Mulheres e cidade: O Rio Vermelho sob a lente do urbanismo feminista


resumo resumo

Paula Athayde Beckhauser
Ana Licks Almeida Silva



Introdução

A maioria das pessoas vive em cidades e, em 2050, 68% da população mundial estará em centros urbanos (ONU-Habitat, 2022). Organizado pela lógica produtiva e pelos interesses do capital, o modelo urbano atual mostra-se insustentável, agravando crises ambientais e sociais. Nesse cenário, desigualdades estruturais moldadas por sistemas capitalistas, patriarcais, racistas e coloniais, reforçam a urgência de espaços urbanos mais justos e inclusivos. Movimentos feministas e antirracistas respondem a essa realidade, desafiando o planejamento urbano tradicional, questionando sua lógica excludente e defendendo a reorientação das decisões para priorizar a qualidade de vida. O urbanismo feminista considera as vivências de mulheres e outros grupos marginalizados, propondo atender às necessidades individuais e coletivas, evidenciando os impactos da negligência a esses grupos. Essa perspectiva desafia a suposta neutralidade do planejamento urbano e se alinha aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da ONU, especialmente à igualdade de gênero (ODS 5) e à construção de cidades inclusivas, seguras e sustentáveis (ODS 11) (Nações Unidas Brasil, 2015).

No Brasil, onde as mulheres representam 51,8% da população e 52,87% do eleitorado, a sub-representação das mulheres em cargos políticos perpetua a ausência de políticas públicas com perspectiva de gênero (IBGE, 2024). A exclusão dos espaços de poder, somada à crescente feminização da pobreza, aprofunda a desigualdade, evidenciada pelo fato de que, em 2017, 75% das mulheres no mercado de trabalho mundial ocupavam posições sem contrato formal, revelando sua vulnerabilidade econômica (Oxfam apud Oliveira, 2021). Em 2023, o Global Gender Gap Report, posicionou o Brasil na 57ª colocação entre 146 países com desigualdades em participação econômica, educação, saúde e representação política (World Economic Forum, 2023). Tais disparidades afetam diretamente a formulação de políticas urbanas inclusivas e reforçam a marginalização das mulheres no direito à cidade enquanto espaço público, político e de liberdade (Col-lectiu Punt 6, 2019).

Apesar do reconhecimento das mulheres como agentes centrais nas dinâmicas urbanas, o urbanismo feminista ainda é pouco explorado no Brasil. Assim, este estudo busca compreender como esses princípios podem transformar as dinâmicas socioespaciais do bairro do Rio Vermelho, em Salvador, Bahia. O objetivo é investigar como os princípios do urbanismo feminista podem mitigar iniquidades sociais e ambientais no bairro, promovendo um planejamento urbano mais inclusivo. Busca-se também propor reflexões que orientem políticas públicas sensíveis às interseções de gênero e raça, promovendo uma cidade mais justa e equitativa. O Rio Vermelho destaca-se como um exemplo relevante para essa análise, pois com 55,73% de sua população composta por mulheres (Conder, 2016), ilustra os desafios e potencialidades no ambiente urbano. Com diversidade de usos e intensa circulação, o bairro é ao mesmo tempo espaço residencial e polo cultural, gastronômico e boêmio, atraindo moradores e visitantes.

A configuração socioespacial de Salvador é marcada pela fragmentação urbana, com bairros de diferentes classes sociais próximos, porém separados por profundas desigualdades. O Rio Vermelho, tradicionalmente um bairro de classe média, é vizinho de bairros como Chapada do Rio Vermelho, Vale das Pedrinhas e Nordeste de Amaralina, que apresentam indicadores socioeconômicos mais baixos e maior densidade populacional. Essa proximidade reforça o papel do bairro como centro funcional para comunidades vizinhas, que acessam sua infraestrutura e serviços. Segundo a pesquisa QUALISalvador (2022), o Índice de Infraestrutura e Serviços Urbanos (IISU) do bairro, de 0,85, é considerado elevado para os padrões da cidade. Esse dado contrasta com as condições mais precárias do entorno, ilustrando desigualdades socioespaciais.

Ainda assim, a qualidade de vida no bairro não é uniforme. Embora o Índice de Qualidade Urbano-Ambiental (IQUA) seja "muito bom" (0,69), o Índice de Bem-Estar (IBE), de 0,39, aponta déficits em segurança e serviços básicos (Santos et al., 2022). Esses déficits afetam sobretudo as mulheres, principais usuárias do transporte público, responsáveis pelo cuidado familiar e mais expostas à insegurança urbana. Assim, o Rio Vermelho apresenta um cenário propício para analisar como as desigualdades sociais e urbanas podem ser enfrentadas sob uma perspectiva feminista. A interação entre o bairro e seu entorno evidencia como gênero, classe e território se entrelaçam no espaço urbano, reforçando a necessidade de intervenções que promovam equidade e inclusão.

 

Um olhar sobre o feminino e o espaço urbano

O urbanismo feminista alinha-se aos princípios do movimento feminista, apoiando-se nas conquistas das diferentes ondas — como acesso à educação, direito ao voto e autonomia sobre a saúde reprodutiva — que pavimentaram o caminho para a crítica às desigualdades estruturais do espaço urbano.

