Trabalho análogo à escravidão: O equívoco na adjetivação


resumo resumo

Vanise Medeiros
Gesualda dos Santos Rasia



(...) é no interior da língua que a língua deve ser combatida, desviada:

não pela mensagem de que ela é instrumento,

mas pelo jogo de palavras de que ela é teatro.

(Barthes, 1980)

 

Situando a discussão

É assim que se abre um livro que deu início às nossas reflexões:

Revejo meu pai, ainda jovem, uma corda na mão esquerda, um balde de água na mão direita, os cabelos ainda negros, a camisa de faixas amarelas e brancas, a bermuda velha, jeans, chinelos de dedos um pouco mais gastos no lado de dentro, passos largos, mas sem pressa, como se pudesse alcançar grandes distâncias com a calma mais calma de sempre. Meu pai, sempre no mesmo ritmo, grave e tranquilo, imperturbável. Vejo-o despontando na curva do pátio da casa grande; estou sentada no trator com meu irmão. Em frente, a casa da nona Magri – é também a casa do nono, a casa dos tios e das tias muito amadas, mas é assim que a chamamos até hoje, a casa da nona, tantos anos depois de ela estar morta – a casa enorme, seis quartos grandes com um corredor de pelo menos quatro metros de largura e uns dez de comprimento e numa das extremidades uma sala de tv cheia de sofás, depois a cozinha com o fogão à lenha, a caixa da lenha onde brigávamos pra sentar no inverno, sob a janela; a enorme mesa, o cômodo onde ficava a geladeira, um aparador e a escadaria perigosa que levava ao porão. (..., Magri, 2021, p. 11-12)

 

Pela mão da autora adentramos um espaço social que faz parte de nossa história e por sua mão seguimos para um momento especial:

O mundo a que estávamos acostumados era rude. Todos se sentavam em roda para conversar e tomar o chimarrão. Todos falavam alto, às vezes dando umas risadas muito altas, mas quase sempre eram graves, falavam sobre a colheita e logo iam a ela. Todos sempre atarefados, todos sempre movidos por trabalho incessante que acompanhávamos e tomávamos como brinquedo. Nosso brinquedo: colher a uva. Nosso trabalho: pisar a uva depois dos pés lavados no grande tanque. Nosso brinquedo, retirar os cachos. Ajudar o nono a colocar tudo nas grandes pipas, lavar as bacias nos jogando água e, depois de três dias, nosso trabalho: experimentar o vinho retirado da torneira e oferecido pelo nono com um sorriso de satisfação no rosto enrugado. Brincávamos de fazendeiros naquele dia, no trator (...) (Magri, 2021).

 

No livro Uma exposição uma mulher madura, descendente de colonos retorna ao campo e a cenas da sua infância camponesa: matança do boi, preparação das carnes e da festa tecem o percurso da sua reflexão. Trabalho e festa são dois significantes que enlaçam uma família que labuta na terra e que tem o dia de festa na qual usufruem de seu labor: comem das carnes dos seus bois; bebem do seu vinho. Esta não é, como se sabe, uma prática possível a qualquer segmento social na nossa sociedade; ou melhor, não é qualquer segmento da nossa sociedade que pode desfrutar do fruto de seu trabalho.

Neste estudo, partimos de dois significantes trabalho e festa – com seus desdobramentos em enunciados que ressoam na nossa formação social – como motores para uma reflexão em torno de práticas de inclusão e de exclusão, assim como sobre as formas da contradição. Focamos, para tanto, o trabalho nas condições de produção da colonização do Sul do Brasil, nos entrelaçamentos possíveis e impossíveis com o trabalho em situações análogas à escravidão. Nosso recorte diz respeito ao fato específico da descoberta da ocorrência dessa forma de trabalho na indústria vinícola na região serrana do Rio Grande do Sul, em fevereiro de 2023.

