Vivências de si no interior do cotidiano: o caso de uma crônica jornalística brasileira


resumo resumo

Carla Roselma Athayde Moraes



Introdução

Neste trabalho,[1] procuramos demonstrar, num exemplar do gênero discursivo-textual crônica jornalística, como se delineia, linguística e discursivamente, um de seus grandes componentes, o discurso introspectivo, dentro de sua temática maior: o cotidiano das pessoas nas cidades. Para atingir o nosso intento, estabelecemos algumas reflexões teóricas de pensadores comprometidos com as relações sociais entre os homens por meio da linguagem, do discurso e procuramos aplicar e demonstrar a pertinência dessas reflexões num breve estudo de uma crônica do escritor Carlos Heitor Cony.

A origem do gênero crônica jornalística, diz-nos Bakhtin, seria resultante do desenvolvimento e da renovação de gêneros de caráter sério-cômico, explorados já na Antiguidade Clássica. Ao se referir à maneira diferenciada com que esses gêneros enxergam e tratam a realidade, Bakhtin não deixa dúvidas de que a crônica é fruto dessa família:


A primeira peculiaridade de todos os gêneros do sério-cômico é o novo tratamento que eles dão à realidade, a atualidade viva, inclusive o dia-a-dia, é o objeto ou, o que é ainda mais importante, o ponto de partida da interpretação, apreciação e formalização da realidade (BAKHTIN, 1997, p. 107-108).


 

Nesse sentido, evocamos o parentesco da crônica com um dos gêneros intercalados da menipeia, gênero carnavalizado da Antiguidade, que surgiu da desintegração dos “diálogos socráticos”, entre os gêneros que se formaram a partir dele. A respeito desse gênero antigo, declara Bakhtin:


 


A derradeira particularidade da menipeia é sua publicística atualizada. Trata-se de uma espécie de gênero ‘jornalístico’ da Antiguidade, que enfoca em tom mordaz a atualidade ideológica. As sátiras de Luciano são, no conjunto, uma autêntica enciclopédia da sua atualidade [...] são plenas de imagens de figuras atuais ou recém-desaparecidas, dos ‘senhores das ideias’ em todos os campos da vida social e ideológica [...], são plenas de alusões a grandes e pequenos acontecimentos da época, perscrutam as novas tendências da evolução do cotidiano, mostram os tipos sociais em surgimento em todas as camadas da sociedade. Trata-se de uma espécie de ‘Diário do escritor’, que procura vaticinar e avaliar o espírito geral e a tendência da atualidade em formação (BAKHTIN, 1997, p. 118-119).


 

Entre as pretensões discursivas da imprensa escrita, a crônica, como texto que pratica opinião, constitui-se num dos pilares que sustentam uma das tarefas a que o jornal se arroga: a da crítica social, a de tornar o cidadão consciente do que se passa ao seu redor e que merece, segundo o crivo de seleção dos fatos dignos de serem noticiados nesse ou naquele jornal, a reflexão e a análise.

Fica claro, então, que o cronista, profissional de jornal, deve possuir (ou pelo menos se espera que ele possua) um olhar arguto no que diz respeito à forma como reflete e analisa o meio social em que seu texto circula ou tem probabilidade de circular. Porém não deve faltar a ele certa ousadia ao dirigir sua fala, pois essa ousadia é que, muitas vezes, lhe confere a paixão admirativa dos sujeitos. Ele pode, incontáveis vezes, inflamar sentimentos nos que compartilham suas ideias ou naqueles que se tornam influenciados por elas. Essas reações positivas (ou nefastas) que os cronistas são capazes de suscitar nos leitores, claro, por serem uma camada heterogênea da sociedade, são, muitas vezes, construídas aos poucos, no cadinho cotidiano de uma leitura após outra de seus textos, e, muitas vezes, também, nos comentários paralelos que são feitos do que esses cronistas dizem, no que “corre” a seu respeito; enfim, nos juízos construídos em torno do que dizem.

