Efeitos de sentidos de “palavras de amizade e boa vontade”: um estudo discursivo-desconstrutivo da intolerância e do preconceito marcados na Carta do Cacique Seattle


resumo resumo

João Paulo Machado Tinoco
Vânia Maria Lescano Guerra



Considerações iniciais

 


Nós não viemos de outra terra, nós não viemos de outro planeta, nós viemos daqui mesmo. Nosso deus era daqui mesmo. O deus do branco é outro e talvez de outra terra. Agora nossa terra tá na mão de nosso deus que é o Yoi. (NGEMATÜCÜ, 2009, p. 197)[1].

 

A epígrafe exposta nas linhas acima (con)clama a importância de estudarmos os discursos em suas formas simbólicas e práticas, com o objetivo de mostrar seus efeitos a partir dos campos de significação onde são construídos. Afetados por essa proposição, temos observado a produção e o funcionamento de discursos voltados aos indígenas, e sentimo-nos angustiados pela presença da intolerância e do preconceito nas práticas discursivas, marcas de processos colonizadores que engendram nossa cultura.

Diante do pensamento colonizante, o indígena Cacique Seattle nos deixa uma Carta em que se in(e)screve o desejo de (d)enunciar os olhares vigilantes, relatando-nos que seu povo foi obrigado a se mudar de sua terra; trata-se de um silenciamento da produção de saberes periféricos – saberes locais. Nosso posicionamento em relação ao adjetivo “periférico”, - que pode alcançar diferentes significados polarizados, - emerge aqui ligado ao afastamento do centro, isolado da cidade: há saberes que emergem na/da periferia e que ao mesmo tempo são desmerecidos social e culturalmente. A nossa escolha é trazer saberes que são considerados marginais, aquilo que foge do reconhecimento das epistemologias do centro, como ação de resistência. Dessa maneira construímos redes e alianças transfronteiriças para lutar contra a intolerância e exclusão social; a violência, a destruição ambiental, o ódio interétnico que são produzidos direta ou indiretamente pela globalização neoliberal. (SANTOS, 2009).

Como já dissemos, a violência é uma marca que insiste em emergir da discursividade marginal, periférica e excludente; para nós, essa positividade constitutiva desses discursos nos leva a entender que a violência,


 


primeiramente, podemos dizer que ela está associada aos danos causados à vítima em sua integridade física, moral e simbólica. [Na escrita da carta], há registros de dispositivos de poder/saber que certificam práticas de violência, produzidos por sujeitos situados em lugares diversos. [O sujeito indígena] erige seu discurso a partir de um local fora do centro, marginalizado, excluído daqueles que são considerados ajustáveis. (GUERRA; TINOCO, 2018, p. 5).

Essa intolerância, preconceito e exclusão que outrora permaneciam abafados agora se elevam e se manifestam, cavando e minando em distintos locais de enunciação, reações desestabilizadoras, na tentativa de articular conceitos outros e, assim, tentar amenizar as desigualdades e os gestos de exclusão. A Carta do Cacique Seattle, por um lado, pode ser uma profícua tentativa de engendrar caminhos que se abrem para alcançar a emancipação social, uma vez que os grupos indígenas trazem à baila a problemática da estrutura social que chamou nossa atenção. E, por outro lado, ela traz questões que emergem a partir da margem, ou seja, posição de fala do sujeito Cacique Seattle que, por vias de saberes e noções que estão localizadas na margem, legitimam uma fala específica e não outra. Sendo assim, nosso gesto analítico, a partir da escrita do sujeito indígena, vem confrontar os saberes erigidos no centro. Por isso, partimos das críticas desconstrutiva e pós-colonial que “suleiam”[2] intervenções nos discursos ideológicos da modernidade na busca de produzir efeitos de “normalidade” aos saberes hegemônicos pertinentes ao desenvolvimento irregular e às histórias diferenciadas de nações, raças, comunidades, povos.

Com arrimo nos pensamentos de Homi Bhabha (2013), trazemos para nossa reflexão as perspectivas pós-coloniais que


 


formulam suas revisões críticas em torno de questões de diferença cultural, autoridade social e discriminação política a fim de revelar os momentos antagônicos e ambivalentes no interior das “racionalizações” da modernidade. (BHABHA, 2013, p. 275).


 

No que diz respeito aos estudos pós-coloniais, entendemos que, mesmo dentro do sistema hegemônico em que os saberes são construídos, há outras exterioridades que sempre articulam um espaço imperial. E é a partir dessas exterioridades que opções descoloniais emergiram e ainda emergem com o intuito de “denunciar estruturas e conteúdos da metafísica ocidental que operam no sentido de valorizar determinados princípios, a partir da explicitação dos seus opostos” (GUERRA, 2017, p. 96). De acordo com Walter Mignolo (2008), a opção “descolonial significa pensar a partir da exterioridade e em uma posição epistêmica subalterna vis-à-vis à hegemonia epistêmica que cria, constrói, erige um exterior a fim de assegurar sua interioridade”. (MIGNOLO, 2008, p. 304).

Posto isso, é preciso apreender a proposta do pensamento da crítica de caráter biográfico fronteiriço, - fomentado por nós e Edgar Cézar Nolasco aqui no Mato Grosso do Sul - pois dessa maneira podemos estabelecer uma relação entre o indígena Cacique Seattle e o retrato polifônico de sua memória. Ademais, soma-se a isso a importância de se considerar o lócus geoistórico fronteiriço a partir do qual o indígena vivenciou e (d)enunciou toda a sua sensibilidade biográfica.

 Nessa arena, voltamos o nosso olhar para o processo identitário do indígena constituído no interior das práticas de linguagem, a partir de uma perspectiva agonística, cujo processo está relacionado ao existencialismo quando o sujeito é tomado por uma quantidade de forças que move a sua existência num grau que o obriga a sair do local em que se encontra (MOSÉ, 2018).