Autoras como Jane Jacobs e Dolores Hayden contribuíram significativamente para essa perspectiva. Em "Morte e Vida de Grandes Cidades", Jacobs [1961] / (2011) trouxe uma crítica ao planejamento modernista ao valorizar a vitalidade comunitária e a diversidade urbana, influenciando, segundo o Col-lectiu Punt 6 (2019), o desafio às normas patriarcais no planejamento urbano. Já Hayden, em What Would a Non-Sexist City Be Like? (1980), analisou como o modelo suburbano americano reforçava a divisão sexual do trabalho e propôs um paradigma de urbanismo que valorizasse o trabalho não remunerado das mulheres, sendo considerado um dos artigos mais influentes para o urbanismo feminista (Col·lectiu Punt 6, 2019).

O conceito de interseccionalidade, introduzido por Kimberlé Crenshaw (1989), ampliou a análise feminista ao evidenciar a interdependência entre gênero, raça e classe, cujas manifestações variam conforme o contexto. Ao abordar os padrões de exclusão que estruturam a divisão espacial urbana, Ângela Davis lembra que “ninguém pode assumir a primazia de uma categoria sobre as outras” (Davis apud Berth, 2023).

Em termos de iniciativas práticas, na América Latina a urbanista Ana Falú lidera a organização Ciudades y Construcciones Sustentables para América Latina (CISCSA), dedicada ao direito à cidade das mulheres, e desde 1989 coordena a Red Mujer y Hábitat de América Latina, que promove diagnósticos de segurança em espaços públicos e outras ações apoiadas pela ONU Mulheres e AECID. Na Europa, Viena tornou-se pioneira ao implementar, a partir de 1995, a estratégia de “Integração de Gênero”. A partir de uma exposição fotográfica em 1991, a urbanista Eva Kail evidenciou a negligência em relação às mulheres no espaço urbano e liderou projetos inovadores como o bairro Frauen-Werk-Stadt, projetado por e para mulheres. Pesquisas de mobilidade subsequentes na cidade mostraram que as mulheres utilizavam mais o transporte público e com trajetos mais variados, impulsionando o planejamento urbano sob a perspectiva de gênero (Oliveira, 2021).

O termo “urbanismo feminista” ganhou destaque nos anos 2000 através de iniciativas como o Col-lectiu Punt 6, cooperativa fundada em Barcelona em 2005 por arquitetas, urbanistas e sociólogas — entre elas Adriana Ciocoletto e Zaida Muxí — após a aprovação da Lei dos Bairros (2004), que introduziu medidas de equidade de gênero no uso dos espaços e equipamentos urbanos. Entre suas principais contribuições estão o manual Espacios para la Vida Cotidiana: Auditoría de Calidad Urbana con Perspectiva de Género' (Ciocoletto, 2014), que apresenta diretrizes para a criação de espaços urbanos com perspectiva de gênero a partir de cinco indicadores de qualidade: proximidade (acesso a serviços), diversidade (variedade de usos), autonomia (deslocamento seguro e independente), vitalidade (dinâmica urbana) e representatividade (inclusão social).

Nas últimas décadas, o urbanismo feminista consolidou-se como um campo teórico e prático relevante no planejamento urbano. Obras como Invisible Women (2019), de Caroline Criado Perez, e Cidade Feminista (2021), de Leslie Kern, revelam que, apesar dos avanços feministas, as estruturas urbanas permanecem condicionadas por lógicas patriarcais. Perez (2019) investiga como o viés de gênero na coleta e análise de dados reforça desigualdades estruturais e exclusões na infraestrutura e no design urbano. Kern (2021), por sua vez, aborda as barreiras simbólicas, sociais e espaciais que limitam a participação das mulheres no ambiente urbano, destacando a importância da abordagem interseccional.

Nesse contexto, Paris, sob a liderança de Anne Hidalgo, adotou em 2020 o conceito das “cidades de 15 minutos”, formulado por Carlos Moreno. A proposta busca garantir que o acesso a serviços essenciais — trabalho, lazer e cuidados pessoais — seja acessível a pé ou de bicicleta em um raio de 15 minutos, fortalecendo a proximidade, sustentabilidade e resiliência das comunidades. Segundo Hidalgo, trata-se de “uma cidade dos bairros”, na qual o espaço para carros é reduzido em favor de pedestres e ciclistas (Oliveira, 2021).

No Brasil, o debate sobre urbanismo feminista ainda é emergente. Pesquisadoras como Calió (1997) analisam como o patriarcado e o capitalismo reforçam desigualdades de gênero no espaço urbano, enquanto Santoro (2008) explora a influência do trabalho produtivo e reprodutivo na organização espacial. Mais recentemente, Oliveira (2021) discute os desafios do direito à cidade e das políticas públicas voltadas à igualdade de gênero, e Joice Berth (2023), em “E se a cidade fosse nossa”, evidencia como raça e gênero moldam as experiências nas cidades brasileiras e destaca práticas urbanísticas que perpetuam desigualdades estruturais desde a colonização.

Embora a abordagem feminista ofereça soluções viáveis para cidades mais inclusivas, sua implementação prática enfrenta desafios, como a escassez de recursos e resistência a mudanças culturais. Ainda assim, o urbanismo feminista continua avançando ao propor soluções baseadas na sustentabilidade da vida e na interseccionalidade, com o objetivo de erradicar desigualdades e transformar espaços urbanos (Col-lectiu Punt 6, 2019).

