúva fiquei viúva fiquei sofrendo (com um monte de filho) com seis filhos (.) pra criar (.) o que que eu ia fazer mais né (.) era só trabalhar e dar de comer aos filho que trabalhava dia e noite (.) na roça pra fazer pros meus filho (.) >pediram os filho (.) meus filho não dei< (.) porque eu ia: dar meus filho (.) pra eu cair na rua (.) você não quer passear não passear ºeu vou criar o filhoº (.) fiquei com todos os seis graças a deus (.) criei todos os seis casei todos os seis (.) portanto que seja mal ou bem, ou largado do marido, mas tudo casado (.) ta >tudo bem< (.) acho que foi melhor assim  (Sarafina)

 

Essa interpretação é possível, pois Sarafina: (i) enquadra a maternidade como trabalho (sendo tal reconhecimento e sua consequente remuneração uma pauta antiga do movimento feminista) e (ii) simultaneamente compartilha sua resistência às ofertas de terceiros para criar seus filhos. Assim, a narradora comunica, de forma nuançada, sua compreensão de que, na sociedade patriarcal, a criação do filho é vista como a responsabilidade da mãe. Sobretudo, ela articula ter cumprido esse papel, sem reproduzir discursos hegemônicos que romantizam o trabalho de cuidado e do maternar. Nesse sentido, os sistemas de coerência propostos por Linde (1993) nos auxiliam na identificação de elos entre as interações micro da entrevista e os discursos macrossociais com os quais dialogam. Uma vez que o contexto aqui investigado se distancia daquele investigado por Linde (1993), será pertinente investigar quais outros sistemas de coerência emergem nas práticas narrativas a serem analisadas, ou seja, — até que ponto Sarafina cita oportunidades econômicas ou limitações de classe como fatores na sua trajetória profissional e até que ponto a agência se faz presente em suas narrativas. 

Ao longo da entrevista, Sarafina constrói sua história de vida a partir de narrativas intercaladas com crônicas e explicações (Linde, 1993). Já a emergência de narrativas mais canonicamente labovianas — com um enredo, começo, meio e fim identificáveis, se dá principalmente a partir da interação entre a 1ª autora e Sarafina, como é possível observar no exemplo a seguir7.

Exemplo da interação entre as participantes

1

sarafina

foi aí que ele deixou essa chácara pra mim (.) porque se eu não trabalhasse não tinha isso (.) mas o:: que fazer ô: (.) fazer oito esteira todo dia (.) fazer comida tratar (dessas coisas todinha) tratar duas criança tratar de criança (palavras) mas <fazia tudo> lavava roupa fazia tudo às vezes chegava com peixe fritava peixe fazia tudo (fazia) oito esteira botava (no canto) quando tinha quando tinha acabado de fazer dois amarrados de esteira que dava pra fazer as compras (.) foi aí que ele fez essa chácara (.) se não nós também ficava na pior

 

2

autora 1

então vocês compraram aqui (.) vendendo esteira

3

sarafina

o terreno aqui foi do: casimiro velho (.) o pai de finado (.) comprou (.) isso aqui (.) mas foi=

4

autora 1

=ºele deixou um pedacinhoº

sarafina

ele comprou no nome (.) os filhos que fizeram esteira pra pagar

 

De acordo com a concepção estrutural de narrativa originalmente avançada por Labov (1972), a narrativa que emerge no primeiro turno não pode ser considerada plenamente desenvolvida. Embora conte com ação complicadora, esta ação encontra-se intercalada com longas descrições de hábitos recorrentes no passado (fazia, lavava, chegava, fritava). Porém, no segundo turno, um ostensivo pedido de esclarecimento por parte da 1ª autora — sobre uma ação específica no passado vocês compraram aqui — produz uma mudança na fala da entrevistada: de ações habituais para uma oração no passado o pai de finado comprou (t.3). Nesse sentido, a ação complicadora propriamente dita volta a ser desenvolvida a partir das contribuições da entrevistadora, cujo conhecimento do repertório narrativo de Sarafina possibilita que ela direcione a fala da entrevistada para uma narrativa específica. 