O título que provoca este artigo, qual seja, “Palavras de amizade e boa vontade”, foi usado como estratégia do “homem branco” para alcançar o objetivo de tomar a terra do povo indígena localizada num espaço estratégico para o crescimento industrial. Trazemos o sintagma nominal “homem branco” para fazer referência ao poder, governo e pensamento colonizador, numa perspectiva individualizada, não coletiva.

O desejo de conquistar a terra indígena se materializa na falsa articulação de laços de solidariedade efetivos, os quais (inter)ditaram os espaços democráticos e o menosprezo efetivo do outro e da alteridade. Essa insistência em tentar controlar o espaço do outro implica uma tentativa de silenciar um grupo minoritário que, historicamente, ainda tem lutado por seus direitos e pela “reconstrução de suas relações e organizações”. (GUERRA, 2015, p. 95).

Consideremos, portanto, que o processo identitário do indígena é permeado por essas tensões e conflitos em que as relações sociais não são mais definidas por critérios comunitários organicistas. Destarte, o bio e lócus (biolócus) do sujeito indígena no mundo não pode ser visto como um lar, não há como “estar no lar” no mundo em que a estranheza se mescla ao familiar.

Vale dizer que, estamos entendemos o termo “significado”, a partir dos estudos de Manuel Castells que o apresenta “como a identificação simbólica, por parte de um ator social, da finalidade da ação praticada por tal ator.” (CASTELLS, 2013, p 23). Assim, em um dos relatos que está na Carta, o sujeito indígena se questiona, na tentativa de compreender o que a “terra” significa para o “homem branco”, pois para o sujeito indígena a possibilidade de compra e venda da terra é impossível e impraticável no bojo de sua cultura. Para o indígena há aí um liame com a “primitividade” ou “pureza” cultural e biológica. Já para o “homem branco”, a terra não possui o mesmo significado: enquanto que, para nossa sociedade, a terra é uma propriedade, um bem rentável, para os povos indígenas ela é um lugar no qual eles podem manter suas culturas e tradições vivas de geração a geração; a noção de propriedade privada não é atribuída. (GUERRA, 2010).

Na Carta, o sujeito indígena questiona o ideário de progresso do “homem branco”, por exemplo, “Como alguém pode comprar ou vender o céu? A terra?”, o que pode construir precessões de simulacros negativos, fazendo-o pôr em dúvida sua crença e saber. Aqui o conhecimento do “homem branco” parece preceder os conhecimentos locais do indígena – precessão dos simulacros – uma vez que é ele que engendra os conhecimentos locais cujos fragmentos fazem apodrecer, lentamente, sob a extensão do conhecimento progressista. (BAUDRILLARD, 1991).

Ao levar em consideração o que está sendo imposto, por força ou tentativa de convencimento, por meio das palavras do “homem branco”, o sujeito indígena põe em jogo os conhecimentos locais produzidos pelas práticas sociais de seu povo: configura-se um empecilho, ou seja, operacionaliza-se a ideia de que o indígena precisa abdicar de seu espaço e de seus costumes e adquirir outros conceitos e modos para que possa ser aceito socialmente. Ademais, nós podemos verificar que o desejo do sujeito indígena é o de permanecer em suas terras e prosseguir com suas práticas sociais e tradições ancestrais.

 Para entendermos esse processo agonístico, sob o princípio desconstrutivo, conduzimos este trabalho nas trilhas da história que certifica que o processo de exclusão dos povos indígenas tem sido, especialmente, conduzido pela violência do sistema extrativista. Usamos a noção de princípio desconstrutor de Jacques Derrida (1993) para nos afastar da ideia de método, uma vez que não aplicamos a máxima, qual seja, “encontre algo que possa ser feito para parecer autocontraditório, afirme que essa contradição é a mensagem central do texto e esgote seus significados”, produzida nos anos 1970 e 1980. A desconstrução derrideana emerge entrelaçada com o gesto interpretativo, em outras palavras, esse ponto de partida nos leva a suspeitar das grandes oposições binárias da metafísica ocidental. (RORTY, 2016). É a abertura para o outro; a exposição das formas de exclusão e supressão da alteridade. Essa abertura nos conduz para “uma porta, um limiar, uma fronteira, uma linha, ou apenas a borda ou a aproximação do outro enquanto tal”. (DERRIDA, 1993, p. 12).

Nessa esteira, vale dizer que a noção de “fronteira” aparece no rol de tipografias das ciências sociais. E ao longo desses estudos, outros sentidos vão se (des)construindo, alcançando, assim, outros campos de estudo, como os estudos linguísticos. Sabemos que a fronteira é muito mais do que uma (de)marcação. Fazemos uma alusão ao pensamento do filósofo alemão Martin Heidegger (2002) para quem a fronteira não é o ponto onde algo termina, mas é o ponto a partir do qual algo começa a se fazer presente.

A partir disso, o objetivo da desconstrução, dentro do paradigma que se projeta para além da metafísica, é o de questionar os limites, as margens, as fronteiras, bem como abrir caminhos para expor como toda construção identitária é permeada pela alteridade. Como aponta Francisco Ortega (2009): “Toda ‘lógica da identidade’ (Adorno) estaria dominada por uma violência que anula a diferença, a singularidade, a particularidade e que reduz o outro ao mesmo”. (ORTEGA, 2009, p. 51).

Diante do exposto, neste trabalho[3], sob a pluma da Análise do Discurso (AD) de cunho transdisciplinar, nosso estudo está fundamentado nas relações de saber/poder discutidas por Michel Foucault, e na perspectiva discursivo-desconstrutiva atravessada pelo princípio da desconstrução de Jacques Derrida. A razão de trazermos a perspectiva discursivo-desconstrutiva dá-nos a opção de refletir a partir de epistemologias filosóficas, especificamente, neste trabalho, os estudos entre Foucault e Derrida no campo dos estudos da linguagem, bem como por meio de uma perspectiva histórica crítica descolonial.  Reiteramos aqui que temos “como meta denunciar estruturas e conteúdos da metafísica ocidental que operam no sentido de valorizar determinados princípios, a partir da explicitação dos seus opostos” (GUERRA, 2017. p. 96).

