De luz em luz, a poesia é desenhada


resumo resumo

Lucília Maria Abrahão e Sousa
Elaine Pereira Daróz
Dantielli Assumpção Garcia



Palavras iniciais

            O espaço urbano se configura na urbe, produzindo sentidos por meio de seus diferentes espaços de enunciação. Nessa configuração, o museu emerge a fim de remontar história(s) de lugares e povos, sob uma aparente evidência.    

No entanto, enquanto um espaço regulador de uma memória, o museu se constitui por uma divisão política que se marca, inclusive, na escolha dos arquivos a serem (ou não) ali dispostos. Nesta seleção aparentemente evidente, diferentes sentidos são produzidos no espaço citadino, se presentifica a tensão inerente ao jogo da língua, e que se marca no sujeito.  E se é no jogo desconcertante que sujeitos e sentidos se deslocam, seguimos as trilhas da exposição “Poesia agora”, promovida pelo Museu da Língua Portuguesa, para uma reflexão como a poesia da rua adentra uma exposição do Museu da Língua Portuguesa. Neste gesto, buscamos compreender o modo de funcionamento do poético nesses dizeres anônimos, e os seus efeitos nos sujeitos discursivos[1].

 

Cidade, vidro e corte: de trilhas, o que se sabe

 

“Estava em San Vicente/ A cidade e suas luzes/ Estava em San Vicente/ As mulheres e os homens/ Coração americano/ Um sabor de vidro e corte”.

Milton Nascimento

 

Pelas mãos do poeta mineiro, entramos nesse escrito, tomadas pela densidade da imagem pictórica de uma cidade com suas luzes, qualquer cidade as tem... A arquitetura desse trabalho luminoso, no escuro da noite, faz o desenho da cartografia de por onde o humano andou, como estruturou uma trama de linguagem no solo, por que trilhas cavou espaços de circulação e de movência, espaços de viver e de enterrar a vida. Com o dia, a cidade guarda outras luzes, em que pese, sobretudo, movimento de luz, os alaridos do trabalho e da circulação, as placas de rua com letras indicando modos de se situar e deslocar, as inscrições tidas como oficiais nos nomes de prédios, as vias interrompidas pelo anúncio de faixas, as cores subversivas em contraste com os tons de cinza. Na topografia urbana, há ainda vidro e corte, tomados aqui na polissemia que guardam: vidro nas construções, nos carros, nos espaços que permitem o atravessamento do olhar; vidro nos olhos dos citadinos refletindo o espelho do espaço e dos afetos, nesse caso, a opacidade do olhar teima em tentar enxergar além da esquina, do próximo quarteirão, da próxima placa de sinalização, do prédio alto que escamoteia o horizonte. Vidro que também rasga a pele em cenas de violência, que corta as palavras ditas apressadas, abreviadas e aquelas caladas que não saem da boca por medo ou covardia, vidro que petrifica e fecha a vida em cápsulas. É de corte, também, a vida de uma cidade; corte que comporta os recortes e ângulos dos desenhos dos mapas, da arquitetura, dos trajetos e do próprio espaço do qual se conhecem partes posto que o todo dele é inacessível; a cidade vivida tem recorte, um limite necessário apenas rompido pelos andarilhos que nela não fazem morada. Luz, vidro e corte: significantes que marcam um modo de enlaçar sentidos sobre a cidade e de tentar observar, na trama do urbano, algumas cenas da exposição “Poesia agora”, promovida pelo Museu da Língua Portuguesa (MLP) no segundo semestre de 2015.