Um dos toques de estilo mais flagrante que esse gênero ganhou da cultura brasileira foi o traço de escrita introspectiva, dentro, é claro, do componente temático de discurso dele, que é o do cotidiano. As reflexões deste trabalho buscam alcançar a natureza desse discurso, a importância desse texto que não quer, em nenhum de seus elementos constituintes, distanciar, mas, sim, aproximar. Na relação entre o eu e o outro, o diálogo ocorre, neste gênero, conforme afirma Bakhtin:


 


O discurso íntimo é impregnado de uma confiança profunda no destinatário, na sua simpatia, na sensibilidade e na boa vontade de sua compreensão responsiva. Nesse clima de profunda confiança, o locutor revela suas profundezas interiores (2000, p. 323).


 

            Faz-se necessário dizer, também, no que diz respeito à crônica brasileira, que, devido ao fato de o seu suporte original não ter sido o livro, devido a sua natureza fugaz como acontecimento que participa do também fugaz surgimento do jornal diário (o qual desaparece para, novamente, ressurgir no outro dia, com outras matérias e outras crônicas), passou a fazer parte de sua natureza, em sociedade, não ter consolidado uma “cultura” de “grande obra”; no intrincamento cultural e linguístico, não era esse o seu destino, como gênero. Por isso, diz Antonio Candido, crítico literário, que, nesse sentido: “a crônica não é um gênero maior. Não se imagina uma literatura feita de grandes cronistas, que lhe dessem o brilho universal dos grandes romancistas, dramaturgos e poetas” (CANDIDO, 1992, p. 13).

            Candido (1992) afirma ainda que, por meio da temática do banal, de algo sem importância, da estrutura composicional livre, enfim, de sua despretensão, a crônica humaniza, por isso torna-se uma candidata a prover-se de perfeição e de profundidade de significado. É imprescindível refletir, de acordo com o que julgamos mais importante neste trabalho, que, dentro da fecundidade dos estudos abertos pela Análise do Discurso, vertentes da Pragmática, as reflexões em torno dos discursos que circulam em sociedade hoje possuem o compromisso de estenderem o estudo dos sistemas de gêneros, de considerá-los abertos, isto é, em permanente transformação.

                       

  1. Um gênero comprometido com o cotidiano         

 

Costuma-se dizer que a crônica busca os motivos da sua temática na banalidade dos fatos do cotidiano. No que diz respeito a essa “banalidade” dos seus conteúdos, acreditamos tratar-se de mais uma “peça” que o próprio gênero textual nos prega, em sua aparência tão despojada. Lembrando-nos de que, no caso das crônicas veiculadas em jornais, que nos chegam às mãos juntamente com uma parafernália de outros gêneros, nós também nos surpreendemos ao perceber como é que a aparente “conversa fiada” tecida em seu bojo é capaz de nos enredar, em meio a tantas outras matérias mais chamativas, mais “bombásticas”, que com ela competem. E aí vem a explicação da peça que a crônica nos prega: são exatamente os eventos triviais, a vida nossa de todo dia, que, com o toque pessoal do cronista, nos levam a cair no vício de ler crônicas, buscando-as, logo, em seu espaço jornalístico costumeiro. Nele, ao invés da notícia bombástica, tornada comum no mundo de hoje, é que temos um encontro marcado com a surpresa, a estranheza, a bizarrice de uma interpretação pessoal que autores especiais sabem conferir aos fatos mais corriqueiros do nosso cotidiano.

Quando nos encontramos diante do que é cotidiano, encontramo-nos forçosamente diante de ritos, de condutas socializadas que orientam, determinam, conduzem a marcha dos homens em suas comunidades sociais e linguísticas. É inerente às sociedades o fato de serem sociedades com histórias. O vivido pelos homens situa-se em categorias espaço-temporais. E o cotidiano caracteriza-se, basicamente, por uma historicidade do presente em devir, não estanque, que possui movimentos voltados para o futuro. Se tocam no passado, é para trazê-lo ao presente, mesmo assim, não se detêm num passado longínquo, não o encaram como algo sagrado, intocável, como um “assim foi”. A historicidade para o homem que vive o tempo presente é encarada como “em movimento” e, realmente, assim o é. Nesse sentido, esse homem pode falar do passado também, mas com uma postura de dessacralização dele e de forma que possa servir ao presente em mutação, um presente que inquieta e gera, então, histórias.