Na ocasião, 207 trabalhadores foram resgatados de um alojamento em Bento Gonçalves, onde eram submetidos a “condições degradantes” e a trabalho análogo à escravidão durante a colheita da uva para produção de suco e de vinho. A ordem do equívoco (Pêcheux, 1997) instaura-se sobremaneira quando acessamos as certificações internacionais de que gozavam as vinícolas envolvidas. A Aurora era então detentora do título de “Great Place to Work” (= ótimo lugar para trabalhar); já a Salton era signatária do Pacto da ONU contra “escravidão moderna”3. Se remontarmos ao trabalho dos colonos/imigrantes italianos, que se dedicaram ao cultivo da uva no Sul do Brasil no início do século XX, aí também encontraremos a forma material trabalho. Contudo, ela reveste-se de outros sentidos, a começar pela detenção dos meios de produção por parte dos sujeitos proprietários, mesmo que em condições muitas vezes precárias. Um século depois, o espanto diante da constatação da ainda existência de trabalho nas formas da escravidão (e não por acaso os trabalhadores eram nordestinos), imprime outros tons à cena descrita por Yeda Magri e que mobilizamos no início de nosso trabalho. O trabalho também é rude, talvez não no sentido de grosseiro, se considerarmos os avanços tecnológicos do decurso de mais de 100 anos. É rude no sentido de desprovido de humanidade mesmo. É obsceno. Colher a uva, retirar os cachos, não é um brinquedo. Os escravizados não podem dizer “um brinquedo, um trabalho nosso”. Tampouco podem festejar a colheita ou dela desfrutar. Não há lazer, e eles encontram-se completamente alienados do seu fazer. Os pés dos colonos, lavados, que emblematicamente pisoteavam a uva para dela extrair o suco e depois o vinho, forte simbologia no cristianismo, são substituídos por pés que pisoteiam sua própria dignidade.

 

Considerações em torno do significantetrabalho

O significante trabalho4 é forma material que apenas aparentemente é a mesma. Uma vez colocado em redes de formulação outras, reguladas por Formações Ideológicas específicas, trabalho tem a ver com participação em uma rede de produção que gera riquezas e rendas, em que pesem todas as dificuldades e incoerências das relações. Por outro lado, trabalho tem a ver, também com expropriação do labor dos sujeitos, sem retorno de espécie alguma, ao limite da coisificação desses mesmos sujeitos, atualizando uma memória da escravização inscrita na Formação Ideológica Colonialista. O que dizer acerca da celebração do resultado do trabalho, a festa, o folguedo, a comida farta quando não há ganho algum para uma das partes envolvidas? O vazio na cadeia parafrástica dá corpo ao indizível, ao inaceitável.

Posto de outra forma, o significante material trabalho se bifurca em redes de sentidos contraditórios instaurados na e pela Formação Ideológica Colonialista; afinal, ela tece e é tecida pela contradição. “Brincávamos de fazendeiros”: nesta formulação, no texto Uma exposição, se marca a continuidade de um lugar, de uma classe social que instaura projeções de um vir-a-ocupar o lugar de fazendeiros, de um vir-a-ter posses ou de um vir-a-continuar-a-ter posses, a herdar. Trabalho, na posição discursiva que sustenta o enunciado recortado do texto de Yeda Magri, reporta à possibilidade de ascensão social e/ou manutenção de certo status social, qual seja, a da classe de fazendeiros.

Na rede que trama as diferentes formas de trabalho na sociedade brasileira contemporânea outros sentidos se somam a esse, recém apresentado, sinônimo de bem-suceder. No largo espectro da heterogeneidade do real há, sabemos, desde os sujeitos desempregados, passando pelos trabalhadores informais, os assalariados, até os autônomos. Dentre estes últimos, há os que administram capital pessoal e há os que se enquadram na chamada “pejotização”, estratégia moderna que isenta os empregadores do pagamento de encargos e direitos trabalhistas. A multiplicidade de formas não exclui a possibilidade de retorno de relações próprias do sistema escravocrata, conforme vimos no fato denunciado na Serra Gaúcha.

