O indígena e a cidade: panorama das aldeias urbanas de Campo Grande/ MS


resumo resumo

Aleida Fontoura Batistoti
Karina Trevisan Latosinski



Introdução

 

A presença de indígenas nas cidades brasileiras é um fenômeno que está crescendo ao longo do tempo, no país há cerca de 817.963 mil indígenas, aproximadamente 315.180 mil vivem em área urbana. Em Mato Grosso do Sul - MS, segundo Estado com a maior população indígena do Brasil, esta relação é de 14.457 em áreas urbanas em uma população de 73.295 indígenas, 3% da população do estado (IBGE, 2010). O cenário multicultural do estado se configura através das etnias: Atikum, Guarani, Guató, Kadiwéu, Kaiowá, Kiniquinau, Ofaié e Terena, embora haja uma diversidade étnica, os Guarani-Kaiowá e Terena apresentam o maior número populacional indígena nesta região.

A cidade de Campo Grande/MS possui mais de 5 mil habitantes indígenas, caracterizando-se como o sétimo município do Brasil com o maior índice populacional indígena residindo na cidade (IBGE, 2010). De acordo com Sant’Ana (2004), destaca-se a etnia Terena com o maior número de habitantes na área urbana, cerca de 2.500 indígenas.

Não diferente das preocupações no meio rural, no espaço urbano o indígena também segue em resistência, na luta por território, por respeito à cultura e por melhores oportunidades e condições de vida. Além das dificuldades encontradas, ainda há um juízo popular que não os reconhece como indígenas se moradores da cidade, tornando-se fruto de um pensamento retrógrado "que o congela no tempo e no espaço, colocando-o em oposição à vida urbana e relegando-o ao atraso, à pobreza e à ignorância" (BAINES, 2001, p. 2). Dessa maneira, a inserção do índio nas cidades brasileiras, muitas vezes vistos morando nas ruas, reproduz o processo histórico excludente de lutas travadas desde o descobrimento do país.

A partir do alto percentual de indígenas que migraram de suas aldeias rurais para Campo Grande/MS, despertou-se o interesse pela pesquisa em questão, fruto da monografia do trabalho de conclusão da graduação em Arquitetura e Urbanismo. Contudo estabeleceu-se como princípio deste estudo, conhecer e compreender as diversas realidades vivenciadas por estes povos na referida cidade e, dessa forma, devido à relevância social e cultural do tema, expor a situação em que se encontram vivendo na capital. Portanto, objetiva-se com este estudo investigar o contexto em que se encontram os indígenas urbanos e de que maneira eles se apropriam da cidade conforme sua identidade.

O método utilizado consiste em levantamento bibliográfico, pesquisa in loco e consultas em órgãos públicos de distintas esferas, como: FUNAI, Agência Municipal de Habitação (EMHA), Agência Municipal de Meio Ambiente e Planejamento Urbano (PLANURB) e Agência Estadual de Habitação Popular de Mato Grosso do Sul (AGEHAB).

As AUs contidas no presente estudo foram escolhidas, pois eram as únicas existentes na época da pesquisa, e havia registros de dados oficiais comprobatórios que pudessem respaldar a produção desse trabalho. O intuito inicial era de conhecê-las - suas realidades e particularidades relacionadas com temas como moradia, inserção na cidade e políticas públicas, a fim de contribuir com as pesquisas já existentes e proporcionar visibilidade a essas AUs e os povos que nelas residem. Dessa forma, mostrar, também, o tipo de moradia pensada para essa parcela da população e suas histórias de resistência para ocupação do espaço urbano de Campo Grande/MS.

As etapas de levantamento de dados se deram ao longo do primeiro semestre do ano de 2016. Já o acesso às secretarias e órgãos públicos ocorreu por meio de ofícios e reuniões, e o contato com as comunidades indígenas aconteceu através do intermédio das lideranças, que articulavam os encontros e forneciam as informações sobre a história das aldeias, a população, a realidade da comunidade e outras questões pertinentes.

 Durante as visitas, foi realizado o registro fotográfico, como mecanismo de linguagem, para aproximar o leitor da temática e da realidade explicitadas nesse artigo. Assim, esses registros se mostraram importantes no decorrer da pesquisa, pois permitiram analisar a condição de vida e de habitabilidade desse povo no espaço urbano, bem como observar o desenho urbano, construção e/ou de adaptação de moradias, tanto nas ocupações quanto nos conjuntos habitacionais. Tal levantamento possibilitou traçar um panorama dos elementos de significação em funcionamento nos espaços urbanos ocupados.

 

Migração urbana: o indígena fazendo parte da cidade

 

A migração indígena oriunda do meio rural para a cidade de Campo Grande/MS existe há muitos anos. A princípio, esta migração se deu de forma intencional e temporária para a comercialização de produtos da roça e de artesanatos como adornos, tecelagem e cerâmica. : De acordo com Oliveira (1968), a partir de 1930[1], devido a uma epidemia de febre espanhola que afetou diversas reservas indígenas da região, houve uma aceleração do processo migratório e, assim, esse deslocamento, até então temporário, resultou na habitação permanente que recebeu o nome de Aldeia Urbana.

Segundo Silva e Bernardelli (2016), algumas cidades do estado do MS foram destino principal das famílias indígenas: Campo Grande, Aquidauana e Miranda. Os autores apontam que os motivos fundamentais para a ocorrência do êxodo da aldeia para a cidade se deram por problemas sócio territoriais, sanitários, de alimentação e renda, além de razões religiosas, conflitos de ordem política com produtores rurais e dificuldades de crescimento econômico dentro das reservas.

Para Mussi (2011, p. 207) “a presença de famílias indígenas fixadas nas periferias das cidades não é um fato novo; talvez o que seja realmente novo é o agravamento de suas condições de sobrevivência”. Ela, ainda, afirma que entre os indígenas Terena, as faixas etárias mais ativas no processo de êxodo são jovens e adultos entre 20 e 25 anos e 26 e 40 anos. Além dos indígenas que residem na cidade, ainda há, atualmente, um fluxo dos que saem das aldeias em busca de capacitação profissional e/ou estudo em nível superior, mas que a posteriori retornam para sua aldeia de origem, caracterizando um deslocamento temporário[2].

