Alice, a personagem clássica que foi morar na rua


resumo resumo

João Barreto da Fonseca



Esta cidade cruel

como a natureza um dia.

sonha mortejar estrelas

bandos de pardais resistem.

além acima...

a lua branca[1]



Como toda vulnerabilidade é uma narrativa, ou seja, processo com suas etapas e durações, Quarenta Dias oferece ao leitor a visibilidade de um caminho: Alice tem duas aposentadorias, mora em João Pessoa, adora o sol, o modo de vida e os habitantes de sua região. Está no momento de sorver a vida que conquistou e que considera justa, boa e adequada às suas expectativas.

Alice, no entanto, tem uma relação conflituosa com sua filha, Norinha, de quem acha que viveu afastada por conta de sua vida dinâmica como professora. O ponto de virada é quando Norinha, grávida, pressiona a mãe para que deixe João Pessoa e mude-se para Porto Alegre para cuidar do seu futuro neto. Imediatamente, Alice diz não. Porém, entram em cena todas as técnicas e ciências relativas ao controle da vida e das subjetividades. Alice, sentindo-se culpada, vai descobrir que seu corpo, que sua vida está em negociação, com todos aqueles sentidos de sobrevivência que Agamben (2004) chamou de vida nua.

Numa estrutura capitalista, às vidas são atribuídos valores. Alice tem um corpo de senhora, um ritmo de vida que não produz mais riqueza. “Será útil viver quando não se é lucrativo ao lucro?”, pergunta Viviane Forrester (1997, p. 15). Sua filha está em movimento, gerando uma outra vida. Ao chegar em Porto Alegre, descobre que a filha vai para Paris fazer pós-doutorado. Sentindo-se traída e abandonada, Alice, para distrair-se ou por pirraça, aceita a incumbência de procurar um rapaz paraibano perdido em Porto Alegre, a pedido de uma amiga.

A decisão de morar em Porto Alegre passou por várias hesitações. Os argumentos que levaram Alice a cruzar o país baseavam-se na tradição das avós cuidarem dos netos, na ocupação “digna” e “natural” da terceira idade, na necessidade da união familiar e de outros elementos do senso comum, formadores de hábitos. Diante da negativa da mãe, a filha vai mudando de tática, relembrando um passado de abandono e trazendo os amigos da aposentada para a adesão de sua causa.


Aquela canseira foi me amolecendo, dia a dia, me dando uma desistência, e nem lembro direito se foi a própria Norinha ou sua aliada-mor, Elizete, quem me arrochou num canto da parede: Você vai pra Porto Alegre, sim, e não se discute mais isso, todo mundo vê que é o melhor, é sua obrigação acompanhar sua filha única, só você é que não aceita, parece um jumento empacado na lama, continuar com uma besteira dessas. Eu cedi, vergonhosamente. Foi isso. O resto é consequência” (REZENDE, 2014, P. 34).


A personagem de Alice aprende que ceder é um gesto de sobrevivência imediata e momentânea.

O ponto, a vida de Alice encontra o início de seu processo de vulneração, que é apresentada pela autora em detalhes como na preparação para a mudança: “Vida nova!, essa velharia fica toda aqui e a senhora embarca comigo no fim de julho” (REZENDE, 2014, p. 37). É o ponto em que a perda de autonomia começa a coincidir com o despontar de uma perspectiva de um desconhecido, que também coincide com o contato com uma comunidade excluída do estado de direito.

A vulnerabilidade é entendida como condição da vida. A vulneração, no entanto, é a passagem, o processo, segundo Kilowatt (2003), que faz uma suscetibilidade ganhar forma no mundo real. A personagem de Alice, no entanto, embora vá se degradando à medida que passa a habitar a rua, não pertence a nenhuma das categorias que estariam inscritas nas condições de risco tais como pobres, desempregados, estrangeiros etc e nem estaria sem condições de gerir seus próprios interesses.

A vulnerabilidade da personagem Alice em Quarenta Dias, além de uma imposição de um contexto familiar, soa também como uma decisão pessoal, uma entrega ao abismo pessoal, uma busca de alteridade de si mesma. Ela do Nordeste, vivendo no Sul; uma senhora, perambulando pelos riscos, exibindo um rigor físico; com um espaço todo mobiliado, preferindo viver nas ruas.