Assim, temos como objetivo estudar o processo da constituição identitária do sujeito indígena articulado na Carta do Cacique Seattle de 1854, sobretudo os possíveis efeitos de intolerância e preconceito – separatista e purista – que rastreamos na Carta. Para tanto, perscrutamos, a partir do método arqueogenealógico de Michel Foucault, as relações de saber e poder e as formações discursivas com o intuito de agitar “as evidências”, aquilo que é familiar, tornar visível o que é visível.

Sob a égide da desconstrução derrideana e da problematização foucaultiana, fizemos um recorte da Carta do Cacique Seattle, líder sábio que orientou seu povo a deixar a terra e não optar por mais confrontos, no pronunciamento ocorrido em 1854 e traduzido para a língua inglesa em 1887, a partir das anotações do pesquisador Dr. Henry A. Smith. O processo analítico é configurado mediante rastros linguístico-discursivos que (de)marcam pontos de diferenciação quanto à representação a que o indígena está atrelado, porque não aplaudimos, no bojo da visada discursiva, que textos, tradições, sociedades, crenças e práticas possuem uma semântica fixa, encaixilhada e pré-designada; pelo contrário, os efeitos de sentido (trans)bordam suas margens, uma vez que esta produção está acontecendo e sempre se colocará na posição do “por vir a ser”. 

Como consequência disso, o sujeito situa-se em uma posição que (re)produz efeitos interpretativos a partir do uso da língua(gem) ao ser constituído por ela. E, por ele (re)produzir tais efeitos de interpretação (prática significativa que o sujeito exerce), não há controle de efeitos de sentido em seu dizer. (CORACINI, 2007).

Temos como hipótese de pesquisa que a Carta do Cacique Seattle deve ser examinada como um monumento, isto é, a Carta torna-se uma Nova História para que, desse modo obtenhamos a possibilidade de alargar a possibilidade de exumar histórias locais e memórias veladas que são construídas por meio de tensões e resistências; ações que vão de encontro aos saberes hegemônicos, ao capitalismo, à industrialização e aos interesses do governo que privilegiam grupos específicos. Assim, escolhemos lançar mão do termo “a partir de”: por considerarmos, juntamente com o intelectual Edgar Cézar Nolasco, professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), cujos estudos estão ancorados nos estudos do discurso da crítica descolonial, erigindo a discussão a partir do bio e lócus (biolócus): o local geoistórico. Esta noção de Nolasco (2013) é compreendida como o lugar que arraiga histórias locais e que nos ajuda a exumar memórias veladas; arquivos que recolhem memórias que estão à espera de ser postas à vista.

Verificamos que nesse campo bélico, onde há uma constância na (re)produção de totalidades que, em algumas ocasiões, não são questionadas, é preciso investigar, examinar e desconfiar das práticas de “verdades” que se cristalizam e percorrem a sociedade, para, em seguida, problematizá-las à luz de uma epistemologia crítica e fronteiriça. Nessa direção, consideramos que todo discurso carrega em seu bojo relações de saber/poder que definem as regras e as formas de funcionamento das práticas discursivas em uma determinada sociedade. Diante disso, trazemos três perguntas de pesquisa no intuito de entender como se constituiu esse discurso como acontecimento: Como funcionam os discursos que apontam a violência e intolerância contra o indígena? Há marcas linguísticas na escrit(ur)a da Carta cujos efeitos de sentidos fazem emergir a intolerância e fomentam esse tipo de discurso? Que efeitos de sentido as marcas da intolerância podem produzir?

 

As condições de produção da carta do Cacique Seattle

 

Considerando que esta pesquisa trata do discurso de um líder indígena que viveu e habitou no território norte-americano, cabe suscitarmos alguns conhecimentos quanto ao povo indígena dos Estados Unidos da América (EUA). Nesse país, o número de indígenas já foi estimado em cerca de 15 milhões e com aproximadamente dois mil idiomas falados. No século XIX, sabe-se que houve muitas guerras tramadas pelos colonizadores que queriam expandir ou formar o Estado-nação, as chamadas “guerras indígenas”. Quando estas mitigaram-se, o número estimado de indígenas era de quase três milhões, menos de 20% do total que havia. Esse genocídio foi uma ação controlada e motivada pelo governo americano, cujo alvo era o crescimento industrial e econômico, para o que era preciso que a terra estivesse desocupada. Os setores que ansiavam por lucros apoiavam as políticas de expansão, e, para que isso acontecesse e o espaço pudesse ser ocupado por estabelecimentos ligados ao comércio, era preciso afastar os indígenas de algumas regiões estratégicas, o que resultaria o extermínio de muitos deles. (DUNBAR-ORTIZ, 2014).

Aqui apontamos que os discursos intolerantes possuem estabilizações, temáticas, uma vez que as práticas de intolerância e preconceito ocorrem em diferentes atividades, gêneros múltiplos: nas esferas política e religiosa, no gênero epistolar e nos tipos narrativo e descritivo, entre outros. Nas esferas política e religiosa, vemos a remoção dos indígenas para áreas reservadas, de modo que pudessem ser considerados cidadãos norte-americanos. Sabemos que a cultura dita “superior” tentou (e ainda tenta) sempre legitimar suas práticas. A (a)locação dos indígenas, sem que eles tivessem o direito de contestar, mostrou-nos, ao longo da História, que o ato foi absolutamente penoso. Para se chegar até essas áreas, escolhidas e reservadas pelo governo norte-americano, os indígenas tinham de percorrer longas distâncias a pé. Entre eles, estavam crianças de colo, idosos, mulheres, enfermos, todos forçados a caminhar; esses ascendentes extremamente fatigados, em decorrência das más condições da viagem, morriam ao longo do percurso, sem assistência, sem alimento. (DUNBAR-ORTIZ, 2014).