Em continuidade com a autora acima citada, a mesma reflete sobre equívocos cometidos por alguns estudiosos com relação à presença dos indígenas na cidade. Estigmas sociais direcionados às populações indígenas acabam influenciando de forma negativa e discriminatória as políticas de gestão social advindas de órgãos governamentais (ou não governamentais) afastando estes povos de seus programas e ações. Alguns autores afirmam que a ida do povo Terena para os centros urbanos causa graves consequências tanto para os indígenas quanto para os não indígenas; resultando, assim, em influências na identidade étnica por meio de crises gradativas de consciência e processos de destribalização e desaldeamento[3] decorrentes de relações sociais historicamente segregacionistas no espaço urbano (MUSSI, 2011).

Dessa forma, muitos tratam a migração como motivo de perda de valores culturais. Uma ponderação ressaltada por Engelman (2014) é que os indígenas sempre estiveram articulados aos processos econômicos e socioculturais e que a cidade definida geralmente como espaço da “modernidade” não é um contexto próprio desse povo. Assim, o autor afirma com relação ao território e à identidade, problemáticas específicas do contexto de vida urbana  que cabe ao indígena lutar por espaço de decisão e gestão pública nas cidades, integrando-se ao contexto em que vive.

Logo, deve-se considerar esta migração para os centros urbanos como uma busca de melhorias e oportunidades que a cidade oferece, e que não chegam às aldeias rurais, conforme analisa o antropólogo Stephen Baines:

  

A migração indígena para os centros urbanos ocorre de diversas maneiras, desde o translado de grupos familiares para bairros onde já há um contingente grande de índios organizados politicamente até casos de migração de indivíduos para a cidade em busca de empregos, tratamento de saúde, educação ou um novo estilo de vida. Se o índio migra para a cidade abandonando sua aldeia, algum motivo há e o mais conhecido é o da falta de apoio que o governo, por meio da FUNAI, tem deixado de dar-lhes (BAINES, 2001, p. 08).

 

 De acordo com as pesquisas in loco e revisões bibliográficas, a ida dos indígenas para a cidade de Campo Grande se deu, e tem se dado, devido à difícil realidade nas aldeias de origem: falta de assistência, de infraestrutura e de qualidade de vida. Migra-se para a cidade em busca de melhorias como: escola para os filhos, pois em algumas aldeias há apenas o ensino fundamental; atendimento à saúde, já que não há uma casa de saúde dentro da maioria das reservas; e, em especial, buscam trabalho, que nas reservas é escasso (devido à degradação do solo, falta de sementes e equipamentos para plantação).

Constata-se que mesmo com todas essas buscas por melhorias, pode ser identificado que na área urbana os povos indígenas também se deparam com dificuldades:

  

O migrante buscava encontrar na cidade boa escola para seus filhos, empregos com boas remunerações, melhores postos de saúde e lazer. Nesse sentido, a vida na cidade representava, para o Terena, a elevação do nível de vida em relação à aldeia. Contudo as realidades encontradas não eram nada favoráveis: geralmente os indígenas instalavam-se em bairros de periferia e os empregos encontrados estavam longe das expectativas. Além de todas essas dificuldades os Terena sofriam grandes discriminações, levando alguns, a situações extremas: a negação de uma origem indígena ou, até mesmo, (como constatamos em entrevistas) o castigo por parte dos pais aos filhos, quando estes diziam palavras no idioma tradicional (SANT’ANNA, 2004, p. 07).

 

 Banducci e Urquiza (2012), também demonstram alguns dos motivos que levam os povos indígenas a migrarem em direção à cidade: a escassez de terras, conflitos e atritos internos dentro das comunidades. Engelman (2014) descreve semelhante movimento na periferia de Buenos Aires, Argentina, mas que atualmente já conta com articulação política, econômica e cultural dos grupos étnicos com diferentes planos locais, estaduais e federais em consequência de uma organização própria dos indígenas.

A seguir serão apresentadas as AUs de Campo Grande/MS contextualizando-as na cidade, abordando suas histórias, formação/criação, condição de infraestrutura das moradias e das AUs. 

 

As aldeias urbanas de Campo Grande/MS

A área urbana de Campo Grande/MS é dividida em sete macrorregiões e os povos indígenas estão em todas elas, segundo dados disponibilizados pela FUNAI (2016), Figura 1. Na região central é clara a segregação social e espacial, já que o número de moradores indígenas é muito restrito em relação às demais regiões do município – mesmo considerando a proporção territorial do centro e outras regiões. Todavia, a região do Anhanduizinho apresenta o maior número de habitantes indígenas distribuídos nos bairros Centro Oeste, Lageado, Aero Rancho, Guanandi, Centenário, Alves Pereira, Pioneiros, Los Angeles, entre outros.

Figura 1 – Número de habitantes indígenas nas sete regiões urbanas do município

Fonte: Autoria própria, 2016

 

Analisando os dados sobre o total de indígenas em Campo Grande/MS, percebe-se que embora a região do Anhanduizinho seja a mais populosa, com 1163 habitantes indígenas, não há registro ou oficialização da existência de uma AU na referida localidade. Desse modo, essa população parece estar dispersa no tecido urbano, incitando o questionamento sobre: Quem são esses moradores indígenas da região? Como se organizam? Qual a etnia predominante? Qual contexto de moradia? Possuem amparo da FUNAI?

A denominação “Aldeia Urbana” não possui um significado unânime. Para a antropóloga Katya Vietta esse termo, em Campo Grande, surge para enfatizar um programa habitacional específico “no qual as casas se espremem em minúsculos terrenos e o espaço coletivo não vai além de ruas e calçadas” (VIETTA, 2012, p.08).

Para Silva e Bernardelli (2016), as AUs se configuram como locais onde se concentram populações indígenas que residem nas cidades. Em Campo Grande/MS, a maioria das AUs foi construída nas periferias do município, pelo poder público, como forma de atender reivindicações. Dessa forma, foram implementados conjuntos habitacionais a fim de garantir moradia às famílias indígenas.

Como apontado, as AUs identificadas em Campo Grande são majoritariamente, loteamentos e/ou conjuntos habitacionais construídos pela prefeitura e apenas uma pelo Governo do Estado[4]. Para a Prefeitura Municipal de Campo Grande são reconhecidas AUs aquelas construídas por meio de recursos provenientes do município ou do estado (quadro 1). Sendo assim, reconhecem quatro delas: Marçal de Souza, Água Bonita, Tarsila do Amaral e Darcy Ribeiro (CAMPO GRANDE, 2014).