Antes mesmo de percorrer a periferia da capital gaúcha, conhecendo um cenário de pobreza, no qual, apesar de toda sorte de abuso e absurdos, floresce um tipo de solidariedade rara e refinada, a vida de Alice é tão cheia de espanto quanto a da sua xará inglesa, como a autora se refere. “Quem será esse tal de Salgado Filho?” (REZENDE, 2014, p. 39), mais espantada do que questionadora na sua chegada no aeroporto internacional. Quem serão esses senhores que dão nomes às ruas e que nada explicam sobre os lugares onde os personagens passam? As marcas da cidade são fluidas e mesmo escritas em pedras e concreto dizem pouco sobre as sensações e sentimentos que serviriam como bússolas. A relação que se estabelece com a cidade gera sensações, sentimentos e, às vezes, é organizada por uma fixidez ou clichês, como questiona Queni N. S. L. Oeste (2010, p. 91, pseudônimo de Boaventura Souza Santos), no seu Rap Global:

o norte é sorte

o sul és tu

o oeste é peste

o leste és tu

o centro estaria dentro

se o norte fosse morte

se sul não fosses tu

se o oeste não fosse peste

se leste não fosses tu

se o centro fosse embora


Alice espacializa os seus afetos. Essa é também uma forma de memorização. Espacializar como maneira eficiente de reter informações, para não esquecer o seu Nordeste querido. E memorizar pontos de referências para não se perder no seu novo ambiente, a sua nova cidade, Porto Alegre. Memorizar é um tipo de epistemologia afetiva. Alice vai compondo uma certa mnemônica espacial. Cada rua, cada praça corresponde a uma reviravolta no seu enredo.

Nesse sentido, Quarenta dias lembra o Palácio de memória, do poeta Simônides, cujo ato de contar histórias era uma mera questão de perambular pelos aposentos do palácio. O poeta Simônides, conta Steven Johnson (2001), nascido a seis mil anos antes da era cristã, criou uma ferramenta essencial para a arte retórica e que foi copiado por outros aventureiros, como registrou o estudo de Jonathan Spence sobre O palácio de memória de Matteo Ricci, que conta a história de um missionário italiano do século XVII, que tenta converter a China ao catolicismo ensinando aos nativos uma versão espacializada da Bíblia” (JOHNSON, 2001, p. 16).

A personagem central requinta sua espacialização narrativa e algum momento utiliza o sotaque como forma de memorização e atribuição de afetos, principalmente ao observar a fala dos habitantes da cidade de Porto Alegre. Começando pelo genro Umberto: “Falou mais umas coisas, pontuadas por aqueles vários bahs dele, que eu não entendi bem o que queriam dizer e pareciam servir para alguma coisa” (RESENDE, 2014,p. 53).

Existem muitas narrativas dentro de Quarenta Dias: a construção de uma imagem comparativa entre João Pessoa e Porto Alegre, utilizando-se do senso comum sobre as duas cidades para mostrar um processo de identificação precário; a história de um deslocamento geográfico e emocional de uma personagem, Alice, que, segundo dados biográficos, seria a própria escritora Maria Valéria Resende; os desabafos de uma senhora solitária com a boneca Barbie da capa de um caderno, que serve como diário, e a escrita no próprio diário. São narrativas que se complementam.

Como em Um conto de duas Cidades, de Charles Dickens, que percorreu Paris e Londres, enaltecendo a segunda, Maria Valéria Resende faz da comparação de duas cidades um elemento dramático. A cidade de João Pessoa está internalizada na personagem Alice, assim como Dickens se identifica com Londres, considerando Paris um ambiente selvagem e rude com todo seu processo de tomada de Bastilha e do funcionamento da guilhotina como símbolo de uma passagem violenta da “barbárie” para a “”civilização”, embora existam milhares de nuanças que nublam a distinção entre uma coisa e outra.

