Espaço urbano e subversão queer: ethos e cenografia na prática discursiva intersemiótica de Linn da Quebrada


resumo resumo

Redson Pagnan



  1. Introdução às Políticas do Espaço


 

A nossa época talvez seja, acima de tudo, a época do espaço (cf. FOUCAULT, 1967). O breve século XX transformou nossas vidas, cidades, casas e corpos. Essas transformações advêm tanto de uma revolução tecnológica e digital que afeta as formas de trabalho; o modo de circulação pelas cidades e a forma de morar, como das transformações das estruturas sociais internas – que refletem novas composições dos corpos, dos grupos familiares, das diversas relações estabelecidas no território –, e, também, de um novo entendimento da privacidade muito mais associada à uma dimensão pública. “Nós vivemos na época da simultaneidade, nós vivemos na época da justaposição, do próximo e do longínquo, do lado-a-lado e do disperso” (cf. FOUCAULT, 1967, p. 1). Isto é, nós vivemos na época da complexidade. E o espaço em si possui uma história na experiência ocidental e é impossível ignorar este entrecruzamento do tempo com o espaço (cf. FOUCAULT, 1967). No tempo em que vivemos, é impossível ignorar as diversas condições, contradições e características que produzem novos sentidos de corpo e de espaço[1]. A segregação espacial urbana – que surge entre os séculos XVII e XIX – é uma dessas características.

As transformações nessa época estavam ligadas à norma e ao controle do espaço público: criaram-se as praças com restrições de atividades, depois os parques públicos, os bairros burgueses afastados dos centros, criaram-se também os bairros operários próximos das indústrias e, consequentemente, a relação entre centro-periferia marcada pela pobreza e por motivos diversos, transformando o núcleo das cidades (cf. STÉDILE, 2019). As mutações urbanas condicionadas pelo uso e função, não só em relação ao espaço, mas também ao corpo, atravessam o tempo e tornam-se um fator de identificação com a cidade. Nós somos a cidade. Nossas relações estão marcadas nas pedras da cidade. Assim, a organização da cidade e suas formas arquitetônicas cumpre um papel fundamental na manutenção das relações de poder (cf. CORTÉS, 2008).    

Portanto, a identificação com um determinado espaço faz parte do núcleo fundador da arquitetura e consequentemente parte da vida do homem. Desse modo, para Unwin[2] (2013) é possível pensar a arquitetura como linguagem. O espaço representa para arquitetura aquilo que o significado representa para a linguagem, o significado é sua função essencial assim como o espaço é a função essencial para a arquitetura (cf. UNWIN, 2013).

A atividade da arquitetura não se resume apenas a edificar, construir e, tampouco, transcrever e formalizar uma técnica através do desenho. Arquitetos não são apenas construtores ou desenhistas. Existe uma profundidade acerca da profissão que está no campo do pensamento complexo, onde se reflete a respeito da existência humana, do fazer, do saber. Estruturar o espaço e o pensamento a fim de atingir uma condição. Isto é, produzir a partir de determinados aspectos, soluções, caráter, hierarquia, importância, dentre outros fatores. A forma arquitetônica não é apenas a expressão ou a representação de uma ideia, mas a materialização da ideia em si. “O espaço, mais que uma condição prévia (um lugar), é o resultado de uma atividade” (cf. CORTÉS, 2008, p. 21).

Assim, a arquitetura não é só o resultado ou reflexo de uma condição sociológica, econômica e histórica, mas fator influente, agente de processos devido à sua materialização espacial de caráter duradouro. Logo, podemos afirmar que:

 


de fato, cada obra não resulta de um conjunto de relações, mas determina por sua vez todo um campo de relações que se estendem até os nossos tempos e o superam, uma vez que, assim como certos fatos salientes da arte exerceram influência determinante mesmo à distância dos séculos, também não se pode excluir que sejam considerados como ponto de referência num futuro próximo ou distante (ARGAN, 1995, p. 15).

 

A mesma ideia pode ser estendida para falar de cidade, a estrutura espacial de maior complexidade da cultura humana. A cidade é fundada na ideia de encontro, na ideia de troca material e imaterial, de integrações sociais e culturais. É lugar de desenvolvimento técnico, cientifico e cultural e também de ideias, espaço que determina relações que se estendem no tempo. Portanto a cidade é lugar de viver.    

Dessa forma, sugiro ampliar a discussão acerca do que é o espaço público das cidades. Partindo da proposta de (re)pensar a cidade e o corpo, lendo narrativas urbanas para entender a produção de sentidos na cidade, ou seja, como a cidade se faz representar, como os corpos urbanos estão representados nesse espaço, como se estabelecem tais sentidos, e de que forma a rua por meio de diversas atividades tem recebido novos significados.