 

Quadro 1 – Aldeias Urbanas reconhecidas pela prefeitura de Campo Grande – MS

 

Aldeia Urbana

Marçal de Souza

Água Bonita

Darcy Ribeiro

Tarsila do Amaral

Localização

Bairro Jardim Tiradentes

Bairro Nova Lima

Bairro Jardim Noroeste

Bairro Nova Lima

Órgão público responsável pela implantação

Agência Municipal de Habitação de Campo Grande

Agência de Habitação do Estado do Mato Grosso do Sul

Agência Municipal de Habitação de Campo Grande

Agência Municipal de Habitação de Campo Grande

Ano de implantação

1999

2001

2007

2008

Estrutura

115 casas e

1 centro cultural

60 casas e 1 centro comunitário

98 casas

70 casas

Etnias

Guarani, Kadiwéu, Terena

Guarani, Kadiwéu, Guató e Terena

Terena e Guarani

Guarani, Terena e Kadiwéu

População

170 famílias

69 famílias

115 famílias

80 famílias

 

Fonte: Adaptada pela autora (PRÓ-ÍNDIO, 2013)

 

 

Cada AU tem suas particularidades, entretanto, elas partilham semelhanças: estruturas precárias de moradia, ausência de serviços de saúde e de educação específicos para indígenas, falta de espaços públicos e lazer, criação de aldeias distantes da cultura indígena, localizadas nas periferias da cidade e à margem da sociedade - com exceção da Marçal de Souza que se encontra melhor localizada devido à expansão urbana na região.

As casas construídas pela prefeitura e pelo estado não foram suficientes para suprir a demanda populacional indígena no espaço urbano. Segundo a Comissão PRÓ-ÍNDIO (2013, p. 24), em “três aldeias urbanas municipais (Marçal de Souza, Darcy Ribeiro e Tarsila do Amaral), o direito à moradia foi conquistado a partir de ocupações”.

Há também AUs em contextos de ocupação e que estão em busca de moradia de qualidade e regularização, na Água Bonita e Darcy Ribeiro existem ocupações lutando por moradia, e a Santa Mônica – Tumune Kalivono ainda não foi beneficiada e resiste há quase 5 anos em ocupação. Além dessas, existem casos de aglomerados urbanos que se organizam com a figura de uma liderança (famílias residindo em torno da liderança central de um cacique[5]), nessa configuração, a FUNAI os reconhece como uma AU.

Os indígenas dentro do espaço urbano possuem diversas organizações sociais, como forma de pressão política e ferramentas de lutas. Assim, criaram-se associações, cujo objetivo é lutar por direitos de diferentes ordens, que, em sua maioria, são negados a esses agentes sociais (SILVA; BERNARDELLI, 2016). A principal causa levantada por eles é a da moradia adequada, que através de árduas caminhadas conquistaram a construção dos conjuntos habitacionais implementados pelo poder público.

As AUs criadas em Campo Grande/MS possuem pouca conformidade com a cultura indígena ou características que remetam a uma aldeia. O Estado quando garante habitação de interesse social, apresenta modelos repetidos e com dimensões padronizadas, sem se preocupar com a configuração da família indígena e seus hábitos culturais. Portanto, a aplicação desses modelos dificulta a manutenção dos vínculos com a cultura e costumes indígenas, além de não possibilitar a visibilidade dessas aldeias/indígenas dentro dos bairros onde estão inseridos.

As visitas in loco permitiram que se observasse essa situação. Verificou-se que a maioria dos moradores, mesmo sem uma assistência técnica especializada, reorganiza o espaço das casas e modifica as residências, criando novos cômodos, “puxadinhos”, varandas, mais quartos, banheiros na parte de fora da casa, etc. As modificações são realizadas a fim de obter um ambiente maior e mais confortável para a família, adequadas ao modo de habitar indígena. Percebe-se assim que, talvez não haja uma participação da comunidade no processo de criação das aldeias e residências, uma vez que são realizadas diversas modificações.

A realização dessas alterações sem a devida assessoria torna possível que ocorram problemas estruturais, problemas de conforto térmico e ventilação, iluminação, mau aproveitamento dos espaços, entre outros. Tal situação poderia ser diferente se as habitações atendessem ao perfil dos moradores, se os mesmos fossem consultados para que suas necessidades e modos de vida fossem entendidos, ou mesmo se houvesse projetos para possíveis ampliações.

Na área urbana, além de enfrentar as questões relatadas acima, os indígenas também se deparam com a carência significativa no setor educacional quando se trata de uma educação voltada para comunidades tradicionais. Na realidade vivida por esses povos em Campo Grande, há apenas uma escola bilíngue – português/terena – que atende a essa demanda: a Escola Sulivan Silvestre, localizada na aldeia Marçal de Souza e administrada pela prefeitura. Em sua maioria, as crianças e adolescentes estudam em escolas municipais e estaduais, sem que tenham uma educação diferenciada; segundo os mesmos, não se reconhecem nos lugares onde estudam, pois, o ensino não contempla sua diversidade, pelo contrário, reforça o modelo hegemônico de educação, que acaba os inferiorizando e oprimindo (BHABHA, 1998, apud URQUIZA E VIEIRA, 2012).

Pode-se perceber que são muitas as dificuldades que o indígena se depara ao residir no espaço urbano, e, de acordo com a Comissão Pró-Índio (2013), a indefinição fundiária seria um dos motivos que dificultam o acesso a programas e benefícios. Os mesmos relataram que:

  

Segundo o cacique Nito Nelson, da aldeia urbana Água Bonita, é no momento em que se pede “o documento de terra indígena” que os projetos são inviabilizados. A expectativa dos índios é que, a partir da regularização, eles possam contar com a aplicação de políticas públicas diferenciadas — como as de educação e saúde — que atualmente são voltadas somente para terras indígenas demarcadas (PRÓ-ÍNDIO, 2013 p. 27).

 

 Ao refletir sobre as questões ligadas à regularização, é necessário ressaltar que, das seis AUs apresentadas nesse artigo, duas possuem assentamentos (Água Bonita e Darcy Ribeiro) e uma ainda não foi beneficiada com projeto habitacional, configurando-se apenas como uma ocupação (Santa Mônica). Os habitantes da Indubrasil ainda não foram beneficiados, em sua totalidade, com projetos habitacionais e grande parte reside pagando aluguel.  