A contradição entre a ordem do jurídico e a do real demandou regulamentação legal. No recente ano de 1948 a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) adotou a Declaração Universal dos Direitos Humanos onde consta, entre outras determinações que visam ao regramento de universalização da proteção do ser humano, o que segue:

 

Ninguém será mantido em escravidão ou servidão, a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas”. “Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.(artigos IV e XXIII).

 

Escravidão e trabalho são práticas em relação de antagonismo nessa linearização, sobretudo como decorrência de determinações legais que impedem a existência da primeira. O sistema de trabalho escravo, contudo, irrompe como prática que é alvo de denúncia recorrente na contemporaneidade brasileira. Impossível como prática juridicamente legal, desde 13 de Maio de 1889, na tardia Lei da Abolição da escravatura no Brasil, irrompe na ordem do real e reclama, assim, outra designação. Trabalho análogo à escravidão é, assim, expressão que passa a tipificar, juridicamente, práticas da seguinte ordem:

 

(...) submissão de alguém a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou seu preposto." (Artigo 149 do Código Civil Brasileiro).

 

Os relatos dessa forma de trabalho enquadram-se em campos de repetibilidade. Além dos traços descritos na lei, geralmente também condições degradantes de habitação, em quartos insalubres, sem janelas, alimentação insuficiente e/ou inadequada, quando não ainda eventos de violência física. O pagamento pelo trabalho, traço constitutivo das Formações Sociais capitalistas, inexiste no trabalho escravo e, nos trabalhos em condições análogas à escravidão, é geralmente transformado em dívida involuntariamente contraída com o empregador.

A seguir refletiremos, a partir de uma das manchetes5 (com sua respectiva gravata) que noticiou o fato, acerca de como a materialidade linguística se estabelece como espaço que dá forma à contradição que é própria do funcionamento ideológico:

 

Trabalhadores resgatados em situação de escravidão no RS

As 207 pessoas foram contratadas por uma empresa que oferecia a mão de obra para vinícolas da região, durante a colheita da uva. Eles eram mantidos "em situação degradante", sob ameaça e agredidos com choques elétricos e spray de pimenta, além de sofrerem espancamentos.

(G1, 27/02/2023).

https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2023/02/27/trabalhadores-resgatados-em-situacao-de-escravidao-no-rs-o-que-se-sabe-e-o-que-falta-saber.ghtml

 

Na perspectiva em que nos inscrevemos, a da Análise de Discurso Materialista, as palavras são encarnadas de historicidade, o que reclama um olhar sobre a língua que transcenda os limites das relações estruturais. No caso do significante trabalhadores, sabemos que se trata, no contexto de emprego, de substantivo cuja estrutura mórfica corresponde a “aqueles que trabalham”. Transcender esse limite implica situarmos a palavra nas redes de memória que a conformaram, o que nos leva até a emergência do Movimento Operário no Brasil6 e inscreve os sentidos de trabalhador no espaço de interrogação acerca dos modos de produção e do valor da força de trabalho. Face a esse recorte no domínio de memória, o sintagma trabalhadores em situação de escravidão dá corpo à contradição na história. O princípio da equivocidade na língua conduz a nos questionarmos sobre como sujeitos inscritos na configuração histórica do operariado e suas lutas podem encontrar-se inseridos em uma forma de trabalho que desconhece leis e que viola princípios e direitos fundamentais. Não se trata simplesmente de “homens que trabalham”, mas de sujeitos alocados em uma outra temporalidade, como forma de tornar possível o lucro aviltante. Diante disso, o impossível de ser dito (trabalho escravo hoje) é, contudo, dito de algum modo, e encontra condições de possibilidade de existência na formulação jurídica: trabalho análogo à escravidão.