               Até aqui pode ser dito que essa forma de guerra foi forjada no primeiro século da colonização para destruir aldeias, campos indígenas, matando milhares de indígenas e muitos civis. Esse processo de extermínio tornou-se a base para as guerras contra os indígenas de todo o continente americano. E entre essas guerras, houve a Batalha de Seattle,ocorrida em janeiro de 1856, que durou um dia. Convencidos de que os indígenas tinham de deixar o lugar onde habitavam, os norte-americanos atacaram o povo indígena com o intuito de tomar-lhe a terra. À época, Seattle era um negociador, ou melhor, um líder intermediador no território de Washington. Ele havia recentemente sido nomeado Cacique Seattle (Sealth): o líder dos povos Suquamish e Duwamish em Puget Sound para fazer o contato entre os indígenas e o governador, Isaac Stevens; no entanto, esses povos de Seattle não estavam satisfeitos com as negociações e não mais queriam se submeter ao comandos do governo dos EUA. Essa insatisfação levou os povos Suquamish e Duwamish a se rebelarem e a confrontarem o “homem branco”. 

               Na década de 1850, após ser sancionada a Lei do estado de Oregon, que visava à facilitação da aquisição de terras, o comércio intensificou-se, atraindo comerciantes de pele, missionários e, logo depois os colonizadores, que viajavam seguindo os trilhos do trem de Oregon, também no intuito de conquistar terras onde os indígenas habitavam. Em 1855, o governador de Washington, Isaac Stevens, chegou a Puget Sound para “limpar o terreno” e, assim, dar continuidade ao crescimento, de modo mais rápido. Esse território, quatro anos antes, fora nomeado, pelo Cacique Seattle, de Seattle: a cidade fora construída com a ajuda de desbravadores, que tinham relação mais próxima com os indígenas. (DUNBAR-ORTIZ, 2014).

               No discurso da Carta, impresso em dezesseis páginas, a mensagem de Seathl (Seattle) surge em um estilo vitoriano, a partir das experiências vividas pelo Dr. Smith, que era do estado de Ohio, mas, em 1853, estabeleceu-se bem próximo ao estado de Seattle. Henry Smith teve a oportunidade de fazer várias anotações do discurso de Seathl e serviu como superintendente em escolas locais e na legislatura territorial. Foi conhecido como um bom médico e poeta, com um extraordinário talento para escrever e aprender outras línguas. O conhecimento da língua própria, Lushotseed, facilitou o entendimento para o Dr. Henry Smith, pois ele havia morado no local por dois anos. Embora o Cacique Seathl soubesse a língua inglesa, ele preferiu usar sua língua para discursar, qual seja, Lushotseed. Desta língua, o discurso foi traduzido para o dialeto Chinook (uma língua que contém aproximadamente 300 palavras); depois, para a língua inglesa, e assim outras versões surgiram também.

               A partir disso, houve, em 1882, um diálogo com os membros mais velhos da tribo Suquamish, que afirmaram ter sido a reescrita feita pelo Dr. Smith a que mais se assemelhou ao discurso do Cacique Seattle. Segundo Giffordet et al. (2005), emerge um discurso com palavras nobres de um ilustre indígena. A voz de Seattle ainda clama por (e conclama para) ação e transformação social. Suas palavras carregadas de sentimentos trazem força para aqueles que se querem manter lutando para proteger os direitos dos indígenas, como no enunciado “Cada parte desta terra é sagrada para o meu povo”. As atitudes que são mostradas na Carta de Seattle estão consonantes com as de pessoas engajadas em defender as terras indígenas e o meio ambiente, a saber: “[...] Olhar para suas cidades faz os olhos do pele vermelha arderem”. As palavras do indígena são frequentemente ainda citadas e divulgadas por meio de vários recursos, como jornais, televisão e internet, fazendo transitar as ideias e saberes desse povo indígena.

Ao enunciar, esse sujeito que estamos perscrutando marca sua posição por meio das escolhas lexicais, revelando sua subjetividade, que permeia as diferentes posições sociais que são desempenhadas pelos indivíduos em momentos diversos da vida, uma vez que esse sujeito se organiza por meio da história e da cultura locais. A nosso ver, essa subjetividade é híbrida, mestiça e heterogênea, como mostramos no processo analítico, a seguir.

 

A prática da intolerância e do preconceito nas tramas discursivas

 

Por meio da discursividade da Carta, problematizamos enunciados que atestam práticas da intolerância e do preconceito contra o indígena, produzidas pelo “homem branco”, bem como as marcas que o (O)outro deixa no indígena, atravessando-o; por meio da linguagem, as marcas emergem, uma vez que elas não podem ser apagadas. A posição-sujeito é ocupada pelo Cacique Seattle, como líder experiente e sábio diante de sua comunidade. Vale dizer que entendemos a posição-sujeito como um corpo social que se distancia do indivíduo empírico. Desse modo, o sujeito não fala por si, pois, ao inserir-se no discurso, como postula também Coracini (2007, p. 24), ele


 


busca palavras (que são suas e do outro) para se definir [...] É no exato momento em que ele se submete às expectativas do outro [...] que resvalam, cá e lá, fragmentos, fagulhas candentes da subjetividade que se diz: escapam representações, desejos, inconscientes e abafados, que se ateiam à menor oportunidade.


 

E essa menor oportunidade é um discurso.

Ao considerarmos o sócio histórico e as relações de poder, trazemos para nossas discussões a concepção do sujeito que não é empírico, mas um sujeito do discurso, que carrega marcas do social e do histórico e que precisa ter a ilusão de ser a fonte de todo sentido, pois é de forma inconsciente que o sujeito é constituído na e pela língua(gem).