De todo modo, nesse trabalho, adotamos uma visão ampla da narrativa conforme delineado por autores contemporâneos como Georgakopoulou (2006, p. 123). Isso significa que, em vez de conceber a narrativa como uma recapitulação de eventos passados (como originalmente posto por Labov), partimos do pressuposto de que é na prática narrativa que o mundo narrado se constrói8. No mais, é nesse processo em que o mundo narrado e o mundo narrativo se aproximam que os interlocutores tornam suas visões de mundo visíveis e é possível identificar até que ponto ou compactuam com, ou se opõem a, narrativas “master”, ou seja, discursos dominantes em circulação (Bamberg, 2006). A noção de pequenas narrativas avançada por Georgakopoulou (2006, p. 123) contempla “momentos de fala que [fogem de] expectativas do cânone [laboviano]”, nos quais selves fragmentados e múltiplos emergem e se modificam na interação com outro. Sendo assim, as construções identitárias aqui analisadas também são vistas como emergentes, mutáveis e multifacetadas, negociadas na interação com o outro, se aproximando das teorizações desenvolvidas por Bucholtz e Hall (2004, 2005). As performances de gênero (Goffman, 1979), às quais prestamos atenção especial, também emergem nesse processo, se realizando dentro de uma estrutura altamente reguladora, ao mesmo tempo em que a agência limitada da qual Sarafina lança mão, pode tornar essa estrutura visível (Butler, 1990). 

Os fragmentos selecionados para análise também podem ser considerados anedotas conforme a proposta de Bauman (1986, p. 54), na qual o diálogo construído ocupa papel central e pode ser o “ato mais reportável”. A noção de diálogo construído diz respeito à encenação de falas atribuídas a terceiros, vista aqui como um processo criativo e transformativo, bem como uma estratégia de envolvimento, como postulado por Tannen (1989). A problematização do binário discurso direto/indireto elaborada pela autora inspira-se nas noções Bakhtinianas de dialogismo e alteridade (2011). Para Tannen (1989), já que o discurso se dirige sempre a interlocutores específicos, não é possível reproduzir o discurso de um terceiro na íntegra. Como histórias breves, ou aquelas compostas principalmente por diálogo construído, podem passar despercebidas por uma análise preocupada apenas com a identificação de narrativas estruturalmente canônicas, sua seleção neste artigo decorre da crença na necessidade de colocar essas histórias – bem como as vozes de quem as articula e as questões que levantam – no cerne de nossas pesquisas. No mais, consideramos essas narrativas um ponto de partida produtivo para examinar interpretações alternativas de narrativas hegemônicas em circulação (Autora 2, 2021; Georgakopoulou, 2006; De Fina, 2021; Mishler, 2002).

 

Análise Discursiva

Conforme sinalizado na seção anterior, a análise discursiva é norteada pela pergunta: Até que ponto papéis de gênero convencionais são reinscritos e/ou reforçados nas práticas identitárias emergentes das narrativas? No intuito de facilitar sua leitura, a análise encontra-se dividida em três subseções, relacionadas a três momentos narrativos selecionados para análise que dizem respeito aos seguintes aspectos de sua trajetória: (i) o trabalho no brejo; (ii) o trabalho maternal e (iii) o trabalho enquanto empregada doméstica.

 

Primeiro momento narrativo: "com a ira que tava. acabei com quase o brejo todo"

No primeiro excerto selecionado para análise, Sarafina narra suas estratégias de sobrevivência na criação de seus seis filhos após a morte precoce de seu marido aos 34 anos. A narradora destaca sua luta para permanecer na chácara conquistada com o trabalho duro de sua família quando a entrevistadora direciona a narrativa para o trabalho no brejo. Para os fins deste trabalho, reproduzimos, no excerto 1, as interações a partir desta pergunta da 1ª autora no turno 14. 

 

Excerto 1

14

autora 1

e:: e aí que ficou- a senhora tava contando outro dia do: do seu trabalho na esteira quando a senhora precisou ir pra bre:jo e tal

15

sarafina

uhã (isso foi o melhor) aí que fez dinheiro mesmo

16

autora 1

que antes do dia da senhora ir cortar no brejo a senhora fazia-

17

sarafina

aí ja era viuva ºminha filhaº

18

autora 1

uhã

19

sarafina

aí com esse negócio depois que ele deixou essa chacarazinha aí (.) aí ele morreu aí fiquei viúva aí fui me chutando fui me chutando (.) mas depois apareceu uma doença na chácara que a chácara foi morrendo

20

autora 1

foi do limão né

21

sarafina

é do limão apareceu na chácara

22

autora 1

mas então vocês viviam mais do limão

23

sarafina

do limão (.) do limão e aí >plantava aipim plantava batata plantava coisa aí< aí fui >empurrando as plantas todas< (.) mas apareceu essa doença do limão que ficou (.) foi acabando o dinheiro e agora a gente (palavras)sem dinheiro é ruim (.) aí (.) eu vi as mulher passando pro brejo (.) (eu também ué) passei a mão na faca e fui ºcheguei la minha filhaº (.)(vi um cado de palha) eles não quiseram que eu fosse mais lá