O mapa que Alice tem em sua cabeça não vai funcionar em Porto Alegre. Do ponto de vista narrativo gera situações de enorme densidade dramática pela inadequação de um manual de instruções aplicado a uma finalidade distinta da de sua origem. Assim, as ruas, as casas, as pessoas tanto em Dickens quanto em Rezende são pistas afetivas, novos campos de possibilidade e atuação cartografias abertas que, antes de mostrar um destino final, apresentam novos caminhos. Cada pessoa é uma abertura e, consequentemente, um novo mapa. E o mapa é uma tentativa de estabelecer um hábito. “Hábitos servem para tirar a gente da indignação, da perplexidade” (REZENDE, 2014, p. 186).

Esse é um mapa narrativo, uma tentativa de epistème. O mapa é um conhecimento e não apenas uma visibilidade. Esta é uma das pistas falsas em Quarenta dias, porque quanto mais a personagem desabafa com a boneca Barbie na capa do caderno, quanto mais ela escreve, quanto mais ela se adentra na trama, quanto mais ela desenha narrativas com seus passos pela cidade, mais ela se perde. Então, Maria Valéria Rezende vai na direção contrária dos pensadores que argumentam que a narrativa é um princípio organizador da ação humana (BRUNER, 1994, 1997; RICOEUR, 1994). Ela se desorganiza narrando-se.

Em comum com o pensamento científico sobre narrativa, Quarenta Dias apresenta uma personagem que se permite lidar com uma heterogeneidade de mundos sociais, fazer combinações de mundos imaginários e factuais (que são também imaginários, embora ancorados no real), apresentar fugas e experiências temporais diversas. A sequencialidade, conforme Bruner (1997), essa distribuição de eventos no tempo, permite um tipo de organização com uma finalidade dramática, exibindo uma relação entre o mundo exterior e o mental dos personagens, resultando, como as análises de Buner (1997) e Reuter (2002), em um tipo de qualidade que é moral, como nas várias observações de Alice em suas andanças em Porto Alegre:

Afinal, quase nada ver de tão estranho assim, neste Sul tão longe de casa, o povo misturado de todas as cores, os petiscos de pobre, aquele tanto de negros gaúchos que eu nunca soube que existiam - violência e solidariedade, pobreza e necessidades, iguais às da minha terra, a pedir milagres (REZENDE, 2014, p. 92)”.

As histórias narradas são contadas conforme uma convenção, na qual se vê estabelecida uma tradição: uma pessoa perdida na cidade grande, uma senhora com dificuldades de adaptação em território novo, uma contenda entre mãe e filha, a imposição social de uma postura característica a uma determinada faixa etária… Enfim, os elementos são muito correntes. Este é o acordo narrativo de que falam Brockmeier & Harré (2003, p. 526), para quem todas as situações da vida, para se tornarem experiências comunicáveis, tornam-se narrativas.

Ao atender um pedido de uma filha para mudar para Porto Alegre e de uma amiga para encontrar um rapaz perdido na cidade, Alice diz sim a alteridade, para tensionar o que se diz a respeito dos padrões canônicos de bondade, justiça e solidariedade. Assim, ela vai juntar tudo que sabe de si, das narrativas de si e vai utilizá-las para viver num outro lugar e descobrir o que é apropriado é uma produção negociada e dependente de interações dos contextos de interações sociais.

A construção narrativa de Alice, de Maria Valéria Resende, apresenta essa negociação com forças que estão fora do campo da construção da personagem. Seus gostos, seus desejos, sua posição diante do mundo formam uma configuração que gravita sobre o que ela não viveu. A cidade de Porto Alegre é a antípoda da sua querida João Pessoa. Nos seus diários, ao escrever sua “autobiografia”, a versão que o leitor lê é apenas uma das possíveis autobiografias que a escritora contou ou que poderia ter construído ou ainda, conforme Harré (1998, p. 146), “o fragmento destacado de certa encruzilhada da vida”.