 A partir das imbricações entre as questões de identidade de gênero, sexualidade, classe social, raça e espaço urbano, pretendo analisar de que forma o sujeito citadino percebe o ambiente e com ele estabelece uma relação de comunicação que promove a criação de novas informações e transforma os espaços em lugares, ou seja, que torne o espaço ‘seu’, que dote este espaço com algum conteúdo (cf. CORTÉS, 2008). As narrativas urbanas são um caminho de mão dupla, já que elas próprias constituem-se como a possibilidade de leitura entre o corpo e da cidade ao mesmo tempo em que representam a materialidade, ou seja, significam a cidade e o corpo. Assim, corpo e cidade se permitem observar empiricamente e se constituem como representações através de signos que constituem sua imagem e sua existência social. Portanto, a cidade é:

 


[...] a tentativa mais coerente e, em termos gerais, mais bem-sucedida de refazer o mundo em que vive, e de fazê-lo de acordo com seus mais profundos desejos. Porém, se a cidade é o mundo criado pelo homem, segue-se que também é o mundo em que ele está condenado a viver. Assim, indiretamente e sem nenhuma consciência bem definida da natureza de sua tarefa, ao criar a cidade o homem recriou a si mesmo (PARK, 1967).


 

Desse modo, entender a narrativa urbana como um possível ato de comunicação entre corpo e cidade,  supõe que a cidade possa ser vista (e lida) não mais como um mero cenário urbano, mas sim como um ambiente que possui uma organização cheia de significados, onde os processos do fazer urbano criam diferentes espacialidades, ou seja, “modos de ser” no espaço-tempo urbano. Por esse viés, é fácil compreender que a linguagem e a existência humana estão fundamentalmente imbricadas.

Por meio da história das cidades é possível compreender que o planejamento das estruturas urbanas influenciou diretamente o comportamento humano, da mesma forma que o corpo humano inspirou e direcionou o funcionamento da urbe (cf. SENNETT, 2016). Portanto, indico neste trabalho que discurso e ação não são instâncias apartadas, a linguagem nos permite agir no mundo, é um instrumento. Dessa forma, junto com o objetivo específico de analisar a prática discursiva intersemiótica de Linn da Quebrada e mobilizando conceitos propostos por Dominique Maingueneau (2006, 2008, 2013), pretendo discutir a relação entre alguns marcadores sociais (gênero, sexualidade, raça, classe social etc.) com o espaço urbano, tomando a linguagem enquanto performance.

Entendo que a cidade deve ser considerada como algo que está para além do entorno urbano, apresentando-se como um espaço semiótico que engloba as relações de troca e comunicação que se dão, não apenas no espaço e no tempo, mas também no corpo, onde um interpretante gera outro e assim sucessivamente. Ou seja, enxergo o espaço – público/privado – como mantenedor das relações de poder, dentro de uma lógica capitalista de se produzir cidades e de se produzir sujeitos. Deste modo, posso contextualizar historicamente, o modo como as sociedades se posicionaram frente aos indivíduos que vivenciam suas sexualidades de formas desviantes das normas e padrões sociais naturalizados, a partir da arquitetura, da linguagem, do corpo, ou ainda do cruzamento entre esses diversos domínios.

Para essa análise, utilizo como base teórico-metodológica a Análise do Discurso de linha francesa, a partir dos estudos de Dominique Maingueneau e, também, os pressupostos das teorias Queer[3], sobretudo aqueles colocados por Judith Butler (2004, 2017) acerca das questões de gênero e sexualidade. Além disso, procuro estabelecer um diálogo com as reflexões teóricas sobre o corpo e a cidade vindas da Filosofia, da Sociologia e da teoria da Arquitetura e Urbanismo.

 

  1. Lugares de Poder e Lugares de Resistência

 

A partir do século XIX grandes transformações acontecem no plano urbanístico das cidades, assim como na proliferação de um pensamento iluminista que se expandiu e formalizou todo o comportamento social (cf. SENNETT, 2016). Uma completa transformação no espaço urbano e privado foi possível pelo surgimento de uma determinada infraestrutura que incluía luz elétrica, galerias comerciais, bondes e outros meios de transporte. Da mesma forma, que se via a incorporação do ferro e do vidro às construções, um novo entendimento no sentido de público/privado, doméstico/industrial, se estabelecia.