Tomando Foucault (1997), perguntamo-nos: por que este gênero, a crônica, ocupa um lugar que nenhum outro poderia ocupar? Primeiramente, ao instituir, eleger determinados objetos de discurso, como os do cotidiano, a crônica acaba por excluir das dimensões de sua enunciação outros, por exemplo, acontecimentos feéricos, lendários e outros que colocam o homem, em termos de poderes, muito distantes dos outros homens. Nesses casos, a força de determinado(s) homem(ns) sempre supera a sua fragilidade. Em contrapartida, o espírito desse homem, que os gêneros modernos fazem supor, é o do homem como, muitas vezes, sendo vencido pela sua fragilidade e, em outras ocasiões, vencendo sua fragilidade, que é superada pela sua força.

A crônica é testemunha do presente em devir, evoca-o. Esse presente experimentado, vivido intensamente em meio aos outros, torna-se palco das reflexões levadas a efeito pelo sujeito, ao experimentar, ao viver uma situação-limite. Surpreende-nos a capacidade que tem o cronista de tratar de assunto aparentemente tão corriqueiro quanto inesperado, tornado, na crônica que pretendemos estudar, “última questão”, geradora de inquietação e instabilidade no cronista, face ao mundo. Por isso, a abordagem para a qual nos voltamos contempla as seguintes categorias de análise discursivo-textual: a do narrador que faz de si objeto de sua fala e a da problematização dos eventos do mundo construída cotidianamente, em sociedade, o que este trabalho abordará, na próxima seção.


 

2.Vivência dos atos éticos

 

A abordagem da temática da crônica remete-nos ao mundo como “objeto do conhecimento e do ato ético”. A transformação operada pelo cronista, ao se relacionar linguisticamente com esses valores, faz da estruturação configuracional, escolha dos recursos linguísticos e modos de tratamento do tema um ato estético, ao empregar recursos estilísticos voltados para a intenção estética do seu espírito, relacionando-os com os valores que projeta nos conteúdos temáticos. As crônicas pretendem, aliás, como todo texto, falar da realidade que nos cerca, mas uma realidade ligada à “consciência agente” do homem, realizador de ações e palavras.

O trabalho com a temática da crônica envolve, antes de mais nada, a projeção, pelas palavras, de impressões referenciais aos episódios da vida; mas uma questão nos vem: como projetar em palavras esse real cotidiano, se a linguagem, constitutivamente, não representa o real tal qual ele se apresenta em sua natureza de evento?

O caráter de opacidade, de refração do real pela linguagem é, já faz tempo, do conhecimento dos estudiosos da Linguística e da Literatura. Em suma, o mundo não nos é apresentado pela linguagem de acordo com a gênese do ato ou evento sucedido em sua “pureza”. Tomemos uma fala de Perrone-Moisés (2006, p. 105): “A linguagem não pode substituir o mundo, nem ao menos representá-lo fielmente. Pode apenas evocá-lo, aludir a ele através de um pacto que implica a perda do real concreto.” A evocação e a alusão a que se refere a autora tornam-se fundamentais, pois, para compreendermos o fenômeno de cultura que é o texto. O processo de construção textual funda seus alicerces na (re)configuração, na recriação do evento do mundo. O texto que construímos ou que chega até nós é fruto de uma certa maneira de fazer significar o evento; isso instaura a possibilidade de que, consciente ou inconscientemente, algo do real nos escape ou que instauremos no texto, segundo a fala da própria Perrone-Moisés, no trabalho acima citado, “algo que faltava no real”. Cabe aqui a ideia de que é o processo de (re)configuração e recriação que permite à “consciência agente” instituir a problematização do evento, do real. A mera informação, a simples referencialidade quase nunca é o alvo maior dos sujeitos da linguagem.