O Museu que ora estudamos fica centrado na Luz, na Estação da Luz, e por dizer-se de Língua Portuguesa, inscreve de saída uma duplicidade: o local e a língua inscrevem duas instâncias de luz. Do lugar, como um ponto de parada e de partida para tantos que diariamente percorrem SP, trafegam pelo corpo de muitas conexões inscritas naquele centro que integra linhas ferro-metroviárias, fazendo a báscula de idas e vindas do centro para a periferia, do núcleo para as bordas. Ali bordejam muitos, vários em um trânsito febril que coloca em relação desde o homem de terno apressado até aquele que, sentado na calçada, já perdeu a pressa de todas as coisas. A Luz fica latente pela arquitetura portentosa do período cafeeiro do início do século passado, pelos detalhes sofisticados do próprio prédio entre ferros e vidros; mais ainda, pelas gentes que ali se aglutinam, enfrentam-se, se somam e dividem, não se misturam, hiperbolizam o monstro da desigualdade de acessos, contrastando seus modos de viver, de falar, de inscrever seus efeitos na trama do urbano, de estrar dentro e fora da ordem estabelecida tida como normalidade. Isso é a cidade e suas luzes, heterogeneidade dilatada e indiciária de uma Babel contemporânea, que tem fundantes vidro e corte em sua espessura.

Vidro muitas vezes talhado no rosto dos que ali andam, há cicatrizes disso, é só olhar; vidro virado arma, vidro de carro quebrado no asfalto, vidro nos prédios da Pinacoteca do Estado às vezes revestido de obras de arte, vidro para deixar alguma réstia de transparência ainda que não se possa ver o lado de lá, sempre um enigma para quem está fora. Há vidros nos prédios da Luz, há vidros nos olhos dos que ali caminham, às vezes embriagados ou com um tom alucinatório; há vidros nas palavras sem nexo que cortam o barulhento do em torno.

Há vidro e corte também na poesia. Como discurso, e aqui dialogamos com os trabalhos de Pêcheux (2004) e Orlandi (1997). Do primeiro, trazemos a assertiva de que “a língua é um sistema que não pode ser fechado, que existe fora de todo sujeito, o que não implica absolutamente que ela escape ao representável.” (PÊCHEUX, 2004, p. 63). E porque não se fecha, conserva sempre intacta a abertura para que outros sentidos possam ali fazer morada, romper o previsível da significação e, também e sobretudo, ficar absolutamente sem sentido. Disso e com isso a poesia se faz, “o desejo, o real e o impossível” (PÊCHEUX, 2004, p. 63). Pêcheux faz uma longa observação do legado saussuriano dos anagramas e aponta ser esse um ponto vital da linguagem - “algo que rompe” (PÊCHEUX, 2004, p. 63) - para o qual a Linguística sempre mostrou ter ensurdecimento.

 

 

 

Saussure não resolve a contradição, invisível antes dele, que une a língua à alíngua: ele a abre, tornando-a visível. Se o diurno não suporta ser separado do noturno, o estatuto do conceito é desviado na sua relação com os deslizamentos da metáfora e do equívoco (...) esquecemos assim que a loucura (e a poesia) fazem também um certo uso da língua, são igualmente apreendidas no real. A língua como lugar de um saber em que ficções podem ser regradas é o ponto (...) contraditório pelo qual a linguística toca o seu real. (PÊCHEUX, 2004, p.63)

 

 

Nesses termos, existe na língua uma instância de indizível que a palavra tenta conter, mas fracassa; tenta preencher, mas não consegue acertar em cheio, isto é, uma condição de inatingível que é própria de todo dizer, um impossível que com sucesso se mantém como tal mesmo depois do dito: o real da própria língua.

 

 

 

Portanto, o real da língua não é costurado nas suas margens como uma língua lógica: ele é cortado por falhas, atestadas pela existência do lapso, do Witz e das séries associativas que o desestratificam sem apagá-lo. O não-idêntico que aí se manifesta pressupõe a alíngua, enquanto lugar em que se realiza o retorno do idêntico sob outras formas; a repetição do significante na alíngua não coincide com o espaço do repetível e que é próprio à língua, mas ela o fundamenta e, com ele, o equívoco que afeta esse espaço: o que faz com que, em toda língua, um segmento possa ser ao mesmo tempo ele mesmo e um outro, através da homofonia, da homossemia, da metáfora, dos deslizamentos do lapso e do jogo de palavras, e do bom relacionamento entre os efeitos discursivos. (PÊCHEUX, 2004, p. 55)