A figura 2 apresenta a localização das AUs dentro das macrorregiões da cidade de Campo Grande/MS. Pode-se observar que há a presença de moradores indígenas em todas as macrorregiões da cidade, contudo, a existência das AUs se dá apenas em algumas regiões.  A partir da mesma figura é possível ratificar a afirmação do que é trazido ao longo do texto sobre as AUs estarem em contexto de periferia, às margens da cidade.

 

Figura 2 – Localização das Aldeias Urbanas estudadas no perímetro urbano de Campo Grande/MS

Fonte: Autoria própria, 2016

 

Após esse um panorama geral sobre as AUs existentes em Campo Grande/MS, a seguir serão apresentadas brevemente as seis AUs estudadas.

 

Aldeia Urbana Marçal de Souza

A Marçal de Souza é a única aldeia que possui escritura, enquanto as demais são acordadas apenas através de contratos[6]. Em termos de políticas públicas, não há assistência suficiente para os indígenas urbanos e poucos conseguem acesso aos benefícios, obrigando-os a buscar por melhorias e pela garantia de seus direitos, que muitas vezes não saem do papel.

Localizada no bairro Tiradentes, zona leste da cidade, é conhecida internacionalmente por ser a primeira AU do Brasil. A principal liderança desta aldeia foi uma mulher, a cacique Enir Bezerra, pioneira ao assumir um cargo frequentemente ocupado por homens. Foi construída pela Agência Municipal de Habitação de Campo Grande (EMHA), através de recurso federal do programa Habitar Brasil, da extinta secretaria de Desenvolvimento Urbano da Presidência da República (hoje Ministério das Cidades) em parceria com a Caixa Econômica Federal e Prefeitura municipal de Campo Grande (SANTANA, 2016). O nome é em homenagem ao grande líder Guarani, Marçal de Souza, que foi assassinado por fazendeiros, em 25 de novembro de 1983 em uma emboscada.

A área ocupada pertencia à FUNAI e estava inutilizável, correndo risco de ser perdida para posseiros. Elaborou-se uma estratégia de ocupação para que não se perdesse a área e ocorresse uso em consonância com as necessidades da população, principalmente moradia (VIETTA, 2012)[7].

De acordo com a assistente social da EMHA, Iara Santana, a ida desses povos para a área e a situação na qual eles estavam colocados na época:

  

Com a redução de suas terras e a extinção do trem do pantanal em 1995, esse grupo se instalou na área pertencente à FUNAI entre os bairros Tiradentes e Flamboyant, ali viveram até meados de 1999 de forma desumana, em moradias precárias, feitas com papelão e restos de madeiras, porém, de certa forma organizada. No local, construíram em forma de mutirão e com muito esforço uma escola, na tentativa de preservar a sua cultura, a sua língua, revelando a sua capacidade de luta para não desaparecer. Os mais velhos reconstruíram, no dia-a-dia, a história do povo Terena, contada de pai para filho (SANTANA, 2016, p.1)

  

A área da aldeia é de quatro hectares. Em 1999 a prefeitura realizou o loteamento de 135 terrenos, tamanho padrão 10x20m, fornecendo os materiais para que os moradores em forma de mutirão construíssem as habitações em alvenaria (VIETTA, 2012). Os moradores pagaram 10% do salário mínimo pela casa, e após a quitação eles passam a ter a titularidade. A comunidade possui, em média, 170 famílias, variando de 700 a 1.050 hab. (CAMPOS, 2006).  

A figura 3 apresenta o projeto arquitetônico da habitação (planta de situação, planta baixa, planta de cobertura, fachada e perspectiva). As habitações construídas tem 35.94m², sendo a casa 28,80m² e a varanda com 7,14m², ainda composta por sala e cozinha integrada, banheiro, um quarto e varanda.

 

Figura 3 - Projeto arquitetônico

Fonte: Biblioteca – PLANURB, 2017

 

Tal configuração, com apenas um dormitório, se torna problemática pela composição familiar indígena, normalmente composta por famílias grandes, quando não há duas famílias vivendo na mesma casa. Embora o telhado remeta o formato redondo, lembrando as antigas ocas, não há tantas características indígenas na composição das casas. Logo, não há formas, materiais, pinturas ou desenhos com a identidade dos usuários, e não foi considerada a questão do espaço adequado ao tamanho das famílias.

A presente pesquisa não teve acesso a outros materiais técnicos para compreensão completa do projeto, entretanto o que foi levantado in loco foi que, em sua maioria, as casas foram ampliadas de diversas formas parecendo não ter um padrão determinado. Há que se considerar questões como ampliações futuras e acesso à assessoria técnica para modificações.

A figura 4 é uma foto de 2007 da habitação construída nessa aldeia e, em paralelo, a figura 5 ilustra como se encontra atualmente, com muros, novos cômodos, revestimentos. Observa-se a falta de padronização nas ampliações e cercamentos.

 

  

Figura 4 - Habitações da AU Marçal de Souza em 2007

Fonte: André Campos, 2007

 

Figura 5 - Habitações da AU Marçal de Souza em 2011

Fonte: Google Maps, 2011

 

Banduci e Urquiza (2012, p. 9) também reforçam que as casas não atendem as populações indígenas que ali vivem:

  

As casas da Aldeia Marçal de Souza foram projetadas pelos técnicos da Empresa Municipal de Habitação (EMHA) e possuem como único diferencial a cobertura da varanda, que lembra vagamente a de uma moradia indígena. No mais, trata-se de casas populares comuns a qualquer bairro de periferia urbana. Se do ponto de vista social foi uma conquista considerável, da perspectiva do respeito à cultura e aos costumes dos índios e, da mesma forma, em relação a um projeto de exploração turística, as casas estão longe de cumprir o objetivo de atender e valorizar a etnia Terena e de constituir-se em diferencial capaz de estimular a curiosidade de visitantes.

  

 

Próximo às habitações no centro do loteamento, foi construído o Memorial da Cultura Indígena, Figura 6, utilizado para exposição, comercialização de artesanatos e ponto turístico da capital. É composto por duas edificações interligadas, na forma de oca com um recorte em L e coberto com palha e bacuri, (fibra natural própria da região)[8]. O complexo ocupa uma área de 340 m² cercada por grades e portões que dão acesso ao memorial e jardim (BANDUCCI E URQUIZA, 2012).