24

autora 1

hh

25

sarafina

DOIS DIAS hhhh cortei o brejo todo (.) com a ira que tava (.) acabei com quase o brejo todo (.) eles não quiseram- não queriam mais que eu fosse (.) cortei palha e aí fiz muito dinheiro

26

autora 1

então esse trabalho de cortar palha eram muitas mulheres que iam-

27

sarafina

muitas mulheres todas mulheres que iam só >as mulher que ia< eram cinco seis

28

autora 1

elas iam cortar e fazer esteira

29

sarafina

(lúcia de genésio tudo pra comprar lote essa lúcia tudo ia comprou lote fazer esteira para que) mas meti a faca no brejo (.) e criança fazia esteira vendia esteira (.) dava dinheiro essas criança inteirava o dinheiro das contas (o resto dava dinheiro a um, dava dinheiro a outro, dava dinheiro a outro) aí outro dia as criancinhas já tavam de manhã cedo (.)mamãe, tá na hora de ir pro brejo, ta na hora de fazer esteira. Porque quer dinheiro

30

autora 1

uhã

31

sarafina

você trabalha e ganha dinheiro (no outro dia você quer trabalhar não quer)

32

autora 1

uhã

33

sarafina

menina ia tudo mundo junto todo todo (mundo animou)que toda semana estava lá (.) cheio de dinheiro

34

autora 1

e o dinheiro da esteira dava pra fazer as co:mpra tudo

35

sarafina

dava dava pra comer fazer compra viajar: as crianças comprar roupa

36

autora 1

então vocês pararam um pouco de trabalhar produzindo na na lavoura

37

sarafina

(paramos de trabalhar) na lavoura e metemos a cara no brejo

38

autora 1

na esteira

39

sarafina

né foi (o trabalho mesmo no brejo pra mim deu agora disse que tá em mato) uma pena mas (.) deu dinheiro o brejo

 

A narrativa breve a respeito do trabalho de Sarafina no brejo é solicitada pela entrevistadora no turno 14 e:: e aí que ficou- a senhora tava contando outro dia do: do seu trabalho na est‌eira quando a senhora precisou ir pra bre:jo e tal e iniciada pela narradora na linha seguinte uhã (isso foi o melhor) aí que fez dinheiro mesmo (t.15). Essa avaliação pode ser considerada uma espécie de resumo (iniciado e conconstruído pela entrevistadora no turno anterior), pois desperta o interesse dos interlocutores ao apontar para uma reviravolta (fez dinheiro mesmo) em uma história de vida repleta de desafios financeiros. Dito isso, antes de iniciar a ação complicadora em si no turno 23, Sarafina desenvolve uma longa orientação em que novamente ressalta toda a dificuldade que precede esse momento de relativa prosperidade: ja era viuva (t.17) e ele morreu aí fiquei viúva aí fui me chutando fui me chutando (.) mas depois apareceu uma doença na ‌chácara que a chácara foi morrendo (t.19). A repetição do verbo morrer nesse turno direciona a atenção do interlocutor para duas sucessivas mortes que marcam sua vida: (i) a do marido que a deixa sozinha para criar seis filhos e (ii) a da chácara, sua fonte de subsistência após a morte do marido. As avaliações negativas entrelaçadas ao longo dessa orientação — a partir dos significados de morte (t.19) e doença (t.19, t.23), bem como a consequente falta de recursos foi acabando o dinheiro e sem dinheiro é ruim (t.23) —podem ser consideradas referências a reportabilidade, conforme avançado por Linde (1997), já que sua superação representa algo extraordinário. 

A ação complicadora projeta uma mulher fisicamente forte, a partir do uso de volume DOIS DIAS (t.25) e repetições cortei o brejo todo; acabei com quase o brejo todo (t.25), que intensificam a ação narrativa, cujo resultado é igualmente acentuado pela avaliação atribuída a terceiros eles não quiseram- não queriam que eu fosse mais lá (t.23). Além disso, identificamos a construção de uma mulher raivosa com a ira que tava (t.25), desafiando convenções de feminilidade que dificilmente permitem a expressão dessa emoção (Bucholtz; Hall, 2004, 2005; Lorde, 1981). Vale ressaltar que em momento algum da entrevista Sarafina expressa tristeza ou desespero diante da morte de seu marido, apenas sua revolta com as injustiças que a vida lhe reserva. A quebra de convenções generificadas identificada nas práticas narrativas de Sarafina é reforçada pela imagem construída de uma mulher que canaliza sua raiva no uso de uma faca para cortar tudo ao seu redor passei a mão na faca e fui (t.25) meti a faca no brejo (t.29). Historicamente, a ira feminina tem sido rigidamente regulada seja por meio de punições corporais bárbaras (Garber, 2017), seja ao taxar as mulheres raivosas de histéricas (Cooper, 2018), dificultando o reconhecimento das injustiças da sociedade patriarcal (e neoliberal) que, muitas vezes, criam condições para a expressão desta emoção (Ahmed, 2010; Lorde, 1981). Apesar dos feminismos do vigésimo século abrirem espaço para a veiculação de emoções até então construídas como simbolicamente masculinos, na contemporaneidade, temos testemunhado um movimento no sentido oposto (Gill et al., 2025; Litosseliti et al., 2019).

