Introdução
Tendo trabalhado com discurso e migração, com o foco de análise em textualidades relativas à imigração para o Brasil no Século XIX e início do XX, nos últimos anos, diante do deslocamento de multidões da Ásia e da África para a Europa, não pude deixar de me ocupar a respeito, voltando a atenção para textualidades desses outros espaços da migração recente; a partir, certamente, do que tinha podido compreender antes em relação ao discurso da/na migração. Neste ensaio, vou me dedicar a análise de textos produzidos no espaço da intensa imigração atual na Europa, relacionando-o com os do movimento estudado antes.
Na verdade, quando tecia as primeiras conexões entre os dois grandes movimentos migratórios, um acontecimento de impacto se deu através da textualidade que se apresentava diante de mim, durante a visita a um lugar de migração, no Museu do Mar (MUMA) e da migração no CISEI (Centro Internazionale di Studi Sull’Emigrazione Italiana), no Porto de Gênova, no norte da Itália. No amplo espaço do porto de emigração, plenamente ativo, encontra-se o arquivo nacional da emigração italiana, com instigantes instalações artísticas e exposições históricas. Vou retomar, na primeira parte deste ensaio, elementos da textualidade que desencadeou o acontecimento. A sua descrição/interpretação vai permitir esboçar questões que serão discutidas ao longo do trabalho.
A partir de tal acontecimento, a ser descrito adiante, (re)formularam-se questões em torno da discursividade e dos intensos fluxos migratórios, em seus processos de significação, em diversos tempos e espaços. A escrita deste texto se dá depois de um tempo relativamente longo da viagem, e o trabalho dos “sentidos sobre os sentidos” se seguiram, inclusive através de um projeto institucional de pesquisa, que será resumido mais à frente.
A apresentação de tal acontecimento tem também a função de nos introduzir no texto, e permite explorar um primeiro conjunto de materiais de análise. Isto tornará possível ao leitor acompanhar um desenvolvimento gradual de montagem do corpus, com em textos orais, escritos, imagéticos e artísticos, no caso das instalações no museu, das análises e discussão. Outro conjunto de materiais será explorado na terceira parte do texto. Portanto, faremos retomadas e avanços entre a formulação das questões, análises e discussão, que se entrelaçam na escrita do texto.
Um acontecimento no contexto das migrações e sua textualidade
Foi numa primeira viagem à Itália, durante a visita ao Museu no Porto de Gênova. Em visita às instalações artísticas da exposição impressionante sobre a grande emigração italiana para as Américas, que conhecemos desde outro ângulo, estava presente o interesse de pesquisa e, também, a curiosidade de quem pisa pela primeira vez a terra natal dos antepassados.
O museu da imigração localiza-se no interior do Museu do Mar, o que já movimenta sentidos para imigração. As instalações, nos primeiros galpões, são dedicadas ao mar: a história do domínio das águas na região, de mares próximos a oceanos que ocultavam mundos desconhecidos. Ao lado dos estaleiros navais, em pleno funcionamento, havia réplicas de caravelas, barcos e navios para visitação. Na exposição, pequenas esculturas antiquíssimas em madeiras escuras e corroídas pelo tempo povoavam de figuras mitológicas a água. A escultura de uma mulher chamava especialmente atenção, pois não tinha véu e nem asas, não indicando, portanto, ser santa e nem anjo. Só em investigações posteriores com os italianos soube que se tratava da Senhora dos Mares, protetora das águas, provavelmente um mito da antiguidade, naquele espaço tão próximo ao universo mitológico.
Mais adiante, nas galerias, havia imagens fotográficas em preto e branco: de migrantes e de enormes navios a vapor, inclusive, com a fumaça em primeiro plano; imagens de famílias numerosas vestidas de inverno rigoroso, da multidão espremida no cais do embarque. Os objetos eram grandes malas de madeira na forma de arcas e baús, sacos de estopa cheios de alimentos, roupas de bebês e de senhoras com renda branca bem fina no acabamento. Cartas de migrantes - de um arquivo epistolar, portanto reais - enviadas das Américas com notícias para os que ficaram na terra natal, podiam ser ouvidas na leitura em língua italiana (nos dialetos da época), nos fones do serviço de som instalado sobre as camas, dentro do espaço da réplica do navio transatlântico a vapor - uma inovação da indústria naval que se destacava no norte italiano, e que foi muito celebrada no tempo em que se iniciava a grande emigração. Eram sem dúvida indícios do início do modelo econômico do chamado capitalismo industrial que então se instalava na Europa.
Na área dedicada à consulta de documentos por descendentes dos emigrantes, que chegam em quantidade como turistas, os grandes armários de madeira guardam cuidadosamente os sobrenomes de famílias de migrantes, em ordem alfabética, separados em inúmeras pequenas gavetas. Ali encontrei emocionada os nomes dos bisavós maternos e paternos. Também havia textos manuscritos, cartas e cartões, folders de campanhas publicitárias de Companhias de Navegação que vendiam “Viagens para as Américas”, dentre muitos outros materiais de linguagem. Os textos produziam sentidos principalmente a partir do lugar do Estado, sobre os seus cidadãos ausentes, os italianos ausentes, para expectadores turistas do mundo, no espaço de um museu nacional. Neste lugar os visitantes podiam ter a impressão de “encontrar” os antepassados, de tê-los “presentes” (in memoriam) através dos nomes procurados – significantes. Esse espaço era, ao mesmo tempo, o lugar de partida e o lugar de chegada. Nesse duplo movimento se materializavam os textos, numa conjunção de tempos, no mesmo espaço. Um silêncio secular, sagrado e histórico, guardado nas longínquas narrativas orais de antepassados, sobre águas profundas onde se jogavam os mortos na viagem e inclusive o bebê de uma família conhecida, esse silêncio que aparece infinito em sua distância sem volta entre chegada e partida, era revolvido.
Sob os efeitos da arte e da história, na imersão invocada pelo arquivo, aconteceu que já no final da visita, bem perto da saída para a rua, deparei-me com mais uma pequena ala, intitulada “Navegar a diferença”. Nela os objetos remetiam, agora, em imagens coloridas, aos migrantes e refugiados do fluxo atual, naquele mesmo espaço. As figuras tinham perfis e trajes que remetiam a sujeitos da Ásia e da África, jovens, homens e mulheres com uma ou duas crianças, a mochila com grafos africanos coloridos, poucos pertences pendurados em uma bicicleta com aparência de nova.
A distribuição espacial, a dimensão e a visualidade da última ala davam a impressão de ter ela sido acrescentada ou anexada à exposição permanente no espaço do Museu. E deste modo, como acréscimo, o grande fluxo migratório deste século se apresentava no mesmo espaço do museu dedicado ao mar e à migração de outro tempo. Eram semelhantes, mas também eram contrastantes, postos de um modo (des)igual, lado a lado, com contradições que já a primeira leitura tornava possível ver.
A pequena ala produz efeitos impactantes de leitura. Ela arranca repentinamente o expectador do tempo do preto e branco e o projeta no presente. Com o imaginário dos dois grandes fluxos de deslocamento humano acionados ao mesmo tempo, no mesmo espaço, a projeção ao presente retroage e faz reler a textualidade das duas como se fossem outra. A composição, preparada com a interpretação da curadoria, certamente, produzia efeitos de que os limites dos diferentes tempos se desmanchavam e a orientação espacial se dissipava. Migrar. A que será que se destina?
Diante da extensão do que se inscrevia nesse acontecimento na visita ao museu, atravessado por enunciados, imagens, textos escritos e orais, instalações artísticas e documentos históricos, havia um chamado para decifrar o que havia nessa interpretação, o que permitia reunir essa dispersão e multiplicidade de sentidos em torno da migração? O que de fato se assemelha nos dois movimentos e o que é diferente? Como formular as contradições - o que não dá para aproximar ou resolver - ao contrastar as migrações, cujas textualidades distintas se encontravam no “mesmo espaço” no museu?