 

 

Figura 6 - Memorial da Cultura Indígena, fazendo parte da composição da AU

Fonte: Deivid Correa, 2014

 

            Ainda sobre o memorial da cultura indígena, os antropólogos, Banducci e Urquiza (2012) pontuam que não há estímulos por parte dos indígenas em ocupar o espaço, salvo em ocasiões especiais para realização de apresentações:

  

De fato, o que serve de atrativo turístico nesta aldeia urbana, menos que os índios, é o Memorial da Cultura Indígena, construído pela Prefeitura Municipal, no interior do loteamento, no ano de 1999. (BANDUCCI, URQUIZA, 2012, p. 09)... Até alguns anos atrás, os portões permaneciam trancados e os índios eram impedidos de entrar na área, acusados que eram de danificar o bem público.  (2012, p. 10)

 

  

Na AU, encontra-se a Escola Municipal Bilíngue Sulivan Silvestre “Tumune Kalivono” nome em memória ao presidente da FUNAI da época e em Terena significa Criança do futuro. Foi criada em 1999, oferece ensino infantil e fundamental até o 5º ano e atende alunos indígenas e não indígenas (PRO ÍNDIO, 2013), ela se diferencia por ser a única dentro de uma AU com o ensino focado na cultura indígena, há professores indígenas e disciplinas de língua e cultura terena, outra característica é a alimentação que também é diferenciada conforme os hábitos indígenas[9].

 

Aldeia “Urbana” Água Bonita

 

Segundo o perímetro urbano estabelecido pela lei municipal, Água Bonita encontra-se na divisa entre a área urbana e a rural do município. Para AGEHAB, órgão responsável por sua construção, a mesma não é uma AU e sim uma aldeia rural; já para prefeitura, FUNAI, pesquisadores, alguns indígenas, entre outros, ela se categoriza como AU, pelo fato da proximidade com a cidade[10].

O surgimento da AU Água Bonita começou quando 32 famílias que moravam na ocupação que originou a Marçal de Souza, não foram beneficiadas pela iniciativa municipal, sofrendo uma ação de reintegração de posse. As famílias foram desalojadas, porém obtiveram permissão de utilizar em caráter provisório um terreno particular no bairro Jardim Noroeste. Permaneceram por cerca de um ano, quando o Governo do Estado utilizou recursos próprios e federais, para assentar 60 famílias indígenas na Chácara Água Bonita, motivo pelo qual a aldeia recebeu esse nome (VIETTA, 2012).

A AU foi implantada em maio de 2001 e localiza-se no Bairro Nova Lima, parcelamento Vida Nova III, na zona norte da cidade (Figura 7). Foi beneficiada pelo programa “Che Roga Mi” da AGEHAB. De acordo com Silva e Bernardelli (2016) o acesso das famílias indígenas para as unidades habitacionais se deu através do convênio entre o Governo do Estado por meio da Agência Estadual de Gestão de Empreendimentos e da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano de Mato Grosso do Sul (CDHU/MS) e a Associação e índios desaldeados Kaguateca Marçal de Souza.

 

Figura 7 – Implantação da aldeia

Fonte: Autoria própria, 2017

 

A AU consiste em uma pequena parcela de 13 dos 36 hectares da Chácara Água Bonita, constituindo-se 5 hectares de área construída e 5 hectares de reserva ambiental administrada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA – (VIETTA, 2012). O projeto da AGEHAB atendeu a construção de 60 casas de alvenaria, em que as famílias assinaram contrato de financiamento para aquisição dos materiais de construção. Segundo o contrato, o valor unitário equivale a 5% do salário mínimo nacional e foi financiado em 120 parcelas mensais consecutivas.

Existe no fundo da comunidade, utilizando uma parcela destinada à Área de Proteção Permanente, uma ocupação com 200 famílias composta por indígenas e não indígenas, que foi ocupado a partir do ano de 2013. As condições de vida desses moradores são instáveis, morando em barracos de madeira, lona e materiais reciclados, sem infraestrutura e lidando diariamente com a precariedade imposta pela busca de melhorias de vida. 

As casas construídas pelo governo não contam com rede coletora de esgoto, e a maioria dos proprietários não possui o documento fundiário definitivo, o que dificulta o acesso a programas e benefícios sociais. Conforme informações do cacique Nito (2017), atualmente a quantidade de indígenas na comunidade é de 794 habitantes. Entre todas as AU, a Água Bonita foi à única construída pelo Governo do Estado, e também a única que não seguiu o loteamento de acordo com a malha urbana, sua implantação se assemelha ao tipo de locação característica de aldeias tradicionais.

Devido a sua localização, a paisagem da mesma é um diferencial entre as AUs; ela é a única que contém uma extensa área, proporcionando novos convívios e relações, remetendo em certos momentos a ruralidade presente nos modos de vida dos moradores e ao mesmo tempo se deparando com conjuntos habitacionais a sua margem trazendo a inserção dela para o meio urbano. A área da reserva ambiental contribuiu com a paisagem e os moradores acabam se beneficiando tanto pelo lado ambiental como por amenizar o impacto urbano.

Figura 8 – Habitação sem modificações, ano de 2011

Fonte: Google Maps, 2011

 

A Figura 8 registra a habitação construída pela AGEHAB, que possui uma varanda na parte central, criando dois volumes, trazendo versatilidade ao projeto e possibilitando futuras ampliações de diversos usos, de acordo com cada morador. As habitações recebem em suas fachadas pinturas diversas que caracterizam as etnias presentes na comunidade. Contudo, pode-se percebe, que grande parte das habitações foram alteradas, fecharam o espaço vasado para criar novos cômodos e terem mais espaço (Figura 9). 

 

 

Figura 9 – Habitações modificadas da aldeia Água Bonita

Fonte: Autoria própria, 2016

 

Desde 2011, os moradores solicitaram o apoio do Ministério Público Federal, para a regularização de suas terras para que se reconheça aquela área como terra indígena. “O Ministério Público Federal instaurou o Inquérito Civil Público nº 148/2011/PR-MS, de 06 de julho de 2011 para apurar a questão que continua pendente” (COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO, 2013).

Nos fundos da AU, próximo à horta, existe uma ocupação, como mostra a figura 10, com 135 famílias residindo em 128 barracos, cuja ocupação iniciou-se em 4 de outubro de 2013[11]. Pode-se observar a precariedade na qual vivem, na lutam pela garantia de moradias dignas. Existe uma escola com o objetivo de acompanhar a educação das crianças e jovens, servindo como local de reforço também.