O sujeito Seattle erige o seu discurso em torno da proposta do Presidente norte-americano, a partir de suas angústias (materializadas nas palavras ditas ao longo de sua denúncia quanto à violência por parte do “homem branco”): o sujeito indígena usa estratégias de linguagem para mobilizar diferentes vozes que instauram a contradição, dizendo algo diferente do que pensa: a ironia. Assim, trazemos um recorte da Carta, codificado como CS1, a saber:


 


CS1 - O presidente em Washington manda dizer que ele deseja comprar a nossa terra. Ele também nos manda dizer palavras de amizade e boa vontade. Isso é bondade por parte dele, uma vez que sabemos que ele tem pouca necessidade de nossa amizade em troca. Mas nós vamos considerar sua proposta, pois se não o fizermos o homem branco pode vir com suas armas e tomar nossa terra. O que o Cacique Seattle diz você pode acreditar que é tão verdadeiro quanto nossos irmãos brancos acreditam na mudança das estações. Minhas palavras são como estrelas – elas não se enfraquecem. (Tradução e grifos nossos)


[The great chief in Washington sends word that he wishes to buy our land. The Great Chief also sends us words of friendship and good will. This is kind of him, since we know he has little need four friendship in return. But we will consider your offer, for we know if we do not so the white man may come with guns and take our land. What Chief Seattle says you can count on as truly as our white Brothers can count on the return of the seasons. My words are like the stars – they do not set.]

                       

CS1 relata aos ouvintes a proposta que fora ouvida pelos representantes do Governo de Washington e até mesmo pelo Presidente Franklin Pierce. Da visada discursiva, CS1 é permeado e constituído por outras vozes, a voz do outro, que digladiam em torno de uma “intenção”, marca ilusória, uma vez que sabemos que não existe neutralidade nem transparência na linguagem, pois história e ideologia estão entrelaçadas à subjetividade. CS1 está atrelado a enunciados que formam um conjunto, ao se referirem a um mesmo e único objeto. Explicamos:


 


No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva [...]. (FOUCAULT, 2014, p. 47).

 

Para Foucault, há regras que determinam uma Formação Discursiva (FD) e que são representadas por meio de um sistema de relações entre objetos, tipos enunciativos, conceitos e estratégias. Esses elementos dão características singulares à FD, o que possibilita a passagem da dispersão para a regularidade.

Eckert-Hoff (2008), aponta que o sujeito é mais falado do que fala: ele é considerado “cindido (por assumir várias posições no discurso) e clivado (por ser fragmentado, uma vez que o inconsciente o constitui), seu discurso é constitutivamente heterogêneo”. (ECKERT-HOFF, 2008, p. 47).

Retomando o recorte, uma primeira análise pode partir do efeito de ironia que emerge no enunciado. Além de expor a proposta do Presidente de comprar a terra indígena, CS1 acrescenta, por meio do discurso relatado (AUTHIER-RÉVUZ, 1998), o discurso indireto: o Presidente “manda dizer palavras de amizade e boa vontade”. É possível flagrar esse efeito de sentido irônico nas palavras “amizade e boa vontade”: embora expressem a ideia de pacificar a situação, resvalam, nas condições em que são produzidas, efeitos de intolerância e preconceito.

No enunciado “Ele também nos manda dizer palavras de amizade e boa vontade. Isso é bondade por parte dele, uma vez que sabemos que ele tem pouca necessidade de nossa amizade em troca”, o sujeito indígena traz as palavras do outro, do branco, do Presidente, especialmente, “palavras de amizade e boa vontade”, CS1 constrói seu saber contrastando-o ao saber do “homem branco”; além de apontar que as ações do Presidente contradizem suas palavras. Para a AD o sujeito tende a buscar uma completude que não existe; a partir dessa perspectiva, o enunciador, assujeitado pelo esquecimento n. 2 (PÊCHEUX, 2009), imagina que há controle no seu dizer e que o domínio de sentidos, em suas palavras, corresponde somente àquilo que ele tem o desejo de que seu ouvinte formule. Ou seja, situado no nível pré-consciente/consciente, o sujeito tem a ilusão que pode escolher, evitar, colocar fronteiras naquilo que quer dizer ou está dizendo, uma vez que imagina ter o controle dos efeitos de sentido do que diz.

Para nós, a linguagem é porosa, sob um imaginário construído individual e coletivamente; e, por meio da linguagem, o sujeito recorre a uma memória discursiva e (d)enuncia um ponto de vista desvendando valores morais, culturais e sociais de uma determinada sociedade. (BRAIT, 1996).

CS1 enuncia um já dito e imprime um sentido outro, já que ele reinterpreta o que ouviu do outro para atribuir, na qualidade de sua subjetividade, novos sentidos produzidos por CS1.  O enunciado, segundo Pêcheux (2008, p. 53),


 


é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro [...] Todo enunciado, toda sequência de enunciados é, pois, linguisticamente descritível como uma série [...] de pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar a interpretação.

 

Ou seja, CS1, ao enunciar para o seu povo que o Presidente de Washington quer comprar sua terra ancestral, não traz a origem do seu dizer e nem a fonte das operações dos possíveis significados que os enunciados da Carta de Seattle manifestam. O enunciador desse discurso desempenha o papel de organizador da língua(gem), ou seja, ele é um ser de língua(gem), e não um ser que possui língua(gem). Para Foucault (2014), o sujeito ocupa mais de uma posição, isto é, por ser disperso, sua função é vazia e preenchida por outras vozes que formulam o enunciado. Assim, questionamos: Como pedir amizade e boa vontade se as ações se mostram dissonantes do que é dito? As palavras “amizade e boa vontade” estão no mesmo campo semântico de “armas e tomar nossa terra”, numa relação de antonímia (quase um paradoxo). Como pedir amizade e boa vontade se as ações “reagem” diferentemente do que é dito? Assim, as palavras “amizade e boa vontade” estão numa relação de disjunção semântica com “armas e tomar nossa terra”, como a representar os “dois lados” de uma guerra, de um confronto.