As repetidas avaliações positivas a respeito do retorno do brejo fiz muito dinheiro (t.25), dava dinheiro (t.29) cheio de dinheiro (t.33) dava dava pra comer fazer compra viajar: as crianças comprar roupa (t.35) são também coconstruídas pela entrevistadora e o dinheiro da esteira dava pra fazer as co:mpra tudo (t.34) projetando uma protagonista que não somente não se abalou diante de morte, doença e consequente pobreza, como conseguiu transformar sua raiva em prosperidade. A prosperidade projetada ao longo desses turnos culmina na coda o trabalho mesmo no brejo pra mim deu agora disse que tá em mato) uma pena mas (.) deu dinheiro o brejo (t.39) que nos remete de volta ao resumo no turno 15 fez dinheiro mesmo. É importante lembrar aqui que, na análise desta narrativa, não nos interessa se Sarafina, de fato, viajou com o dinheiro que o brejo rendeu e sim, a imagem de si construída a partir destas avaliações (Bamberg, 2006, Georgakopoulou, 2006; Riessman, 1993). A respeito disso, embora sua construção identitária desafie convenções de gênero, é importante destacar que as avaliações positivas do trabalho no brejo simultaneamente emergem da observação de superação de situação anterior de extrema precariedade. Dessa forma, é minimizada pela entrevistada a persistência das dificuldades enfrentadas, inclusive a necessidade de seus filhos se empenharem na confecção de esteiras. 

Segundo momento narrativo: "era só trabalhar e dar de comer aos filho que trabalhava dia e noite"

O segundo momento narrativo que selecionamos para análise, reproduzido no excerto 2 a seguir, se inicia com uma pergunta feita pela entrevistadora e o que você vê de mais diferente daquela época pra agora. Porém, no próximo turno, Sarafina renegocia o significado da pergunta umm a mesma coisa né e passa a narrar sua experiência de maternidade. Essa mudança de rumo aponta para a agência possível por parte da entrevistada, introduzindo tópicos não necessariamente solicitados pelo roteiro de perguntas estabelecido pela entrevistadora (Mishler, 1986).

 

Excerto 2

1

autora1

e o que você vê de mais diferente daquela época pra agora

2

sarafina

ummm a mesma coisa né (.) hhh fiquei viúva fiquei viúva fiquei sofrendo (com um monte de filho) com seis filhos (.) pra criar (.) o que que eu ia fazer mais né (.) era só trabalhar e dar de comer aos filho que trabalhava dia e noite (.) na roça pra fazer pros meus filho (.) >pediram os filho (.) meus filho não dei< (.) porque eu ia: dar meus filho (.) pra eu cair na rua (.) você não quer passear não passear ºeu vou criar o filhoº (.) fiquei com todos os seis graças a deus (.) criei todos os seis casei todos os seis (.)portanto que seja mal ou bem, ou largado do marido, mas tudo casado (.) ta >tudo bem< (.) acho que foi melhor assim  

3

autora1

foi agoniado né

4

sarafina

não foi melhor assim que queria que (do que eu dar um a fulano victalino cria um, esse cumpadre francisco criar outro mariquinha queria miro) pra eu ficar só com os três maior (.) eu disse não (.) onde vai comer os três come seis (.) se eu comer eles come se não comer também não come eu vou comer AQUI pensando nos outros LÁ (.) pode eles ta comendo bem pode não [ta] (.)

5

autora1

          [uhū:]

6

sarafina

criei to:dos seis criei to:dos seis ninguém acredita pessoal pergunta ninguém acredita que eu criei todos os seis filho casei todos os seis e olha aí agora eles estão me ajudando lá pegando na casa (os netos tudo, assim, os netos gostosos, bonitinhos pra mim) hhhh né

 

Como apontado na seção anterior, ao longo de seu turno, Sarafina enquadra a maternidade como trabalho, enfatizada aqui por repetições, tanto lexicais, quanto de ações fiquei viúva; fiquei viúva; com um monte de filho; com seis filhos; era só trabalhar; trabalhava dia e noite; criei todos os seis; fiquei com todos os seis; casei todos os seis (t.2). Essas repetições são pontuadas por mini pausas, trazendo uma carga dramática à narração de sofrimento. A atenção aqui parece recair no trabalho cumprido, veiculado pelo que podemos considerar a coda casei todos os seis (t.2), remetendo a uma ideia de completude e trazendo os interlocutores de volta ao presente. Esse enquadramento da maternidade enquanto trabalho, sem a presença de alguma avaliação que romantiza a experiência, foge de expectativas generificadas que exigem a avaliação positiva da maternidade.