É justamente isso que possibilita a poesia. Estamos diante da propriedade inerente à língua de sustentar o deslizamento de sentidos, fazer romper as regularidades estabelecidas, de tatear algo do inominável a cada nova volta de palavra torcendo-a de um modo sempre outro, esticando o seu elástico até ele não poder mais aguentar. Conforme Pêcheux (2004, p. 58), “o poeta seria apenas aquele que consegue levar essa propriedade da linguagem a seus últimos limites; ele é, segundo a palavra de Baudrillard, suprimindo a sua acidez, um ‘acelerador de partículas da linguagem’.” (PÊCHEUX, 2004, p.58). Nesses termos, o poeta hiperboliza e sideriza o impossível.

Tal impossível como furo constitutivo e intamponável da língua é o que possibilita que a emergência do poético como sentido outro, inesperado, virtualmente constante na promessa de que toda palavra possa produzir reviramentos sobre si mesma, fazendo ali emergir um sujeito. Ao falar do furo e da poesia, Almeida (2012, p. 78) sinaliza que o primeiro “[...] estruturado na língua, vai produzindo diferenças, tornando-a – a língua – estranha em relação a si mesma e em relação à memória dada. Nessa perspectiva, o furo, a falha do jogo significante pode materializar o novo dos sentidos na relação discurso/poesia [...].”

Se o novo do sentido nasce justamente da injunção ao furo da língua, pode-se inferir que é a incompletude dela que dá suporte ao poético, entremeando pontos de enlace entre “o desejo, o real e o impossível” (PÊCHEUX, 2004, p. 63). O traço inatingível é justamente o que permite o voo do sentido, o que reafirma as noções de tensão e contradição, sempre tão caras à teoria do discurso.

Orlandi (1997) tece um conceito bastante fecundo para pensarmos essa relação do discurso com a poesia e da língua com alíngua. Anota a autora que há silêncio nas palavras já que “aquilo que é o mais importante nunca se diz” (ORLANDI, 1997, p. 14), ou seja, sempre coexiste e sobrevive ao dizer uma parcela de silêncio fundante, o que implica considerar que “há silêncio nas palavras (...) elas são atravessadas de silêncio; elas produzem silêncio; o silêncio fala por elas; elas silenciam” (ORLANDI, 1997, p. 14). A autora aponta ainda que o funcionamento do silêncio dá-se no movimento do discurso “que se faz na contradição entre o ‘um’ e o ‘múltiplo’, o mesmo e o diferente, entre paráfrase e polissemia. Esse movimento, por sua vez, mostra o movimento contraditório, tanto do sujeito quanto do sentido, fazendo-se no entremeio entre a ilusão de um sentido só (efeito da relação com o interdiscurso) e o equívoco de todos os sentidos (efeito da relação com a lalangue).” (ORLANDI, 1997, p. 17). Mais adiante, algumas experiências com a literatura, música e cinema são relatadas como indiciárias que de que “o silêncio não fala, ele significa” (ORLANDI, 1997, p. 44), o que pode ser traduzido pela dimensão de que “não só a poesia, aliás, mas na literatura em geral, o silêncio é fundamental” (ORLANDI, 1997, p. 43).

É justamente isso que gostaríamos de pinçar e sublinhar no diálogo com os dois autores aqui trazidos: a equivocidade e o inatingível, tanto quanto o poético, fazem fissuras na língua e trilham seu corpo bordejando o impossível dela. Tateiam o que de inapreensível pode se dar a ver a cada tomada de palavra – seja pela inscrição constitutiva do real, seja pela condição de silêncio fundante da palavra – e, justamente por isso, o sujeito tem espaço para se inscrever e inventar-se no melhor da acepção. Tem condições de continuar a tropeçar em seus versos, continuar a não dizer tudo o que, ilusoriamente, gostaria, continuar a se lançar no abismo da linguagem, continuar a atravessar as asperezas do urbano, continuar a deixar, com seu vidro e seu corte, vestígios em muros, alguns dos quais serão analisados agora.