 

A perspectiva feminista aplicada ao bairro

Esta pesquisa é de natureza qualitativa, cuja abordagem interpretativa e dialética foi fundamentada na compreensão das experiências (Minayo, 2012). O objeto de estudo, o bairro Rio Vermelho, em Salvador (BA), foi escolhido por sua relevância histórica, intensa vida urbana e recentes processos de requalificação que impactaram moradores e trabalhadores. Nesse contexto, o recorte feminista norteou a investigação das dinâmicas socioespaciais, buscando compreender como diferentes grupos de mulheres percebem e interagem com o bairro. Para assegurar a confiabilidade do estudo, adotou-se a triangulação de dados, combinando três fontes de informação complementares:

Análise sócio-histórica, para compreender a evolução urbana e as transformações estruturais do bairro;

Entrevistas semiestruturadas, para acessar experiências, percepções e narrativas pessoais;

Observação direta, que possibilitou registrar práticas cotidianas e dinâmicas espaciais em tempo real.

Essas técnicas foram aplicadas de forma integrada, permitindo articular diferentes escalas de análise. Além disso, a abordagem interseccional permeou todas as etapas da pesquisa, desde a seleção das participantes até a análise dos dados, permitindo evidenciar desigualdades relacionadas à raça, idade e classe. Todas as etapas do estudo foram conduzidas com rigor ético, garantindo privacidade, confidencialidade e consentimento livre e esclarecido das participantes.

A coleta de dados ocorreu entre outubro de 2023 e fevereiro de 2024. Foram realizadas 33 entrevistas individuais semiestruturadas, número definido a partir da saturação dos dados, quando os relatos passaram a se repetir. As participantes foram selecionadas com base no critério de residirem ou trabalharem no bairro, contemplando um perfil diverso em relação à idade, raça e condição socioeconômica. Para identificá-las, combinaram-se diferentes estratégias, incluindo caminhadas exploratórias no bairro, contatos prévios da pesquisadora e indicações entre participantes (técnica bola de neve). Os tópicos abordados incluíram deslocamentos no bairro, percepção de segurança, uso dos espaços públicos e sugestões de melhorias. De forma complementar às entrevistas individuais, foram realizadas duas entrevistas em grupo, cada uma com três mulheres que já mantinham vínculos entre si, com o objetivo de aprofundar temas levantados anteriormente e captar nuances coletivas das experiências.

A análise foi estruturada a partir dos indicadores de qualidade urbana do Col-lectiu Punt 6 (2019), já mencionados, que forneceram uma base teórica sólida para interpretar os aspectos físicos, sociais e funcionais do espaço urbano. Assim, as categorias de análise foram: proximidade, vitalidade, diversidade, autonomia e representatividade. A partir da triangulação das técnicas, foi possível analisar cada categoria em diferentes dimensões. Por exemplo, a proximidade foi avaliada tanto pela análise histórica da oferta de serviços quanto pelas percepções das entrevistadas e pela observação direta do cotidiano do bairro.

A principal limitação do estudo foi a dificuldade de realizar observações presenciais no trecho do Rio Lucaia, área pouco movimentada e percebida como insegura pela população. A ausência de pedestres e o uso predominante por veículos tornam o local vulnerável a episódios de violência urbana, o que restringiu a análise em horários e circunstâncias que garantissem a segurança da pesquisadora. Essa condição é especialmente relevante em Salvador, reconhecida como uma das cidades mais violentas do país, afetando ainda mais a vivência das mulheres no espaço público.

 

Interconexões espaciais e sociais no rio vermelho

Os resultados da pesquisa no bairro do Rio Vermelho revelam a complexidade das dinâmicas socioespaciais sob a perspectiva do urbanismo feminista. As cinco categorias analisadas – proximidade, diversidade, autonomia, vitalidade e representatividade – mostram-se profundamente interligadas, compondo um panorama que evidencia tanto as limitações quanto as potencialidades do território.

A proximidade, entendida como a relação entre tempo, distância e acessibilidade aos espaços necessários para as atividades cotidianas, está intrinsecamente conectada à diversidade de usos do solo. Deslocamentos curtos, realizados a pé, tornam atividades como ir ao mercado, à farmácia ou levar as crianças à escola mais eficientes. No Rio Vermelho, a coexistência de espaços residenciais, comerciais e culturais favorece deslocamentos associados à ideia de “cidade de 15 minutos”, como relatado pela moradora C65:

“Em cinco minutos resolvi o problema da minha irmã, descendo a rua, indo à quitanda, ao mercado, tudo muito perto de casa.” (C65)

 

Entretanto, a infraestrutura local apresenta limitações que comprometem a acessibilidade. Calçadas estreitas e em estado precário configuram barreiras significativas para a mobilidade e o acesso a serviços essenciais, especialmente para mulheres com crianças pequenas, idosos e pessoas com mobilidade reduzida, como evidencia M71:

 

“Quando eu penso em chegar lá [no mercado], vou me limitar a trazer apenas o que posso carregar, um maço de coentro.” (M71)

 

Essa limitação impacta diretamente a mobilidade cotidiana e reflete a negligência estrutural que afeta o direito à cidade para grupos mais vulneráveis. Mesmo em áreas revitalizadas no bairro, especialmente em trechos turísticos, os caminhos de acesso continuam precários, comprometendo a experiência de deslocamento, como menciona C65:

"Passo pela Rua do Meio, saio na Mariquita, e as calçadas seguem estreitas até o Teatro SESI, onde a área foi revitalizada. Para ter acesso a essa área, você tem que passar por áreas estreitas, com muito carro passando perto, muita poeira e calçadas irregulares." (C65)

A falta de integração entre intervenções pontuais de requalificação urbana expõe a ausência de uma abordagem planejada para a mobilidade urbana. Melhorias concentradas em um único trecho, sem considerar o entorno, não garantem acessibilidade nem segurança, criando condições que ampliam desigualdades no deslocamento cotidiano. Essa desarticulação torna-se particularmente evidente em áreas com infraestrutura precária, como o entorno do Rio Lucaia. A baixa ocupação e a falta de manutenção elevam a percepção de insegurança, especialmente em horários e locais com menor fluxo de pessoas. Tal cenário dificulta a circulação e agrava as desigualdades na mobilidade urbana, afetando, sobretudo, mulheres, idosos e outros grupos que já enfrentam barreiras físicas e simbólicas.

A relação entre vitalidade e segurança destaca a interdependência entre a ocupação contínua dos espaços e a sensação de proteção. Locais com baixa circulação de pedestres tendem a intensificar a percepção de risco, desencorajando o uso e perpetuando exclusões. Em contrapartida, a vitalidade urbana — definida pela capacidade de um espaço de promover encontros, trocas e socialização — evidencia dinâmicas contrastantes dentro do bairro.

O Largo da Mariquita é um polo cultural e comercial ativo, com diversidade de usos, presença de mobiliário urbano e circulação constante de pessoas, o que favorece a sensação de segurança. Em contraste, o entorno do Rio Lucaia, embora arborizado, é utilizado principalmente como via de passagem para veículos, acentuando a percepção de insegurança e restringindo o uso do espaço por pedestres. Tal contraste evidencia a insegurança nos espaços urbanos de Salvador, uma das cidades mais violentas do país, em que a vulnerabilidade é um obstáculo significativo ao exercício do direito à cidade, especialmente para as mulheres (Figura 1).

 

Figura 1: Comparativo entre o Largo da Mariquita (à esquerda) e o trecho do Rio Lucaia (à direita)

Fonte: Acervo pessoal (2023).

 

O contraste entre os dois espaços, associado à proximidade e às dinâmicas essencialmente distintas, evidencia a ausência de políticas urbanas integradas. No trecho do Rio Lucaia, a precariedade de infraestrutura, como a falta de calçadas adequadas, força os pedestres a utilizarem a ciclofaixa como alternativa, expondo-os a riscos de acidentes e reforçando a percepção de abandono (Figura 2).

 

Figura 2: Pedestre caminhando pela ciclofaixa no trecho do Rio Lucaia

Fonte: Acervo pessoal (2023)

 

Esse cenário revela uma hierarquização no uso do espaço urbano, que privilegia o automóvel em detrimento da mobilidade ativa e da segurança dos pedestres. A ciclofaixa, posicionada ao lado de carros estacionados, ilustra como a infraestrutura prioriza veículos em vez de proteger a integridade física das pessoas. Além disso, o trecho do Rio Lucaia caracteriza-se por uma ausência de diversidade de usos e pela predominância de atividades masculinas, como descrito pela moradora T24:

 

"Muitos homens trabalhando em oficinas mecânicas, e há um desconforto ao circular sozinha, por ser um espaço predominantemente masculino." (T24)

 

Essa homogeneidade contribui para o desconforto e a sensação de insegurança, limitando o acesso e a apropriação do espaço urbano, como reforça a trabalhadora E54:

 

"Os homens jogando dominam são praticamente a única interação social que observamos no meu trajeto." (E54)

 

A negligência em atender às necessidades de grupos mais vulneráveis restringe a diversidade nas interações sociais — elemento fundamental para a vitalidade urbana. A ausência de infraestrutura adequada, associada à predominância de atividades econômicas homogêneas, cria barreiras que afetam desproporcionalmente mulheres, crianças, idosos e pessoas com deficiência. Essa opressão interseccional é ilustrada no relato da trabalhadora A61:

"Eu sou cega, negra e velha. A gente tem que enfrentar." (A61)

 

Essa realidade se materializa na ausência de infraestrutura acessível e diversificada, o que revela a negligência em construir espaços urbanos inclusivos, capazes de assegurar deslocamentos autônomos e seguros. A infraestrutura cicloviária do Rio Vermelho ilustra como políticas públicas insuficientes afetam a mobilidade ativa. Atualmente, o bairro conta com uma única ciclovia, com 790 metros de extensão (Mapa 1), implantada na Revitalização da Orla em 2016, conectando o Teatro SESI (Rua Guedes Cabral) à Praia da Paciência (Rua da Paciência), abrangendo uma área de apelo turístico.

