Espaços de solidão, estados de liminaridade: cidade e as ressonâncias da modernidade em A Cidade Onde Envelheço e O Homem das Multidões


resumo resumo

Wendell Marcel Alves da Costa



Considerações iniciais

Este trabalho tem três vertentes de análise: identificar o cinema como objeto da modernidade; analisar a representação das ressonâncias da modernidade presente na construção das narrativas fílmicas; e conceber um recorte para a interpretação dos olhares construídos sobre o espaço urbano enquanto cenário de jogos subjetivos de indivíduos em seus papeis sociais. Para isso, utilizamos uma metodologia engajada na desconstrução do discurso fílmico, da análise fílmica (dos seus códigos, símbolos e convenções postas na imagem), comparação entre realidades e narrativas fílmicas e histórias de personagens distintas (os), e discussão dos conceitos conduzidos no aporte teórico escolhido para reflexão. Acreditamos ser de grande empreendimento pensar os filmes A Cidade Onde Envelheço (Marília Rocha, 2016) e O Homem das Multidões (Marcelo Gomes e Cao Guimarães, 2013), ambos produzidos e filmados na cidade de Belo Horizonte – MG[1], como olhares audiovisuais capitaneados às sensações particulares de indivíduos quase sempre perdidos, deslocados, esquecidos na metrópole moderna brasileira. Nestes filmes questões sobre solidão, ausências, afetividades, memórias e identidades são remodeladas nas narrativas, dando abertura a uma série de injunções acerca das fronteiras entre subjetividade e objetividade nos espaços e lugares da cidade que repercutem nos estados emocionais dos personagens. O debate levantado é problematizado à luz dos estudos sobre a modernidade: suas inflexões, metanarrativas, ressonâncias e discursos. Logo, o potencial do cinema em representar determinadas realidades sociais também contribui para dimensionar as questões postas neste trabalho sobre o viver no urbano, as cotidianidades, quando propicia reconhecer os mundos sociais através do dispositivo imagético que congrega elementos filosóficos das ressonâncias da modernidade no cinema brasileiro contemporâneo.


A modernidade do/no cinema

A máquina de cliques... como um furacão humano”.

Liev Tolstói sobre um cinema do século XIX.


A prerrogativa deste ensaio é considerar o cinema como elemento da modernidade. Como linguagem, formada de códigos e convenções da realidade social, o cinema institui uma verdade sobre as verdades reiteradas na sociedade, isto porque o cinema utiliza dos elementos da vida em sociedade para criar a sua própria. Isso já se sabe e fora discutido pelos notáveis vieses e autores da teoria da imagem do cinema (Deleuze, Bergson, Bazin). Contudo, pensar a imagem do cinema como representação simbólica da realidade da sociedade é circunscrever uma recriação desta mesma realidade por uma realidade virtual[2]; leva-se em consideração, neste sentido, a mecânica motora do funcionamento da projeção da imagem do cinema. Ao passo que se filma uma dada realidade remodela-se ela própria pelo dispositivo transfigurativo da linguagem cinematográfica, e enquanto edição e projeção desta imagem filmada têm-se outras reconfigurações da realidade esculpida pela câmera cinematográfica.

Reagimos diante da imagem fílmica como diante da representação muito realista de um espaço imaginário que aparentemente estamos vendo. Mais precisamente, como a imagem é limitada em sua extensão pelo quadro, parece que estamos captando apenas uma porção desse espaço. É essa porção de espaço imaginário que está contida dentro do quadro que chamaremos de campo (AUMONT, 2002, p. 21).

A modernidade do cinema está envolvida na ação de esculpir um tempo e um espaço que seria momentâneo para o olhar exaurido dos indivíduos; e a modernidade no cinema está presente na reconfiguração dos elementos dados como naturais da realidade da sociedade, reordenados e retrabalhados pela técnica do cinema. Dessa forma, o cinema pode ser analisado por duas tendências numa epistemologia da modernidade: faz-se enquanto parte da modernidade, e exprime a modernidade enquanto objeto dos estudos das imagens sociais; logo: é intrínseca à modernidade e tem como objeto a modernidade.