  

 

 Figura 10 - Ocupação nos fundos da AU Água Bonita

Fonte: Autoria própria, 2016

 

Há uma horta comunitária, que serve para consumo e renda para aqueles que trabalham nela. Em algumas residências, existem hortas menores para consumo próprio. Segundo a liderança Nito Nelson, 22 famílias trabalham na horta, 90% da produção é vendida e 10% é destinada à doação, tanto para a comunidade quanto para instituições como CRAS e escola.

Na parte central da aldeia há um centro comunitário, conforme a figura 11, que estampa cinco pinturas, presentes também nas habitações, cada uma representando etnias presentes na comunidade, Kaiowá, Guarani, Terena, Kadiwéu e Guató, o espaço é utilizado pela comunidade como local de encontro e reuniões[12].  Seu formato não remete diretamente a uma oca, possui composição é bastante simples em alvenaria, sem explorar novas tecnologias e nem se apropriar dos materiais utilizados pela cultura indígena.

 

 

Figura 11 – Centro Cultural da AU – As pinturas remetem as 5 etnias existentes

Fonte: Autoria própria, 2016

 

A liderança da comunidade, Nito Nelson (2017), conta que sofreu grande discriminação por estar na cidade e que basicamente três motivos os levaram para a cidade: a busca por melhorias para suas famílias (educação, saúde e profissão/trabalho), desentendimentos nas aldeias de origem e a representação dos indígenas.

Aldeia Urbana Darcy Ribeiro

A história de criação da AU Darcy Ribeiro é abordada nos estudos da antropóloga Katya Vietta (2012). A autora elucida que a ocupação da área centro-sul no bairro Jardim Noroeste está relacionada com a questão da moradia, como: complicações em pagar aluguel ou outras formas de aquisição de imóveis.

Assim, no período de março de 2003 e abril de 2007, cerca de 100 famílias oriundas dos municípios de Miranda, Aquidauana, Nioaque, Anastácio, já dispersas pelos bairros da cidade ou coabitando com parentes na Marçal de Souza, acamparam na região com o intuito de conquistar melhorias nas políticas públicas habitacionais para o seu povo.  Houve casos de muitos migrarem para diferentes lugares da cidade e outros retornarem para a aldeia, houve muita dificuldade devido ao frio, falta de alimento e abastecimento de água e energia elétrica (VIERA, 2015).

 

  

[...] em 2006 eles foram procurados pela prefeitura durante a gestão de Nelson Trad Filho, para negociar a aquisição dos terrenos que, em parceria com o governo do Estado e a Caixa Econômica Federal, construiu o “residencial indígena” Darcy Ribeiro, formada por 98 casas populares e entregue aos terena em abril de 2007. Hoje moram 119 famílias nesta “aldeia”, as quais ainda aguardam o cumprimento da promessa de construção de uma escola, um centro cultural e um posto de saúde (VIETTA, 2012, p. 15).

 

 

  

Darcy Ribeiro, a segunda AU construída pela prefeitura, foi implantada quase dez anos após Marçal de Souza e localiza-se no bairro Noroeste[13], zona leste da cidade. Sua construção se deu através do programa de Urbanização, Regularização e Integração de Assentamentos Precários, com fonte de recurso do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS).

As casas foram construídas com tipologias padronizadas de dimensões reduzidas e sem elementos que remetam os hábitos ou costumes dos indígenas, apresentada pela Figura 12, semelhante lógica se propõe ao centro comunitário. A construção se deu em regime de produção em empreitada, quando foram construídas 98 casas em 2007 (SANTANA, 2016). Atualmente moram 119 famílias na AU.

 

 

 

Figura 12 – Habitações da AU Darcy Ribeiro

 

Fonte: Autoria própria, 2016

 

Segundo a liderança Getro Fonseca (2017), o nome da AU não representa a comunidade, pois a ideia inicial era o nome de Mario Tirubio, um patrício que viveu e morreu na comunidade, entretanto a prefeitura determinou o nome impondo sua autoridade[14].

 Ao lado da AU Darcy Ribeiro encontra-se a o assentamento Estrela do Amanhã, desde abril de 2011, composto por indígenas da etnia Terena, Guarani e Kaiowa em sua maioria vindos da aldeia Taunay de Aquidauana - município a 118 quilômetros de Campo Grande. Existem 48 barracos, todos em madeira, lonas e outros materiais precários, figura 13[15].

 

 

Nesse cenário, buscam reconhecimento a partir de suas características culturais, e tentam afastar a imagem de que o índio pertence à mata e deve permanecer na aldeia, distante da sociedade não indígena. “A gente se sente isolado, esquecido, é como se a gente não existisse”, disse Luciane de Almeida, mãe de cinco filhos, e que vive com a família em um barraco de dois cômodos (MALAGOLINI, 2016, p. 1).

 

 

 

 

 

Figura 13 – Ocupação Estrela do Amanhã

Fonte: Autoria própria, 2016

 

As ocupações indígenas no bairro Jardim Noroeste ocorrem de forma espontânea desde a década de 1980. Hoje a população indígena do bairro vai além da AU e do assentamento, existem também famílias dispersas no bairro, totalizando cerca de 50 casas. Nessa aldeia é bastante presente a precariedade dos barracos nas ocupações, observou-se a falta de infraestrutura e o expressivo número de moradias sem acesso ao saneamento básico (VIETTA, 2012). Além da Associação dos moradores da AU Darcy Ribeiro, existe a Associação dos moradores indígenas do Jardim Noroeste, sendo composta por indígenas que vivem fora da AU e estão dispersos pelo bairro, morando de aluguel, com familiares ou já adquiriram a casa própria.

 

Aldeia Urbana Tarsila do Amaral

O loteamento Tarsila do Amaral, localizado na periferia da cidade, no Bairro Nova Lima, zona norte, foi construído pela Prefeitura de Campo Grande com recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). A comunidade é reconhecida como AU pela prefeitura, localizada no mesmo limite que a AU Água Bonita, porém não é visível uma conexão de ambas. As características entre elas são díspares, a arquitetura na Água Bonita traz elementos da cultura indígena, diferentemente da Tarsila, em que suas unidades habitacionais seguem o padrão ordinário da Agência Municipal de Habitação. Outra disparidade é a população, uma vez que o parcelamento Tarsila do Amaral é composto majoritariamente por não indígenas, pois seu conjunto habitacional, entregue em 2008, é composto de 286 casas e apenas 70 delas foram destinadas para a população indígena.