Para fins de pesquisa, essas questões foram formuladas como segue: em que condições se formam grandes fluxos imigratórios em uma formação social dada? Como contrastam, em seus sentidos, aqueles do Século XIX e do XXI? O que tal contraste leva a compreender sobre elementos estruturais de uma grande migração e o modo como se fala dela? E, ainda, como os contrastes e as contradições poderiam ser formulados e considerados, em uma possível análise discursiva das condições de produção da migração e da sua textualidade?
Nesse sentido projetou-se um estágio de pesquisa na Universidade de Gênova (UNIGE)2, a fim de trabalhar e trabalhar com essas questões, tendo acesso aos arquivos do MUMA e do CISEI. Além disso, poderíamos ter contato com situações de migrantes atuais, que têm intensa entrada pelo Porto de Gênova. Em síntese, o objeto da pesquisa3 consistia dos processos de subjetivação identificação que envolvem os sujeitos migrantes e as línguas, em movimentos de migração, comparando-se as diferentes condições de produção. A perspectiva teórico-metodológica consistiu da Análise de Discurso, na Linguística, e o dispositivo de análise previa levar às consequências os contrastes antevistos nos processos relativos aos movimentos migratórios: por um lado, o atual, com entrada na Itália, no contexto da globalização do capitalismo neoliberal mundializado, com suas inovações tecnológicas. Por outro lado, a emigração de italianos para o Brasil (1987-1929), no contexto econômico do nascimento do capitalismo industrial, em um período “coincidente” com a implantação do estado nacional republicano no Brasil. Os objetivos seriam compreender as condições de produção de sentidos e modos de identificação de sujeitos em situação de migração. Assim configurado, o projeto tinha a relevância de produzir conhecimento a fim de fornecer subsídio para o campo do ensino em contextos de migração, e a políticas educacionais, afim de considerar esta importante questão social e econômica da atualidade, com o menor grau de violência simbólica.
Dentre as questões que se apresentaram, algumas já trabalhadas4, neste texto focalizo aquelas que incidem mais diretamente sobre as condições de produção das migrações e dos discursos sobre migrantes, tal como são mobilizados na migração atual, como v eremos adiante. As questões também passam pelo funcionamento de um discurso sobre os migrantes, construindo uma perspectiva sobre, funcionando não somente no modo de significar o outro, migrante, mas também no interior de certa retórica nacionalista. Essa perspectiva sobre é posta em relação ao discurso de migrantes.
Serão também exploradas duas das atividades de linguagem, que serão trabalhadas no sentido “prática linguageira”, conforme o conceito formulado por J. Boutet (BOUTET, 2021)5, como prática discursiva que funciona no contexto da migração. Elas mobilizam o discurso do migrante. Na contraparte da migração em massa, em multidão, vou trabalhar sobre a identificação dos sujeitos na multidão. Por fim, para o fechamento do texto, retomo alguns pontos relacionados aos sentidos estendidos de migrar e de migração, e no que eles permitem discutir sobre o espaço na migração.
Sujeitos à deriva, naufrágios e narrativas.
Três dias depois da visita ao museu, e nos que se seguiram, dois naufrágios de grandes proporções aconteceram no mar mediterrâneo. As notícias na televisão e nos jornais passaram a estampar na primeira página imagens e manchetes dos naufrágios. Centenas de pessoas eram avistadas em barcos à deriva, e dezenas de corpos eram encontrados e resgatados. Eram imagens de destaque embarcações precárias e botes infláveis nos resgates dos indivíduos e dos corpos naufragados. Não só a quantidade de migrantes e de corpos naufragados era destacada, mas também produzia desconforto o discurso estatístico tão presente em meio às tragédias.
- “Navio à deriva com centenas de imigrantes aguarda socorro” (DN Globo, Lusa 31 dezembro 2014).
- “Um navio com 450 imigrantes a bordo está sem energia ao largo da costa de Itália”. (DN Globo - Lusa 31 dezembro 2014).
- "Cerca de 6000 migrantes rohingyas (minoria muçulmana vinda de Mianmar) do Bangladesh estarão bloqueados no mar” (expresso internacional, 25/5).
Dias depois os barcos eram resgatados pela Marinha Italiana. Os enunciados sobre os migrantes passavam a projetar o foco na ação do Estado, às vezes em tom épico. Os indivíduos no mar eram classificados.
- “Autoridades italianas conseguiram controlar navio mercante com centenas de imigrantes”. (DN Globo - Lusa 2 de janeiro 2015).
- “Ainda esta semana as autoridades italianas haviam conseguido controlar um outro navio mercante com centenas de imigrantes ilegais que tinham sido deixados à sua sorte pela tripulação” (DN Globo - Lusa 31 dezembro 2014).
Se, por um lado, os fatos demandavam leitura e interpretação, por outro os enunciados estavam atravessados de sentidos produzidos em diversos lugares discursivos. Agentes oficiais anunciavam a partir da perspectiva da administração estatal. As águas, há pouco significadas, no museu, como um quintal de casa agora significavam como espaço do território nacional, enunciadas como lugar de administração, e não um vazio indeterminado de distância. As dimensões passam a ser calculadas e contabilizadas pelo Estado para fins da administração e nas relações jurídico-políticas internacionais.
“O barco havia sido localizado a três milhas náuticas a sul da ilhota de Ozoni (...) O barco foi avistado por um avião da Marinha na noite passada quando estava parado a aproximadamente 40 milhas (70 quilômetros) do Cabo de Leuca (...) O navio da Serra Leoa, registrado como Ezadeen, tem 60 metros e foi identificado ao início da noite quando se encontrava a 80 milhas da costa italiana” (Jornal Expresso Internacional, 25/05/2015).
Logo os fatos dos naufrágios, seus números e sua interpretação passaram a figurar nas vozes oficiais dos Estados, na política internacional.
- "Estou chocado com as informações, segundo as quais Tailândia, Indonésia e Malásia estão a repelir barcos cheios de migrantes vulneráveis, o que inevitavelmente vai provocar mortos, disse o dirigente português”. (Expresso internacional, 25/5/2015).
- “Tailândia, Malásia e Indonésia estão a repelir barcos cheios de migrantes esfomeados vindos de Mianmar (antiga Birmânia) e do Bangladesh, num pingue-pongue humano denunciado pelo ACNUR e por diversas Ongs”. (Expresso Impresa Publishing S.A., 25/5/14).
Os dizeres e sentidos mobilizados no museu haviam produzido, como dissemos, uma inflexão sobre a extensão dos sentidos de migrar, de migração, de deslocamento de população. Nesse sentido, nos perguntávamos sobre o que dizem os qualificativos em expressões como grandes migrações, migração em massa, intenso deslocamento de população, enorme mobilidade humana, movimento da multidão, em suas diferentes histórias (e memórias) de enunciação. Nesses desdobramentos do trabalho simbólico, a imagem da migração em bandos de pássaros e de cardumes ressoavam como metáfora.
“O espaço é azul. Pássaros voam dentro”. Assim nos introduz E. Orlandi (2001, p. 12) (citando Werner Heisemberg) com o realce de uma epígrafe, à exposição da compreensão que alcança sobre o espaço urbano e o simbólico, em seu texto Tralhas e troços. O flagrante urbano. Em relação ao espaço urbano, a autora compreende - faço aqui uma síntese de leitura – que funciona uma organização de discursos sobre o urbano (como o do urbanismo) que “dispõe sentidos sobre a cidade” interpretando-a. E isto funciona silenciando a espessura semântica da ordem mais própria do espaço da cidade, de modo que se dá uma sobredeterminação da ordem da cidade pela organização dos discursos sobre o urbano. O que pode ser apreendido no que ela chama de “flagrante urbano”. A autora observa que “onde o social é silenciado, nessa organização social urbana que não compreende (apreende) a realidade citadina em constante movimento, emerge a violência”. (ORLANDI, 1999, pág. 9-10). Orlandi diz então que a quantidade, “compreendida em relação ao espaço urbano como grande número de sujeitos, de objetos, de situações em concentração no mesmo espaço – é estruturante das relações sociais que têm a cidade como lugar simbólico real concreto” (Idem, pag. 14). Real a que se tem acesso através dos “flagrantes urbanos”.