Este ambiente, propiciado por tais descobertas tecnológicas estava assentado sob uma única premissa: a padronização de uma sociedade. Isto é, se objetivava uma sociedade ideal através do controle da produção da cidade, dos corpos, do constante desenvolvimento da técnica e da ciência pautados pela razão. A vanguarda do Movimento Modernista se constituiu pela aspiração de possibilitar um grande futuro para a humanidade, que diz respeito não só a arquitetura, mas também a uma construção de sociedade. O modernismo construiu lugares de poder. A narrativa modernista compreende a cidade como um todo, como algo homogêneo e orientado para um único fim. Nessa perspectiva, a cidade considera um único “modo de ser” no mundo, onde se perpetua os interesses masculinos, logo, toda a diversidade (em qualquer esfera da vida humana) está descartada. Isto é, em uma cultura dominada pela masculinidade, “o imaginário do corpo masculino está em qualquer lugar, da construção fálica dos arranha-céus às construções ‘musculares’ de nossos órgãos públicos. Os papéis do Homem e seu poder se fazem reais por meio da arquitetura” (cf. BETSKY, 1995, p. XII). A cultura masculina se fez presente no entorno urbano, enquanto o corpo das mulheres e dos gays (entre outras minorias) estiveram ausentes, foram silenciados e/ou negados durante muitos anos no espaço público. Diante disso, os setores sociais marginalizados e condenados (compulsoriamente) ao silêncio tiveram de aprender a “dizer-se”, aprender a ocupar um espaço na esfera pública, uma esfera onde não tinham lugar nem de forma simbólica, nem espacial ou representacional (cf. CORTÉS, 2008). Ou seja, interviram na cidade com seus corpos, suas vivências e suas palavras.   

De acordo com Cortés (2008, p. 160) “cada lugar possui sua própria lógica de reprodução, seus próprios meios de perpetuação, bem como suas próprias condições de existência”. Portanto, o ambiente construído facilita, expressa, legitima e perpetua os interesses masculinos. Logo, os espaços são resultados de processos de reprodução social, por isso, é impossível separar suas questões espaciais e culturais, já que para compreender um é necessário (re)conhecer o outro.

 Dessa forma, usar um espaço é ter a capacidade de dotá-lo de conteúdo, contraditório ou diferente do que foi imposto primeiramente, pois é na medida em que é usado que um espaço existe (cf. CORTÉS, 2008). Assim, entendo que a cidade é um território fragmentado em relações de poder econômico, político e social, onde nossa posição enquanto sujeito-habitante é de submissão ao espaço e aos poderes. 

Nesse contexto, a cidade em que vivemos, herança dos fundamentos modernistas, literalmente, concretou raízes masculinas em nossa cultura, inclusive a respeito de comportamentos sociais. Essa cidade vem sendo estruturada em torno de grandes agrupamentos edificados, que se erguem em competição com ela mesma, desconstruindo a rua e diluindo a importância de edifícios históricos, de tal forma que inibe um espaço urbano que preze pela diversidade (cf. CORTES, 2008).

Narrar, ocupar e construir são atividades humanas que operam em um mesmo modo de inscrição (cf. FEDATTO, 2013). O corpo e o edifício se inscrevem no espaço urbano como uma narrativa em meio a uma intertextualidade. Logo, a cidade que deveria confundir-se com o espaço urbano, não existe, já que, o medo do outro produz anticidades. Ou seja, o conceito de rua é: gente na rua, e isso não acontece. Em contrapartida a aglomeração que produz segurança, existe um vazio que cria inseguranças, como o anseio de esvaziar a cidade à noite em nome de uma segurança ilusória, criada pelo medo do contato (cf. SENNETT, 2016). Desse modo, os cidadãos permanecem expostos e mais indefesos em espaços não preenchidos.

Portanto, uma das ações mais transgressoras no ambiente urbano tem sido o modo como diversas minorias ocupam – performam[4] – transformam e questionam o sentido de espaço ou a relação de seus corpos e seus desejos, com a rua, com o lar, com a ideia de construção de um “espaço”, de uma identidade, de uma cidade, de uma comunidade de corpos (cf. CORTÉS, 2008). Desse modo, entendo a performance[5] de Linn da Quebrada como camp[6], que transforma esse sujeito em ser, ao mesmo tempo em que funciona como uma crítica cultural (cf. SPARGO, 2017).

Nesse contexto, Linn da Quebrada assume um lugar de sujeito em processo, um corpo que reivindica a sua existência e de outras pessoas como ela, através de uma prática discursiva hiperbólica, que utiliza de elementos, até então, tidos como indícios de fragilidade para construir um corpo que transgride uma cisheteronormatividade imposta. Meninos afeminados; mulheres masculinizadas; bixas; travas; drag queens e tantas outras expressões identitárias flexíveis e questionadoras tensionam, provocam e forçam uma abertura no binarismo de gênero, que atravessa todas as esferas da vida social, ao questioná-lo a partir de sua existência, portanto, da linguagem.

Deste modo, temos como contraponto à cidade planejada pelos arquitetos e urbanistas, uma cidade praticada pelos indivíduos. Na busca constante de construir seus projetos pessoais e reforçar a sua própria identidade, temos lugares de resistência.  Nessa perspectiva de entrelaçamentos entre marcadores sociais e espaço urbano, me interessa levantar alguns questionamentos: (i) de que modo esses corpos compulsoriamente abjetos, desviantes, são significados pela prática discursiva de Linn da Quebrada? (ii) como é possível a compreensão dos sentidos que o discurso produz?

 

  1. Ethos discursivo e outros conceitos

 

No interior da Análise do Discurso, tomamos a metodologia de análise tal como proposta por Pêcheux (1988/2006), para quem há um batimento entre descrição e interpretação. Trata-se então de assumir que a análise é sempre interpretação, gesto de leitura guiado pelas questões postas pelo analista (cf. ORLANDI, 1994).