Visando fazer valer o acordo inicial com o Departamento de Terras e Colonização de Mato Grosso do Sul (Terrasul), em agosto de 2006, famílias indígenas ocuparam parte do loteamento destinado à construção do Conjunto Habitacional Tarsila do Amaral. Após dois anos de existência, o acampamento era composto por aproximadamente 500 pessoas, articuladas a partir da Associação de Moradores Indígenas do Tarsila do Amaral - AMITA e do Clube de Mães fundado pelas indígenas e tendo Alicinda Tibério como líder (VIETTA, 2012).

 

Aldeia Urbana Núcleo Industrial (Indubrasil)

Na zona Oeste de Campo Grande, no bairro Núcleo Industrial, parcelamento Vila Entroncamento, existe uma comunidade indígena, reconhecida pela FUNAI como AU do Núcleo Industrial, conta atualmente com 200 famílias, cerca de 500 pessoas, em sua maioria indígenas Terena, oriundos das aldeias Água Bonita, Taunai/Ipegue e Bananal. Existe também uma família Kinikinau, e algumas Guarani provenientes do município de Dourados (VIETTA, 2012).

De 1998 a 2000 alguns pioneiros dessa comunidade moravam na beira dos trilhos ferroviários na saída da cidade, próximo ao núcleo industrial. Viveram por dois anos juntos a não indígenas, e no ano 2000 a Prefeitura fez um projeto de alocação dessas famílias para o núcleo industrial, onde hoje se localiza esta aldeia. Dos beneficiados atendidos, apenas 10 eram famílias indígenas e o restante não indígenas.

Durante a pesquisa de campo, Oid Felipe, liderança da comunidade, relatou a difícil situação nas aldeias rurais e afirmou que precisam caminhar com a tecnologia, precisam da máquina para avançar com o trabalho nas Terras Indígenas (TIs). A respeito dos contextos urbanos, ele aponta que as crianças estudam no colégio do próprio bairro e frequentam o posto de saúde mais próximo das residências, que frequentemente encontra-se sem médicos.

Com a passar do tempo, a presença indígena se tornou forte na região, formando então a AU do Indubrasil. A grande maioria das famílias vive de aluguel, pagando em média 500 reais por mês. Através da Associação Indígena do Núcleo Industrial Indubrasil, as 200 famílias indígenas lutam e reivindicam a criação da 5ª AU em Campo Grande, demanda que desde 2008 os indígenas apresentaram ao poder público (CAMPO GRANDE, 2012).

Um projeto habitacional para essa AU proporcionará benefícios diversos para as famílias indígenas, permitindo maior interação e organização enquanto comunidade, possibilitando um investimento em seus lares e na comunidade, como a criação de um espaço coletivo, pois, atualmente, a comunidade reúne-se em casas cedidas pelos moradores para realizar suas reuniões, devido à falta de infraestrutura.

 

Aldeia Urbana Santa Mônica - Tumune Kalivono

Até o presente estudo (2017), esta é a última AU formada em Campo Grande/MS, localizada no Bairro Popular, no parcelamento Santa Mônica II, zona oeste da cidade. A AU recebeu o nome de Tumune Kalivono, que na língua Terena significa criança do futuro, pois no ato da ocupação, em 22 de junho de 2014, era tempo de chuva e frio e a única criança que estava na ocupação adoeceu precisando ser hospitalizada. Além do fato, o nome homenageia todas as crianças da comunidade, segundo relato do líder Romualdo (2016).

A comunidade ocupou um terreno da prefeitura que estava vazio e desocupado há anos. Assim como as demais AU, a ocupação é uma forma de resistência e luta por moradia praticada pelos povos indígenas no contexto urbano.  Antes de ocuparem a área, em 2008, migraram da região Taunay/Ipegue, das aldeias de Bananal, Lagoinha, Ipegue, Água Branca, do município de Aquidauana/MS e Sidrolândia/MS.  

 

 

 

 

A necessidade de se constituir uma aldeia no bairro surgiu no momento em que o grupo percebeu que algumas práticas tradicionais não estavam sendo mais realizadas pelo fato de estarem na cidade. Nesse sentido, acreditam que, com a criação da aldeia indígena urbana Santa Mônica, poderiam voltar a falar a língua indígena, realizar rituais, danças e algumas práticas, como benzimento de crianças pelos xamãs (VIEIRA, 2015, p. 125).

 

 

A figura 14 representa a ocupação espacial da AU, em 2017, nota-se que a ocupação segue um modelo de loteamento e divisão de lotes conforme a malha urbana, com duas ruas - projetada 01 e projetada 02 - dentro da AU onde circulam pedestres e carros. Com cerca de 60 lotes, a área na qual eles ocuparam não permitiu a criação de outros espaços, devido ao espaço limitado da área, e pela demanda emergencial de moradias.  

 

Figura 14 – Marco da área na qual a comunidade ocupa

Fonte: Autoria própria, 2017

 

 

 

As casas, em sua maioria, são barracos de madeira e lona, algumas são em alvenaria feita pelos próprios moradores como forma de fixarem-se no local e garantirem seu espaço, sem esperar a intervenção do poder público. Sua população é de, em média, 60 famílias com cerca de 255 pessoas.

A comunidade localiza-se nas proximidades do Aeroporto Internacional de Campo Grande, e do Núcleo Industrial do Indubrasil. Segundo Carlos Magno Vieira (2015), “os moradores indígenas trabalham em empresas que estão situadas nas proximidades do bairro, principalmente na região do Indubrasil. Muitos exercem atividades em fábricas de sapatos, roupas e refrigerantes.”.

A língua, as tradições e culturas indígenas são bem presentes dentro da comunidade, eles têm um grupo de jovens que realiza apresentações de danças Terena em universidades e diversos eventos. Pela comunidade há grafismo indígena desenhado nos postes e no centro comunitário, observa-se o esforço para preservar sua identidade, principalmente das crianças, para que não se perca com a vivência na cidade. Entre os lotes encontra-se um centro comunitário, construído pelos moradores, onde ocorrem as reuniões, festividades e eventos de modo geral, como pode ser visto na figura 15, as outras fotos são residências. Existe também uma igreja em alvenaria construída pela comunidade.

 

 

Figura 15 – Centro comunitário e residências da Aldeia Santa Mônica

Fonte: Autoria própria, 2016

 

A comunidade segue em resistência e em busca de consolidação e políticas públicas voltadas para moradia, e quem sabe, com a “oficialização por parte do poder público” de mais uma nova AU. Conforme traz o Cacique Romualdo (2016), a principal demanda é por moradia digna, eles querem um loteamento indígena. Ter uma moradia de qualidade garante melhores condições de vida, principalmente quanto ao estado de saúde.