Ao mesmo tempo, a partir do diálogo construído (Tannen, 1989) — um tipo de avaliação encaixada (Labov, 1972) — no qual a narradora anima a voz daqueles que pediram seus filhos, sua performance se aproxima mais do padrão esperado, ao retratar uma protagonista que coloca a maternidade acima de qualquer possibilidade de lazer você não quer passear não passear eu vou criar o filho (t.2). Nesse momento, entendemos que Sarafina comunica seu conhecimento dos valores da sociedade em que se vive, na qual o papel de criação cabe à mãe, independente dos desafios enfrentados (Linde, 1993). 

Embora a pergunta da 1ª autora no turno 14 solicite uma reflexão sobre possíveis mudanças na vida de Sarafina, ou no local em que reside, Sarafina escolhe versar sobre o contrário. Nesse sentido, esta breve narrativa chama nossa atenção por dois motivos: (i) insere uma pequena narrativa sobre maternidade em uma sequência de narrativas a respeito de trabalho, a pautando como tal e (ii) renegocia o curso da entrevista para colocar em primeiro plano um aspecto da sociedade que pouco se alterou: as expectativas generificadas a respeito do trabalho doméstico, algo, muitas vezes, invisibilizado.

 

Terceiro momento narrativo: "quando eu saio de casa...meu tipo é esse"

Após este último turno da narradora (t.6), a entrevistadora formula uma pergunta mais específica que redireciona a fala de Sarafina para uma mudança no seu trabalho da qual a entrevistadora já tinha ciência e:: quando que a senhora começou a <trabalhar:> de do↑méstica (t.7). Observamos aqui, uma renegociação do curso da entrevista em que a 1ª autora parece reivindicar seu papel enquanto entrevistadora e estabelecedora dos tópicos a serem abordados, um tipo de realinhamento que podemos chamar de uma mudança de footing nos termos propostos por Goffman (2002). Ao mesmo tempo, a relação familiar entre as duas facilita esta reorganização de papéis, pois a entrevistadora solicita uma narrativa sobre um assunto já de seu conhecimento. 

A partir dessa pergunta no turno 7, Sarafina inicia uma história mais extensa, composta por diversas narrativas breves encaixadas. A seguir, selecionamos alguns trechos considerados pertinentes para responder à pergunta eleita para nortear esse trabalho. Primeiramente, no excerto 3, identificamos uma narrativa breve composta inteiramente por diálogo construído referente a uma proposta de trabalho (Bauman, 1986).

 

Excerto 3

16

 

Sarafina

aí disse não arruma um serviço lá fora (.) arruma um serviço fora (.) aí veio comandante esse antônio >tem um serviço lá< pra senhora ir (.) fazer comida dar almoço janta lá eles te pagam um salário pra senhora (.) a senhora fazer o almoço e depois fazer a janta (.) nove horas nos bota a senhora ali o QUE vocês botam eu nove horas ali (.) ta certo (.) e que horas eu vou fazer o almoço ah seis horas a senhora tem que ta lá então >eu tenho que dormir também< eu sofri né (.) eu digo não cumpadre eu vou ve- eu vou pensar primeiro (.)<ºvou nãoº> vou lá não vou ficar aqui mesmo

 

 Destacamos aqui o que consideramos a coda da narrativa eu digo não cumpadre eu vou ve- eu vou pensar primeiro (.)<ºvou nãoº> vou lá não vou ficar aqui mesmo, quando Sarafina constrói sua própria fala, recusando a proposta. Nesse momento, se projeta com uma mulher com o poder de escolha sobre seu trabalho vou pensar primeiro. O ato de se citar, se direcionando ao outro, pode ser compreendido como um tipo de avaliação encaixada, nesse caso, colocando a qualidade da proposta em xeque e tornando a narrativa reportável pela sua excepcionalidade de recusa (Bauman, 1986; Labov, 1972). Além disso, o uso repetido do negativo eu digo não; vou não; vou lá não também tem função avaliativa, ao contrastar os eventos narrados com aqueles que poderiam ter acontecido (nesse caso, o aceite que teria sido esperado de alguém, teoricamente, com necessidade financeira). Novamente, o uso do tempo presente aumenta a carga dramática das avaliações negativas do trabalho proposto, contribuindo para essa performance de mulher agentiva.