Assim, assumo, na perspectiva de Dominique Maingueneau, a ideia de uma semântica global, onde os diversos planos do discurso se encontram todos submetidos às mesmas restrições de ordem semântica. A semântica global “não apreende o discurso privilegiando esse ou aquele dentro de seus ‘planos’, mas integrando todos ao mesmo tempo, tanto na ordem do enunciado quando na da enunciação” (cf. MAINGUENEAU, 2008, p. 75). Isto é, a semântica global compreende “um todo” onde as regras de uma determinada formação discursiva aparecem entre diversos planos, já que a análise do discurso trabalha com o sentido e investe o discurso na “multiplicidade de suas dimensões” (cf. MAINGUENEAU, 2008 p. 76). Assim, a ordem dos “planos” que apresento na análise é completamente arbitrária, “não constitui de forma alguma um modelo genérico em virtude do qual o enunciador escolheria previamente um tema, depois um gênero literário, depois um vocabulário etc.” (cf. MAINGUENEAU, 2008, p. 77).

O ethos é, primeiramente, apresentado por Aristóteles em Retórica, como a persuasão baseada na imagem que o orador oferece de si ao ouvinte, independentemente de qualquer opinião previa que se tenha. Maingueneau ao incorporar o ethos retorico a Análise do Discurso (AD) reinterpreta essa noção, propondo que, o que o enunciador deseja causar sobre seu auditório por meio da sua imagem é imposto pela formação discursiva e não pelo sujeito em si (cf. PIRIS, 2007). Portanto, o ethos diz respeito a uma noção discursiva, ele se constrói pelo e no discurso, e mesmo quando escrito, é sustentado por uma voz, de um sujeito situado para além do texto (cf. MAINGUENEAU, 2013). Para Maingueneau (2013) o tom dá autoridade ao que é dito e associa-se a um caráter e uma corporalidade, que compreende não só a dimensão vocal, mas também a física e psíquica, ligadas a representação coletiva da personagem do enunciador, ou seja, uma voz e um corpo historicamente investidos de valores compartilhados socialmente e captados por meio de estereótipos.

Desse modo, o ethos deve ainda ser compatível com o mundo que é construído no discurso por meio de uma cenografia. De acordo com Maingueneau (2013) a cenografia é a cena com que o co-enunciador toma contato explicitamente, ela tende a deslocar o quadro cênico (cena englobante e cena genérica) para o segundo plano. Para esta análise, mobilizo os conceitos de ethos discursivo e cenografia tomados como motores da paratopia criadora de Linn da Quebrada (cf. MAINGUENEAU, 2006). As categorias de ethos discursivo e cenografia parecem produtivas para as descrições e interpretações que realizo, mas isso não significa que outros elementos da discursividade sejam mais ou menos importantes nas materialidades analisadas.

 

  1. Ocupando Espaços, Expandindo Vozes

 

Para esta análise, utilizo como exemplar do espaço canônico musical da artista (cf. MAINGUENEAU, 2008) a música “Bomba pra Caralho”, a música conta com a participação de outrxs cantorxs, negrxs e trans: Liniker e Jup do Bairro. A canção pertence ao set-list do disco de estreia de Linn, o Pajubá. Um disco de afrontamento, um manifesto construído nas bases do rap/funk contemporâneo, cujo som é urbano, áspero, raivoso e provocante. Os versos explícitos alfinetam os machismos e as fobias sofridas no dia-a-dia especificamente pelos negros da comunidade LGBTQIA+, um tema que também é frequente na prática discursiva da artista.

No entanto, antes de proceder com as análises de fato, gostaria de contextualizar Linn da Quebrada. É importante dizer que a ascensão de Linn da Quebrada enquanto cantora foi autoconstruída com base em uma imagem de transgressora que, através de abordagens político-sociais (sua obra), tem por intuito transformar o mundo e a comunidade em que vive. A existência da artista enquanto cantora só foi possível com o advento da internet (cf. PAGNAN, 2019), visto que atua de forma independente, isto é, sem gravadora, fato que lhe permite total liberdade expressiva e executiva de seu trabalho. Assim, ela mesma se deu voz e encontrou, nesse espaço virtual, co-enunciadores que aderiram ao seu discurso, transformando-a em um símbolo de resistência dentro da comunidade LGBTQIA+.

MC Linn da Quebrada apareceu em março de 2016 com a música “Enviadescer”, onde fala de suas vivências sobre ser bixa[7] e resistir. Não só ser bixa, mas ser uma bixa muito afeminada e se impondo frente aos preconceitos inclusive dentro da comunidade, onde o gay afeminado e/ou o feminino, independente de qual corpo ocupa, é malvisto. Ainda durante o ano de 2016, lançou as canções “Talento”, “Bixa Preta” e “Mulher” e assim saiu em turnê com a “Bixaria”[8], a sua primeira. Retirou o “MC” do nome, pois diz que “não é cantora, mas que está cantora porque precisa da música para gerar movimento”[9]. Na sequência, ainda em 2017, lançou um crowdfunding[10] para financiar o seu álbum visual, o Pajubá. O primeiro single[11] do álbum foi “Bomba pra Caralho” objeto de análise deste artigo.