A metáfora de bandos de pássaros e de cardumes leva a uma relação entre a elaboração da autora e o que se passa no contexto das migrações. Neste, a quantidade de pessoas vai sendo organizada e administrada (o pingue-pongue humano) pelo discurso administrativo. Para isso se mobilizam as dicotômicas categorias da nacionalidade e das nações ou países, tal como o discurso sobre a migração do Século XIX e XX disponibilizou, pelo modo como foram ditas no capitalismo industrial, na implantação da República. Retomamos a elaboração de E. Orlandi (idem) para pensar aqui sobre o espaço das migrações, entende-se, então, que a “ordem da migração” fica sobredeterminada pela “organização dos migrantes”, que as categorias nacionais não conseguem, no entanto, subsumir. E, tal como foram identificados por Eni Orlandi os “flagrantes urbanos”, também no espaço das migrações ocorre algo semelhante: Um barco deixado à deriva, um “pingue-pongue humano” insinuam algo da ordem de um real da imigração. Esse real fica opaco no discurso, não é suficientemente nomeado ou apreendido, fica de fora da linguagem, na ordem que temos chamado de “extraposição” das categorias nacionais. Nesse sentido, é importante entender que aquilo que é indefinido na multidão de excluídos, na massa, etc., e que resulta de condições econômicas e político-jurídicas desiguais e contraditórias, fica mal apreendido, e o real da imigração permanece opacificado, em seu entrelaçamento com o silêncio que participa das migrações, em seus processos de identificação e constituição como sujeitos no simbólico.
Condições de produção das grandes migrações
Para contrastar os grandes movimentos migratórios, faremos uma síntese do primeiro, fazendo o foco da observação recair sobre os dados e detalhamentos do último, com anotações de leituras de trabalhos que cobrem esses dados até o ano de 2016.
Sabemos que o grande fluxo migratório do Século XIX e primeiras décadas do XX da Itália para as Américas, especialmente Brasil, ocorreu sob as condições de produção do início do desenvolvimento do capitalismo industrial. Ganha ênfase o desenvolvimento da indústria em diversas frentes na Europa, e a indústria naval é a primeira delas. A passagem a outro modo de economia não favorecia a agricultura. A pobreza era uma constante na região que hoje é o norte italiano, e o histórico de conflitos de guerra eram presentes. Além disso, há o fato de que a Itália, antes composta por pequenos ducados e reinos, havia sido proclamada a um reino unificado em 1861, pouco tempo antes do início da grande migração. Isto significa que a migração que se deflagrou logo depois era composta por pessoas que saíam da condição de súditos, e a procura por trabalho e terras de cultivo motivaram boa parte da emigração italiana.
Contudo, o que mais fortemente motivou a migração em massa nesse contexto é o que se apresentou como uma necessidade de dupla face. No Brasil o contexto era o do final da economia de base escravagista e da implantação do Estado republicano, que também fomentava uma política de ocupação do território, com ênfase na agricultura, como era vislumbrado no final do Império. Deste modo, as condições de produção das migrações nesse período acomodavam as necessidades e demandas dos dois lados do Atlântico.
Deste ponto de vista, o que apresenta o arquivo de Gênova, como materiais de linguagem no arquivo, representa os sujeitos socias envolvidos nesse movimento econômico e político. Os folhetos de propaganda de imigração para as Américas, as sociedades de imigração, as companhias de navegação a vapor. A Alfândega, os registros do “passaporte de família” - documento de todos os componentes de uma família que embarcavam no mesmo navio, e que era emitido em nome de um único indivíduo do grupo, geralmente o mais velho. Nas instalações que representam a viagem havia sacos de alimento, utensílios domésticos, instrumentos de trabalho agrícola e manufatureiros, instrumentos musicais, entre outros. Nas imagens fotográficas, as hospedarias, os migrantes em grupos, os lugares nas terras e na cidade. Nas imagens da chegada, as fazendas de algodão e de café, homens e mulheres trabalhando na agricultura e em oficinas, casebres em florestas, casas, “lugares” e cidadezinhas em construção.
Quanto ao movimento migratório do final desde século XX para a Itália e Europa, ele se insere nas condições sociohistóricas da economia neoliberal globalizada, sob o modelo do capitalismo mundial integrado, que inclui relevante desenvolvimento tecnológico de informação e de comunicação. Os dados que reunimos sobre esse fluxo de migração permitem compreender a natureza dessa mobilidade de população, e elencar fatores que atuam no deslocamento populacional descontrolado e no deslocamento de refugiados.
Apresentamos elementos que permitem distinguir entre, por um lado, um movimento migratório que ocorre com certa regularidade na Europa, desde as últimas décadas do século passado, e por outro lado a emergência pontual do enorme afluxo de refugiados, entre os anos de 2013 e 2015. O levantamento destes dados permite, ainda, conhecer especificidades das condições de produção econômicas, político-jurídicas e administrativas da migração no quadro da União Europeia.
Para isso, nos baseamos, principalmente, no estudo do cientista político Sami Naïr, em sua obra Refugiados, que justamente sintetiza e caracteriza pontos importantes sobre esses movimentos da população.
Um gesto significativo que faz o autor é identificar que os refugiados – aqueles que conseguem sobreviver a uma arriscada viagem e chegar ao continente europeu - acabam sendo confinados em campos de retenção. Outros pesquisadores, como Federico Rahola, da Universidade de Gênova, observam que os campos de retenção provisórios, onde são inicialmente alojados os refugiados, acabam se tornando assentamentos definitivos, sem que haja a estrutura necessária para essa permanência. Este seria, assim, o destino de uma multidão de deslocados: o de ficar à parte, confinado e apartado da população dos pertencentes. Em uma espécie de extraposição, diríamos.
Em alguns países, observa Naïr (idem), os pedidos de asilo estão em muito extrapolados, e em outros há de fato indisposição em relação a esses pedidos. E afirma que os Estados transformam as suas fronteiras em “muralhas de ferro”, e que “a própria União Europeia modifica de repente as leis, não assumindo valores de solidariedade para com seres humanos que tentam fugir do horror” (Nair, contracapa). O autor apresenta uma posição que, recusando a ideia recorrente de que “não se pode fazer nada”, há possibilidades, tais como as medidas alternativas em relação ao fechamento das fronteiras, tanto para os refugiados – como o passaporte de trânsito para os que na viagem atravessam vários países com finalidade de se alojar – quanto para o que ele chama de “migrantes econômicos” – através de uma gestão europeia conjunta. Trata-se, aqui, na direção do que já mencionamos, de uma condução administrativa que não estaciona na mobilização de categorias nacionais binárias. Para o autor, não se trata apenas de resolver um problema humanitário circunscrito a uma conjuntura, mas sim de ter decisões que levarão a escolher entre os caminhos de barbárie ou de civilização.
Outro fator apontado no contexto do fechamento de fronteiras é o uso estratégico da língua como barreira do Estado, ou seja, o reforço das fronteiras formais aos estrangeiros, por dificultar o acesso à aprendizagem da língua. Os exames de língua constituem uma das mais difíceis provas a ultrapassar, como barreira burocrática e formal.