Quando problematizamos a nossa existência, os fatos e relações entre estes, demonstramos o que postula com muita propriedade Perrone-Moisés (2006, p. 103): “O mundo em que vivemos, o mundo em que tropeçamos diariamente, não é satisfatório. Essa é uma constatação a que se chega bem cedo na existência.” A problematização advém “da falta”, das lacunas, daquilo que deixa a desejar em nós e no mundo, da necessidade de compreender, validar, negar (perante outrem) eventos, ações, palavras. De que nos valeria, pois, a simples constatação dos fatos em asserções?

Em termos mais amplos, a crônica compõe-se, em seu conteúdo, das ocorrências contempladas no cotidiano, ou seja, de tudo aquilo que alimenta o tempo de vida dos homens em seu fluir, em sua transitoriedade, de questões sobre a vida e sua contraposição, a morte, de nossas relações mesquinhas, terríveis ou enriquecedoras, dos espaços comuns em que circulamos socialmente. Ela não pode ser a vida de apenas um homem, como bem atesta Parret (1988, p. 157, tradução nossa): “a vida cotidiana é publica, ela exige uma interpretação, uma compreensão, enfim uma semiótica. ” [2]

Os homens, em sua vida em sociedade, instituem, “inventam”, no dizer de Certeau (2007), o habitual, a cotidianidade: posturas, formas de ser, de agir e de falar ritualizadas, axiologizadas, iterativas. Dessa maneira, conviver, compartilhar ações e discursos é o que proporciona sentido à vida cotidiana. O habitual seria, então, a garantia de estabilidade para os homens? Parret fala da cotidianidade como “um princípio de organização da comunidade [...]” (PARRET, 1988, p.19). Nesse sentido, seria o caráter habitual, iterativo das formas de agir e falar o que torna possível as identidades e o vínculo social entre os seres, elementos que contribuem decisivamente na redução da incerteza e da possiblidade de ruptura do homem com seus próximos. As relações sociais, desse modo, tornam o ser agente capaz de buscar a coordenação, o equilíbrio entre a sua vida individual e sua vida social, ou, como diz Ricoeur (2007a, p. 141), “entre o indivíduo solitário e o cidadão definido pela sua contribuição à politeia, à vida e à ação da polis. ”

Desse trabalho executado pelos homens, derivam as relações ditas de pertencimento, como as conjugais, filiais e outras relações sociais mais ou menos dispersas entre os indivíduos. O que esperamos, portanto, como indivíduos ou cidadãos desses seres com os quais travamos relações, tecemos nossa vida diária, os quais fabulam conosco e com os quais fabulamos? Segundo Ricoeur, na obra citada acima, em que toma como base Santo Agostinho: que possam, muitas vezes, desaprovar nossas ações, mas que aprovem a nossa existência.

Em relação aos aspectos mencionados, percebemos que os laços que se vão criando entre os membros de dada comunidade, as identidades e os vínculos devem-se ao que podemos denominar de hábitos, maneiras de se proceder que os grupos humanos adquirem. Assim, criam- se as instituições e a vida cotidiana, que se constroem sob o signo das representações e reproduções que validam as práticas sociais.

Constatamos, pois, que as temáticas que envolvem a escrita das crônicas não fazem mais que fortalecer o gênero, já que a coparticipação e a pluralidade das experiências vividas no processo de interação viva entre os homens cotidianamente é o que dá sentido à própria vida e a sustenta.

Esse processo de semiotização da vida cotidiana é que conduz o sujeito a problematizar a partir da inquietude, da incerteza e do que gera agonia. Tal processo é engendrado a partir de um tempo interiorizado, subjetivado. Nesse ponto de tensão subjetiva, os acontecimentos da vida, os valores mundanos abrem espaço, ensinam ao homem que o relato e a história já estão germinados nesses acontecimentos e, reativados pela palavra, o sujeito, por meio dela, busca a intersubjetividade. Vejamos como nesta crônica de Carlos Heitor Cony tempo e espaço, subjetivados pelas modalizações linguístico-discursivas, se fundem: verticalidade-vida, horizontalidade-morte:

 

Quadro 1

 

3. Breve análise da crônica “O homem horizontal”, de Carlos Heitor Cony

O homem horizontal (texto integral)

Carlos Heitor Cony

 

Almocei no hotel onde me hospedaram, na rua Augusta. Fui a uma banca de jornais na Paulista. Num cruzamento, o pé bateu numa protuberância do meio-fio, dei passos desordenados, bêbado, súbito e irreparável. Desabei na calçada.