Para Derrida (1997), o amigo é aquele que carrega a imagem ideal do eu, dum eu projetado no outro. A observação duma possível amizade passa por este olhar, e a recíproca pode ser verdadeira, numa relação proporcional em que o olhar do amigo é um olhar amigável, de maneira que, o amigo ideal é seu duplo (eu-mesmo) projetado, seu outro self aperfeiçoado. Em outras palavras, a amizade é um sonho narcísico, uma procura pelo modelo de si próprio no outro e, uma negação da alteridade. (DERRIDA, 1997).

Assim, as FDs bélica, familiar e religiosa, materializadas nas palavras armas, tomar nossa terra, amizade e boa vontade, dão forma ao conflito e ao antagonismo entre o “homem branco” e o sujeito indígena, indicando as fronteiras da (im)possibilidade de formação de um consenso racional: ação que corresponde ao fato de que todo consenso se baseia em práticas de intolerância. Portanto o governo, ao “estabelecer a economia ao nível geral do Estado, isto é, ter em relação aos habitantes, às riquezas, aos comportamentos individuais e coletivos, [apresenta] uma forma de vigilância, de controle tão atenta quanto à do pai de família” (FOUCAULT, 1979, p. 281). Entretanto, é nesse movimento agonístico, entre o querer fazer mal e o querer fazer bem, que práticas discursivas, de cunho excludente, intolerante e preconceituoso, caracterizam passionalmente o sujeito intolerante. (BARROS, 2016).

Nessa esteira, o sujeito indígena é alvo duma violência/intolerância ideológica, atravessada por um ideário do “bom samaritano” que tenta esconder a linha que demarca e separa aqueles que pertencem a um determinado grupo social, e que, por isso, possuem direitos iguais, e aqueles que não podem estar protegidos pelos mesmos direitos iguais, porque não fazem parte do mesmo grupo. 

Ao mobilizar a História, sabemos que, por volta de 1840, os Estados Unidos da América alcançaram conquistas industriais nas faixas de terras da região nordeste, entre os Grandes Lagos e o oceano Atlântico; e com a procura de desbravar outras terras rumo ao Oeste encontraram novos “inimigos”, quais sejam, os indígenas: população inimiga eminentemente despolitizada e que não se adequavam aos desejos do fenômeno industrial. De fato, não restam muitos argumentos além daqueles de uma construção retórica que procura monopolizar a ideia do que é civilizado e selvagem.  (BROWN, 1991).

O Governo é quem dita leis e impõe práticas para (re)organizar a sociedade conforme seus interesses, baseados na promoção da industrialização. De acordo com Grosfoguel (2008, p.118) “ninguém escapa às hierarquias de classe, sexuais, de género, espirituais, linguísticas, geográficas e raciais do sistema-mundo/patriarcal/capitalista/colonial/moderno”.      

Temos assistido novas formas de violência e intolerância se construindo no mundo, novas guerras, novas figuras da barbárie e da crueldade e de hostilidades fragmentadas (LORENZETTO; KOZICKI, 2012). E, nessa fase do imperialismo interno nos Estados Unidos da América, marcado por forte genocídio dos indígenas, o colonizador impõe o seu ideário que é tido como uma verdade única: um recurso para excluir os sujeitos que não estão atrelados ao seu saber, impondo os seus valores acoplados num monolinguíssimo pela força e/ou pela lei para interditar, lançar o sujeito – o outro quem se impõe e que submete – nos entre-dizeres, na interdição, ou melhor, no lugar confuso e sem dono do entre-línguas, que significa entre-culturas, entre-outros, entre mim e o outro, que é sempre “outros”. (CORACINI, 2007, p. 47).

Esse corpo social é alvo de preconceito e intolerância existencial, praticadas pelos danos causados à vítima em sua integridade física, moral e simbólica. Na escrita da Carta do Cacique Seattle, há registros de dispositivos de poder/saber que certificam essas práticas de violência, produzidas por sujeitos situados em lugares diversos. Isso porque CS1 erige seu discurso a partir de um local fora do centro, marginalizado, excluído daqueles que são considerados ajustáveis. Essas “práticas não discursivas, como subjugar e/ou agredir o outro pela força física, e as práticas discursivas, explícitas ou veladas, revelam a prática da violência, desde suas formas corpóreas até as suas formas simbólicas”. (FERNANDES, 2017, p.7).

               Entendemos que essas práticas concernem a uma

 


violência “simbólica” encarnada na linguagem e em suas formas [...] essa violência não está em ação apenas nos casos evidentes [...] de provocação e de relações de dominação social que nossas formas de discurso habituais reproduzem: há uma forma ainda mais fundamental de violência que pertence à linguagem enquanto tal, à imposição de um certo universo de sentido. [...] há aquilo a que eu chamo violência “sistêmica”, que consiste nas consequências muitas vezes catastróficas do funcionamento regular de nossos sistemas econômico e político. (ZIZEK, 2014, p. 17).

 

CS1 se torna alvo da violência sistêmica, praticada por meio da intolerância e do preconceito. E quando traz as palavras do Presidente (“manda dizer palavras de amizade e boa vontade”), instaura-se aqui o jogo discursivo irônico que sinaliza a importância do que pode ser dito posteriormente. CS1 articula previsões sobre o modo como vai ser entendido, compreendido, para que o efeito de proximidade seja operado, pois é importante que o alvo seja atingido, que o leitor (ou ouvinte) tenha o mesmo posicionamento que CS1, ou seja, que nessa troca haja formação de consenso. Se houve ironia, deve haver também uma participação do outro, já que as palavras nascem por meio das relações sociais dirigindo-se ao outro; as palavras variam conforme a relação com o grupo social ao qual CS1 pertence e dos laços sociais com o grupo. (GASPAR, 2006).