Segundo Nair (idem), as razões das migrações atuais são diversas e complexas, de natureza social, política, econômica, cultural e até identitária. Elas correspondem, de um modo muito geral, a uma vontade de mudar de vida, de mudar a própria vida, de assegurar condições de uma vida melhor para a família sua e familiares próximos. Contudo, conforme o autor, desigualdades muito grandes incrementaram-se na região nas últimas décadas, e continuam aumentando. E enquanto milhões de pessoas chegam, a cada ano, a um mercado de trabalho deficiente e estagnado, na Europa, a maioria tem que resolver a satisfação das necessidades básicas: comer, morar, educação, garantia de solidariedade mínima entre gerações.
Uma primeira razão da grande mobilidade, sempre de acordo com o autor, consiste no que ele chama de uma conjunção contraditória entre o crescimento demográfico e a paralização econômica (idem, págs.17-19). Tal conjunção constitui a causa fundamental das migrações provenientes do Sul do Mediterrâneo e da Ásia. A seu ver, a organização das relações sociais e políticas nos países pobres ou em desenvolvimento torna a variável demográfica uma causa impossível de controlar.
O diferencial demográfico ao Norte e ao Sul do Mediterrâneo desempenha, portanto, papel chave na migração atual. Ao Sul do Mediterrâneo – Norte africano - no Malgrebe (Marrocos, Saara Ocidental, Argélia e Tunísia - também Mauritânia e Líbia) a população triplicou em pouco menos de meio século. Ao aumento populacional soma-se o atual afluxo da população da África Subsahaariana, que os países malgrebinos não conseguem administrar, segundo o autor, às vezes já transbordando em seu próprio crescimento demográfico. Em suma, a população na África Subsaariana está crescendo rapidamente e a África não conseguiu reduzir a taxa de pobreza. A estimativa é de que em 2050 ela terá 25 % da população do planeta, ou seja, um quarto da humanidade.
Já ao Norte do Mediterrâneo, o contexto é de estagnação ou de redução da população. A previsão é de que essa situação tenha consequências sem precedentes sobre o continente europeu, cuja característica essencial é justamente, em contrapartida, o decréscimo demográfico. O envelhecimento da população produz um impacto sentido, afirma o autor, em Portugal, Alemanha, Grécia e Itália. Exceção é feita para França, Irlanda, Reino Unido e Suécia. Em 2014, treze países europeus registraram crescimento natural negativo.
À descrição de Naïr sobre as condições de produção da migração, que ocorre com certa regularidade para a Europa desde 1989, acrescentamos dados apresentados pelo ACNUR6, que tem mandato para dirigir e coordenar ação internacional para proteger e ajudar refugiados, deslocados internos e apátridas em todo o mundo, e para buscar soluções duradouras.
Segundo o ACNUR, é de 2015 a maior crise de refugiados recente. O grande contingente de refugiados de 2011 a 2015 teve uma alteração significativa a partir de 2012, ano em que a União Europeia já chegava a ser uma das principais regiões do mundo a receber pedidos de asilo.
Conforme a agência da ONU, a situação na Síria engrossou os números e estatísticas de refugiados nos últimos quatro anos do período, tanto a nível mundial como no europeu. O maior fluxo de deslocados que chega às costas europeias provem da Síria. O país produziu “o maior número tanto de deslocados internos (7,6 milhões) como de refugiados. Eram 3,88 milhões ao final de 2014. Deste país chegam 51% dos refugiados à Europa, em busca de proteção. Do Afeganistão chegam 20%; do Iraque 6%; da Eritréia 4%, do Paquistão e Somália 2%, além de outros países como Nigéria, Kosovo, Sudão, Mali ou República Democrática do Congo.
Do que fogem?
Apresentamos de um modo esquemático anotações feitas nas duas fontes acima mencionadas.
Síria
- Em
2011
inicia-se
a guerra
com
combates entre o Governo de Cachar El
Assad e a oposição. 250.000
foram
mortos.
10 milhões de pessoas foram des
alojad
as
. Mais de 4 milhões fugiram do país para Turquia e
o
Líbano. Mais da metade da população nacional
foi
deslocada
para
o interior do próprio país ou
está
refugiada em outro
E
stado.
P
or consequência da guerra a taxa de desemprego cresceu de 14,9
%
em 2011 para 52,9
%
no
final de 2015
. E
85% da população se encontrava em situação de pobreza no final de 2015
,
enquanto 69% sobrevivia em extrema pobreza, sendo incapaz de
prover
as necessidades básicas de alimentação.
Afeganistão
–
Há
35 anos
vem
sofre
ndo
vários conflitos
, com
sucessão trágica de vítimas
, a que
se soma a carência absoluta de perspectivas econômicas ou futuro político. Só no
Paquistão
há 15 milhões de refugiados afegãos.
Iraque –
P
erdeu parte d
o
seu território
e o
norte do país está sob controle d
o grupo
Daesh
. A população civil
há
anos sofre as consequências da guerra
,
que
desde
2003 produziu 430.000 pessoas refugiadas e provocou o deslocamento interno de quase 2 milhões
de pessoas,
que
que estão
na
Região de
Kurdistán
, região federal semiautônoma do Iraque povoada pelos curdos, e que faz divisa com a Síria, também em guerra, a Turquia e o Irã.
Eritrea
–
Onde a
ditadura é uma das mais severa do continente africano.
A c
ensura, a repressão e a vilência sistemática
s
levam a população a fugir. Em sua tentativa
violenta de
conter a emigração, o Governo
local
lançou uma política de vingança sobre os familiares das pessoas que conseguem escapar do país.
Somália
–
S
eca, fome e guerra civil hostilizam a população cada vez com mais crueldade.
Paquistão
–
V
ive com pobre
z
a extrema. É
um
país superpovoado, com 200 milhões de habitantes,
sendo que
21%
deles
vive com
o equivalente a
menos de 1,25 dólares por dia.
No país estão
numerosas e crescentes formações
yadistas
,
que aproveitam da instabilidade política para
se ampliar. Além disso,
milhões de refugiados chegam ao pa
í
s.
Rep
ú
blica Democrática do Congo
–
Há
20 anos em situação de cr
ise
humanit
ária
. Além d
e
guerra civil, o país sofre
com
um
a
epidemia de cólera. Rumo a Itália fogem nativos de Mali que continuam pagando as consequências do conflito de 2012 cujo resultado foi, em maio de 2015, a saída de 137.000 refugiados. Com eles, no trajeto para
a
Europa, viajam nigerianos que fogem das matanças execut
a
das
por
grupos terroristas islamitas
,
Boko
Haram e Al Shabaab.
Kosovo –
D
e um total de 1,7 milhões de habitantes
,
130.000 pessoas tiveram que abandonar suas casas
para escapar d
e conflitos d
a corrupção e da pobreza. Esse número representa quase 8% da população. A corrupção, a máfia e as paralizações levaram o país a
uma
situação
em que
30% dos habitantes vive abaixo da linha da pobreza.
Para onde vão os refugiados?
Segundo Naïr (2016), a maioria desses refugiados chega à Europa pela Itália e pela Grécia, mas sem a intenção de permanecer ali. Eles escolhem os países de destino em função de fatores como o conhecimento da língua, vínculo histórico, presença de comunidades da sua mesma etnia já instaladas no território, a situação econômica e a política de asilo do país e o estatuto outorgado aos requerentes de asilo (que depende da política nacional).
O autor considera que a União Europeia não tem respostas à altura dos desafios que este contexto geoeconômico e geopolítico apresenta. Não tem perspectiva estratégica nem a longo nem a médio prazo. Assim, “deixa para o mercado gerenciar ‘automaticamente’ a demanda migratória”, sem assumir responsabilidades política e moral para com os refugiados. Além disso, a impotência e a falta de perspectiva em matéria de previsão e gestão das migrações beneficia diretamente os movimentos xenófobos, que se aproveitam da situação.
O que apresentamos acima, como dissemos, além de contribuir para compreender diferenças significativas entre as condições de produção dos grandes movimentos migratórios nos dois períodos contrastados, permite também conhecer com certo detalhamento as razões e as formas dos deslocamentos recentes, tanto no contexto italiano como no europeu.