Tive tempo de proteger a cabeça, o peso do corpo ficou concentrado no ombro direito. Ainda bem. Se tivesse me apoiado nas mãos, teria sido pior - foi o que ouvi mais tarde do ortopedista.

Pior mesmo foi adquirir a perspectiva que o morto teria - se é que os mortos têm direito a qualquer perspectiva. No chão, contemplava o céu estranhamente azul da Pauliceia. E só não contemplei mais porque apareceram rostos penalizados. Formavam um círculo, o céu ao fundo.

Tudo demorou menos de meio minuto. Ajudaram-me a levantar, perguntaram se estava passando mal, disse que não, tudo bem. Saí do pequeno ajuntamento que se formou em volta.

Não sentia dor alguma, mas imensa, obscena humilhação. O homem vertical, que eu me julgava ser, tivera um momento de verdade. Não foi o meu primeiro tombo. Foi o mais espetacular, no meio da tanta gente.

Bastaram aqueles dois ou três segundos, estatelado numa calçada, o céu ao fundo, rostos alarmados formando um círculo em minha visão derrotada de homem horizontal.

Não sei se foi bom voltar à verticalidade que me dava direito de ser como os outros. Também verticais e apressados, que logo não me deram qualquer importância. No chão eu era importante? Ou apenas um transtorno na vida urbana, um cara atrapalhando o trânsito na calçada Paulista?

Sobrevivi à humilhação. Fui em frente. O homem vertical é postiço, provisório, como as medidas que o governo baixa todos os dias. Definitivo, passado a limpo, é o homem horizontal.

 

Fonte: CONY, 2000, p. 115-116.

 

Como atestamos pela leitura, o que é significativo aqui não é o tempo da ocorrência, mas o da vivência do fato explorado no relato. Podemos afirmar que é basicamente esse aspecto que constitui a matriz ética e estética da escrita da crônica. A vivência dos atos éticos: certeza da morte, transitoriedade da vida, eterno incômodo (por que não também do homem moderno?), entrave à existência plenamente despreocupada tornam-se objetos de uma estetização pela linguagem, de uma perspectivização da ocorrência pelo relato. Este levado a efeito por uma espécie de “recorte”, de pequeno ato da mise en scène mais ampla que é a vida, da maneira como o gênero crônica se propõe a contar. Digno de observação também é o fato de que a perspectivização e a reflexão, no texto, são levadas a cabo por um ângulo de visão inusitado (do chão), de uma altura “na qual variam acentuadamente as dimensões dos fenômenos da vida em observação” (BAKHTIN, 1997, p. 116).

A situação que vive o narrador-personagem cronista é uma situação-limite: daquele que se vê vítima (o tombo), capaz de provocar dois tipos de sentimento pelos quais o sujeito tem aversão, se se torna objeto deles: o riso (o deboche) e a piedade, pois, conforme o próprio cronista diz, “humilham” o sujeito. Ele se vê privado de sua dignidade, embora consiga recuperá-la, de certa forma, vencendo a humilhação pela via que é uma das marcas estilísticas e temáticas, uma das heranças do gênero em sua “archaica”: o filosofar era temática e estilo da menipeia. Eis que surge, ou, aliás, sempre esteve lá, o narrador-filósofo, esse que toma como objeto de suas reflexões exatamente as situações-limites da experiência humana, buscando nelas um saber (ético), aqui, definitivamente, estetizado. O trabalho com a linguagem demonstra o estilo elegante, sábio e, ao mesmo tempo humilde, desse ethos filosófico: “O homem vertical é postiço [...] definitivo, passado a limpo, é o homem horizontal” (CONY, 2000, p. 116), embora a veia do jornalista se manifeste “en passant” no texto “[...] como as medidas que o governo baixa todos os dias” (CONY, 2000, p. 116), pelas arestas da ironia.