 

Muros fotografados em discurso: do poético, o que se lê

 

 

 

“Fazer o amor, como o nome indica, é poesia”

Jacques Lacan

 

O material que se segue foi coletado em visita presencial à exposição “Poesia Agora”, promovida pelo MLP no segundo semestre de 2015, evento inédito de trazer para dentro do museu quase 500 poetas do país e do exterior, denominados como “ainda não consagrados”.  

 

“É a primeira vez que abrimos espaço para autores talentosos e geniais, mas ainda não consagrados. Assim, o Museu se aproxima de uma produção poética e literária contemporânea, produzida pelas ruas das cidades, onde a nossa língua evolui e se transforma”, afirma Antonio Carlos Sartini, Diretor do Museu da Língua Portuguesa[2].

 

 

 

Dentro dos vários momentos da exposição, escolhemos o momento “Poesia na rua agora” justamente por manter uma relação de enlace com o que apresentamos inicialmente a respeito da cidade. Os poemas trazidos para dentro do MLP encontram-se espalhados em prédios, vias, bairros, muros da cidade, e passam a receber um tratamento de legitimidade estética a partir do momento em que se tornam objeto museificado. Da rua, onde muitas vezes tais inscrições são tomadas como prática pouco reconhecida, deslegitimada e quiçá marginal, produz-se uma entrada em outro lugar no qual o efeito de merecimento de crédito impera. As páginas desencadernadas e dispersas, esvoaçadas em diferentes direções, fixam no corpo da cidade lampejos de luz, outra diferente daquelas que já enumeramos: a luz de assombro e de espanto diante do que rompem na esfera dos sentidos previstos, luz gratuita que não tem nome de autor nem livro impresso, à mostra para quem puder olhar e ver.

Interessante notar como aquilo que sempre amarrou as exposições literárias anteriores – o nome de um autor (SOUSA ROMAO, 2014) – é dissolvido em um movimento de apagamento da autoria e em louvor ao que seria da ordem da poesia na contemporaneidade. A voz dos poetas hoje: eis o que importa na chamada do MLP. É preciso ir além disso:  a voz dos poetas sem nome, sem rosto e sem reconhecimento é nomeada como emergência de luz na cidade, é tornada peça de valorização nas trilhas do urbano. Vale registrar que esse dizer poético, arrancado na ordem da vida e no chão da cidade, é produzido de modo vário com spray, com tinta e pincel, com a mão no spray ou com molde de estêncil, em lugar qualquer do urbano, inserindo recortes, pausas e incisões no corpo da cidade, tatuando ali a singularidade de um sujeito-poeta. O muro com poema lá de longe entra na exposição e passa a ser fotografia de um muro com poema lá de longe. Está-se aqui diante de um certo movimento de tradução, já que o MLP, pelo efeito ideológico de evidência, apresenta o muro da cidade como a própria poesia na rua, e não como fotografia dela exposta dentro de outro lugar discursivo. A oficialidade do Museu faz falar uma valoração imaginária dos poetas urbanos, justapondo a sua voz a deles, o espaço expositório ao mundo da rua, o nome de uma instituição de língua aos falares que estão fora dela. Dito de outro modo, apenas porque como impresso, o poema é passível de ser peça do Museu; reconhecido agora com o status de escrito, é tornado um muro em miniatura exposto aos olhos leitores, um muro dentro e fora da cidade ao mesmo tempo.