Desde então Linn da Quebrada só alavancou, lançou seu álbum visual que circulou por diversas listas de melhores álbuns de 2018, depois saiu em turnês nacionais e internacionais e estrelou o documentário Bixa Travesty (2018) dirigido por Claudia Priscilla e Kiko Goifman, que ganhou mais de 20 prêmios nacionais e internacionais, inclusive o Teddy Awards do Festival de Berlim. O início de sua trajetória, também foi documentado em “Meu corpo é Político” (2017) de Alice Riff. Além disso, participa de “Abrindo o Armário” (2018), dirigido por Dário Menezes e Luis Abramo e das obras de ficção “Corpo Elétrico” (2017) de Marcelo Caetano e, recentemente, “Sequestro Relâmpago” (2018), dirigido por Tata Amaral. Além de interpretar Natasha em “Segunda Chamada”, série da Rede Globo[12] de 2019. Linn é muitas e fica difícil resumi-la. E não quero, nem devo. Não é a intenção, nem a possibilidade. 

Prosseguindo com a análise, “Bomba pra Caralho” é composição da própria Linn, assim como todas as canções do Pajubá. A faixa demonstra o domínio poético da artista. Linn chega metendo o pé na porta, calçando sua plataforma de acrílico altíssima e com um olhar cru sobre a vida na periferia e o caos urbano presente no lugar, denunciando o genocídio da população negra que estampa os noticiários dentro e fora do país. Logo no título da canção – Bomba pra Caralho – indica muitas mortes pela expressão “pra caralho”. Ao mesmo tempo, sugere um jogo enunciativo com a questão da música tornar-se um “hit”, ou seja, “bombar” muito, de ser algo legal, interessante pra caralho.

A propósito da cena de enunciação desse texto, pode-se dizer, de acordo com as considerações de Maingueneau (2008) sua cena englobante é o discurso literomusical e sua cena genérica é a letra de canção, são as duas dimensões que constituem o quadro cênico do texto. No entanto, não é em relação a esse quadro que o co-enunciador se vê confrontado, mas sim a uma cenografia que distingue esse “texto” de outras letras de canções. Essa cenografia não foi escolhida ao acaso, mas como a mais adequada para dizer o que se pretende dizer. Embora o texto seja construído com versos que pareçam com qualquer outra letra, ao ouvir a canção (ou ouvir) o leitor está diante de uma denúncia (esta é a cenografia) utilizada de maneira poética unindo o protesto com uma ação artística, frequente na prática discursiva de Linn da Quebrada. A canção se diferencia ainda pelo fato de não apresentar um refrão especifico e não possuir um sistema intercalado entre versos e refrão, essa característica “anticomercial” também é presente na prática discursiva da artista, que se opõe aos interesses, normas e usos comerciais.

Inicialmente a música foi lançada em forma de um áudio-videoclipe (lyric vídeo) no YouTube. As duas primeiras estrofes são cantadas através de um megafone, um aparelho portátil frequentemente utilizado em protestos e manifestações para ampliar o som da voz, aproximando assim o ouvinte (co-enunciador) de um discurso que pretende fazer uma denúncia (grifos meus), ou seja, uma música que comunica algo: a imputação de um crime. E que de fato está denunciando, está gritando. Enquanto isso o vídeo mostra um corpo preto e gordo – o corpo ausente do imaginário social, da mídia em geral, etc. – ao passo em que se torna iluminando por uma vela, revela a tatuagem que diz “corpo sem juízo”, esse corpo é ela, Jup do Bairro.

Mais que um mero organismo físico e/ou material, o corpo é um código para situar-nos no mundo e nos ajudar a entender quem somos. A configuração de nosso corpo influencia de forma mais que evidente nossa existência social e cultural (cf. CORTÉS, 2008). Desse modo, em um mundo no qual a aparência e a imagem se transformam em valores, um corpo não apenas transmite mensagens à sociedade em que vivemos como também se transforma no conteúdo dessas mensagens (cf. CORTÉS, 2008). Portanto, ao colocar tal corpo no vídeo, parece assinar seu atestado de liberdade, se rebelando contra o corpo padrão construído ideologicamente que possui o poder de modelar os ideais sociais. Dessa forma, o corpo funciona como um signo econômico, espacial e cultural – um veículo que porta e ajuda a fixar o vocabulário dos papeis de gênero (cf. DURNING & WRIGLEY, 2000). O corpo dito denuncia a morte das bichas pretas se marcando como diferente dos corpos “normais e banais em processos mentais”:

 

Baseado em carne viva e fatos reais

É o sangue dos meus que escorre pelas marginais

E vocês fazem tão pouco mas falam demais

Fazem filhos iguais, assim como seus pais

Tão normais e banais, em processos mentais

Sem sistema digestivo lutam para manter vivo

Morto, vivo, morto, vivo, morto, morto, morto, VIVA!