O cinema enquanto unidade da modernidade está integrado num contexto histórico e cultural da persuasão das visualidades no cenário urbano-industrial. Há relações próximas com os adventos da fotografia na primeira metade do século XIX, os dispositivos de encantamento óptico (taumatrópio, fenaquistiscópio, zootrópio), e as tecnologias da mobilidade, como os bondes e trens (século XVIII), que participam da mudança estrutural do olhar urbano. Diferentemente da experiência estimulada pelos automóveis já no ápice de meados do século XX, a partir de uma tração tecnológica ao invés da comumente tração animal, os bondes e trens no século precursor tem um impacto na posição dos citadinos como observadores da cidade urbano-industrial.

O lugar do olhar possui, com o advento dos bondes e trens, uma narrativa espacial das nuances cartográficas urbanas setoriais (cantos, ângulos, lugares, vielas, ruas, avenidas, espaços fronteiriços e territórios delimitados geograficamente) dos indivíduos que vivenciam a cidade por meio das diferentes perspectivas, estas que são distintivas das posições onde estão alocados. Em outras palavras, a observação da cidade pelos moradores tem prospecção absolutamente modificada na posição dos seus corpos que se movimentam no espaço urbano, ou seja, nos bondes e trens urbanos. Aqui se funda o olhar urbano por meio do movimento e da movimentação fabricada por objetos, como os bondes e trens, e por conseqüência, as estações de trens, que provocam uma alteração na paisagem urbana da cidade, constituindo-se em lugares de passagem (não-lugares).

A modernidade possui tantos sentidos quantos forem os pensadores ou jornalistas. Ainda assim, todas as definições apontam, de uma forma ou de outra, para a passagem do tempo. Através do adjetivo moderno, assinalamos um novo regime, uma aceleração, uma ruptura, uma revolução do tempo. [...] “Moderno”, portanto, é duas vezes assimétrico: assinala uma ruptura na passagem regular do tempo; assinala um combate no qual há vencedores e vencidos (LATOUR, 1994, p. 15).

Deste ponto central de análise sobre os elementos da modernidade, abordamos a intervenção potencializadora dos bondes e trens, sobretudo dos trens, para a formalização de lugares considerados como lugares de passagem, de movimentação. As estações de trens são consideradas nos contextos da modernidade (industrial, capitalista, paradoxal) lugares de absoluto pragmatismo social, de intenso fluxo de citadinos, com suas histórias de vida e seus problemas particulares. Numa sociedade francesa burguesa do final do século XIX, a atração dos trens corresponde inconscientemente a modalidade existencial da modernidade. Presente na vida das pessoas, a figura dos trens urbanos ordena os passos das pessoas, modifica a coerção e generalidade do tempo em suas vidas, transforma a lógica da dimensão espacial em relação à do tempo: mover-se na cidade, ou de uma cidade para outra, não requer agora tanto custo de tempo. Sem levar em discussão, no entanto, a force espaço-temporal da ligação telefônica. Em suma, “a modernidade redefine assim o quadro dos novos regimes de visibilidade, ou seja, o que deve ser mostrado, como deve ser mostrado, como olhar e, sobretudo, de onde olhar – o que ver” (GOMES, 2013, p. 108).