O poético aqui engendra esse batimento inesperado da palavra, em que pese uma posição-sujeito que, sustentada pelo real e pelo silêncio, – atira-se a desenhar espaços de resistência na rua, em condições de produção muitas vezes tomadas como subversivas, ilegais, desvalorizadas e até criminosas, em síntese sempre fora da ordem. Esse discurso deixado a latejar no espaço público como marca de origem é deslizado para outro espaço, agora institucional – o museu – aquele que se autoriza a produzir um laço entre o que está na rua e o que pode e deve ser exposto e visto, aquele que define o que é a poesia de agora, o que da rua é selecionado como tendo valor para ser de museu. Ainda que em um cenário fabricado em laboratório, os poemas impressos em pequenos quadrados de madeira deixam marcada a cenografia das sarjetas, e quase reanimam o burburinho das vozes anônimas, o barulho dos carros e ônibus acelerados, o espaço em que o pão é caro e a liberdade pequena. Nesse caso, a rua vem lapidada e se assenta no espaço museológico: é rua sim, mas rua outra documentada pela fotografia, é rua sim manufaturada pela vista e pelo filtro do MLP, é rua sim enunciada pela chancela da curadoria que a toma e a apresenta em um muro de blocos de concreto com buracos vazados onde fotos de poemas escritos em muros são colocadas. Tem-se, assim, já não mais aquela rua onde o verso se instalou, mas outra composta pelo MLP; é a mesma e outra, essa estranha propriedade do discurso sempre em trânsito, entre um mesmo e um diferente, entre o deslegitimado na rua e legitimado no museu.

A exposição foi fotografada por nós em duas visitas presenciais ao MLP e, dado o grande volume de muros fotografados e expostos, o corpus foi constituído por recortes do material coletado. Foram observadas as marcas linguísticas, o corpo da língua em funcionamento e as pistas do funcionamento que elas encerram. Como ensina Lagazzi (1988, p. 61), “A partir das marcas lingüísticas que se sobressaem, configurando as pistas para a análise, é que começarão a delinear o caminho que levará o analista ao processo discursivo, possibilitando-lhe explicar o funcionamento do discurso”. Nesses termos, observar a língua fotografada em um muro faz falar uma gama imensa de contradições que pode ser condensada em perguntas como: quem fala na rua?, que sujeito pode inscrever-se no muro?, quando o poético é reconhecido como tal?, de que modo deslocam-se palavras e discursos da rua para o museu?, o que dessa entrada fica latejando como reconhecimento e como silenciamento? Tais questões implicam considerar a

 

relação tensa, isto é, de contradição na constituição do sujeito (...) A partir da consideração social dos interlocutores, podemos dizer que os conhecimentos podem ser ‘comuns’ mas não são ‘iguais’. Há desigualdade na distribuição de conhecimentos, não há partilha. Essa desigualdade é jogada na interlocução (ORLANDI, 1984, p. 13).

 

 

Especialmente quando tal relação tensa entre dizeres e sujeitos coloca em jogo instâncias do/no espaço urbano, quais sejam, as ruas e um museu denominado de Língua Portuguesa, com todas as implicações que isso encerra (2013). Tensiona-se aí a cidade como lugar de contradição e desigualdade. Considerando tudo isso, selecionamos, no material coletado, regularidades, repetições e rupturas de certos efeitos, e organizamos entradas discursivas com o intuito de empreender as análises. Vejamos a primeira.

 

 

Os dizeres talhados apontam singularidades da poesia que, evidenciada pela abertura marcada no final de cada palavra, faz emergir o novo, o inusitado, o impensado da e para aquele lugar do museu. Como marcado no muro o espaço da poesia (nua, crua) é o da rua. Questionamo-nos então o que faria a poesia no museu? A poesia deixaria de materializar sua crueza e nudez por estar agora museificada, em outro espaço da cidade que pertence a uma rua, mas não se trata da rua que acolhe, também pela exclusão, o que é do marginal, da resistência? Os sentidos materializados em letras maiúsculas denunciam a emergência do grito face àquilo que o impele a calar (na tentativa, talvez, de ressignificar o espaço da poesia)

 

 

 