Alice vive na pele a precarização das condições de vida e de higiene a qual está exposta a população de rua. Sua vulneração combina a perda de identidade formal (documentos) com a perda de identidade pessoal (elaboração acerca de sua própria pessoa). Os seus amigos de rua encontram dificuldades no processo de identificação. Alice encontra vários personagens transitórios, aquelas pessoas que encontramos nas metrópoles que desparecem para sempre: o poeta uruguaio/argentino, que não precisa ler, porque é poeta. E Lola, uma mulher, cujo processo de vulneração a levou para as ruas, embora seja proprietária de uma grande casa.

Como o flâneur, estudado por Benjamin (1989, p. 184-283), Alice experimenta múltiplos pontos de vista do comportamento humano. As pessoas são grandes paisagens afetivas, sentimentos diversos. Mas longe ser uma observadora desinteressada, ela tem uma missão: Achar um desconhecido, Cícero Araújo, a pedido de uma parenta, pois, o rapaz, filho de uma manicure, foi trabalhar na construção civil e nunca mais retornou. A contrário do flâneur benjaminiano, que faz um inventário das coisas, num trabalho de classificação característico da modernidade, a personagem de Rezende vai experimentando sentimentos, sensações, que são densidades e complexidades em suas superfícies. Ela está de passagem. E na busca de alguém também não encontra si mesma.

Depois de sentir o abandono da filha, que vai para Paris, sem avisá-la, a perambular pelas ruas de Porto Alegre à procura do desaparecido Cícero, Alice estabelece itinerários que são simultaneamente novos padrões visuais, novas metas de explorações de percursos, que afloram sensibilidades, experiências estéticas e éticas que não ocorreriam na sua João Pessoa. O deslocamento é também o despertar de sensações, sentidos. A revelação da cidade tem algo de espantoso porque vem junto com o entendimento de uma falência coletiva.

Alice passeia sobre a degradação social, notando a mercantilização e, consequentemente, a precarização da vida em sua rotina massacrada pelo trabalho ou sua ausência, bem de acordo com Forrester (1997, p. 43), que vê no regime liberal um poder difuso, pouco identificado e disseminado por toda a parte: “esse regime que jamais foi proclamado detém todas as chaves da economia que ele reduz ao domínio dos negócios, o quais se apressam em absorver tudo o que ainda não pertencia à sua esfera”. Para Forrester, os projetos que desejamos combater já estão arraigados nos fatos e quando postos em circulação foram batizados de inevitáveis.

O Estado não gera bem-estar social e o resultado disso é uma sociedade imprevisível, injusta e violenta. Essa sociedade caótica e seus personagens que aparecem e somem no horizonte da escrita são desenhados com elementos do bizarro, do singular, do estranho, a partir de uma observação às vezes acurada, às vezes aleatória e displicente, mas sempre uma extração seletiva de um cenário em ruínas.

A escritora (porque tudo é uma escrita de um diário) vai para a rua para garimpar história e sentimento de pessoas desterritorializada, pessoas que saíram do Nordeste brasileiro para tentar a vida no Sul e encontraram toda sorte de surpresas e contratempos.

Para Peixoto (2003, p. 100), Baudelaire usa o termo flâneur para definir o tipo de pintura que ele admira no pintor parisiense Constantin Guys. Já Benjamin observa Baudelaire observando Poe. “Ele usa a figura do transeunte e a poética baudelairiana como lentes através das quais se pode ver a vida parisiense” (PEIXOTO, 2003, p. 100). De forma similar, porém sem a tentativa de compor um retrato, a Alice de Rezende condensa vários eventos, experiências em um só local de narrativa e as ruas de Porto Alegre viram um aparato ótico. Rezende, via Alice, apresenta ao leitor uma experiência de simultaneidade: o passado (João Pessoa) e o presente (Porto Alegre). Tudo que está na frente e no fundo é visto ao mesmo tempo. “Isso porque, na flanerie, as distâncias irrompem na paisagem, assim como épocas passadas surgem no presente (PEIXOTO, 2014, p. 102).