 

Mapa 1 - Mapa de ciclovias no bairro

Fonte: Nascimento et al. (2023)

 

Essa configuração revela a priorização do lazer em detrimento de uma malha cicloviária contínua, integrada e em bom estado de conservação. A escassez de infraestrutura cicloviária impacta especialmente quem depende de deslocamentos curtos e acessíveis, como aponta D27:

 

"Comparando Salvador com o Rio de Janeiro, a quantidade de estações de bicicleta aqui é surrealmente baixa... Se você morar um pouco mais pra dentro do bairro ... é ineficiente até." (D27)

 

A fala evidencia um duplo obstáculo à mobilidade: a falta de integração da infraestrutura cicloviária e a insuficiência de estações de bicicletas, tornando inviável o uso desse meio de transporte. Para trajetos mais longos, o transporte público é a principal alternativa, mas também apresenta limitações. A eficiência e o conforto do sistema dependem da qualidade das conexões entre os pontos de ônibus, incluindo a existência de rotas diretas e a articulação entre os modais. Embora o bairro conte com boa cobertura de pontos (Mapa 2), a implementação do sistema BRT, cujas obras começaram em 2018 e iniciou operação em 2022, resultou em baldeações e trajetos menos diretos, dificultando o acesso às áreas periféricas.

Mapa 2 - Mapa de localização dos pontos de ônibus no bairro

Fonte: Nascimento et al. (2023)

 

Esses desafios aprofundam as desigualdades socioespaciais, afetando principalmente as mulheres que residem em bairros periféricos. As entrevistadas J60 e B45, que trabalham no Rio Vermelho e vivem em Narandiba e Dóron — a cerca de 15 km e 12 km do bairro, respectivamente — relatam a exaustão de seus deslocamentos diários:

"Duas a três baldeações. Na ida e na volta... pega ônibus, metrô e BRT". (J60)

 

"Às vezes tem integração e não dá tempo de pegar o próximo ônibus... Se vacilar, perde a integração." (B45)

 

As barreiras de mobilidade dificultam tanto o acesso ao trabalho quanto a permanência no bairro após o expediente, como relata a artesã A61 — que trabalha quinzenalmente na Feira do Largo da Mariquita e mora em Cajazeiras, a cerca de 20 km de distância —, restringindo sua participação em atividades culturais e sociais:

 

"Não costumo frequentar... pelo fato de eu morar tão longe” (A61)

 

Além disso, as mudanças físicas no bairro, impulsionadas pela gentrificação, acentuam ainda mais a exclusão social. A revitalização da Orla, em 2016, reconfigurou espaços tradicionalmente ocupados por diferentes grupos sociais, como o antigo Mercado do Peixe — agora Vila Caramuru (Figura 3) — substituindo bares populares por estabelecimentos gourmet e direcionando o uso do espaço ao consumo turístico e não às demandas da comunidade local. A gentrificação se vale de uma força simbólica para higienizar áreas e reafirmar o poder social no território (Berth, 2023). Essa lógica também se evidencia no Largo da Mariquita (Figura 4), onde a padronização do paisagismo, dos bancos e do piso reforça uma estética homogênea que simboliza uma “privatização sutil” do espaço público (Borja; Muxí, 2003). Essas mudanças, embora tenham melhorado a infraestrutura para alguns, afastaram progressivamente antigos frequentadores — especialmente os de baixa renda — e resultaram na perda de diversidade social e cultural.

 

Figura 3: Vista da Vila Caramuru (antigo Mercado do Peixe) com novos estabelecimentos sob tendas padronizadas.

Fonte: Fábio Marconi (Site Salvador da Bahia).

 

Figura 4: Desenho paisagístico padronizado após intervenção urbana no Largo da Mariquita.

Fonte: Tourb / Wikipedia

 

As intervenções urbanas no Rio Vermelho refletem um viés elitista que impacta diretamente a convivência no bairro, aprofundando a segregação social e espacial. Essa lógica excludente é perceptível na divisão dos grupos que frequentam certos espaços no bairro, como aponta J24:

 

 

"No Rio Vermelho tem várias tribos...em alguns lugares específicos você encontra pessoas que são mais brancas e em outros lugares você encontra pessoas que são mais negras." (J24)

 

Essa fragmentação racial e social reflete as desigualdades estruturais de Salvador, uma cidade onde 80% da população se identifica como negra ou parda (IBGE, 2024). No entanto, as intervenções urbanas não fomentam interações significativas entre os diferentes grupos que coexistem no território, perpetuando a lógica de segregação.

Nesse contexto, a requalificação do Largo de Santana (Figura 5) evidencia essa mesma lógica excludente: prevalecem elementos voltados à estética e ao lazer passivo, restritos à instalação de pisos compartilhados e bancos, com pouca diversidade de mobiliário e infraestrutura. A ausência de sombreamento, espaços de brincar ou usos cotidianos limita a inclusão de diferentes perfis de usuários e reforça a lógica do consumo. Assim, a requalificação deixa de promover a convivência entre os diferentes grupos e contribui para a reprodução das desigualdades já presentes no tecido urbano.

 

Figura 5: Requalificação centrada no piso compartilhado e bancos no Largo de Santana, Rio Vermelho (Salvador/BA).

Fonte: acervo pessoal (2023).