Práticas linguageiras no contexto das migrações.
Ao longo deste texto foram mencionados diversos materiais e atividades de linguagem produzidos na prática linguageira nos contextos de migrações. Sabemos que a migração atual produz impacto ímpar no corpo social, e aqui destacamos a prática discursiva em que ela se insere, entendida como “um conjunto de regras anônimas, históricas, determinadas no tempo e no espaço, que definem, numa época e para uma área social, econômica e geográfica ou lingüística, as condições de exercício da função enunciativa” (Foucault, 1987, pag. 136). Nesse corpo social também se produzem as práticas linguageiras do cotidiano, no espaço público. Uma reportagem jornalística, um programa na televisão, uma oficina de língua num centro cultural, uma mesa-redonda da prefeitura para avaliar programas com migrantes, uma exposição fotográfica, etc. Ou ainda, em outro tempo, uma campanha de nacionalização do ensino, um arquivo com cartas, passaportes de família e propagandas de companhias de navegação em um museu nacional. Essas atividades, na prática linguageira, têm relevância para compreender e para lidar com a situação.
Essas modalidades de atividades se realçaram porque parecem “roçar” diretamente o corpo social de um modo próprio. Uma breve análise, como faremos adiante, leva a notar como elas materializam, nesse espaço das migrações, modos de prover sentidos para algo que demanda, para desencadear e movimentar o processo da significação: deslocam, produzem, recriam sentidos, ou simplesmente os reproduzem.
Mas também, a presença dessas modalidades nos parecem atravessadas por outra dimensão, que seria aquela que compreende Eni Orlandi (1992), a da “relação da linguagem com o silêncio”, com um “silêncio fundante”, conforme diz a autora, pela qual “se pode perceber o silêncio como o estado primeiro, aparecendo a palavra já como movimento em torno” (ORLANDI, 1992, pág. 33). No fluxo migratório de grandes proporções mobiliza-se grande “diversidade, diferença e multiplicidade de sentidos”, instalando a necessidade - da ordem da história - de um excessivo “movimento em torno”. Diz a autora: “É assim que podemos compreender o silêncio fundador como o não dito que é história, e que, dada a necessária relação do sentido com o imaginário, é também função da relação (necessária) de língua e ideologia. O silêncio trabalha então essa necessidade” (ORLANDI, Idem, pág. 22).
Vamos explorar duas atividades da prática linguageira no contexto da migração, ambas organizadas em torno de fotografias. Uma que foi estampada no folder de uma mostra fotográfica e outra que é a fotografia feita de um naufrágio, durante o resgate de centenas de pessoas que estavam em um barco, e que ganhou premiações internacionais.
Futuroe oSonhona língua suáili
A primeira fotografia a ser explorada foi encontrada como destaque no folder da mostra fotográfica do Programa “Arte Contra a Pobreza”, realizada pelo CEFFA-Tailândia, ONG italiana que trabalha com a arte como ferramenta para combater a pobreza e promover o desenvolvimento social em diversas iniciativas, na Tanzânia (África Subsaariana) e outros países. O folder e a mostra se encontravam no espaço da Festa da Unidade (2016), comemorativa da unificação do estado italiano, como parte da programação. A mostra era composta por um conjunto de fotografias de rostos, e era resultante de um projeto fotográfico dirigido pelo fotógrafo Gabriele Fiolo junto a jovens artistas das cidades de Dar es Salaam e Nairobi, na Tanzânia, visando “donare um’immagine forte e spensibilie a piu di 300 giovani (...) attraverso la realizazzione del loro portifólio” (dar uma imagem forte e comercializável a mais de 300 jovens através da realização do seu portfólio) (folder da mostra Dreams & Selfies).7
Ao explorar a fotografia, em diferentes momentos os sentidos se tornaram opacos. Há lacunas e certos componentes que entendemos serem da ordem do silêncio. Para a descrição da imagem e de sua produção, voltamos a consultar os materiais quanto sites digitais neles indicados, para dar inteligibilidade ao texto.
Um elemento que joga um papel nessa opacidade, sem dúvida, é o termo “spensibile”, que demanda trabalho de compreensão. Dar uma imagem forte e comercializável (?) a mais de 300 jovens produz estranhamentos. “Spendibile” pode ser traduzido também como pagável ou consumível. A leitura do folder de uma mostra, em seu veio artístico, deve ser literal ou metafórica? Há também uma passagem a fazer, da leitura do texto (verbal) para a imagem e para a fotografia. Nas diferentes versões dos escritos (no folder e no site), fragmentos são inseridos ou suprimidos, aparecem e desaparecem. Não cabe à análise responder a essas perguntas, mas podemos remetê-las ao funcionamento do silêncio fundante, com base no modo como Eni Orlandi (1992) o considera, na reflexão sobre a relação entre linguagem e silêncio. Diz a autora:
Se assim podemos passar das palavras para as imagens (relação do verbal com a metáfora), fazemos ainda outra passagem mais radical, passando das palavras para o “jogo”. É nessa dimensão do significar, como jogo de palavras, em que importa mais a remissão das palavras para as palavras [...] que o silêncio faz sua entrada.” (ORLANDI, idem, pág. 15).
Para avançar nessa consideração, cabe fazer um parêntese para um esclarecimento, a partir de um texto explicativo do fotógrafo, encontrado no site do Projeto8. Para o entendimento deste nosso texto, será preciso intercalar a descrição/análise do folder com fragmentos do texto do fotógrafo, no qual ele descreve o contexto da produção das fotografias, o que foi feito e o que pediu para os jovens artistas quando esteve na Tanzânia. Ele relata que esses jovens chegavam a um trailer velho para se inscrever, num dia quente de verão. “Não era garantido que viriam; alguns acordavam às cinco da manhã, pagavam o transporte do próprio bolso, formavam fila pacientemente (...) preenchiam um questionário”. Tinham os “rostos jovens, sonhadores, medrosos, alegres e raivosos”. Na atividade do projeto, o fotógrafo pediu a eles que imortalizassem suas emoções (alegria, medo, dor) - e os seus sonhos. E continua: eles “pensavam em como se fotografariam, refletiam sobre as suas emoções, os seus sonhos, escreviam os seus nomes — muçulmanos, cristãos — com as suas feições fortes e doces, e um diálogo sincero era estabelecido”. (idem).
Retornando ao folder da mostra: uma fotografia de um rosto jovem é acompanhada da citação de Shakespeare: “Siamo fatti della stessa sostanza dei sogni” (somos feitos da mesma substância dos sonhos), e seguida de uma pergunta: “os sonhos existem?” E então aparece uma relação, feita pelo fotógrafo, entre sonho e futuro na língua suáili.
“Em Swaili a palavra futuro não existe: O conceito de futuro na cultura swahili se resume à expressão muda ya badaye: o tempo que virá depois. Mas sonho existe: sonho: ndoto. Kuota ndoto=sonhar um sonho, reforçar”. (idem).
Por isso, continua o texto, o fotógrafo quis dar uma imagem ao instante em que o futuro é pensado e criado”. Num texto explicativo, no site do Projeto, se lê que
“Gabriele se atormentou durante sua estadia na Tanzânia com a possibilidade de sonhar em um país onde nem mesmo a língua oficial inclui a palavra "futuro". O conceito de futuro na cultura suaíli se resume na expressão "muda ya badaye", que significa o tempo que virá depois. Coma agora, consuma agora. Não existe "depois". Pensar no futuro é economizar um dinheirinho para ir ao médico quando estiver doente e mandar os filhos para a escola. Mas sonhos existem: sonho = ndoto. O importante é sonhar, o importante é o sonho. Sonhos simples: ir à escola, crescer, retribuir o esforço dos pais”.