           

A primeira estrofe da letra corrobora com a cenografia construída pelo enunciado por fazer referência a uma manchete jornalística, que denuncia a chacina nas ruas, “sangue dos meus que escorre pelas marginais” – as marginais que separam as periferias da cidade, o órgão institucionalizador, portanto, o sangue marca a segregação no território. Ao final da estrofe, o enunciado “morto, vivo, morto, vivo, morto, morto, morto, VIVA!” retoma uma memória discursiva de brincadeira de criança, essa sequência de ordens, onde morto(agachado) e vivo(em pé), parece indicar a posição em que esses corpos vivem para assim tentar sobreviver, a todo tempo escondendo-se entre cidade e periferia, em verdadeiras manobras, para ao fim gritarem “VIVA” por suas vidas. O “morto-vivo” diz ainda respeito à um personagem mítico e fabuloso. Um ser que está morto, mas permanece agindo como se estivesse vivo, perambulando sem rumo, em busca de vingança, como por exemplo, os zumbis. O texto ainda permite uma aproximação com as estatísticas de mortalidade da população, “metade do povo morto”, “metade do povo vivo”. 

            O ethos discursivo (cf. MAINGUENEAU, 2006) que emerge reúne traços de agressividade. Linn é bomba, Jup é bomba; juntas as duas são bomba pra caralho. Essa agressividade é mostrada no texto, por um sujeito de ações combativas e subversivas aos valores tradicionais, um sujeito que acende (a)ponta, mata a cobra, arranca o pau; tem fogo no rabo, passa, faz fumaça, faça chuca ou faça sol. O enunciado ainda provoca e hostiliza um determinado setor social – o setor policial, o da segurança pública – ao trazer para o texto o substantivo feminino “viatura” levando seu co-enunciador, já envolvido por esse mundo de batalha construído pelo discurso (a cenografia é de denúncia) a assimilar tais ações com determinada atividade e com suas práticas também construídas midiaticamente que o enunciado retoma.

Na sequência a sentença – “arrancam o couro dos outros mais pretos que louros, os mouros” – faz referência à população negra, os mouros, oriundos do norte da África aniquilados pelos povos que os conquistavam e, posteriormente, passaram a ser utilizados como escravos (cf. AZEVEDO, 1999).   

 

Bomba pra caralho, bala de borracha, censura, fratura exposta

Fatura da viatura, que não atura pobre preta revoltada

Sem vergonha, sem justiça, tem medo de nós

Não suporta a ameaça dessa raça

Que pra sua desgraça a gente acende (a)ponta, mata a cobra, arranca o pau 

 

Tem fogo no rabo, passa, faz fumaça, faça chuca ou faça sol

É uó, (u)ócio do comício em ofício que policia

o comércio de lucros e loucos que aos poucos

Arrancam o couro dos outros mais pretos que louros, os mouros

Morenos, mulatos, pardos de papel passado presente futuro

Mais que perfeito, em cima do muro, em baixo de murro

No morro, na marra quem morre sou eu? Ou sou eu quem mata?  

 

Por fim, mas não findado, os últimos versos da canção falam sobre o estereótipo do (corpo) negro e criminoso que vem sendo construído desde o início da canção, indicado pelos marcadores sociais de raça e classe – pobre, preta, revoltada – assim como, por sua fala agressiva e suas ações subversivas.  O enunciado também marca um espaço – no morro – ou seja, uma topografia que se refere à descrição da localização dos sujeitos na cena (cf. BORGES, 2016). Na prática discursiva de Linn da Quebrada os sujeitos estão à margem, os sujeitos são as margens e estão reinventando os significados desses espaços.

Compreendemos, portanto, que o enunciador do discurso, inscrito no texto está definido em relação às formações discursivas às quais o discurso está vinculado. Desse modo, o enunciador é um sujeito que se constitui historicamente, a partir das formações ideológicas que representa na formação discursiva a que está aliado. O discurso permite a criação de uma corporalidade associada (lógico) ao ethos, ao tom, a cena de enunciação, por onde “vemos” surgir este sujeito que se manifesta em todo o processo discursivo. Junto desse manifesto estão todos os efeitos de sentido sendo produzidos no/pelo discurso por efeitos imaginários ou metafóricos de denúncia.