A princípio, esse efeito escamoteia os interesses do Presidente acerca de como quer ser representado: no entanto outros efeitos de sentidos produzidos por CS1 apontam também que o Presidente tem “pouca necessidade de nossa amizade em troca”: a emergência desse gesto irônico tenta convocar a adesão dos ouvintes (ou leitores). Os efeitos de sentido que emergem se apresentam como uma voz que expressa um ponto de vista contrário, que conflita com o pensamento do “homem branco”, numa argumentação e resistência ao que está sendo imposto pela hegemonia branca no tocante ao desejo de comprar a terra ancestral indígena.

Sem medo de errar, afirmamos, portanto, que o efeito de sentido irônico que emerge no enunciado “Ele também nos manda dizer palavras de amizade e boa vontade. Isso é bondade por parte dele, uma vez que sabemos que ele tem pouca necessidade de nossa amizade em troca” é marcado pela argumentação direta, como um afrontamento de ideias, instaurando polêmica com o intuito de criar estratégias defensivas. (BRAIT, 1996).

Chamamos também a atenção para a captura que o interdiscurso faz no enunciado “manda dizer palavras de amizade”. Comecemos pelo léxico “manda” cuja forma verbal é muito usada por quem ocupa uma posição superior e, por isso, exerce influência sobre outras, estas que estão em uma posição em que devem obedecer (dominador x subalterno; colonizador x colonizado; patrão x empregado), a partir dessa relação hierárquica. O verbo “mandar” está ligado à FD disciplinar/militar, entrecruzando-se, nas condições de produção do discurso em análise, com uma FD colonizadora, cuja proposição é atravessada por ideologias acopladas ao logocentrismo e reducionismo, os quais estão relacionados à forma e ao significado do léxico “Nação” (WALSH, 2018).

Para sustentar nosso gesto analítico, recorremos ao dicionário que mesmo tentando fossilizar os efeitos de sentido não assegura outras maneiras de interpretação, pois ao longo da história o sentido duma palavra extrapola seu sentido primeiro, ou seja, ocorre um efeito semântico, uma (re)interpretação. “O que nos leva a colocar a interpretação como constitutiva da própria língua (natural)”. (ORLANDI, 2007, p.80). Já o substantivo “Nação” possui os seguintes significados: estado que se governa por leis próprias; casta, raça; e naturalidade, pátria. Extrapolando esses efeitos de sentido, vale dizer que este item lexical opera uma estratégia argumentativa cujo mecanismo discursivo parece governar e/modelar o sujeito: aqui o sujeito é “pensado em termos de nação, raça, classe etc. como algo a governar e ser governado”. (BURMESTER, 2015, p. 29). Essa prática discursiva, esse ideário do que é ser duma nação e não outra é contínua. Seus efeitos concebem práticas de integração ao mesmo tempo que também separam os sujeitos, uma vez que o movimento contínuo de questões que envolvem o simbólico e histórico e produzem ideologias que estão atreladas à nacionalidade, ao grupo étnico, às línguas, aos costumes, de forma que aqueles que não se enquadram no padrão ideal correm o risco de serem sancionados por meio da violência, destruição, exclusão, de estruturas que se baseiam na episteme e existencialismo, por questões raciais e territoriais. (WALSH, 2018).

Para concatenar as reflexões feitas até aqui a partir do verbo “mandar”, recorremos ao dicionário (FERNANDES; LUFT; GUIMARÃES, 1995): para mandar, encontramos os seguintes significados: “1. Dar ordens a = governar; 2. Dar ordem de = determinar, exigir; 3. Ordenar, exigir”. Nessa arena discursiva de conflitos, há vozes que se confrontam em uma relação de poder. Alguém diz “manda” quando reconhece que há superioridade quanto a sua posição em relação ao outro. CS1 desvela a similaridade entre as instituições militar e colonizadora, uma vez que o verbo “mandar” é uma marca linguística de cunho impositivo e autoritário, sendo frequente no discurso de quem participa de campanhas e lutas, bem como de quem está liderando invasões para tomar o que é do outro. Ora, se foi possível mandar, houve possibilidade de obedecer. Se há pessoas que mandam, é porque há pessoas que obedecem. Se foi possível que o Presidente “mandasse dizer”, esse dizer reproduz as estruturas de poder (hierarquia) e opressão, mantendo o outro, o subalterno, em silêncio, sem lhe oferecer a palavra; ou ainda, se a palavra é concedida ao oprimido, o discurso autoritário desvaloriza o que o outro tem para falar. (SPIVAK, 2010).

Contudo, onde há poder há vozes de resistência, pois


 


são os próprios processos característicos das dinâmicas diferenciadas e desiguais do capitalismo que geram contradições e lutas de diferentes tipos, que não são todas simplesmente integráveis ou subordináveis à luta de classes, e que não têm necessariamente o espaço nacional como espaço privilegiado (SANTOS; NUNES, 2003, p. 35).


 


 


 

As lutas indígenas ou a luta pelo reconhecimento de identidades étnicas nos mostram e fazem recordar que tanto a dominação quanto a resistência são estabelecidas sobre diversos eixos. Diversas lutas irão emergir em diferentes situações, levantando atores coletivos distintos. (SANTOS; NUNES, 2003).

Relata-se que a história dos EUA começou no século XVI, quando os europeus chegaram ao continente americano. Até aquele momento, os indígenas habitavam o local, portanto foi a partir dessa aproximação que aconteceram os primeiros contatos. Por razões diversas, grupos sociais, políticos e religiosos decidiram ir para o novo mundo: os EUA ficaram conhecidos como um país que se destacou por sua força militar, política e econômica. E as terras na América do Norte eram vendidas e negociadas por vários outros lugares na região, por isso a necessidade da saída dos povos indígenas de alguns lugares específicos. Os EUA compravam as terras para efetivar controle sobre as regiões. As linhas fronteiriças, que não existem no globo, delimitavam os territórios para que os colonizadores pudessem ser enviados com a tarefa de estabelecer e declarar a independência deles; daí os conflitos e o princípio do emprego de ordem, de modo que o outro obedecesse, foram fundamentados. (BROWN, 1991).