Ainda no mesmo turno, identificamos o que consideramos uma anedota como proposto por Bauman (1986) que versa sobre uma outra proposta de trabalho que, nesse caso, foi aceita. No excerto 4, a seguir, Sarafina constrói o diálogo entre o patrão e ela a primeira vez que conhece o ambiente de trabalho. 

 

Excerto 4

16

Sarafina

você vem pra semana que vem (.) que amanhã nós vamo fazer uma festa grande aqui(.) se a senhora vai fazer uma festa grande aqui (.) eu venho (.) eu venho amanhã (.) porque eu vou ver o jeito que vocês fazem a comida (.) que o jeito que vocês fazem a comida eu faço (.) eu cozinho (.) sei cozinhar mas a comida de vocês eu não sei (.) (palavras) aí fui aí menina eu cheguei lá a comida pior do que a nossa (.) era tomate cortado (.) cebola cortada (.) um cado de farofa (.) uma carne no churrasco lá (.) carne no churrasco (.) e se quiser fazer um macarrão faz se não arroz (.) (comida boa eu sei fazer) essa comida aí eu faço (eu sei fazer)o comandante você fahhhhz mehhhlhor né sarafina eu digo melhor NÃO (.) que cada um tem seu gosto

 

O uso do diálogo construído pode ser considerado uma estratégia de envolvimento, trazendo uma carga teatral à prática narrativa (Tannen, 1989). Porém, em meio a esse diálogo, a narradora suspende a ação para se endereçar à entrevistadora e fazer uma avaliação externa menina eu cheguei lá a comida pior do que a nossa. Nesse momento, identificamos mais uma possível mudança de footing (Goffman, 2002) no momento em que Sarafina torna relevante a relação familiar (e assimétrica) entre as duas ao se referir a uma pesquisadora adulta como menina, ao mesmo tempo em que apela à cumplicidade em decorrência de um pertencimento de classe social pior do que a nossa. Apesar de se encontrar em uma relação assimétrica enquanto protagonista do mundo narrado, se projeta novamente como uma pessoa que não se diminui diante disso, valorizando as práticas culturais de sua origem. Ou seja, apesar de aceitar a proposta de trabalho, sua protagonista é capaz de fazer escolhas a respeito de sua alimentação, bem como reprovar o estilo de vida de quem tem poder aquisitivo reconhecidamente mais alto. Além de avaliar sua própria capacidade culinária positivamente comida boa eu sei fazer, um atributo simbolicamente associado ao universo “feminino”, a animação da voz do patrão reforça essa avaliação você fahhhhz mehhhlhor né sarafina, por, teoricamente, partir de um terceiro desinteressado. Dito isso, a resposta que Sarafina constrói para si mesma comunica conhecimento das relações de poder em jogo na interação e a necessidade de tato e deferência ao patrão eu digo melhor NÃO (.) que cada um tem seu gosto. O uso de volume enfatiza o negativo que, apesar de contradizer a fala anterior do seu superior, reforça uma relação assimétrica entre os dois.

A última narrativa breve selecionada para análise aparece no turno 18 e é reproduzida no excerto 5 a seguir. Ela pode ser considerada parte dessa mesma história mais extensa, narrada com intervenção mínima da entrevistadora que, nesse momento, apenas comunica o que interpretamos como um ouvido atento ao emitir um uhū no turno 17. Nesse momento, Sarafina versa sobre seu trabalho como doméstica no mesmo ambiente do mundo narrado no excerto 4. 

 

Excerto 5

18

Sarafina

aquele <homem> aquele homem era esquisito assim (.) era esquisito (.) também era bonitãohhh (.) aquele homem não era feio não (palavras) mas comigo minha filha tratei na pontinha do pé (.) qualquer coisa (.) cara <amarra:da> você ta zangada não senhor quando >quando eu saio de casa< (.) <ºmeu tipo é esseº> (.) vim TRABALHAR trabalhar eu trabalho o senhor quer uma coisa (.) ah queria cortar um limão (.) bota ai que eu corto cortava cortava fininho botava ai (.) era só isso (.) tive conversa com ele não graças a deus hhhh

 