 

E sobre o trabalhador?Detrabalho escravoetrabalho análogo à escravidãoatrabalhadores livres e escravos: um breve olhar em dicionários contemporâneos

São muitos os caminhos a percorrer a partir do significante trabalho na relação com a escravização na nossa sociedade. Para ser breve, há aqueles que adjetivam o substantivo trabalho, e, neste caso, destacamos trabalho escravo e trabalho análogo à escravidão, assim como há outros que incidem sobre o substantivo trabalhador, caso da manchete indicada: trabalhadores em situação de escravidão. Nesta seção do nosso artigo, lançamos nosso olhar sobre o que comparece (ou não) como verbete em três distintos instrumentos linguísticos contemporâneos, a saber: Dicionário Houaiss (UOL), Dicionário de Favelas Marielle Franco e Dicionário da Escravidão e Liberdade. O primeiro dá prosseguimento na rede digital a um dicionário de referência – o grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa –; o segundo consiste em uma wikipedia com aval da FIOCRUZ7; por fim, o terceiro se configura como dicionário de conceitos organizado por Lilia Schwarcz e Flávio Gomes.

Comecemos por trabalho escravo, um significante medular da prática colonialista. No Dicionário Houaiss, tal sintagma não se constitui verbete. De imediato algumas perguntas se apresentam: como compreender a ausência do verbete trabalho escravo em um dicionário de referência como Houaiss? Como compreender não se ter sequer tal cadeia significante no verbete trabalho no Houaiss dado que tal verbete é composto por vinte e duas acepções por vezes acompanhadas de exemplos, indicações de uso ou ainda de fontes. Nada. Silêncio repleto de vozes interditadas?

Diferentemente do Houaiss, no Dicionário de Favelas Marielle Franco, encontra-se o verbete trabalho escravo, que desliza na definição para trabalho análogo à escravidão enunciando a tensão que se inscreve em tal nomeação por conta de uma memória de práticas da escravização e uma atualidade de práticas – interditadas pela lei – que se repetem. Vejamos a página do verbete trabalho escravo no Dicionário Marielle Franco.

O que julgamos pertinente destacar no Dicionário de Favelas é o deslocamento do título trabalho escravo para trabalho análogo à escravidão na definição que funciona como registro de práticas contemporâneas de exploração e alienação humana pelo trabalho. Indo adiante, neste jogo das nomeações, algo se repete e algo parece se deslocar com a inscrição do adjetivo análoga. Sobre ele incide nosso olhar agora. Para melhor leitura, destacamos a definição abaixo:

 

Trabalho análogo à escravidão (Código Penal), forçado ou obrigatório (Convenção nº 29 da Conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho) é um fenômeno de caráter global que viola gravemente os direitos humanos ao cercear a liberdade e agredir a dignidade do indivíduo. Diferentemente dos mecanismos de escravidão dos períodos imperial e colonial, este tipo de conduta se constitui em um crime e está atrelado subalternamente às dinâmicas trabalhistas contemporâneas. (Dicionário de Favelas Marielle Franco, negritos nossos.),

 

Como se pode observar, a definição anuncia que trabalho análogo à escravidão constitui crime diferentemente do que ocorria nos períodos imperial e colonial e dá a saber da interdição do Estado republicano. O que muda é a lei proscrevendo o que um Estado imperial e colonial prescrevia como conduta. Uma nova nomeação entra, então, em cena – trabalho análogo à escravidão – para dar conta da proibição que antes não havia. Se seguimos para a parte indicada como Sobre, novamente a nomeação trabalho escravo retorna indicando que é crime reconhecido pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e que leis trabalhistas no Brasil assinalam para o crime de redução à condição análoga à de escravo:

 

Trabalho escravo é um crime amplamente reconhecido ao redor do globo através dos países membros da Organização Internacional do Trabalho (OIT) em sua 30ª Convenção Geral, ocorrida em 1930 na cidade de Genebra (Suíça), entre outros, e é repreendido por leis trabalhistas em diversos países. No Brasil, o crime de redução à condição análoga à de escravo consta no artigo 149 do Código Penal desde o decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (...) (Dicionário de Favelas Marielle Franco, itálico e negritos nossos.)

 

Em seguida, temos um longo texto Trabalho escravo, racismo e suas relações que põe em cena uma discussão sobre formas contemporâneas de escravidão. Nele, em seu parágrafo inicial, se encontra “trabalho estravo não é mais assegurado institucionalmente”.