 

Embora a ideia das ruas compartilhadas seja proporcionar oportunidades para diferentes tipos de tráfego e estimular o contato visual, reduzindo o risco de acidentes, seu efeito prático é limitado. Isso ocorre porque grupos mais vulneráveis, como crianças, idosos e pessoas com mobilidade reduzida, encontram barreiras para usufruir plenamente do espaço. Famílias com crianças, por exemplo, não encontram equipamentos adequados de lazer ou segurança, como aponta Y18:

 

"Quando vem família com crianças, geralmente a praça não tem nada." (Y18)

 

A ausência de elementos que garantam o conforto e a segurança contribui para uma apropriação desigual do espaço, limitando práticas cotidianas que poderiam fortalecer a vivência urbana no bairro. Sem condições adequadas de acessibilidade e bem-estar, o uso dos espaços tende a ser seletivo, privilegiando determinados perfis de usuários e excluindo outros. Essa lógica reforça a exclusão socioespacial e compromete o potencial de vitalidade urbana, especialmente para mulheres, crianças, idosos e pessoas com mobilidade reduzida.

Além disso, em uma cidade como Salvador, caracterizada por altas temperaturas e forte incidência solar, a ausência de estratégias que promovam conforto térmico — como a presença de vegetação e a oferta de sombra — acentua o desafio de ocupação diurna dos espaços públicos. A falta de elementos naturais, como árvores e áreas sombreadas, desestimula o uso durante o dia e restringe as interações sociais a horários noturnos. Nesse contexto, a vitalidade urbana do bairro se desloca para o período da noite, quando as temperaturas são mais amenas, favorecendo uma lógica de uso sazonal, em vez de uma apropriação contínua e diversificada ao longo do dia.

De forma complementar, o fluxo de pessoas no bairro varia ao longo da semana, evidenciando uma sazonalidade nas práticas sociais e econômicas. Enquanto nos finais de semana e nos períodos turísticos a circulação de pessoas é intensa, nos dias úteis prevalece uma rotina mais tranquila, como sintetizado por uma comerciante local:

 

"De segunda à quarta o Rio Vermelho é um bairro comum. De quinta à domingo, o bairro vira turístico." (J24)

 

Essa oscilação revela uma apropriação desigual dos espaços, na qual a lógica turística se sobrepõe à vivência cotidiana. Assim, o uso do espaço é orientado por demandas sazonais, enfraquecendo o senso de pertencimento e contribuindo para a fragmentação urbana. Em vez de promover uma ocupação contínua e democrática ao longo da semana, o bairro se molda a uma dinâmica de uso pontual, o que limita a diversidade de práticas cotidianas e reforça a segmentação das experiências urbanas. Essa dinâmica é ainda mais crítica quando se considera a percepção de segurança:

 

"O foco é muito o turismo, mas não fornece segurança para a população local. Como oferecer algo aos turistas que não é garantido para os moradores?" (M62)

 

A priorização das demandas turísticas demonstra uma lógica excludente e mercadológica, que coloca o lazer e o consumo acima das necessidades básicas da população residente. A ausência de políticas integradas e falta de infraestrutura adequada para atender moradores e trabalhadores reforçam essa exclusão estrutural. A segurança é tratada como um recurso do mercado, cuja garantia depende do potencial de consumo e da atratividade turística, evidenciando a precarização das condições urbanas cotidianas.

Essa lógica mercantilizada também se manifesta na descaracterização cultural do bairro, resultado de sucessivos processos de substituição de espaços históricos por empreendimentos comerciais. A conversão do Teatro Maria Bethânia em um bingo ilustra essa perda simbólica e material, como aponta a moradora C65:

 

"Quando o Teatro Maria Bethânia acabou, veio um bingo. Cada vez que vem um novo empreendimento, são tintas e cores diferentes." (C65)

 

A renovação constante das fachadas e a substituição de marcos históricos por estabelecimentos comerciais reforçam uma estética descartável, desconectada da memória coletiva local. A identidade cultural do bairro, construída ao longo de décadas de produção artística e cultural, torna-se vulnerável diante de interesses econômicos imediatistas.

Apesar desse contexto adverso, a mobilização comunitária surge como resposta crítica às intervenções públicas. O Blog do Rio Vermelho exemplifica essa resistência ao consolidar-se como uma plataforma digital de denúncia e memória ativa. Durante a requalificação em 2016, moradores protestaram contra a ausência de diálogo com o poder público, evidenciando a fragilidade do processo de participação popular nas decisões urbanas. O depoimento da moradora C65 resume essa demanda:

 

"Deveria haver uma prefeitura descentralizada que investisse no bairro e respeitasse a arquitetura existente." (C65)

 

Embora exista uma Prefeitura-Bairro no Rio Vermelho, ainda falta uma gestão mais próxima e alinhada às demandas locais. Esses exemplos ilustram como as desigualdades estruturais e simbólicas limitam a representatividade e a inclusão no Rio Vermelho. A presença histórica das mulheres reflete seu papel central na cultura local, nas tradições e nas atividades econômicas que definem o bairro. A Festa de Iemanjá, celebrada anualmente em 2 de fevereiro, destaca esse protagonismo, tanto na organização quanto na prática dos rituais, consolidando a ocupação feminina de espaços públicos e simbólicos. Além disso, trabalhadoras autônomas e comerciantes, especialmente nas áreas de culinária e artesanato, perpetuam saberes tradicionais, como o acarajé, e formam redes de apoio comunitário nos largos do bairro.