 

Algumas Considerações

 

Posso dizer que, o que venho tentando explicitar é que as cidades e as sexualidades configuram e são configuradas pelas dinâmicas da vida social. Não só elas, mas também raça, classe social, religião, disposição geográfica, dentre muitos outros marcadores sociais. A cidade e a sexualidade refletem o modo como a vida está organizada em nossa sociedade, a forma como está representada, percebida e entendida. E ainda, os modos como diferentes grupos se organizam e regem essas condições. Assim como, as marcações de raça e classe. A análise demonstra isto. Em Bomba pra Caralho, o território da cidade é apresentado com um campo de batalhas, perdidas ou vencidas, cotidianamente, contra a hegemonia de um espaço masculino cisheterossexual[13]. Contra um discurso hegemônico que está espalhado pelo território urbano. Discurso que também regula as práticas arquitetônicas, as práticas urbanas.

O funcionamento do discurso em nossa sociedade é binário e racional e o Pajubá rompe com isso. O Pajubá é a subversão queer da língua, do corpo e do espaço.  A análise aponta que a utilização de determinados espaços urbanos (e/ou privados) pela comunidade – principalmente pelos corpos negros, foco da canção – desafia a cisheteronormatividade que governa os usos urbanos, manifestando-se assim como de caráter transgressor em relação às imposições urbanas e a ordem social normativa. Ordem que passa pelas esferas comportamentais, ou seja, estéticas, espaciais, linguísticas e, até, das relações estabelecidas, sejam elas afetivas ou sexuais. É neste contexto que se produz a representação desses sujeitos-habitantes na prática discursiva intersemiótica de Linn da Quebrada. Ou seja, sujeitos que estão subvertendo valores constantemente.  

Fica claro que o sujeito enunciador da canção não é o corpo dócil de um espaço urbano controlado, promovido e produzido pelas cidades ocidentais, que possuem estruturas urbanas de separações rígidas baseadas em diferenças de classe, raça, sexo e gênero. A esse “corpo enunciador” construído na/pela enunciação associa-se um ethos agressivo e combativo, representativo daquela que vai à luta por suas parceiras, por seu lugar de origem e por seus direitos de estabelecer-se na cidade como qualquer cidadão. A marcação desse ethos está na linguagem (o pajubá); no tom (que por vezes é o do grito) e no corpo (construído na letra da canção, pela descrição e pelas atitudes subversivas). O sujeito de ‘Bomba pra Caralho’ é o sujeito de Butler. Não é um sujeito em si, bem definido, mas é uma estrutura linguística em formação bem-sucedida (ou não). É um processo onde o corpo é o discurso. O corpo é significado na linguagem e não tem lugar fora de uma linguagem que é, ela própria, matéria.         

Pela letra da canção, podemos compreender que o espaço foi marcado pela predominância masculina, guerreira, violenta e militar, ou seja, valorizado pelas virtudes viris, relacionadas a um saber construído em torno do que é ser homem em nossa sociedade. A partir desse espaço o corpo negro feminino constituído na canção reinterpreta a rua, que é tida como um espaço de baderna e algazarra. O corpo negro no texto é marcado como desviante, tem “fogo no rabo, passa e faz fumaça”, ou seja, ultrapassa os limites estabelecidos entre público e privado por uma sociedade cisheteronormativa que controla sobretudo o espaço. Este corpo-bomba reinventa tais valores, posicionando-se como arma contra os opressores, tal marcação pode ser interpretada a partir do enunciado “quem morre sou eu, ou sou eu quem mata?”.

 Na análise, tomo como fundamento os conceitos postulados por Dominique Maingueneau (2006, 2008) e observo que a cenografia construída pela letra da canção (da denúncia) permite explicar questões importantes ligadas à leitura e interpretação do texto, ou seja, ela possibilita uma melhor gestão da obra e dos efeitos de sentido que o texto produz, além da relevância da cenografia na construção do ethos discursivo, que capta os diferentes papéis sociais culturalmente reconhecidos para atribuí-los aos enunciadores, sendo assim, constitui a dimensão criativa da produção discursiva da artista, sem alterar o estatuto definido pelo quadro cênico (conceitos do autor que eu assumo aqui).

Portanto, as palavras possuem propriedades representativas que utilizamos para criar uma atmosfera indiciária do imaginário social no texto literário, ou seja, a sua evocação é capaz de fazê-lo aparecer no imaginário do leitor/ouvinte. Assim, a prática discursiva de Linn da Quebrada, além de ser uma forma de expressão transgressora, ocupa um espaço onde se produzem sentidos, uma materialidade possível para uma determinada realidade histórica, antes desconhecida ou silenciada, sendo construída para além de todos os binarismos possíveis. A prática discursiva de Linn é ethos, é prática de vida e de resistência. Esse discurso marca, inclui e representa. Linn existe e resiste em sua condição, faz do seu corpo uma ocupação e transforma a sua sexualidade em arma. Linn da Quebrada bomba pra caralho.  

Referências bibliográficas

ARGAN, G. C. História da Arte como a História da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

AZEVEDO, A.C.A. Dicionário de nomes, termos e conceitos históricos. 3a. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

BETSKY, A. Building Sex: Men, Women, Architectures and the Construction of Sexuality. Nova York: William Morrow and Company, 1995.