Enfim, o que essa crônica nos traz é a constatação de que o gênero é a revigoração, é o renascimento da menipeia, com a sua marca inconfundível de fusão do sério e do cômico, de renúncia à unicidade estilística pela politonalidade jornalística, filosófica da narração; pela estruturação configuracional heterogênea: enredo da narração paralelo à reflexão.

 

Conclusão

Conforme vimos, a crônica é um gênero derivado do reavivamento, ao longo dos séculos, de uma particularidade da menipeia, a publicística atualizada (BAKHTIN, 1997). Sabemos, com Bakhtin (1998), que os gêneros modernos, derivados dos gêneros populares e profanadores, possuem em sua composição traços introspectivos marcantes. Estamos convictos, então, da grande importância de trazer à discussão esses elementos, pois os percebemos como um dos componentes caracterizadores das nossas crônicas, o que confirma, de forma patente, a afirmação desse autor.

Bakhtin (1998) esclarece que, na biografia e autobiografia antigas, o cronotopo (espaço e tempo) real de tais dados era a “ágora”, a praça pública. Segundo ele, nesse local, especificamente, “tomou forma a consciência autobiográfica e biográfica” (BAKHTIN, 1998, p. 251). Não nos surpreende, pois, que a crônica seja um espaço importante de verificação dessa consciência de si exteriozada, afinal, mutatis mutantis, esse espaço que o jornal instaura é exatamente o espaço para “tudo” (já sabendo, é claro, dos filtros de seleção de temas, fatos divulgados, etc., operados pelas mídias) aquilo que se quer ou se precisa tornar público, ser trazido à tona, ser visto, lido, ouvido, a respeito de si e dos outros.

Como sabemos, o “enfoque dialógico de si mesmo” (BAKHTIN, 1997, p. 120), o diálogo entre o próprio homem e sua consciência é o responsável pelos traços confessionais, introspectivos, enfim, autobiográficos nos textos. O trabalho do cronista é pensar o tempo da vida, inclusive da sua. O sujeito que conta compreende que a narrativa é “o guardião do tempo na medida em que só haveria tempo pensado quando narrado” (RICOEUR, 1997, tomo III, p. 417). Nas ações e nas narrativas que conta sobre si mesma, firmam-se a história e a cultura de uma comunidade social. E um dos gêneros modernos efetivos nessa operação de configuração/reconfiguração da realidade é a crônica. Concluímos nossas reflexões sobre elementos introspectivos nas crônicas, avaliando que o si mesmo (ipse), “um si instruído pelas obras de cultura que ele aplicou a si mesmo” (RICOEUR, 1997b, p. 425), constitui-se, em verdade, como o próprio Ricoeur diz, nas histórias que conta ou no que contam sobre si. É, enfim, uma consciência que se “examina” e que, por sua vez, se expõe ao exame que o outro fará, ao lê-lo, e à “avaliação externa” que farão dele, ou seja, sua identidade constrói-se, constitui-se, numa perspectiva mais ampla, dialogicamente.


Referências Bibliográficas

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução Aurora Fornoni Bernardini et al. São Paulo: Hucitec, 1998.

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 277-326.

CANDIDO, Antonio et al. A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas: UNICAMP; Rio de Janeiro: Casa Rui Barbosa, 1992.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 13. ed. Tradução Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 2007.

CONY, Carlos Heitor. O homem horizontal. Folha de São Paulo, São Paulo, 14 out. 2000.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

PARRET, Herman. Le sublime du quotidien. Amsterdam: John Benjamins, 1988.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Promessas, encantos e amavios. In PERRONE-MOISÉS, Leyla. Flores na escrivaninha: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 13-20.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução Alain François et al. Campinas: Editora da Unicamp, 2007a.

RICOEUR, Paul Tempo e narrativa (tomo III). São Paulo: Papirus, 1997b.


 


Data de Recebimento: 06/08/2018
Data de Aprovação: 01/10/2018

 

 

[1] Este trabalho é um dos produtos advindos da nossa tese de doutorado defendida no ano de 2010, na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas, na linha de estudos dos processos enunciativos.

[2]“la vie quotidiene [...] elle est publique, elle exige une interpretation, une compréehension, donc, une sémiotique” (PARRET, 1988, p. 157).