Apesar dessas contribuições, as mulheres permanecem sub-representadas na toponímia oficial e nas narrativas urbanísticas dominantes. Esculturas como a de Zélia Gattai, no Largo de Santana, e a de Iemanjá, no Largo da Mariquita (Figura 6), oferecem reconhecimento simbólico, mas a maioria das ruas e largos homenageia figuras masculinas. Esse padrão relega as memórias e contribuições femininas para um lugar secundário, empobrecendo a diversidade cultural e simbólica do espaço urbano. Homenagens informais, como o popular Largo da Dinha — denominação que se sobrepõe ao título oficial do Largo de Santana, em homenagem à baiana de acarajé Dinha —, revelam formas de resistência comunitária. Essas práticas preservam a memória coletiva e reafirmam as contribuições femininas, mesmo diante da invisibilização institucional.

 

Figura 6 – Estátua para Yemanjá no Largo da Mariquita

Fonte: Acervo pessoal.

 

Dessa forma, os resultados apontam que as mulheres, suas memórias e contribuições permanecem sistematicamente invisibilizadas nos espaços urbanos. A exclusão se manifesta tanto na ausência de participação comunitária — especialmente feminina — quanto na predominância de homenagens masculinas na toponímia. Ainda assim, práticas comunitárias, como homenagens informais e mobilizações digitais, evidenciam esforços locais para preservar memórias e resistir à descaracterização cultural do bairro.

 

 

O retrato feminista do rio vermelho

Este capítulo discute os resultados com base nas categorias de análise — proximidade, diversidade, autonomia, vitalidade e representatividade — que revelam como as desigualdades de gênero moldam a vivência das mulheres no espaço urbano. A articulação dessas dimensões revela um sistema urbano com avanços pontuais, mas ainda marcado por desigualdades estruturais que restringem o acesso, a mobilidade e a apropriação dos espaços públicos pelas mulheres.

A análise da proximidade evidencia a fragmentação urbana entre áreas requalificadas — como a Orla, o Largo da Mariquita e a Vila Caramuru — e os espaços intermediários, o que dificulta deslocamentos cotidianos. As condições descritas por C65 — calçadas estreitas, tráfego intenso e poeira — refletem um planejamento urbano que desconsidera a escala humana e o conforto do pedestre. Essa negligência reforça a exclusão das mulheres de espaços urbanos, especialmente daquelas com mobilidade reduzida ou que desempenham atividades de cuidado, comprometendo a fluidez dos trajetos cotidianos.

A fragmentação urbana também compromete a diversidade. A transformação do Antigo Mercado do Peixe em um espaço voltado ao turismo exemplifica o apagamento de identidades locais e a exclusão socioeconômica e cultural. Esse processo de gentrificação, descrito por Gusmão (2017) como “requalificação pela desqualificação” restringe o acesso de grupos de menor renda e reforça a lógica da cidade como mercadoria, beneficiando investidores e turistas em detrimento da população local. Isso impacta, sobretudo, mulheres de diferentes contextos sociais que utilizavam aquele espaço para trabalho, lazer e sociabilidade. Assim, a desconexão entre proximidade e diversidade é tanto física quanto simbólica, segregando usuários e limitando a convivência entre diferentes grupos sociais.

No eixo da autonomia, as condições de mobilidade no bairro revelam desigualdades socioespaciais entre mulheres que vivem e trabalham na região. O relato de D27, ao descrever seus trajetos de bicicleta mesmo sem infraestrutura adequada, expressa o desejo de circular com liberdade. Esses movimentos cotidianos, embora micromovimentos, carregam um valor político e ecoam a ideia da flâneuse, como argumenta Elkin (2024), ao mostrar como as mulheres seguem se apropriando dos espaços públicos e reafirmando sua autonomia, mesmo em meio às adversidades. Em contrapartida, o relato de J60 evidencia uma desigualdade mais profunda: longas viagens diárias entre periferia e centro, com múltiplas baldeações e transporte coletivo precário, o que escancara os entraves enfrentados por mulheres negras periféricas para acessar oportunidades e exercer plenamente seu direito à cidade.

A vitalidade, um dos principais indicadores da qualidade dos espaços públicos, segundo Gehl (2015) e Jacobs (2011), também é distribuída de forma desigual. Enquanto áreas como os Largos da Mariquita e de Santana apresentam maior fluxo de pessoas e sensação de segurança — os “olhos na rua” de Jacobs —, outras, como o entorno do Rio Lucaia, permanecem inóspitas e inseguras, reforçando ciclos de abandono e esvaziamento. Portanto, a falta de vitalidade, especialmente à noite, compromete a liberdade de circulação e a relação das mulheres com o território.

A análise da representatividade revela que as decisões urbanas ainda são tomadas com pouca escuta das demandas locais. A requalificação de áreas voltadas ao turismo, como a Vila Caramuru, desconsidera as necessidades de moradores e trabalhadores da região, resultando em espaços esteticamente agradáveis, porém funcionalmente limitados. A ausência de troca ativa entre quem projeta e quem vive o espaço evidencia um modelo que desperdiça oportunidades ao negligenciar práticas participativas, como aponta Berth (2023):

“Como não há diálogo aberto entre quem produz e quem vai usufruir desses espaços, perdemos todos parte importante dessa construção coletiva. [...] O Brasil está perdendo o bonde da história, pois percebemos que há fortalecimento dessas pautas em outros países com experiências similares às nossas.” (Berth, 2023, p. 22)

 

A perda coletiva, nesse sentido, não diz respeito apenas aos grupos diretamente afetados, mas atinge toda a sociedade — gerando espaços que reforçam exclusões e fragilizam dinâmicas locais. A articulação entre os marcadores de vitalidade e representatividade destaca que a qualidade dos espaços urbanos não depende apenas do seu uso, mas da consideração das vivências dos usuários. O Col-lectiu Punt 6 (2019) reforça que a descentralização do planejamento urbano permite alinhar as decisões às realidades locais, resistindo à homogeneização imposta por interesses externos. Diante disso, é imprescindível implementar políticas urbanas participativas que transcendam a lógica turística e mercadológica, priorizando a preservação do patrimônio material e imaterial e promovendo o direito à cidade.