“Poesia nas ruas” faz falar um movimento discursivo de inscrição da letra em lugares públicos e abertos da cidade tais como muro, fachada de casa, viaduto, placa etc. Lá a poesia fica literalmente na rua, emoldurada pela calçada, pela sarjeta e pelo trânsito de veículos e pessoas, lá se diz de uma ocupação da poesia em um sítio pouco convencional, tendo em vista a ordem do repetível de que ela em geral está inscrita em livros guardados dentro de espaços fechados. Viva, nua e crua, ela é, mostra-se fora da biblioteca, livraria, escola, universidade, lugares legitimados como seus pelo efeito ideológico. Na rua, ela aparece assim estampada pela voz anônima que instala um outro dizer na teia urbana; dito de outro modo, é como se o sujeito estivesse a denunciar que a rua não tem poesia, não a diz, não a vive, daí ser fundamental declará-la nesse lugar onde justamente ela é falta. Já que pouco dela aparece na cidade, é preciso dizer e proclamá-la nua mas carne viva no corpo da cidade. Inferimos aqui dois movimentos de interpretação: de um lado, o poeta referencia a rudeza áspera da vida urbana tão repleta da falta de poesia, e de outro a instala como um pedido ou uma ordem nesse espaço. A rua se deixa marcar pela poesia, pela voz do poeta, pelo verso sem autor que fica latejando em meio aos fluxos e tensões. Lugar marcado pela heterogeneidade, traz à luz a movência da língua e do sujeito, muitas vezes, apagada pela “evidência” dos sentidos (de)marcados em seus caminhos.

 

 

 

Observamos aqui certo modo de inscrever sentidos de ruptura em relação ao tédio e à normatização do pensamento. Ao marcar que “a poesia muda o sentido”, o poeta coloca em movimento o ponto de ebulição e o traço de reviramento que a poesia suporta e sideriza. Não mais o mesmo sentido, mas outro; não mais o mesmo caminho, mas outro. Interessante apontar que, ditos no espaço da rua, esse poema convoca o leitor que está em deslocamento na cidade, a “caminho” de algum lugar ou de uma direção já definidos. O poema subverte os efeitos de “caminho”, levando-os a outro patamar. Em desconstrução das certezas, das “evidências” que os caminhos do cotidiano apontam aos seus transeuntes, o poema aponta, aos sujeitos contemporâneos, novas formas de (se) significar e também de significar sua relação com o espaço da cidade, da rua, dos trajetos impostos pela organização do espaço citadino. Acrescentando mais um fio a esse efeito de alardear mudanças e descaminhos, o poema abaixo afirma:

 

 

 

Quando elas o foram? Em que outros contextos? Perigosas para quem? Ditas de que modo? Em que tempo futuro essa certeza será concretizada? Buscando responder algumas dessas perguntas, infere-se que o poema faz acontecer um dizer de anunciação e certeza, sustentado pela memória de sentidos já historicamente constituídos sobre resistência, luta política e contestação na rua, tendo a rua como palco e como texto a ler. A poesia irrompe como forma de resistência e impele os sujeitos à ousadia de pensar por si mesmos, fazendo esgarçar os sentidos já-ditos nas redes dos discursos citadinos. Ademais, marca também algo da ordem de um silêncio local, da censura, em que, aparentemente, as ideias dos sujeitos não representariam perigo. Contudo, anuncia a poesia que estas voltarão, pois os sujeitos ousarão revoltar-se. Esse já falado antes que é condição do legível (ORLANDI, 1997), agora reavivado e ao qual se deseja retornar, faz falar o perigo como marca de ruptura e mudança no plano das ideias, o que pode atualizar os efeitos de uma prática intelectual emancipatória, libertária, quiçá revolucionária. Isso implica considerar o que não está dito, ou seja, que as ideias atuais são inofensivas, pálidas e poucos riscos acentuam.  Tal jogo tenso entre o dito e o silenciado, o ontem e o hoje, a poesia no livro e na rua, o verso na rua e no Museu apontam a contradição e seus efeitos, melhor dizendo, modos de nomear as diferenças que sustentam a palavra e com ela se acirram.