 

No Brasil, as formas contemporâneas de escravidão podem ser entendidas a partir da dinâmica desencadeada desde, principalmente, meados do século XX. De fato, a escravidão contemporânea se diferencia da escravidão moderna em si: distintamente ao período colonial e imperialista, o trabalho escravo não é mais assegurado institucionalmente. (Dicionário de Favelas Marielle Franco negritos nossos)

 

Com efeito, no Dicionário de Favelas Marielle Franco práticas escravagistas são denunciadas, constituem crime. E cabe destacar: não são mais asseguradas institucionalmente. Observemos um pouco mais a nomeação trabalho análogo à escravidão, mais especificamente o adjetivo análogo. Com ele se instala o equívoco. Explicamos: tal nomeação se dá pela força da lei que distingue Estado imperial ou colonial de Estado Republicano a partir de práticas escravagistas – de autorizadas a não mais autorizadas. No entanto, análogo permite uma outra leitura, isto é, análogo incide sobre a existência ou não de mesmas práticas. Trabalho análogo à escravidão faz parecer que práticas contemporâneas não são as mesmas que as de outrora, ou ainda, que o horror da escravização do outro foi extinto. O que a manchete nos mostrou8 foi a permanência da desumanização do outro. É o insuportável, a ignomínia que análogo faz parecer não ocorrer.

Antes de adentramos nosso próximo instrumento linguístico, retomamos Gadet e Pêcheux (1981, p.65) que nos lembram do imenso trabalho da língua “quando as massas começam a falar”. O Brasil atualmente encontra-se mergulhado em uma intensa agitação na língua. Estamos em um momento de disputa por e com palavras e sentidos. Vozes se levantam ante silenciamentos históricos relativos à submissão e opressão do outro. Novas palavras também são produzidas iluminando não-ditos e interditos em nossa sociedade. Há, pois, uma intensa produção de instrumentos linguísticos que visam alterar a “ecologia da comunicação” (Auroux, 1992:70). É nesse caminhar que têm sido produzidos instrumentos linguísticos distintos inscritos em movimento de ruptura com ideologias dominantes e neles temos observados a ocorrência de formas complexas. Formas que adjetivam um verbete como trabalho ou trabalhador. É o caso do Dicionário de Favelas Marielle Franco e também do Dicionário da Escravidão e Liberdade. São instrumentos que se inscrevem na referida “agitação na língua” resultado dos lugares de dizer de massas até então silenciadas, quando não apagadas.

No prefácio à obra Dicionário da Escravidão e Liberdade, Alberto da Costa e Silva reporta, entre outras questões, a tudo que o Brasil já conseguiu registrar sobre a infame história da escravidão, no entanto, sinaliza que “Cada vez que se puxa uma gaveta de um móvel da sacristia, por exemplo, para examinar casamentos de escravos numa paróquia, é como se encontrássemos outras gavetas dentro dela, cada qual a se abrir para novas surpresa.” (Schwarcz e Gomes, 2018, p. 14). Assim, o verbete Trabalhadores livres e escravos, assinado por Marcelo Mac Cord e Robério S. Souza, responde, em certa medida, à proposição constante no prefácio, sobre “a liberdade como antônimo de escravidão, mas que com ela coexiste para se opor.” (Schwarcz e Gomes, p.16) É nessa perspectiva que dicionários brasileiros como lugar de dizer de segmentos historicamente subalternizados têm se constituído na contramão de portadores de verdades absolutas, tal como se apresentam dicionários canônicos.

Para refletirmos acerca do verbete recortado, principiamos por pautar o significante que produz alguma forma de convergência entre os diferentes sujeitos nele pautados: o trabalho, prática esta que, no emergente capitalismo brasileiro, nos finais do século XIX e início do XX, marcou-se pela heterogeneidade e pelo hibridismo. A fim de contemplar algumas das facetas de tanta diversidade, mobilizaremos, neste trabalho, algumas das gavetas sinalizadas no verbete de Mac e Souza.