Como resultado da demanda feita aos jovens, foram obtidas as fotografias da mostra, que serviriam aos seus portfólios. Ao final do texto, Fiolo escreve sobre o resultado; não sem interpretá-las.
“Kuota ndoto: sonhar um sonho, reforçar. As imagens eram nítidas, não havia fundo; poderiam estar em Londres ou Dacar, porque no autorretrato, o autor é simultaneamente fotógrafo, sujeito e espectador. Transforme-se em imagem e veja o que está além das aparências: é impossível ver o corpo separado da alma”. (Gabriele Fiolo)9.
Representativa “do instante em que o futuro é pensado e criado”, a fotografia abaixo é a que está no folder de campanha da Mostra.
Imagem 1 – Fotografia do projeto “Arte Contra a Pobreza”

Fonte: Folder impresso da Mostra Fotográfica Dreams & Selfies.
No fechamento do folder, uma explicação do fotógrafo sobre “o verdadeiro sentido da mostra”:
“Esses rostos me encheram a alma. A mostra nasce como tributo ao empenho dos artistas selecionados no projeto. A gigantografia dos rostos pode ser exposta a vento, chuva, amassada; mas depois eles esticam, voltam com a coluna erguida, têm a resistência dos seus sonhos: teimosos e determinados”. (idem).
Dissemos que no espaço público no contexto das migrações as atividades de linguagem, enquanto práticas, materializam e movimentam sentidos. A memória discursiva (pelo interdiscurso) trabalha e é trabalhada. As intervenções artísticas nesses espaços ativam interpretações, produzem outros sentidos, colocam em silêncio. A leitura das imagens, em grandes pôsteres colocados no meio da rua, “roçam o corpo social”, convocam os sentidos, que são instados a acontecer. Semelhanças, diferenças, ausências e silêncios, a partir de materiais preparados cuidadosamente, ou não, em diferentes modalidades, línguas e conceitos. As diferentes perspectivas de onde se produzem os sentidos em diferentes lugares de dizer inscritos no corpo social é no corpo da linguagem, históricos e ideológicos, podem ser vislumbrados. Afinal, em face de numa mostra fotográfica como essa, é possível perguntar sobre quem tem direito ao sonho? E ao futuro? Como os sonhos possíveis e o futuro podem se apresentar, como podem dar-se a conhecer, e para quem? Em uma proposta como essa, o que pode e deve ser dito, e o que não cabe dizer, mas faz sentido no silêncio? E na justa preocupação do fotógrafo, em sua atuação social, quem poderá sustentá-los, valorizá-los, apresentá-los ou representá-los? E aqui, numa remissão ao trabalho de M. Celada (2008), que reflete sobre “o que quer, o que pode uma língua?”, associo outra pergunta, parafrasticamente: O que pode uma mostra fotográfica? O que podem as atividades da prática linguageira no espaço das migrações?
Where are you?Identificação do sujeito ou a história de uma fotografia
A segunda atividade a ser explorada, analiticamente, também tem como suporte a fotografia. Nesta parte, ela se apresenta como um texto que se materializa uma ação específica com um grupo de refugiados. Ela condensa elementos da discussão sobre a migração, como a viagem e as embarcações no mar., e também dá margem para notar o funcionamento do discurso sobre, na distinção com o discurso da migração10. Mas, sobretudo, essa atividade foi selecionada porque permite refletir sobre a multidão – no modo como se dá o movimento de migrar - e a identificação dos indivíduos, pela linguagem.
Deparei-me com essa imagem nas primeiras aproximações ao tema do grande fluxo migratório atual, pela grande circulação na mídia, no contexto dos naufrágios acima mencionados. Mais tarde tomei conhecimento do projeto “Where Are You?”, desenvolvido com um grupo de refugiados, que foi desencadeado a partir da imagem. Tal projeto foi apresentado no contexto das intervenções culturais e artísticas feitas durante o Segundo Fórum Internacional da ONG CAF, do qual participei, como mencionado, como pesquisadora observadora, em dezembro de 2014. O relato que vou apresentar adiante reúne, por um lado, informações anotadas durante a apresentação por membro da equipe que o desenvolveu, no congresso, e por outro lado, do site do mesmo projeto, tal como se encontrava quando consultado, em 2015, e, também, do site atual, consultado recentemente11.
Nesses materiais, textos narram que em junho de 2014, pouco antes dos naufrágios, o governo italiano realizou uma operação, Mare Nostrum (OMN), para “resgatar pessoas em risco nas águas da costa da Líbia que tentavam atravessar o Mediterrâneo”. A operação era uma “resposta ao afogamento de centenas de migrantes, na Ilha de Lampedusa”, em 2013 conforme o relato de Carla Pedro12.
Em 14 de junho, continua o relato, “um helicóptero avistou uma barcaça repleta de pessoas. Andavam à deriva há 17 horas. Foram salvas através desta operação. [...] O fotógrafo italiano Massimo Sestini trabalhava a bordo da fragata Bergamino e fotografou um momento muito especial de alívio e esperança” (idem).
O texto expõe sentidos produzidos, certamente, do lugar discursivo ou perspectiva de um fotógrafo - algo que poderá ser lido como um dizer sobre a história desta fotografia – e do autor que a compõe: “Massimo Sestini, no ano antes de tirar a foto, havia trabalhado com a Marinha. Ele sonhava em fazer essa foto: uma foto que ele tinha em mente, na fragata Bergamini, (...) Quando levantou o vôo de helicóptero, ele conseguiu” (Pedro, idem). Mais tarde aparecem outros detalhes nessa perspectiva sobre a fotografia e a sua tomada: “depois de diversas tentativas, a tomada tão esperada, ele consegue”. E, ainda, um fragmento de entrevista de Sestini: “Vejo no horizonte o barco. Um quadro [faz gesto de enquadre com as mãos], e projeto a lente encima” 13.
A fotografia recebeu prêmio no concurso World Press Photo em 2015, e a imagem foi eleita pela Time como uma das 10 melhores fotografias de 2014. Apareceu publicada em capas de jornais, redes sociais (Facebook, website), material de campanha e se tornou símbolo da Campanha ACNUR para a proteção a refugiados, “porque é a imagem do desespero e da salvação” (Sestini, 2014)14. Para o fotógrafo, ela “começou a viver, desde então, sua própria vida”.
Imagem2- Fotografia de refugiados a deriva, no Mar Mediterrâneo, de Massimo Sestini.

Fonte: Site do Projeto Where Are You - http://fineart.massimosestini.it/en/progetti-speciali/where-are-you
Em sua “vida própria”, a fotografia continuou a produzir efeitos em seu autor. “Desde que Massimo tirou aquela fotografia, ele se perguntou muitas vezes o que aconteceu com todas aquelas pessoas, como suas vidas mudaram na Europa” (Pedro, idem). E soube que “uma pessoa da Suíça nos informou que reconheceu um parente seu naquela fotografia” (idem). A pessoa foi procurada por Sestini e a jornalista Livia Corbò, que trabalhava com ele, que obtiveram o depoimento: “Todo mundo quer fugir quando as coisas ficam ruins no barco, e cada segundo piora, você está sempre à beira do desastre. Mas nenhum de nós morreu”. Depois deste depoimento, o fotógrafo e a jornalista, com uma equipe de profissionais e ativistas, passaram a pensar em um projeto. Escreve Sestini (idem) sobre ele:
“Depois que uma pessoa da Suíça nos informou que reconheceu um parente seu naquela fotografia, decidimos começar a trabalhar no projeto. Saber que pelo menos um dos 500 migrantes resgatados daquele pequeno barco em 2014 havia começado uma nova vida na Europa foi uma notícia verdadeiramente inspiradora e nos deu a ideia de criar um projeto fotográfico: “Where are you?”. Foi uma espécie de epifania. De repente, pensei que seria ótimo poder reencontrar todas aquelas pessoas e descobrir como elas estão vivendo agora, se e onde conseguiram se estabelecer (Sestini, Idem)15.