 

 

 

No verso acima, o poeta faz movência com a língua, recupera o termo “coisa” que, emprestado do seu uso coloquial, ganha outra espessura. Se nos deparamos cotidianamente com expressões como “a coisa está feia, que coisa, pode ser qualquer coisa, aconteceu uma coisa boa”, fazendo valer uma substituição de substantivos pela palavra coisa, aqui o poeta amplifica tal funcionamento, tornando-o enigmático. O que seria “descoisificar”? Teria ele a potência poética de tornar as coisas menos “coisadas”, menos “coisificadas”, menos “coisas”. A partir do uso gasto e frequente de um termo, a poesia o recoloca, reposiciona a ponto de produzir o outro com o mesmo, uma torção tal que o igual se torna diferente; nesses termos, não há necessidade de explicação ou de um protocolo explicativo para o uso em curso, já que a poesia joga com a turbulência e o turbilhamento de sentidos. “Poesifique-as” é também um verbo incomum que, em oposição a descoisificar, estabelece uma relação de oposição, marcando um efeito promissor de delírio da linguagem (delírio do verbo no dizer de Manoel de Barros), que na poesia tem seu ponto alto e privilegiado.

Tais muros, em forma de fotografia tomada do corpo da cidade, apresentam flashes de luz da palavra, rebordando o tecido do conhecido com o efeito inesperado e apostando em trilhas outras para palavras tão conhecidas. Marcam o corte que o verbo poético implica e convoca, instalando efeitos de deslizamento do que estava na rua para aquilo que entra no Museu. São versos instalados por sujeitos que questionam a obviedade dos sentidos, que desautorizam o estabilizado e que se arriscam a/em dizer nos muros e espaços abertos da cidade, deixando as trilhas de sua subjetividade dispersas e sem nome de autor. O MLP as toma e faz outra trilha, agora dentro de um espaço de oficialidade institucional, onde se produz os efeitos de retomada e de apropriação do que está em outro lugar, colocando em movimento o que moveu as palavras lá de fora e também os modos de dizer do coração americano com “sabor de vidro e corte”.

Ao dar corpo e voz aos burburinhos quase inaudíveis das ruas, os poemas indicam novas possibilidades, produzindo efeitos nos sujeitos que por ali passam. Ao lançar luz a esses dizeres, o MLP, por sua vez, expõe a tensão constitutiva da relação entre os sujeitos, e que se materializa no espaço urbano, proporcionando uma ressignificação das (ex)posições desses sujeitos anônimos no seio social. Ainda que por uma seleção de dizeres, tal gesto rompe barreiras, promovendo um deslizamento do que ali se pode e deve falar, para aquilo que se quer falar, visto que não se pode calar.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, E. Discurso e poesia. In: Discurso e... Org. Bethania Mariani e Vanise Medeiros. Rio de Janeiro, 7 Letras, FAPERJ. 2012.

GADET, F, PÊCHEUX, M. A Língua inatingível – o discurso na história da linguística. Campinas, Pontes, 2004.

LAGAZZI, S. O desafio de dizer não. Campinas: Pontes Editores. 1988.

MARIANI, B. Silêncio e metáfora, algo para se pensar. In Revista Trama, v. 3, n. 5. 1º semestre de 2007, p. 55 a 71.

ORLANDI, E. P. Segmentar ou recortar. Série Estudos. Nº 10. Faculdades Integradas de Uberaba. Lingüística: Questões e Controvérsias. 1984.

ORLANDI, E. P. As formas do silêncio – no movimento dos sentidos. Campinas, Editora da Unicamp, 1997.

SCHERER, A.; SOUSA ROMÃO, L. Língua, museu e patrimônio. Revista Letras, v. 23, n. 46. Santa Maria, p. 1-386. 2013.

SOUSA ROMÃO, L. Escrever pra passarinho: Braga no Museu da Língua Portuguesa. Revista Datagramazero, v.15 – 1, 2014.

 

 

Data de Recebimento: 26/10/2018
Data de Aprovação: 15/12/2018

 

 

[1] Vale dizer que as imagens presentes neste artigo foram coletadas pelas pesquisadoras em pesquisa de campo.