Considerações finais

Este trabalho propôs elaborar um panorama sobre as Aldeias Urbanas em Campo Grande/MS. Dessa forma, foi possível identificar os motivos pelos quais ocorreram os processos migratórios para a cidade: lutar por melhorias de vida, já que nas aldeias/reservas passam por dificuldades diversas. Entretanto, nota-se que sua inserção na área urbana não se dá tão facilmente, gerando luta para conquistar esses anseios que impulsionam a migração.

O deslocamento dos indígenas para o espaço urbano de Campo Grande/MS não é um fenômeno novo, todavia, com o passar do tempo, os índices de migração aumentaram consideravelmente, e consequentemente a organização política espacial dos mesmos intensificou-se. Observou-se em Campo Grande/MS o fortalecimento e a organização de grupos indígenas na luta por reconhecimento e reivindicação de território na cidade ao longo dos anos, movimento semelhante visto em outros municípios da América Latina.

O estudo apresentado dá visibilidade ao contexto no qual esses povos estão inseridos: aldeias que em alguns casos restringem-se apenas a moradias em conjuntos habitacionais ou em ocupações informais nas periferias da cidade, habitações pequenas que não atendem à cultura indígena e suas peculiaridades, em situação precária de infraestrutura, sem espaços coletivos e de lazer, e relegados pelos órgãos públicos.

Ainda, pode-se constatar que as condições encontradas no município são de exclusão e sub-habitação. Desse modo, a ocupação indígena em áreas urbanizadas carece de uma visão antropológica e gestão de acordo com as demandas da cidade contemporânea: anseio por moradia, trabalho, educação, visualização e participação nas decisões urbanísticas. Assim, em dissonância com a visão arcaica de que as mudanças para o meio urbano trariam somente perdas culturais às populações indígenas.

Nota-se que o desenho arquitetônico e o desenho urbano são minimamente explorados nas construções das aldeias urbanas e loteamentos, no que diz respeito aos elementos da cultura indígena. Além de reproduzirem padrões comerciais, as implantações são periféricas e de pouco acesso aos serviços urbanos e lazer. Deveriam ser explorados elementos da sabedoria indígena para as construções e uso de materiais naturais locais. Também, as AU deveriam ser destaques na cidade, valorizando a riqueza e história desse povo além de trazer desenvolvimento local.

Em contraponto, por meio das experiências de campo, foi possível observar que tanto o desenho urbano quanto a arquitetura das AUs, realizadas pelos moradores, expressam, através das linguagens presentes, a cultura das pessoas que nelas habitam, uma vez que ressignificam, criam, modificam, trazendo símbolos étnicos e elementos próprios de suas raízes.

Se faz necessário pensar cada vez mais em políticas públicas que atendam esses povos, com estratégias que permitam mudanças no cenário atual no qual eles se encontram. Logo, é essencial que tais políticas sejam efetivadas, de forma a livrar os povos indígenas do esquecimento histórico que os mesmos vêm carregando ao longo da sua trajetória existencial. 

 

Referências

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MS, Campo Grande. Prefeito anuncia criação da quinta aldeia urbana na Capital. Disponível em: <http://www.pmcg.ms.gov.br/cgnoticias/noticiaCompleta?id_not=24746>. Acesso em 10/05/2016.

MUSSI, V. P. L. Questões indígenas em contextos urbanos: outros olhares, novas perspectivas em semoventes fronteiras. História Unisinos 15(2):206-215, Maio/Agosto 2011.

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Data de Recebimento: 27/10/2018
Data de Aprovação: 08/04/2019

 

[1] Em 1920 já se percebia a presença dos indígenas na cidade de Campo Grande, mas em pequena escala. Nessa época a população Terena na capital totalizava 88 pessoas organizadas em 15 grupos (OLIVEIRA,1968).

[2]Indígenas das etnias Bororo e Xavante, do Mato Grosso, vão para Campo Grande através de projetos para cursar o ensino superior e retornam para suas aldeias levando conhecimentos para contribuir com a comunidade.

[3] Rótulos são colocados aos povos indígenas que residem na cidade, ou fora da aldeia, desaldeado é um dos termos pejorativos atribuídos a esses povos, assim como “índios urbanos”, “índios citadinos” e “índios aculturados”.

[4] De acordo com a AGEHAB (Agência Estadual de Habitação Popular de Mato Grosso do Sul), responsável pela construção da Água Bonita, esta aldeia não se enquadra enquanto AU, pois está localizada em área rural.

[5] De acordo com informações e documentação disponibilizadas pela FUNAI.

[6] Informação cedida pela EMHA – Agência Municipal de Habitação de Campo Grande conforme visita ao setor social para levantamento de informações sobre as Aldeias Urbanas.

[7] Para aprofundamento da área, ler VIETTA, 2012.

[8] Em visita feita em março de 2017, o memorial encontrava-se fechado devido à falta de manutenção pelo poder público, o que resultou na degradação do local. Os artesanatos foram retirados e o city tour não passa mais pelo memorial.

[9] O livro “A cidade como local de afirmação dos direitos indígenas”, 2013, Comissão Pró-Índio traz mais informações a respeito da escola e apresenta questões de preconceitos sofrido por estudantes indígenas em escola da capital.

[10] Muitos não têm conhecimento de que ela se encontra em área rural, devido sua proximidade com a área urbana e semelhança com as demais aldeias urbanas de Campo Grande.

[11] Após 5 anos em luta e negociações, AGEHAB sinaliza projeto habitacional para a comunidade  http://www.agehab.ms.gov.br/agehab-apresenta-projeto-de-construcao-e-reforma-habitacional-para-a-aldeia-agua-bonita/

[12] Nas visitas in loco o centro cultural pareceu sem uso, as janelas e portas encontram-se sem vidro.  

[13] “O bairro, que fica próximo às margens da BR 060 saída para o município de Três Lagoas, apresenta pouco comércio e poucos serviços, além de compreender o Presídio de Segurança Máxima do município.” (VIEIRA,2015)

[14] Katy Vietta (2012) aborda mais questões sobre o tema.

[15] Após sete ano vivendo de forma desumana, o cenário parece estar mudando como apresentado pela AGEHAB http://www.agehab.ms.gov.br/governo-do-estado-busca-parceria-com-prefeitura-para-garantir-moradia-digna-para-indigenas-no-jardim-noroeste/