Neste excerto, Sarafina faz alusão a uma ameaça de assédio e/ou violência de gênero no ambiente de trabalho ao avaliar seu patrão como esquisito e compartilhar a estratégia desenvolvida para lidar com a situação e eventuais avanços por parte dele tratei na pontinha do pé (.) qualquer coisa (.) cara <amarra:da>. As minipausas, bem como a desaceleração da fala e o alongamento do vogal em <amarra:da> comunicam a dramaticidade da ação tomada. Ao mesmo tempo, o diálogo construído (Tannen, 1989) que se segue, em que ela novamente anima a voz do patrão você ta zan↑gada traz à tona as emoções que podem ser expressas por mulheres nessa situação em que múltiplas relações de poder estão em jogo. A resposta da protagonista do mundo narrado não senhor quando >quando eu saio de casa< (.) <ºmeu tipo é esseº> rejeita um possível enquadre como mulher raivosa. A minipausa antes de meu tipo é esse, acompanhada pela desaceleração da fala e redução de volume, novamente acrescenta uma carga teatral à sua fala, comunicando conhecimento da linha tênue que trilha enquanto protagonista do mundo narrado ao negociar os avanços do patrão. Segundo a narradora, para se preservar nesse ambiente, ela precisa recorrer a uma performance identitária como mulher trabalhadora vim TRABALHAR trabalhar eu trabalho. Dessa forma, a partir do diálogo construído a narradora costura avaliações a respeito do perigo em que a protagonista se encontra, bem como as contingências macrossociais que limitam a possibilidade de agência, veiculando a reportabilidade da história (Bucholtz, Hall, 2004, 2005; Labov, 1972; Moita Lopes, 2001). De modo semelhante, a partir desse diálogo construído, podemos compreender que sua inserção nesse novo ambiente de trabalho redefine os parâmetros de performances identitárias possíveis (Butler, 1990). 

 

Discussão 

Na análise discursiva aqui conduzida, norteada pela pergunta “até que ponto papéis de gênero convencionais são reinscritos e/ou reforçados nas práticas identitárias emergentes das narrativas?” nós nos debruçamos sobre três momentos narrativos gerados em uma entrevista de pesquisa com Sarafina, residente de longa data e testemunha da urbanização de Maricá. Os trechos selecionados para análise versam sobre três dimensões de sua trajetória profissional: (i) seu trabalho no brejo na época em que a região estava ainda em transição (de economia de subsistência para economia aberta); (ii) seu trabalho enquanto mãe de seis filhos que perpassa toda esta trajetória e (iii) seu trabalho posterior enquanto empregada doméstica — cargo propulsionado pela proliferação de casas de veraneio na região. 

No primeiro momento narrativo, identificamos a projeção de uma mulher forte e raivosa, que canaliza sua ira com as injustiças da vida em um trabalho braçal, cortando palha no brejo. Ao narrar esta atuação, Sarafina articula estratégias de sobrevivência, diante de uma sequência de tragédias que desestruturam sua vida. Já no segundo momento narrativo, a narradora reivindica agência enquanto participante do mundo narrativo, redirecionando o curso da entrevista e possibilitando que a maternidade ganhe visibilidade enquanto trabalho. A breve narrativa que emerge ressalta um trabalho cumprido pela protagonista enquanto concilia diversos outros papeis, garantindo, assim, sua sobrevivência e a de seus seis filhos. No terceiro e último momento narrativo analisado neste artigo, identificamos novamente a construção de uma mulher agentiva, desta vez enquanto protagonista do mundo narrado. No diálogo construído, Sarafina cria um self capaz de avaliar a qualidade de uma proposta de trabalho, independente de sua necessidade financeira, ao mesmo tempo em que comunica sua consciência das relações de poder generificadas que atravessam as novas relações de trabalho impostas no local.

Conforme sinalizado anteriormente neste artigo, para linde (1993), ao versar sobre a trajetória profissional, é preciso que o narrador estabeleça causalidade, geralmente ao fazer referência a algum aspecto de sua personalidade, ou habilidade identificada ainda na infância, que justifique a escolha da posição presente. Sarafina, no entanto, se constrói como sobrevivente, cuja trajetória parte de uma habilidade para se adaptar a condições externas em constante fluxo, bem como a rupturas duras em sua vida – todos fatores exteriores ao seu controle. Nesse sentido, é possível dizer que o sistema de coerência em que se apoia dialogue com discursos macrossociais a respeito de classe social e de gênero — enquanto estruturas que restringem suas oportunidades e possibilidades de escolha mesmo que Sarafina não tenha acesso a letramentos proporcionados pela inserção em movimentos sociais que permitam referências mais explícitas, ou denúncias a respeito das condições adversas que atravessam sua trajetória. Apesar de suas narrativas versarem sobre adversidades superadas através de seus esforços, não emergem sistemas de coerência neoliberais ou meritocráticas, os quais se fundamentam na noção de um mundo de oportunidades iguais em que o sucesso depende apenas do indivíduo (Littler, 2018). Pelo contrário, Sarafina comunica sua raiva com as condições de vida que precisa lidar, narrando sua luta para simplesmente garantir sua subsistência.