A partir deste processo analítico, podemos citar diferenças quando refletimos acerca da sociedade indígena: a sociedade moderna ajusta espaços nacionais com territórios sob a autoridade de um Estado, sendo diferenciada estruturalmente. Há uma sociedade que “tem” (sociedade que assegura o domínio; elas são guardiãs) cultura e é baseada em critérios de valor, estéticos, morais e cognitivos. As “outras” sociedades são destoantes da cultura “universal”, particularmente as indígenas, uma vez que estas são vistas como diferentes ao implicar descaracterização com a igualdade. E essa ação gera e reproduz estereótipos de inferioridade (SANTOS; NUNES, 2003) capazes de deixar marcas indeléveis nessas sociedades que são (a)locadas à margem.

 

(In)conclusões

Diziam que a gente não era mais índio, vestia roupa, usa relógio, fala português, corta cabelo...” (NGEMATÜCÜ, 2009, p. 197).

 

Neste trabalho, a partir do olhar discursivo-desconstrutivo, nossa meta foi discutir práticas discursivas que envolvam os indígenas, especificamente, as práticas de intolerância e preconceito discursivizadas na Carta. Ou seja, problematizamos enunciados que atestam práticas da intolerância e do preconceito contra o indígena, produzidas pelo “homem branco”, bem como as marcas que o (O)outro deixa no indígena, atravessando-o; por meio da linguagem, as marcas emergem, uma vez que elas não podem ser apagadas.

A partir do pensamento de progresso industrial que coloca o sujeito indígena como empecilho do contínuo desenvolvimento territorial, pudemos mostrar que as “verdades” do “homem branco” são impostas, cerceando qualquer expectativa que não lhe atende, isto é, o discurso de intolerância funciona quando o outro não é (trans)formado em nós.

O gesto analítico que lançamos nos permite dizer que o indígena não se enquadra ao que é esperado pelo “homem branco” em relação à terra e a maneira de viver, em consequência, os saberes a que o indígena está atrelado são desqualificados.  A violência, a falta de tolerância delimita o espaço fronteiriço entre colonizador x colonizado no Ocidente, entremeadas na construção das sociedades modernas e, ao mesmo tempo, mostram como elas foram marcadas por formas de continuidade em relação à "situação colonial". Portanto, cabe-nos criticar a reprodução de ambiguidades e contradições que podem silenciar a historicidade e os saberes locais, bem como as estratégias de luta e resistência. E atravessados por nossa escolha teórico-metodológica, tentamos desnaturalizar o ideário de progresso industrial que aplaudiu ao triunfalismo comercial burguês e nacionalismo e às particularidades existentes (GUERRA, 2015).

A intolerância foi sistematicamente instrumentalizada pelo colonialismo e imperialismo, demarcando fronteiras entre os povos não só como uma linha mapeada cartograficamente, e descrita em seus marcos geodésicos, mas também como uma linha de fronteira simbólica que acampa relações de poder e saber, sustentáculos da presença da intolerância, do preconceito, da violência, tornando mais complexa e nebulosa a ideia de fronteira. No recorte analisado, a partir das marcas linguísticas, pudemos mostrar a predominância de dois gestos de intolerância e preconceito materializados nas práticas de antipatia, quais sejam, a raiva e a xenofobia. Esta para demarcar a posição onde o indígena deve ficar, pois ele não faz parte da sociedade hegemônica: aquela, por meio de batalhas e guerras quando o indígena não obedece ao que é dito e imposto pelo Governo. Além disso pudemos entender que os sentidos de maldade se manifestam quando o sujeito indígena não cumpre os acordos estabelecidos pelo “homem branco”, uma vez que quem dita as regras é o homem civilizado, não o selvagem cujos sentimentos de afeição e e simpatia vêm camuflados pelo “contrato” de boa vontade e amizade que só uma das partes se obriga para com a outra.

Sem dúvida, as questões levantadas neste trabalho foram geradas pelo incômodo ou aborrecimento que o princípio discursivo-desconstrutivo nos (des)loca, bem como os gestos interpretativos que gerimos a partir da escrit(ur)a do indígena na margem/fronteira, conforme as histórias locais retratadas na Carta do Cacique Seattle. Esse princípio, ora derrideano, ora guerreano, direcionou-nos não só para problemáticas como opressão, preconceito e intolerância num nível mais universal, mas também para dinâmicas entre o indígena e o “homem branco”. Desse modo, quando construímos nosso gesto analítico a partir dessa paisagem “fronteriza”, foi preciso evocar historicamente particularidades específicas da comunidade indígena do Cacique Seattle.

Para (in)concluir, pontuamos que a AD de olhar transdisciplinar traça como propósito escavar os vestígios normalizadores, dispersos nos discursos dos saberes, das instituições e, consequentemente, investiga como os arranjos do saber e poder corroboram o aparecimento de acontecimentos discursivos. A partir desta perspectiva, ansiamos que esse conhecimento, articulado com os sentidos da representação que o sujeito elabora sobre si e sobre o outro, possa contribuir também para a discussão de outras formas de intolerância e preconceito. O que vimos emergir na Carta do indígena Seattle analisada são marcas (in)visíveis que caracterizam uma forma de violência ou perseguição, na busca de uma excludente anulação do sujeito indígena, em favor da homogeneidade de uma etnia.

 

Referências

 

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Data de Recebimento: 08/04/2019
Data de Aprovação: 15/08/2019

 

[1] Indígena Ticuna da Amazônia, líder de movimento indígena.

[2] Por uma valorização da epistemologia do sul, “suleamos” em vez de nortearmos. (SANTOS; MENESES, 2010).

[3] Esta pesquisa faz parte do Grupo Interinstitucional “Vozes (In)fames: exclusão e resistência”, registrado no CNPq e coordenado pela Profa. Maria José Rodrigues Faria Coracini (Linguística Aplicada-IEL-UNICAMP).