A primeira delas consiste na construção imaginária da inaptidão dos escravizados para o trabalho nas lavouras de café:

 

Nesse período da chamada “modernização nacional”, a pretensa falta de braços “laboriosos”, capazes de responder às exigências da “nova economia”, teria exigido que governantes e fazendeiros promovessem uma intensa imigração de europeus.” (p. 411)

 

A suposta divisão e diferença entre o trabalho livre e o trabalho do escravizado negro conformou, segundo os autores, a história da formação da classe operária brasileira, obliterando, além das habilidades efetivas dos sujeitos, outros aspectos, os quais constituem, em uma possível gaveta outra dessa história, a não uniformidade no contingente de sujeitos que trabalhavam nessa estrutura:

 

A maior parte dos negros já eram pessoas livres e libertas naquela data (...). Ainda diferentemente do que o imaginário coletivo nos deixa supor, trabalhadores escravizados, livres e libertos, de todos os gêneros, também puderam ser encontrados labutando juntos – como, por exemplo, em lavouras, manufaturas, canteiros de obas, portos e navios. (p. 413-414)

 

Há que se destacar que trabalharem juntos não significava mesmas condições de trabalho nem o mesmo tipo de trabalho:

 

Muitas vezes trabalhadores escravizados, fugitivos, se passavam por pessoas livres e eram contratados para executar certos tipos incomuns aos cativos. Ao serem descobertos, causavam revolta entre os desempregados. (p. 412)

 

Para finalizar, propomos um breve comentário sobre as entradas trabalhadores livres e escravos. Aí o verbete nomeia sujeitos e o faz através da junção de uma conjunção aditiva que possibilita a elipse. Gadet e Leon (1997:206/207) assinalam que a diferença de forma em dois enunciados estabelece diferenças semânticas. De fato, dizer (a) trabalhadores livres e escravos não é o mesmo que dizer (b) trabalhadores livres e trabalhadores escravos. Ainda acerca da elipse, Haroche (2026) nos lembra que ela “coloca, de modo crucial, o problema de uma teoria da articulação da gramática com seu exterior.” (Haroche, 2016:239) e continua “a elipse é o lugar onde se encontram, inevitavelmente, o linguístico e o extralinguístico, formalismo e ideologia, língua e história” (idem). Breve, a elipse instaura uma não equivalência entre (a) e (b), abre para a possiblidade de leituras outras, instala um não-dito, flagra a densidade do termo trabalho e convoca a história. No longo verbete trabalhadores livres e escravos encontramos várias denominações, tais como: trabalhadores escravizados, trabalhadores cativos, trabalho cativo, trabalho análogo à escravidão e, ao final do texto, trabalho escravo. Julgamos que a elipse ilumina um ponto nevrálgico em nossa formação social marcada pelo trabalho escravo, qual seja, aquele que permite a leitura do trabalho do escravizado como não trabalho; aquele que permite a manutenção da desumanização do outro pelo trabalho. Noutras palavras, no que tange à estruturação sintática, a ruptura do formato usual dos verbetes e dos enunciados definidores, com nome + adjetivo ou oração relativa, permite-nos trazer à baila a problemática levantada por (Mazière 1989:51), da “aparente transparência sintático-semântica do N-entrada, pela relação de equivalência.” Em Trabalhadores escravizados, livres e libertos temos a linearização de historicidades que confrontam a assepsia e aparente neutralidade presentes, por exemplo, em: “trabalhador 1. que ou aquele que trabalha.” (HOUAISS, 2001: 2743).

Com efeito, os verbetes que aqui elegemos, trabalhadores livres e escravos e trabalho escravo colocam em suspenso o suposto fechamento dos sentidos de verbetes encabeçados por trabalho e por trabalhadores, convocando o leitor à interpretação, e o historiador das ideias ao encontro com a poeira dos arquivos.

 

De volta a trabalho e festa

Sobre vir e vencer...