A experiência da simultaneidade também é responsável pelo embotamento dos sentidos, da perda do pensamento crítico. Rezende relata o surgimento, na vida de Alice, de uma série de eventos novos, que não tem como serem digeridos sem o devido tempo. Como se a sequencialidade fosse substituída pela simultaneidade, gerando assim, como diria Berardi (2017, p. 4), um arrefecimento da capacidade de discriminação crítica, a partir do contato com o “fluxo semióticos em condições de isolamento”. Berardi, na entrevista a Juan Íñigo Íbanez, alerta para um tipo de mutação antropológica, já presente no imaginário do cineasta Pier Paolo Pasolini:

Guattari falava de “espasmo caosmótico” para entender uma condição de sofrimento e de caos mental que pode ser solucionado somente através de uma nova condição social, de uma nova relação entre o corpo individual, o corpo cósmico e o corpo dos demais. (BERARDI, 2017, p. 5)


Para transitar na cidade, ela é obrigada a estabelecer novos itinerários, incluindo novos padrões visuais, novas metas de explorações de percursos, apelando para o surgimento de uma nova sensibilidade, novas experiências de sensações e sentimentos, enfim, o despertar de sentidos que, habitualmente, estavam adormecidos em sua cidade de origem. Assim, a revelação da cidade tem algo de espantoso.

Neste sentido, a cidade, para Alice, é um ambiente moderno com sua hiperestimulação sensória e seus riscos corporais tais como nas pesquisas das metrópoles implementadas por Simmel, Kracauer e Benjamin. É a cidade que oferece um pequeno intervalo entre o estímulo recebido e a ação imediata ou ainda a cidade que estreita as zonas de indeterminação do sujeito, que é o tempo que se leva para reagir a uma percepção.

“O ritmo da vida também se tornou mais frenético, acelerado pelas novas formas de transporte rápido, pelos horários prementes do capitalismo moderno e pela velocidade sempre acelerada da linha de montagem”, como requer Singer (2001, p.116). Na velocidade dos acontecimentos, Alice experimenta a cidade em sua superfície. É como nos estudos de Kracauer (2009, p. 280) sobre Walter Benjamin: “O modo pelo qual um fenômeno se apresenta em uma relação direta é o menos adequado para revelar alguma coisa sobre as essências que contem”.

Para Kracauer, Benjamin argumentava a necessidade de destruição da figura (a aparência do fenômeno) para se alcançar a essência. Ao se abandonar à flânerie, num cenário urbano convertido em paisagem, há um esmagamento de perspectiva. Alice vê superfície e percorre letreiros. Não tem tempo para contemplação, seu olhar perdeu a profundidade de campo, pois tem a missão de encontrar Cícero Araújo (mas isso também pode ser uma pista falsa para o leitor, como vamos defender adiante). “Já se mostrou como também Kafka faz de Praga um labirinto de vasos comunicantes, tirando proveito estético do peculiar traçado da cidade na trama de sua narrativa” (PEIXOTO, 2004, P. 103).

O romance de Rezende lembra dois momentos caros para a cultura ocidental: o surgimento do folhetim, que é considerado, no século XIX, o que foi o cinema na primeira metade do século XX: uma preparação para o choque da modernidade, um treinamento para o surgimento de uma esfera pública radicalmente alterada, definida pelo acaso, pelo perigo e por impressões chocantes, que abalariam as noções tradicionais de segurança, de continuidade e de destino sob controle. O olhar vira então um item de segurança.

Como Alice vai sobreviver? Ela vai encontrar o rapaz que procura? O suspense, como tônica da diversão, que na modernidade vira técnica de escrita com o romance policial transforma-se num tipo de “continua amanhã” das ficções seriadas. É o mundo suspenso em prol do comércio de choques sensoriais e do declínio das condições de previsibilidade. Poluição, engarrafamentos, violência, transações econômicas velozes são alguns dos ingredientes do universo urbano. A diferença é que no texto de Rezende, ao contrário dos contos de Edgar Allan Poe, não se presta como guia de locomoção na rede informacional e urbana.

O suspense, como tônica da diversão moderna, vira técnica de escrita, transforma-se no famoso “continua amanhã”. É o mundo suspenso em prol do comércio de choques sensoriais e do declínio das condições de previsibilidade. Poluição, engarrafamentos, violência, transações econômicas velozes são alguns dos ingredientes do universo urbano. O folhetim, como o romance policial, vai funcionar como duplicador, repassador, tradutor, sampleador, ampliador, redutor e armazenador de informações, guia de locomoção na rede informacional e urbana, depósito de expressões e de reações diante dos contratempos cotidianos.