A modalidade existencial da modernidade significa atualizar símbolos e narrativas do ser anterior ao estado em que se encontra. Com a forma do estado queremos afirmar sobre a modalidade de existência, anterior ao ser, como prerrogativa da existência. Contudo, sabemos que é preciso existir para ser enquanto pessoa, na medida em que elementos do tempo e do espaço sociais constituem e dão vitalidade à sua existência (SARTRE, 1987). Em outras palavras, a modalidade existencial da modernidade é ativada por elementos constituintes e construtores da modernidade, os modos de viver, sofrer, amar, emocionar e se encantar – como a sétima arte vem representando há décadas. Estes modos traduzem um sentido de estado, de ser, que repercutem numa existência motora das vivências, de estar e ser cultura-indivíduo de um tempo e de um espaço delimitado na história do ser social. Se tudo que é sólido se desmancha no ar, a modernidade em sua aventura diaspórica no tempo trava consenso com o que vem a ser, aquilo que provoca mudança nas estruturas dos estados (BERMAN, 1986). O que vem a ser nada tem a ver com o futuro, mas sim com a necessidade coercitiva da mudança, da transformação, do desejo e das vontades do ser enquanto existência, para manter a racionalidade. A razão é, em último fim e estado, a modalidade existencial da modernidade, que faz prover transformações técnicas, sociais, políticas, simbólicas. Atualmente, já sabemos sobre os limites da racionalidade, quando uma filosofia contemporânea a nós e aos outros, apresentou o que se entende por utopia dos estados de transformação, sustentados pela corrente histórica da pós-modernidade. Para os meios aqui propostos de análise categórica da modernidade e de seus elementos refletidos nas análises fílmicas, a pós-modernidade, e, em destaque a hipermodernidade (LIPOVETSKY, 2005; 2011), não elabora um discurso sobre as ressonâncias dos estados de liminaridade. Estes são, como defendido, significantes das reminiscências da modernidade.

Enquanto unidade da modalidade existencial da modernidade, o estado das corporalidades urbanas, nos usos práticos dos trens urbanos, considera a translação de agentes sociais produtores de sentidos das tecnologias sociais como permanência da modernidade nos fins do século XIX, quando o cinema se apresenta como ferramenta propulsora da disseminação destas tecnologias sociais. Difundindo as imagens através da sua repetição técnica colocam-se as figuras prementes da modernidade, como os bondes e trens urbanos, numa posição de replicação, gerando mecanismos de palimpsesto tanto nas narrativas cinematográficas, quanto literárias, musicais, poéticas, teatrais, arquiteturais. A figura dos bondes e trens urbanos, e, novamente, dos trens como ressonância das Vontades Humanas por aceleração dos passeios e por comunicações sociais, supri uma necessidade de entrar no âmbito da modernidade e de suas tecnologias sociais e culturais. Até aqui nos aproximamos de uma concepção que possibilita analisar a cidade no contexto da modernidade a partir das estratégias adotadas pela linguagem cinematográfica em representar suas verdades. Por uma filosofia da cidade, acentuamos também a perspectiva que visa à negação de uma redução totalizadora das questões pertinentes do fenômeno urbano (LEFEBVRE, 2001).



Figura 1: cena do filme L'arrivée d'un train à La Ciotat

Fonte: Google Imagens/Divulgação.



Figura 2: cenas do filme L'arrivée d'un train à La Ciotat

Fonte: Google Imagens/Divulgação.


A modernidade no cinema inscreve-se na representação fílmica dos elementos que, como destacamos antes, fazem parte da configuração espaço-temporal da modernidade. Exemplos num primeiro cinema estão subjugados na memória dos espectadores: Arrivée du train en gare de La Ciotat (Auguste e Louis Lumière, 1895)[3], The Kiss (George Albert Smith, 1899), The great train robbery (Edwin Porter, 1903) e The General (Buster Keaton, 1926). Como acervo da memória do mundo, o cinema preserva no registro das suas imagens as sensações e emoções com as experiências dos primeiros filmes. A experiência de visualizar um trem “vindo em direção a nós” provoca emoção que antes não fora vivenciada na experiência das visualidades dos indivíduos do final do século XIX. Assim, até mesmo o primeiro cinema (1894-1907) investia sem saber na espetacularidade das sensações ópticas, fruto da acelerada mudança de frames por segundo, e visualmente estruturada pela persistência da visão. Mais do que técnica e experiência sensorial, o cinema configura-se como uma arte que serve à humanidade, porque ao mesmo tempo em que constrói mundos sociais fantásticos também realiza a tarefa épica de preservar a memória do mundo encenado.

Narrar a cidade é conceber uma imagem desta nas estruturas do contexto espacial do filme. A passagem estético-espacial da cidade para a cidade fílmica requer a estruturação dos códigos e símbolos de poder que preexistem na realidade social, e as narrativas de cinema são os movimentos técnicos que dão potência a essas estruturas dispostas na imagem cinematográfica. De outro modo, a comunicação entre os elementos fílmicos não surtiria efeito no espectador, decorrendo num ruído que delimitaria a relação paradoxal entre o filme e aquele que o assiste, o sujeito que é passivo na recepção dos códigos, mas que se torna ativo na ressignificação desses pelo inconsciente (COSTA, 2017b, p. 251).