Começamos nosso trabalho com fragmento de um livro e terminaremos com outro. Em ambos trabalho e festa são significantes presentes. Do primeiro livro, Uma exposição, o que queremos destacar em linhas gerais é que trabalho no lugar social na cena que abre a narrativa em Magri assegura um outro enunciado daí decorrente: “Eu trabalhei, eu venci” (MEDEIROS, 2021)9. Se este é um enunciado possível na formação ideológica indicada, ele o é em alguns lugares sociais desta formação. Noutras palavras, é impossível em outro lugar social inscrito nesta mesma formação ideológica, qual seja, aquele dos escravizados. Aí impede-se o significante vencer como decorrente da força de trabalho de seus corpos.

Trata-se, parafraseando Courtine (2009, 72) de “realidades complexas que colocam em jogo práticas associadas a relações de lugares (determinados pelas relações de classe)” com consequências sobre os sentidos dos significantes. “Trata-se – continuando com Courtine – igualmente de realidades contraditórias, na medida em que, em uma dada conjuntura, as relações antagônicas de classes determinam o afrontamento”. A contradição opera na divisão de classes, instaurando sentidos distintos para trabalho: para uns, prática histórico-social que demanda alguma forma de qualificação e com implicações jurídicas, portanto, significante com valor semântico positivado, a despeito da exploração da força de trabalho; já para outros, o trabalho é a instância que coisifica o sujeito, tomado como desprezível, como passível de subserviência e exploração em grau máximo, quando não de desumanização. As condições materiais das quais os trabalhadores nordestinos foram resgatados, na Serra Gaúcha, sustentam o significante trabalho neste segundo segmento a partir de uma relação de dissonância, haja vista não estarem ancoradas nas ordenanças jurídicas que regulamentam a instância do trabalho.

Sobre compartilhar...

Em um outro livro, A terra dá, a terra quer, um livro-manifesto de Nêgo Bispo, ambientado na cultura quilombola, também somos postos diante de uma territorialidade marcada pela colonização e imersa em uma formação social capitalista que atualiza e mantém uma prática escravocrata; no entanto, aí, nos significantes trabalho e festa, irrompem outras possibilidades de sentido. Trabalho, como no primeiro fragmento que trouxemos, opera na sustentação, reprodução e manutenção de um segmento social. Como no primeiro, brincadeira e festa também comparecem. Mas algo se desloca. Leiamos o fragmento:

“Fui criado brincando de fazer o que os mais velhos faziam. Eles passavam o dia no engenho produzindo rapadura, melaço, batida e beneficiando a cana-de-açúcar com tração animal. Nós, crianças, fazíamos a mesma coisa, de brincadeira. Brincávamos de farinhada e moagem, de fabricar engenho e produzir, só que nossos bois não eram bois vivos, eram bois artesanais. Eram frutos que podíamos aproveitar, madeira do mandacaru que esculpíamos. Brincávamos de ser adultos, de fazer o que os adultos faziam. E assim aprendíamos a fazer tudo. Mas também brincávamos nos festejos feitos a partir da arte local, da arte do nosso povo.

(...) As festas não eram mercadoria. Minha avó dizia que tinha a festa e tinha o furdunço. A festa era comemoração, um festejo, uma manifestação de alegria. E o furdunço era aquele movimento feito de forma oportunista para ganhar dinheiro., sem relação coma ida, sem autenticidade. Quando não se estava festejando nada, ela chamava de furdunço.

O dinheiro não circulava no nosso ambiente. A comunidade era formada por grandes famílias e todas plantavam cana. Eram necessárias várias pessoas numa moagem. Quando a família não resolvia, o que se fazia? Se eu plantava cana e dez outros amigos plantavam cana, nos juntávamos. Numa semana tirávamos de um, na outra, do outro, e assim consecutivamente. Ninguém armazenava aquele produto, porque quando você estava moendo, eu pegava no seu engenho aquilo de que precisava. Quando eu estava moendo, você pegava no meu. (...) Só nas últimas moagens é que cada um guardava para o período de inverno, quando se parava de moer. Era um grande compartilhamento, não se falava em dinheiro. Era uma fartura. (p. 39-40)

 

O que se desloca é o produto do trabalho: não como mercadoria; não revertido em moeda, mas como forma de vida, de sobrevivência e de festa. O que se desloca é a fartura aí atrelada a compartilhamento em tempos de falta, e não ao excesso necessário na lógica da mais valia. Deslocam-se as relações de trabalho engendradas não pelo lucro, mas pela partilha em função do que é imprescindível.