A Lapa é Madame Satã, assim como as ruas do Rio de Janeiro são dos personagens dos contos A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro e Anjos das Marquises, de Rubem Fonseca (1992, 1998, respectivamente), só para citar alguns. Mas Porto Alegre não é de Alice e essa dissonância produz um efeito narrativo espetacular que advém das sensações provocadas pelos desajustes, pelas interpretações erradas de situações cotidianas. Se nos contos supracitados os personagens exibem o sofrimento da relação entre os espaços internos e externos, o conflito entre o público e particular, imagine (e o texto é para se imaginar) a relação conflituosa e estrangeira com ruas, bairros, praças e residências. A cidade, assim, não é turística, muito menos bucólica. Neste sentido essa cidade é moderna, pensada por Benjamin, segundo Peixoto (2004, p. 103): “Interessam-se outros modos de resgatar. Conjurá-la, como faz o poeta, como uma nova chamada: a ilusão ótica”.

A teoria da arte moderna estaria vibrando aí, dando margem ao surgimento de um pensamento pós-moderno na escrita de Rezende, uma vez não ser possível revelar nada do que se apresenta aos olhos, porque a cidade tem outra aparência e é apresentada de modo indireto. “A alegoria implica arrancar as coisas de seu contexto habitual, destruir seus nexos orgânicos, criando novas constelações” (PEIXOTO, 2004, p. 104). A cidade são formas visuais que passam, são paisagens e, neste sentido, são dimensões urbanas e arquitetônicas fora do lugar. A pátria é João Pessoa, o palco estrangeiro é Porto Alegre. É a metrópole poluindo os sentidos ou, como requer Peixoto (2004, P. 150), a paisagem nega informações: “O olhar, então, em vez de debruçar-se para ver ao longe o que se perde no horizonte, desloca-se na superfície do quadro”.

Como não pode ser revelada, a cidade além de produzir uma estafa, gera também uma descrença. Assim, a escritora desiste de sua personagem, não a abandona, mas finaliza o seu romance, com a sensação de que toda revolução pessoal atualmente só é possível se for inacabada. Se não há total ausência de sentido, há, pelo menos, um sentido incerto. “Grande parte da verdadeira crítica que se faz à ficção pós-moderna ainda utiliza como premissa uma crença humanista na universal necessidade humana de gerar sistemas para organizar a experiência” (HUTCHEON, 1991, p. 86). Rezende não organiza nada.

Alguns aspectos chamam a atenção em relação à narrativa de Quarenta Dias. Buscando auxílio de Compagnon (2010, p. 95-135), um deles é o abandono da ideia platônica de que é possível representar o mundo via mimèsis (em alguns momentos talvez seja mais provável tateá-lo, mas, na maioria das vezes, a história segue uma deriva, embora a escrita mantenha uma estrutura convencionalmente conservadora). Outro se refere ao alerta de Barthes, para quem a mimèsis é repressiva por se tratar da expressão de uma ideologia.

Em muitos momentos, a escritora parece também desconfiar dos seus próprios processos narrativos e de seus empreendimentos literários como tentativa de estabelecer uma conexão com o mundo. Para Barthes (1997, p. 38), “a sociedade impõe o romance, isto é, um complexo de signos, como transcendência e como história de uma duração”. É justamente esse sentido que parece estar corrompido na escrita de Rezende. Há um certo abandono da própria literatura e suas intenções.

Flusser (2010, p. 54) diria que “causar má impressão significa não ter correspondido aos critérios daqueles que se deixam impressionar”. Em vários momentos, a autora faz sua personagem, Alice, conversar com a boneca Barbie, impressa na capa do caderno onde são anotadas as muitas narrativas de Quarenta Dias. É o que Flusser fala do destino do texto, escrito para um mediador. O leitor é esse mediador que acompanha os chistes de uma conversa surreal entre Alice, a personagem clássica de Lewis Caroll, e uma grande representante da ideologia do consumo.