Podemos arguir então a função, ou uma das funções sociais do cinema, na manutenção do imaginário social dos espectadores de cinema: a invenção da vida cotidiana moderna. Como constructo ideológico e econômico, a sétima arte imperializa narrativas sobre os diferentes enredos da sociedade, sobre política, cultura, história, economia. Como painel de representação de modelos de vivências, a modernidade presente nas histórias cinematográficas substitui os seus próprios elementos constituintes, com pinceladas de fantástico e com um projeto social quase sempre bem definido. Os exemplos das vanguardas de cinema Surrealismo e Expressionismo, por sua vez, possuíram projetos políticos diferenciados dos movimentos e escolas do Impressionismo, Dadaísmo ou Cinema Novo, porque tiveram olhares e sentidos estéticos específicos, e de motivações político-ideológicas dentro dos seus contextos de produção cinematográficos.

Propomos, assim, analisar o cinema como reconhecimento dos mundos sociais que coexistem na representação fílmica das relações afetivas na cidade moderna. Estas relações afetivas estão construídas nos cenários das paisagens urbanas das cidades contemporâneas, no caso aqui identificado e trabalhado, na cidade de Belo Horizonte – MG (Brasil). Partindo do pressuposto de que os filmes elencados para análise servem como objetos de estudo para compreensão dos desafios trazidos pela modernidade no âmbito do espaço urbano, pensando as sensibilidades, os espaços e os estados emocionais dos personagens, a discussão ora desenvolvida revoga a hipótese anteriormente introduzida acerca das possibilidades formativas da linguagem cinematográfica enquanto tal, que traz reminiscências dos códigos e das convenções oriundas da realidade social. Os filmes abordados para análise são produtos da modernidade, e também apresentam ressonâncias efetivas da modernidade, dispostos nas narrativas sociais de intenção antropológica. Neles podemos resgatar nos horizontes de suas semânticas imagéticas os símbolos concatenados para a construção da correlação com as vivências urbanas cotidianas, quando tentam realizar um recorte, num fio sutil da realidade, os espaços de solidão e os estados de liminaridade.


Espaços de solidão e estados de liminaridade em dois filmes brasileiros


“Que importa a vida real? Nós vivemos uma vida ociosa, tão parada, tão desprezível, estamos tão descontentes da nossa sorte, tão enfastiados da nossa existência!”.

Fiódor Dostoiévski.


A expectativa é pensar os espaços como lugares de reservas emocionais que dão sustentação às sensibilidades dos sujeitos que vivenciam os espaços de lazer, trabalho e moradia. Quais são os sentidos difundidos nas arquiteturas emocionais criadas no bojo das estruturas espaciais de ordem simbólicas, regidas por sistemas de profundo vínculo pessoal dos indivíduos com os espaços? Suas características alugam permanentemente as práticas sociais recriadas cotidianamente; lazer, trabalho e moradia estão entre as atividades eficazes de significação dos espaços habitados por nuances identitárias de grupos e pessoas. Logo, os espaços de solidão representam sensações abstratas dos sujeitos que ali encenam situações inéditas na ordem do urbano, são atores que ativam dispositivos de atualização das formas urbanas de construção dos espaços da cidade e das geografias-afetivas; dos lugares traduzidos na lógica do fenômeno urbano coletivo[4]. Assim, os espaços de solidão, tratados como categoria de análise, referem-se aos campos onde os processos de individuação dos atores sociais no cenário urbano, figuras arquetípicas das ressonâncias da modernidade, formulam-se enquanto cenários para representação da espetacularidade de suas vidas. Os espaços de solidão permitem identificar como são elaboradas as narrativas das individuações na construção da paisagem social e simbólica fílmicas[5] e como as representações traduzem sentidos atualmente eficazes de reflexão sobre as poéticas da cotidianidade.