Os resultados evidenciam a profunda interconexão entre as categorias analisadas: a proximidade condiciona a diversidade ao determinar quem acessa os espaços; a autonomia, limitada pela insuficiência de infraestrutura de mobilidade, influencia a vitalidade e a percepção de segurança; e a representatividade emerge como dimensão transversal, orientando a construção de espaços mais justos, capazes de fortalecer tanto a equidade quanto o senso de pertencimento. Integrar essas dimensões por meio de processos participativos, do reconhecimento do trabalho de cuidado e de estratégias que promovam justiça socioespacial é essencial para avançar rumo a um urbanismo inclusivo. “Trata-se de trazer as pessoas para espaços onde antes elas não existiam ou sentiam que não tinham direito de usar” (Kail apud Oliveira, 2021). Ao considerar como gênero, raça, classe e outros marcadores moldam o cotidiano urbano, a perspectiva feminista interseccional amplia o direito à cidade, fortalece comunidades e promove cidades mais seguras, diversas e acessíveis — especialmente para grupos historicamente marginalizados.

 

Considerações finais

As conclusões deste artigo destacam a relevância do urbanismo feminista como ferramenta para repensar as dinâmicas socioespaciais do bairro do Rio Vermelho, em Salvador. O objetivo geral da pesquisa foi alcançado ao investigar como as experiências de mulheres moradoras e trabalhadoras podem influenciar e contribuir para um planejamento urbano mais inclusivo. Os resultados demonstraram uma profunda interconexão entre as cinco categorias de qualidade urbana analisadas: proximidade, diversidade, autonomia, vitalidade e representatividade.

A pesquisa revelou que a proximidade influencia diretamente a diversidade ao determinar quais grupos têm acesso a determinados espaços. A autonomia, por sua vez, é limitada pelas condições de mobilidade urbana, afetando a vitalidade dos espaços públicos e a sensação de segurança. Embora a representatividade se destaque como um elemento transversal relevante, ela ainda não orienta plenamente as decisões de planejamento urbano, nem assegura uma percepção ampliada de pertencimento por parte dos moradores. Esses resultados reforçam a necessidade de práticas urbanísticas que considerem as perspectivas do urbanismo feminista e que promovam maior equidade nos espaços urbanos.

A principal contribuição acadêmica desta pesquisa consiste no avanço dos estudos sobre urbanismo feminista no Brasil, com foco na escala de bairro. A análise das dinâmicas socioespaciais do Rio Vermelho a partir de uma perspectiva de gênero representa uma abordagem ainda pouco explorada no contexto brasileiro. Alinhada aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030, esta investigação enfatiza a importância de incluir as mulheres nos processos de planejamento urbano, ampliando o debate sobre políticas públicas inclusivas que considerem as especificidades de gênero e outras categorias de análise, como raça e classe.

Do ponto de vista prático, os resultados evidenciam a necessidade de envolver as mulheres como agentes centrais no planejamento urbano. Políticas públicas, como o Plano Diretor, e projetos urbanos futuros devem incorporar perspectivas femininas para fomentar a equidade e o desenvolvimento urbano sustentável. Essas contribuições também fortalecem o impacto social sobre o tema, promovendo maior conscientização sobre a equidade nos espaços urbanos.

Entre as limitações desta pesquisa, destaca-se que o urbanismo feminista constitui apenas um passo em direção à emancipação das mulheres, não eliminando integralmente as estruturas patriarcais que moldam as cidades. Além disso, subsistem preconceitos em relação às abordagens feministas, bem como barreiras institucionais significativas para a aplicação dessas ideias no Brasil. A complexidade da realidade urbana brasileira demanda estudos complementares em diferentes escalas, como a metropolitana, para uma compreensão mais abrangente.

Recomenda-se que futuras pesquisas ampliem o foco para além da escala de bairro, explorando dinâmicas em áreas metropolitanas e analisando como os princípios do urbanismo feminista podem ser adaptados a diferentes contextos urbanos brasileiros. Estudos comparativos entre bairros de uma mesma cidade ou entre regiões do país, bem como análises sobre a interseccionalidade de gênero com outros marcadores sociais — como classe, raça, idade e deficiência — também seriam valiosos para o aprofundamento do tema. Por fim, é essencial investigar como as políticas públicas podem ser planejadas para superar barreiras institucionais, garantindo cidades mais inclusivas e equitativas.

 

Referências:

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Data de Recebimento: 22/01/2025

Data de Aprovação: 29/08/2025

 

 


1  Doutora em Saúde Coletiva pela Universidade Federal da Bahia, Brasil. Professora Adjunta da Universidade Salvador. E-mail: ana.licks@animaeducacao.com.br.

2  Mestre em Desenvolvimento Regional e Urbano pela Universidade Salvador. E-mail: beckhauserpaula@gmail.com.






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