Além desse elemento de riso, há um outro mais ligado ao plot principal que, à moda da ficção seriada das telenovelas, é o que guia a personagem central. Todo o sentido de elevação e transcendência da história também pode ser entendido como um chiste, uma birra da personagem. Aí o livro ficaria desinteressante? Nem sim nem não. Ao se ver sozinha na cidade, sem a filha, por quem trocou de cidade, Alice resolve experimentar novos percursos, numa trajetória de precarização da vida até se tornar uma moradora (momentânea) de rua.

Alice poderia voltar simplesmente para João Pessoa, mas o sofrimento é uma narrativa poderosa, tem sempre um percurso, uma duração, além de uma série de sentimentos e sensações que traduzem a maneira como as sociedades conduzem de maneira coletiva os trajetos individuais, tais como culpa, medo etc. Neste sentido, toda a história de Quarenta dias parece uma pista falsa. A personagem não poderia somente ter dito “não” à filha? E, em Porto Alegre, não poderia retornar à sua cidade de origem, uma vez frustradas suas intenções originais?

A obsessão sempre esteve ligada a narrativas espetaculares e a busca de Cícero, o filho desaparecido de alguém do Nordeste, deu sentido não à vida, mas à obsessão da personagem, que por sinal dá corpo a uma experiência vivida pela própria autora que, em Porto Alegre, experimentou a condição de flâneur. Embora as interpretações sobre Quarenta dias, caminhe em direções bem opostas, parece claro também a personagem se valer de sua própria condição de senhora, nordestina e aposentada para viver uma experiência extrema, como se vê nos trechos do livro a seguir.

… quase desfrutando aquela nova espécie de liberdade o anonimato sem destino uma andada sem pé nem cabeça, cada vez mais movida a pura ficção que, àquela hora, já ia longe do motivo aparentemente real e inicial da minha disparada pra rua. Cícero Araújo, pobre dele sem saber, ia passando de objetivo a mero álibi, perdendo-se e reinventando-se a cada etapa do meu jogo de esconde-esconde (REZENDE, 2014, p.138).

Cícero não me faltava nunca, cumpria com perfeição sua função de álibi, dócil, mudando de endereço segundo minhas necessidades ou fantasias. Eu caminhava, via, ouvia, cheirava, lambiscava o que se apresentasse, até a beira da cidade esbarar no campo ou na mata e então, esgotada, toma o caminho de volta, cochilando nos ônibus até chegar a meus cantos costumeiros de pouso noturno” (REZENDE, 2014, p. 214).

Tinha jurado a mim mesma não voltar pra lá sem achar Cícero, vivo ou morto, ou melhor, na verdade o que eu tinha prometido era não ceder a nada nem ninguém, só voltaria se e quando eu mesma quisesse e, como ouvi tantas vezes meu avô dizer, palavra de gente honesta é uma bala, um vez disparada não volta atrás” (REZENDE, 2014, p. 244).


Nesses e em outros trechos, o Cícero é um meio para a personagem central encontrar um objetivo que não se sabe qual. Para Benjamin (1994, p. 198), a narrativa é a experiência transmissível: “A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorrem todos os narradores”, tanto o viajante quanto o sedentário.

Alice teve um sonho de sedentarismo rompido e acabou vivendo a vida dos viajantes, enfim os dois tipos de narradores apresentados por Benjamin, o fixo e o móvel. Mas para quem Alice comunica sua experiência? A Barbie da capa do diário de Alice vai junto com caderno para o fundo da gaveta com a promessa da escritora-personagem passar tudo a limpo. Assim, acabamos de ler um rascunho, o que nos leva a pensar em Barthes (1997, p. 37), “a literatura é como o fósforo: brilha mais no momento em que tenta morrer”.


Referências

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Data de Recebimento: 13/03/2018
Data de Aprovação: 15/04/2018



[1] Além Acima, composição da banda de punk-rock Mercenárias. Disponível em: https://www.letras.mus.br/mercenarias/942404/. Acesso em 02/05/2017.