Por sua vez, os estados de liminaridade conjugam textualidades sobrepostas às estruturas formais do cenário urbano como elemento central dos processos culturais e ideológicos refletidos pela mudança das paisagens sociais e da reestruturação do espaço urbano. Consideramos os estados de liminaridade a partir das identidades culturais uniformes, distanciadas da inflexão permanente do status quo em que se interpenetram as singularidades dos sistemas sociais que estão à margem da transmutação dos ordenamentos e dos fluxos híbridos da sociedade. Nesta ótica, os estados de liminaridade como categoria de análise, está em constante esvaziamento dos seus contributos elementares, e faz parte da transformação dos processos sociais admitidos pelo escopo simbólico reordenado. A liminaridade tem figuração simbólica referente à fronteira, que intervêm na admissão de códigos imagéticos alegóricos das narrativas diaspóricas dos indivíduos, que estão em intenso envolvimento com suas sensibilidades, intra e extrasubjetiva, motivados por interações sociais entre os outros componentes da teia social urbana.

No entanto, os espaços de solidão são palcos para as representações dos estados de liminaridade dos personagens encenados na teia do espaço urbano fílmico citadino de Belo Horizonte. Estar na posição de liminaridade é cadência de uma forma identitária de mudança, como dito, estar-se em fronteira permanente. Espaços de solidão, por outro lado, também possuem suas significâncias, ativados por construções arquiteturais, arranjos de poder, discursos espaciais, conjugações políticas e estéticas que dão forma e conteúdo à cidade da modernidade, do mesmo modo que são refinamentos da modernidade. Discursos sobre os fluxos da construção espacial do espaço urbano têm levantado que as cidades estão cada vez mais arraigadas na preposição da espetacularização e da fruição estética em prol da mercantilização das sensações e da comercialização dos prazeres efêmeros fornecidos por grandes cidades mundiais (megalópoles)[6]. Nesse painel, situamos uma transição, ou transitoriedade[7], entre estados por vezes abstratos e concretos, referentes às práticas de formulação mental das vivências urbanas. Os longas-metragens discutidos neste trabalho apresentam propostas que versam acerca desta temática que, a contento, possuem ressonâncias da modernidade na fusão dos elementos simbólicos resgatados pelo discurso cinematográfico, mas dão universalidade sob as pastas já há muito defendidas pelos teóricos pós-modernos. Discutamos sobre isso.



Figura 3: cartazes do filme A Cidade Onde Envelheço


Fonte: Vitrine Filmes/Divulgação

Personalidades, subjetividades, fluxos híbridos, teias identitárias, poética, liquidez, imaginação simbólica, espaços de solidão. Esses sentidos saltam às imagens dos cartazes publicitários do filme A Cidade Onde Envelheço. Esta obra conta a história de Teresa, uma jovem portuguesa que decide deixar o país para morar no Brasil. Ela vai direto para a casa de Francisca, uma amiga também portuguesa que, há quase um ano, mora em Belo Horizonte. Por mais que tenha aceitado abrigá-la, Francisca está temerosa sobre como será o convívio entre elas, já que aprecia a solidão e a independência de que dispõe. Entretanto, logo o jeito descontraído e espevitado de Teresa a contagia, nascendo uma forte ligação entre elas.



Figura 4: cenas do filme A Cidade Onde Envelheço

Fonte: Vitrine Filmes/Divulgação



As duas personagens principais exalam desejos numa cidade que a primeira vista transparece sutileza e devaneio. Dicotomias do tipo casa (espaço íntimo) x Rua/cidade (espaço coletivo/público) lançam sentidos das localidades por onde as subjetividades ocupam outros espaços de lazer (bares, festas, academias, parques e a própria rua) com suas ausências, que nem sempre são preenchidas pela presença de algo ou por uma inconstante necessidade de desejo de outrem ou de algum lugar na memória afetiva. Como contornos exemplares de um estado de liminaridade, Teresa e Francisca jogam-se no lugar-cultura de Belo Horizonte, espaço de pertencimento e de contra-afetividade; de uma geografia-afetiva[8] geradora de envelhecimento e jovialidade dos citadinos. “Lisboa já me parece longe”, comenta uma delas, sente saudades do mar, do frescor da praia, do sal na pele; os humores dissidentes das duas jovens decaem, viraram mágoas, solidão, ausências de algo que, por um momento, esteve ali. A Cidade Onde Envelheço mostra uma cidade a partir de um olhar limpo, um cinema-direto, sem ressalvas, quase confidentes de segredos e desejos impossíveis; tudo parece distante e perto, na mesma sincronia.