Isso posto, se, por um lado, é possível que Sarafina expresse esta raiva enquanto trabalhadora no brejo, tal raiva precisa ser contida enquanto trabalhadora doméstica, ameaçada de violência de gênero, em decorrência das relações de poder em jogo nesse novo ambiente de trabalho. Desse modo, apesar dos significados de força e agentividade costurados ao longo de sua história de vida, Sarafina simultaneamente comunica sua consciência de que se encontra em uma posição subordinada, a qual a expõe a ameaças de violência generificadas. Assim, se distancia de uma sujeita “pós-feminista” do mundo meritocrático conforme delineado por Gill, (2017), pois ao mesmo tempo em que se constrói como resiliente, articula conhecimento dos arranjos sociais que limitam sua agência.

Nesse sentido, a análise discursiva conduzida nos permite observar o funcionamento da estrutura reguladora de gênero e até que ponto Sarafina, enquanto mulher de classe trabalhadora e moradora de uma região periferizada é permitida agência para desafiar convenções generificadas. No mais, sua oscilação entre a contestação das normas e as performances que se encaixam nelas aponta para a redefinição dos parâmetros de performances de gênero possíveis a partir das mudanças nas relações de trabalho decorrentes da urbanização de Maricá.

Do ponto de vista do processo de urbanização, a periferização impôs novas formas de existência, homogeneizantes. Impôs, consequentemente, o apagamento de outras sociabilidades, seja na impossibilidade de expressar sentimentos ou na precarização da vida a tal ponto, que já não se pode dizer não ao seu avanço, de acordo com o mundo narrado. Como aponta Rolnik (2023, p.7), a experiência urbana generificada é “marcada pelo medo de perder a casa, de não ter como e onde proteger e alimentar sua família, de ter que submeter a locais aonde proteger e alimentar a família envolve sacrifícios de várias ordens”. Apesar desta realidade, até certo ponto, foi possível identificar nas falas da entrevistada, em seus nãos, uma resistência daquela que detinha o domínio sobre suas técnicas de trabalho e condições de subsistência à uma proposta que representava uma mudança drástica em sua vida e de sua família. 

No entanto, como vimos, o contexto de urbanização em Maricá, com o loteamento das roças e fazendas, a mecanização da agricultura e a venda da modernidade como parâmetro moral e estético de vida, não deixa alternativas a Sarafina ou aos demais trabalhadores da roça. Mesmo assim, a pesquisa mais ampla observou que no processo de periferização da roça em Maricá, esses trabalhadores preservaram resquícios de uma sociabilidade mais coletiva, ligada à cultura da roça. Tais resquícios persistem nas práticas cotidianas das periferias, que aqui entendemos como resistência. 

Neste sentido, ressalta-se a relevância da pesquisa em investigar no processo de periferização, o lugar de desprestígio relegado aos sujeitos do campo, que nos permita construir a crítica da urbanização desigual. Mais que isso, destaca-se a importância do reconhecimento das formas de existência e resistência periférica, e assim da produção de registros que visibilizem suas narrativas, que deem subsídios às disputas contra hegemônicas e às possibilidades de existências outras. 

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Data de Recebimento: 20/09/2025

Data de Aprovação: 06/11//2025

 

 


1  mestranda no Instituto de Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, IPPUR - UFRJ, arquiteta e urbanista pela Universidade Federal Fluminense – UFF. e-mail: anamachado.carol@gmail.com.

2  A pesquisa não recebeu apoio financeiro de agência de fomento.

3  Realçamos que, nesta perspectiva, o significado não é visto como estável e sim, construído e negociado nas interações.

4  Selecionamos dados da entrevista com Sarafina para exemplificar os conceitos teóricos apresentados.

5  Trecho selecionado do corpus a ser analisado para exemplificar a noção de sistemas de coerência. A análise propriamente dita, orientada pela pergunta já apresentada, será desenvolvida na seção a seguir.

6  O exemplo serve para ilustrar a contribuição da interação entre as interlocutoras para a geração de narrativas labovianas. Por isso, segue as convenções de transcrição que possibilitam a visualização dessas interações. Estas interações não foram selecionadas para responder à pergunta eleita neste trabalho a ser explorada na seção analítica a seguir, mas antecedem os dados a serem apresentados no primeira seção de análise.

7  Posto isso, a análise ainda lança mão de contribuições teóricas de Labov (1972) consideradas produtivas para a identificação de recursos avaliativos.

8  Pós-doutoranda no programa de pós-graduação em Estudos da Linguagem da PUC-Rio e doutora em Letras pela mesma instituição. E-mail: reanelisboa@gmail.com.






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