Nas práticas quilombola retratadas por Nêgo Bispo, o traço do coletivo, da solidariedade e do ser-humano sobrepõe-se à voracidade animalesca das relações capitalistas levadas a seus extremos, e aponta para possibilidades de ressignificar o indizível, de preencher o vazio na cadeia parafrástica em que trabalho mascara escravização.

Referências:

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COURTINE, Jean-Jacques. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. São Carlos: Edufscar, 2009.

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DICIONÁRIO DE FAVELAS MARIELLE FRANCO. Disponível em: https://wikifavelas.com.br/index.php/Dicion%C3%A1rio_de_Favelas_Marielle_Franco

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PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Editora da Unicamp, 1995.

RASIA, Gesualda dos Santos; FERRAÇA, Mirielly. “Pela trama sintática, o simulacro: ‘Ela é como se fosse da família’”. In: Linguagem e (Dis)curso, Tubarão, Santa Catarina, v.25, 2025.

SCHWARCZ, Lilia M.; GOMES, Flávio. Dicionário da escravidão e liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

 

Notícia:

reporterbrasil.org.br/2023/04/vinicola-flagrada-com-trabalho-escravo-no-rs-ostentava-o-selo-great-place-to-work/

 

 

 


1  Professora da graduação e da pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Paraná. Bolsista CNPQ. E-mail:

2  reporterbrasil.org.br/2023/04/vinicola-flagrada-com-trabalho-escravo-no-rs-ostentava-o-selo-great-place-to-work/

3  Este significante vem sendo objeto de reflexão de Rasia e Ferraça (2025) e de Medeiros, Perini e Esteves (2021).

4  Estamos considerando a manchete como recorte conforme Orlandi, isto é, como “fragmento de situação discursiva” em compromisso com as condições de produção (Orlandi, 1984, p. 14)

5  Coggiola (2015) historia o surgimento do Movimento Operário brasileiro em 1858, com a greve dos tipógrafos do Rio de Janeiro, por melhores salários, junto a experiências comunitárias socialistas impulsionadas por imigrantes.

6  Na primeira página do Dicionário Marielle Franco encontra-se: “Todas as pessoas que desejarem colaborar com o projeto poderão atuar na produção de conteúdo, sendo que cada participante deverá se identificar com uma conta de usuário no Wikifavelas. Além disso, as atividades do Dicionário são regidas por um conjunto de regras editoriais.”

7  E o artigo de Rasia e Mirielly (2025:5) aprofundou: “No mesmo Brasil em que vige o Estado democrático de direito, não há espaço jurídico para o significante “trabalho escravo”, mas, contraditoriamente, diante da necessidade de continuar nomeando uma prática ainda presente no funcionamento social, diz-se condição “análoga a”, reconhecendo, assim, na própria formulação a prática escravagista.”

8  Em trabalho anterior, refletindo sobre a discursividade circulante da meritocracia, chegamos a três posições advindas de lugares sociais na sociedade escravocrata: a herdeira da Casa Grande, cujo enunciado seria “Eu herdei, é meu”. Aí desfruta-se do trabalho do outro e trabalho não é um significante considerado ou mesmo valorizado. A dos colonos, que chegaram ao Brasil, laboraram a terra e usufruíram do seu trabalho diferentemente do lugar social dos escravizados, que trabalharam, e muito, mas nada puderam ter como retorno da força de trabalho. Pensamos que o enunciado “Eu trabalhei, eu venci” decorre do segundo lugar social indicado. No lugar social dos escravizados não se coloca tal enunciado, já que sempre lhes foi negado um usufruto do trabalho.  (Medeiros, 2022)

9  Professora da graduação e da pós-graduação do Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense. Bolsista CNPQ e CNE FAPERJ. E-mail: vanisegm@yahoo.com.br.






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