Na cidade, os espaços urbanos remodelam as subjetividades que carecem de desprendimento das memórias afetivas, é um “querer esquecer, para lembrar”, uma dicotomia que não está apenas presente nos espaços emocionais, mas que permanecem nas geografias-afetivas dos indivíduos com os espaços. É “ver aquilo que quero esquecer, rememorar o que está no passado, desprender o que é passageiro”, na tentativa de reconstruir outras histórias de vida. As personagens de A Cidade Onde Envelheço vivem na transitoriedade de suas memórias nos espaços dicotômicos de casa e rua/cidade, em lugares-cultura que implodem suas subjetividades.


Figura 5: cartazes do filme O Homem das Multidões

Fonte: Espaço Filmes/Divulgação.


Indiferença, solidão, angústia, paisagens sonoras, estados de liminaridade. O enredo deste filme parte do paradoxo da modernidade do século XX, até hoje questão central nas investigações sociológicas e filosóficas, dentre outras ciências, sobre o espaço urbano e o contato com os seres que nela vivem: a relação indivíduo-sociedade. Como todo paradoxo, questiona-se o lugar das ideias enquanto painéis difusos de compreensão da realidade social; a leitura que se faz aqui é pragmática, assim como o sentido simbólico representado no cinema contemporâneo.

Um filme que fala sobre diferentes formas de solidão na sociedade brasileira através da vida de Juvenal e Margô, é o tema de O Homem das Multidões. Um é o maquinista no metrô mineiro, enquanto a outra é responsável pelo fluxo dos trens. Os personagens deste filme são responsáveis pelo controle mecânico de uma tecnologia espacial que faz movimentar a vida de inúmeras pessoas na cidade, apesar de estarem, ambas em seus lugares emocionais, aprisionados em incertezas e angústias pessoas. O particular não invade o coletivo, mas o inverso não é verdadeiro; há verbos de ligação sensíveis aos contatos cotidianos; há, também, entendimentos entre indivíduos inoculados pela apatia social comum, perscrutando na ótica macrossocial, em grandes sociedades urbanas. O campo do contato particular, como pode ser observada nesta obra de ficção, transparece pela inibição das sensibilidades de uns com os outros. Juvenal e Margô perdem-se na teia social urbana; o elemento simbólico dos trens carrega semânticas arquetípicas da modernidade; a substância líquida inerte num vagão vazio de consumidores do tempo tem o efeito de imagem potencializadora das estruturas da sociedade, e dos próprios personagens do longa-metragem. A liquidez dos vagões vazios do trem, as vivências de personagens infelizes, tristes, o som das estações: tudo parece insinuar um lugar de permanência, de estrutura de corpos e vozes já acostumadas com a inerente condição humana da habitualidade. Não existem pontos de marcação na narratividade, embora se saiba com antecedência da jurisdição das particularidades de cada personagem, são as imagens frias e calculadas, como estas da figura 6, que desenham com exatidão os pontos neutros da filmagem, que representam alegorias do desenvolvimento de seus porta-vozes: Juvenal e Margô.



Figura 6: cenas do filme O Homem das Multidões

Fonte: Espaço Filmes/Divulgação.



Os espaços poéticos fechados mostrados nas imagens do filme O Homem das Multidões falam bastante sobre o modus vivendus do indivíduo contemporâneo. Nos seus espaços de divertimento e lazer, trabalho e de passagem (locomoção), ele deixa para trás vestígios de uma memória que se faz figura metafórica como uma tábua pregada por parafusos tortos. Seus corpos parecem levitar pela urbe; seus gestos sutis remetem a um “habitus do cotidiano”, quase natureza-morta; olhos cansados, vestimentas neutras, cabelos e barbas desbotadas, rostos pictóricos da fragmentação das sensações humanas. Como cenário, os espaços poéticos (estação do metrô, a casa, a varanda) dão um sopro de obsolescência da vida programada, como canais que insistem em repetir o mesmo episódio ultrapassado. Dos objetos em cena, a disposição da luz preenchendo os cantos escuros dos espaços fechados, o jogo dos espelhos e da televisão de segurança do metrô, a permanência da unidade espaço-temporal na narrativa, ajudam a constituir uma obra emblemática que trata dos imponderáveis fenômenos da vida real, no contexto da transitoriedade da modernidade para a pós-modernidade tardia. Há uma ruptura imanente aos traçados do fluxo da modernidade.