O projeto16 pretendia ouvir e contar a história das pessoas que pudessem ser identificadas na foto do resgate, com o objetivo de “narrar de forma diferente a crise dos refugiados”. (idem). No texto do encontramos uma síntese sobre suportes e expedientes da tecnologia de linguagem mobilizados pela equipe do projeto.
Assim, em 4 de outubro de 2015, lançamos um site: www.massimosestini.it/wru.html a fim de entrar em contato com o maior número possível de pessoas que estavam naquele barco, documentar suas novas vidas e contar suas histórias. (...) Publicamos um apelo nas redes sociais e sites para que todos dessem uma olhada na fotografia de Massimo, na esperança de que alguém reconhecesse algumas das pessoas retratadas ali. (Idem).
Recursos tecnológicos permitiam também que, ao passar o mouse sobre a fotografia, ela fosse ampliada. O dispositivo tornava possível ver detalhes e identificar as pessoas através de informações obtidas por usuários, pessoas próximas e os refugiados que estavam no barco. Nome, idade, procedência, local onde mora e outras informações. O recurso tecnológico utilizado nessa identificação passa a fazer parte da história da fotografia e também da história daquelas pessoas. Os autores do projeto “explicam como uma fotografia não termina no momento em que é feita, mas pode ter um impacto ao longo da vida do fotografado”: “(...) O projeto foi lançado em 4 de outubro, e informações, fotos e comunicações chegam à página do Facebook. (...) Depois das fotos, as histórias. As pessoas, os homens daquele barco, começaram a enviar [mensagens] para whereareyou@massimosestini.it” . (idem).
Quando o projeto de intervenção artística “Where Are You?” foi apresentado no congresso, a identificação das pessoas estava em processo, e se podia ver imagens de setas com nomes manuscritos anotados sobre uma versão impressa da fotografia. Essa grafia é significativa porque materializa sentidos e gestos dos sujeitos que estavam envolvidos nesse específico “processo de identificação”. As mensagens recebidas daquelas pessoas foram disponibilizadas no projeto, e transcrevemos alguns fragmentos. Elas apresentam narrativas feitas a partir do lugar do fotografado (migrante ou refugiado). Elas narrativas respondem, por seu lado, a uma demanda que lhes foi feita, nesse caso, pelo fotógrafo, e a identificação das pessoas se deu no seio de um corpo social sociohistoricamente constituído também como sujeito de linguagem, com suas posições e perspectivas sociais, históricas e ideológicas.
“Olá, Massimo, estou escrevendo para lhe dizer que estou em Nápoles, e eu vivo com outras 25 pessoas que estavam comigo nesse barco. É um começo, e para nós é isso, um novo começo. Nós viemos para cá juntos, viemos da Gâmbia e da Serra Leoa. Entre nós, um menino, que tinha 16 anos quando deixou a Gâmbia e tinha 18 anos em junho passado. Obrigado, obrigado por nos dar um rosto. Porque às vezes, se você nascer em um país onde você não é mais uma pessoa desejável, porque há guerra, e você tem que deixar a família, as pessoas com quem cresceu, como na Gâmbia, você esquece sua história, procura olhar para a frente. (idem)
Ao que o texto acrescenta: “Um regime militar foi instalado na Gâmbia em 1994. São apenas em dois milhões, mas é o terceiro país a partir do qual os migrantes chegam na Europa”.
Houve relatos do momento do resgate. “Ed contou-nos que fazia muito calor na parte de baixo da embarcação e que todos queriam subir. O problema era conseguir que a barcaça aguentasse. Se todos subissem à parte superior da embarcação, esta poderia afundar”. (idem).
A jornalista redatora do projeto disse que as pessoas encontradas eram, “na sua maioria homens, com idades compreendidas entre os 18 e os 40 anos, provenientes de países como a Gâmbia, Serra Leoa e Camarões”. E que “Quase todos partilham uma história comum: vivem no sul de Itália, trabalham no campo mas de forma clandestina, na colheita de frutas, e esperam pelos papéis que os legalizarão” (idem).
O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) cifrou em 3.419 o número de vidas perdidas em 2014, entre aqueles que tentaram atravessar o Mediterrâneo.
O projeto produziu, quatro anos depois do resgate, um documentário sobre a vida das pessoas antes da captura da foto e depois. No trailer17, uma voz off masculina narra que “quatro anos depois o National Geographic rastreia alguns dos homens e mulheres que se encontravam naquele barco na costa da Líbia. A sua história potente e tocante torna-se uma grande história de luz e esperança. Além dos estereótipos”. Transcrevemos alguns fragmentos das narrativas do trailler, que relatam o momento do resgate.
Homem: “Quando entrei no barco tinha medo porque talvez é o último dia da minha vida. (...)
Jovem: um golpe, estava com tanta sede no ato, há dois dias, não queria abusar da água do mar.
Mulher: Nasceu, me lembro ainda, o anjinho, onde eu estava sentada (...). Eu salvei Almada, mostrei [ao helicóptero] que tínhamos uma recém nascida, estava segura que a tinham visto.
Homem – Quando o helicóptero chegou, entendi que estávamos salvos.
Homem: As pessoas gritavam, gesticulavam, estavam tão felizes!” (idem).
Em diversos fragmentos se ouvem vozes dizendo o nome, o país de onde vinham, a idade. Alguns chegavam a dizer a atividade principal que estavam exercendo, estudando, trabalhando e onde. Um mínimo de identificação no discurso na ordem do Estado. Uma elaboração simbólica mais consistente aos sentidos de migrar, mudar, pedir refúgio, refugiar-se, significar a própria história nem sempre acontece, conforme esses depoimentos. Mas há também formulações de algo “além dos estereótipos”. Ao final do trailer, há outro depoimento curto de Sestini, e o relato de choro de um jovem, que resume de modo forte a experiência.
Massimo: “Não queria ver a morte, a tristeza, a desesperança, queria ver a esperança”.
Jovem: “Choro, me ensinou tanto, a liberdade de uma pessoa, a democracia”
Um último texto da página incide sobre a identificação das pessoas e a multidão, aspecto que se aproxima do que gostaríamos de chamar a atenção, como uma questão enunciada da pesquisa. Dizendo através dele, encerramos esta parte do trabalho.
“Este é um projeto contra o medo que se espalhou pela Europa, um medo irracional. "Where Are You?" é uma tentativa de dar um rosto a todos aqueles que hoje em dia são frequentemente concebidos como um rebanho indiferenciado. O papel de um fotojornalista nestas circunstâncias é diferente do habitual: o objetivo já não é captar imagens para publicação em revistas e jornais, mas sim difundir uma mensagem que possa melhorar o diálogo multicultural, aumentar a integração inter-racial e incentivar o respeito pela diversidade”. (idem).
Considerações finais
Este ensaio iniciou com a descrição de uma “leitura” produzida na exposição de um museu da imigração, onde se encontravam no “mesmo espaço” linguagens e arquivos de dois diferentes grandes movimentos migratórios, de tempos distintos. A descrição aconteceu, na ordem da significação, expandindo o alcance do objeto migração. A pergunta pelas semelhanças, diferenças e contradições desencadeou uma série de outras observações sobre o migrar, sobre a experiência mesma da migração – muito embora as diferenças de condições de sua produção determinem sentidos para a migração.
Pensar nessa perspectiva sobre o sentido amplo de migração nos leva a considerar em uma relação do tema com as considerações do sociólogo francês Abdelmalek Sayad (2002), em relação ao recorte que certas disciplinas fazem ao estudá-las relativamente ao espaço ou país de partida ou de chegada. Atento ao modo como a Sociologia pode servir ao gerenciamento oficial de população, e ao conhecimento do outro para fins desse controle, o sociólogo chama a atenção para o fato de que o migrante, como sujeito, lida ao mesmo tempo com o lugar de saída e com o lugar de chegada. Em um estudo sobre a imigração argelina na França, o autor pesquisa a situação daqueles que moram em um país e vão aos finais de semana para o outro, próximo. Analisar por apenas um desses ângulos não permitiria, ao seu ver, compreender o fato social da imigração. Além do direito à cidadania, o autor afirma, o migrante tem também o direito de identificar-se relativamente a esses lugares diversos.