Considerações finais...

A discussão aqui levantada empregou o cinema como objeto da modernidade num contexto de transitoriedade de relações dos espaços, indivíduos, identidades e memórias da/na cidade contemporânea. Identificamos os fluxos sensíveis referentes ao sentido de cidade a partir dos filmes A Cidade Onde Envelheço e O Homem das Multidões que trabalham temas da contemporaneidade usando elementos simbólicos da modernidade. Em resultado a isso, tivemos uma abordagem filosófica das ressonâncias da modernidade nestes dois filmes brasileiros, traduzindo o que chamamos de espaços de solidão e estados de liminaridade nas realidades pictóricas das obras cinematográficas. Como construtor de mundos sociais, o cinema empreende o desafio contumaz de interpretar, questionar, defender e se posicionar frente aos desafios urbanos, fabricando olhares fílmicos dirigidos à noção de cidade no mundo contemporâneo.


Referências

AUMONT, J. A estética do filme. Campinas: Papirus, 2002.

BERMAN, M. Tudo que é sólido se desmancha no ar. São Paulo: Editora Schwarcz, 1986.

COSTA, W. M. A. “Documentário pernambucano de curta-metragem: espacialidades e narrativas nos filmes Câmara Escura e A Clave dos Pregões”. In: RENÓ, D. P. [et al.] – 1a ed. Ficção e documentário: memória e transformação social (E-book). Rosario: UNR Editora. Editorial de la Universidad Nacional de Rosario, 2016a, pp. 367-378.

_______. Olhares sobre a cidade e as narrativas fílmicas do espaço urbano. In: II Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, Belém. Anais eletrônicos… Belém: UFPA, 2016b.

_______. Paisagens urbanas e espaços de representação no cinema latino-americano. In: II Simpósio Internacional Pensar e Repensar a América Latina, São Paulo. Anais eletrônicos… São Paulo: EDUSP, 2016c.

_______. Mobilidades, trajetos e fronteiras do esquecimento: Eles Voltam e as narrativas fílmicas da (in)diferença social. In: VI Simpósio Internacional sobre a Juventude Brasileira, Fortaleza. Anais eletrônicos… Fortaleza: Expressão Gráfica, 2017a.

_______. Memórias, narrativas políticas e dicotomias da cidade: olhares fílmicos sobre Recife-PE. Iluminuras, Porto Alegre, v. 18, n. 45, p. 238-268, ago./dez., 2017b.

_______. Fugas e medos gays: Praia do Futuro e o cinema transnacional das sensações geográfico-afetivas. In: VI Colóquio Internacional de Estudos sobre Homens e Masculinidades, Recife. Anais eletrônicos… Recife: Instituto Papai, 2017c.

FREUD, S. “Transitoriedade”. In: FREUD, S. Arte, literatura e os artistas. Tradução de Ernani Chaves. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015, pp. 221-225.

GOMES, P. C. C. O lugar do olhar: elementos para uma geografia da visibilidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013.

JAMESON, F. Pós-Modernismo. A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio. Tradução de Maria Elisa Cevasco. São Paulo: Editora Ática, 1996.

LATOUR, B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia assimétrica. Tradução de Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.

LEFEBVRE, H. O direito à cidade. Tradução de Rubens Eduardo Frias. São Paulo: Centauro, 2001.

LIPOVETSKY, G. A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Barueri: Manole, 2005.

_______. A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

_______. SERROY, J. A estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

SARTRE, J-P. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Nova Cultural, 1987.


Data de Recebimento: 06/11/2017
Data de Aprovação: 14/04/2018



[1] Temos feito correspondência com produções lançadas no circuito comercial de cinema brasileiro contemporâneo que tratam nos seus argumentos das questões ligadas à produção e reestruturação do espaço urbano da cidade, gentrificação, geografias-afetivas, lugar-espetáculo, processos e dinâmicas culturais entre sertão-cidade, sertão-mar e cidade-litoral, mobilidades e trajetos do campo-cidade (COSTA, 2016a; 2017a). Nestes trabalhos audiovisuais permanecem cenários reconhecidos por suas problemáticas sociais urbanas: São Paulo, Rio de Janeiro, Recife. Embora os filmes de grande circulação comercial façam parte de uma política de mercado voltada para o eixo Rio de Janeiro-São Paulo, e Recife como um caso a parte na produção de filmes independentes e autorais, outros espaços de produção merecem atenção devido a sua importância quando trata sobre o questionamento dos problemas existentes na sociedade, como são os exemplos de Belo Horizonte, Salvador, Manaus, João Pessoa, isso se tratando de produções de longa-metragem. Em relação a filmes de curta-metragem, cidades como João Pessoa-PB, Fortaleza-CE, Recife-PE, São Paulo-SP, Rio de Janeiro-RJ, Vitória-ES, Salvador-BA, Natal-RN, Curitiba-PR, destacam-se nas abordagens sobre o espaço urbano e as conseqüências sociais trazidas por sua modificação.

[2] Sobre o uso de filmes, imagens e textualidades, “não lhe retiramos sua liberdade ficcional, não os tomamos como representações fidedignas de uma pretensa realidade. Nós os tomamos como uma rara oportunidade de discutirmos nossos valores e nossas condutas através do recurso a esse distanciamento. Quando observamos os lugares no cinema [...] devemos pensar sobre eles, com eles, mas exercitando a reflexão que a distância do olhar pode nos oferecer” (GOMES, 2013, p. 123).

[3] “Os curtos filmes dos franceses Auguste e Louis Lumières se preocupavam em retratar objetivamente os espaços da cidade e a ação dos indivíduos na Paris do final do século XIX. Contudo, é visto também nesses filmes a necessidade de posicionar a câmera em ambientes de profunda importância espacial”, sendo que a filmagem da estação de trem “representa um local onde as pessoas estão em movimento, e são controladas pelo tempo que as impele de parar e, por conseguinte, de dificultar a movimentação de outros transeuntes” (COSTA, 2016b, p. 5).

[4] “O espaço modernista se apresenta como o novum, como a ruptura que leva a novas formas de vida, o radicalmente emergente, aquele ‘ar de outros planetas’” (JAMESON, 1996, p. 180).

[5] “O contexto simbólico na qual estão presentes as paisagens urbanas das cidades diz muito sobre a produção das subjetividades, identidades e dos processos sociais que ali existem, apresentando os indivíduos/moradores da cidade como os principais atores sociais que transitam e significam as paisagens urbanas. [...] O simbolismo da paisagem urbana [...] subverte a imagem da paisagem urbana em uma representação moldada pelo imaginário urbano” (COSTA, 2016c, pp. 2-5).

[6] Lipovetsky e Serroy (2015, p. 320-323) argumentam que: “Os urbanistas e arquitetos que concebem esses novos espaços urbanos às vezes aparecem como uma espécie de decoradores de cidade que procuram encená-la, fazer desta um espetáculo em si. E para que a festa seja completa, criam espaços inteiramente dedicados à descontração, ‘terrenos de jogos urbanos’, miniparques de lazer citadinos, como o Navy Pier de Chicado. [...] Hoje a própria cidade se empenha em se construir como centro de lazer, do consumo e do divertimento, e isso mediante um trabalho de reabilitação e de estetização da paisagem urbana, mediante operações destinadas a reservar o centro das cidades aos pedestres e recuperar as margens fluviais, por meio de atividades de animação diversas, de jogos de imagens e de luzes destinados a criar um ambiente mais atraente e bonito para uma clientela de turistas e consumidores de lazer”

[7] Ver Freud (2015).

[8] Ver COSTA (2017c).