Desse modo, ele considera a migração como um processo social amplo, que abrange condições de produção com diversos lados – para além de territórios e dos estados específicos. Razão pela qual postula uma compreensão ampla, enquanto uma teoria da imigração.
Ainda nesta direção, a frequência com que a referência ao espaço de migração apareceu nas descrições que fizemos levou-nos a refletir sobre o lugar analítico que essa noção teria em relação ao tema do estudo. De uma referência ao lugar “físico” – como o museu e o porto onde ele se situa; o país e o continente, em relação às rotas das migrações e dos refugiados – passamos a pensar, com relação a esses espaços, que não seria por acaso que determinados objetos, figuras e, sobretudo, certas atividades da prática linguageira ali funcionam, inseridos na prática discursiva em tais espaços. O lugar de chegada é também de partida. Ali se encontram sujeitos em suas posições, discursos, vozes e perspectivas de dizer específicos, em relação a outros espaços.
Nesse ponto compreendemos que estamos entendendo a noção de espaço não mais na ordem do empírico, do espaço físico, mas que joga um papel na maneira de pensar sobre a migração. A possibilidade de entender desse modo o espaço das migrações se dá nas ressonâncias do que compreende sobre a significação e o espaço a área de estudos Saber Urbano e Linguagem, enquanto espaço simbólico, através de conceitos como o de espaço material (político-simbólico) (ORLANDI, 2001b), como já definido, ao tratar, anteriormente, da quantidade como “estruturante das relações sociais que têm a cidade como lugar simbólico real concreto” (Idem, p. 14); e também o conceito de evidência do espaço (RODRIGUEZ-ALCALÁ, 2018), que permite compreender a maneira “pela qual este se apresenta como meio natural pré-constituído, apagando-se o processo histórico de produção do espaço (político) da vida humana” (ibid., p. 245-246). Nesse sentido, em relação aos discursos sobre a migração, entendemos que eles procuram “organizar o espaço da migração”, acionando categorias como as da nacionalidade e da administração de pessoas, que aparece no imaginário e no discurso correspondente à migração do capitalismo industrial e à implantação dos estados nacionais republicanos. Mas o “real concreto” das migrações, na “ordem” do seu espaço sócio-histórico, a “organização” que se daria com base nesse discurso, não apreende. O que permanece fora da apreensão e da compreensão vai produzir algo como um efeito de extraposição com relação a tais categorias.
Nesse sentido, estar neste espaço significa, certamente, para sujeitos migrantes, experimentar algo que atravessa os espaços físicos (países) para além da discussão ou das políticas de gerenciamento de população. A experiência do sujeito migrante, tomado como uma posição (se podemos dizer assim), como sujeito no simbólico, não para na sua organização mas atravessa um espaço que se faz na ordem da migração. E a prática linguageira comum ao “espaços de migração”, compreendido na perspectiva definida acima, abrem para formulações e horizontes de sentidos possíveis, mas não abarcam o real das migrações, no contraditório dos processos de significação atravessados por diferentes perspectivas. A partir de uma fotografia sobre refugiados à deriva no mar (literalmente, sobre, como um ícone), abre-se espaço para uma identificação das pessoas e para suas narrativas, que um documentário organiza. Contudo a narrativa deriva, também, para a história da própria fotografia, e desse modo na mesma atividade, como prática linguageira, falam perspectivas e sujeitos diferentes – muito embora a materialidade da arte permita que a unidade dos sentidos não se dê nessas tentativas, e que o ângulo não se feche.
Referências:
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FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro, Ed. Forense-Universitária. 1987.
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PAYER, M.O. Memória da Língua. Imigração e Nacionalidade. São Paulo: Ed. Escuta, 2006.
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SAYAD, A. La doppia assenza. Dalle illusioni dell’emigrato alle soffrenze dell1immigratao. Milão, Ed. Rafaello Cortina, 2002. 404 p.
1 O projeto foi apresentado à Scuola di Scienze Sociali del’Università degli Studi di Genova (UNIGE), através do Curso de Ciência da Comunicação, então coordenado por Federico Rahola, que supervisionou o estágio.
2 O desenvolvimento da pesquisa contou com apoio parcial do CNPq através de bolsa de Produtividade em Pesquisa (Pq), (Processo no. 301656/2016-9), pela qual agradeço.
3 Publicações resultantes do projeto de pesquisa encontram-se especificadas nas referências bibliográficas produzidas em 2015, 2016 e 2019.
4 Segundo a autora (BOUTET, 2021), o neologismo “prática linguageira” foi criado em 1976 (em Boutet et al. 1976) a fim distingui-la de “atividade linguística” como utilizada na linguística funcional e gerativa predominantes no contexto científico à época. A autora a entende como “as práticas materiais dos locutores, inseridos em contextos sociais de produção e de recepção (hoje diríamos contextualizadas). Por isso a noção de prática linguageira permite fazer uma clara distinção entre o conceito de língua, um artefato construído historicamente e institucionalmente necessário para a construção política dos Estados-nação, e a realidade empírica do que fazem os locutores na materialidade das situações e interações sociais. Segundo seus autores, duas propriedades principais caracterizam as práticas linguageiras: relações de força e práxis” (BOUTET, 2021, P. 281).
5 www://www.acnur.org (consultado em 13/03/2016).
6 Citamos os fragmentos de textos na língua original (italiano) sempre que houver questões que envolvam a língua. De resto, fazemos uma tradução livre, exclusivamente, que apresentamos acompanhada do original ou apenas na tradução.
7 https://tempoediaframma.it/inaugurata-la-mostra-dreams-selfies/. Consultado em 28/9/2025.
8 https://tempoediaframma.it/inaugurata-la-mostra-dreams-selfies/ (consultado em 28/9/2025.
9 A mesma fotografia foi trabalhada em artigo anterior, em 2016, ao lado de outras imagens e enunciados, no sentido de expor o funcionamento do discurso sobre. A tomada aérea da imagem é um dos elementos icônicos, justamente, para notar a perspectiva sobre. Considerar agora a “mesma” imagem, neste nosso texto, no contexto da atividade que mobiliza narrativas dos refugiados, leva a compreender, diferentemente, como veremos, outros efeitos de sentido em seu funcionamento no discurso.
10 https://cild.eu/blog/2015/11/16/where-are-you-il-progetto-di-massimo-sestini/. (Consulta em 25/09/2025). Cabe esclarecer que, embora na apresentação deste texto as informações e fragmentos tenham sido intercalados, as formulações a serem recortadas em análise se mantêm íntegras.
11 Disponível em https://cild.eu/blog/2015/11/16/where-are-you-il-progetto-di-massimo-sestini/ (consultado em 28/9/2025).
12 A entrevista de M. Sestini aparece em um documentário do projeto, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=WMhaGZTAEnM.
13 Idem.
14 Projeto Criado pela CILD Italia e Chicas Poderosas, e patrocinado por Univision e Fusion. Entre os parceiros internacionais estão o Google News Lab, Global Editors Network, Berkeley AMI e Blue Suitcase.
15 O documentário, intitulado “Where are you? Dimmi dove sei”. foi exibido no Canal National Geographic Itallia em 13 de junho de 2019. O trailler encontra-se disponível em https://www.youtube.com/watch?v=WMhaGZTAEnM.
16 Possui Doutorado em Linguística pela Unicamp e Mestrado em Linguística também pela Unicamp. É pesquisadora PQ2 do CNPq. E-mail: mopay001@gmail.com.