BORGES, M. V. A dêixis discursiva: formas de representação do sujeito, do tempo e do espaço no discurso. Revista do GELNE, v. 2, n. 1/2, p. 1-4, 22 fev. 2016.

BUTLER, J. Problemas de gênero. Feminismo e subversão da identidade. 14º ed. – Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2017.

BUTLER, J. Performative Acts and Gender Constitution: An Essay on Phenomenology and Feminist Theory. In: BIAL, H. The Performance Studies Reader. Nova Iork, Routedge: 2004, p. 154-166.

CORTÉS, J.M.G. Políticas do espaço: arquitetura, gênero e controle social. Tradução de Silvana Cobucci Leite. – São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2008.

DURNING, L.; WRIGLEY, R. Gender & Architecture. Nova York: Wiley, 2000.

FEDATTO, C.P. Um saber nas ruas. O discurso histórico sobre a cidade brasileira. Campinas – São Paulo: Editora da Unicamp, 2013.

FOUCAULT, M. Des espaces autres. Paris: Centre d’Études Architecturales, 1967.

MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. São Paulo: Parábola, 2008. 184 p.

MAINGUENEAU, D. Discurso Literário. São Paulo: Contexto, 2006.

MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez. 2013.

ORLANDI, E. P. Gestos de leitura: da história no discurso. Campinas: Editora da Unicamp, 1994.

PAGNAN, R. Corpos trans e os lugares que (não) podem ocupar: o discurso de Linn da Quebrada e a produção de sentidos na cidade. 2019. 143 f. Dissertação (Mestrado em Linguística). Universidade de Franca. Franca, São Paulo, 2019.

PARK, R. On social control and colletive beahviour. Chicago, Chicago University Press, 1967, p. 3. In: HARVEY, David. Cidades Rebeldes. Do direito à cidade a revolução urbana. Tradução de Jeferson Camargo. – São Paulo: Martins Fontes – Selo Martins, 2014.

PÊCHEUX, M. (1988) O discurso: estrutura ou acontecimento. 4. ed. Campinas, SP: Pontes, 2006.

PIRIS, E. L. O papel da cenografia na construção do ethos discursivo: estudo de três pronunciamentos parlamentares que antecederam o AI-5. Universidade de São Paulo. Estudos Linguísticos XXXVI(3), set. – dez. 2007. P. 182 – 190.  

SENNETT, R. Carne e Pedra. O corpo e a cidade na civilização ocidental. Tradução de Marco Aarão reis. 4. ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2016.

SPARGO, T. Foucault e a teoria queer. 1º. ed. – Belo Horizonte: Autêntica, 2017.

STÉDILE, J. A. Arquitetura da segregação: Desígnio e desenho das cidades. 2019. 247 f. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo). Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo, 2019.

UNWIN, Simon. A análise da Arquitetura. 3. Ed. – Porto Alegre: Bookman, 2013.

AGÊNCIA DE FOMENTO: CAPES/PROSUP


Data de Recebimento: 26/10/2019
Data de Aprovação: 29/11/2019

 

[1] Aqui utilizo “espaço” como o ambiente tocado pela experiência humana, isto é, dotado de um significado. E, “lugar” como um ambiente natural, intocado, sem a interferência do homem.

[2] Simon Unwin. Arquiteto, professor, escritor da Universidade de Dundee, na Escócia. UNWIN (2013).   

[3] Desde quando a Teoria Queer surgiu nos anos 1990, começou a espalhar-se ao redor do mundo, resultando em várias vertentes e variedades locais; por isso, atualmente falamos em Teorias Queer no plural. As teorias Queers não estão estritamente ligadas de fato à alguma disciplina, pelo contrário, ela conversa com diferentes áreas como os estudos culturais, a sociologia da sexualidade humana, antropologia social, psicologia, saúde e educação, filosofia, artes, entre outras. As teorias Queer contaminam outros discursos, de qualquer ordem.

[4] Não se estuda gênero, em nenhum lugar, sem passar pelos textos e conceitos de Judith Butler. Aqui, a autora expande o conceito de performance, a partir do entendimento do gênero como uma construção social. Isto é, a repetição de atos, gestos, falas, estabelecem uma aparência como essência, como natural da pessoa. Butler traz esse conceito para ir além com a performance, não só em relação ao gênero feminino, mas aos gêneros de forma plural. Portanto, a performance, não tem ligação com ações artísticas/performáticas, por exemplo, com um show. E também, não é algo que está na pessoa como uma vontade natural, por exemplo: “hoje, acordei me sentindo homem e vou performar um homem”. Não. A performance acontece de maneira muito mais complexa e subjetiva e a partir de discursos regulativos (cf. FOUCAULT, 1998).

[5] Não me refiro aqui aos shows de Linn da Quebrada, mas sim a performance camp de Linn.

[6] Camp: é a linguagem (sem sentido amplo) desacreditada, mas sagaz, subversiva, de um sujeito queer renegado. SPARGO (2017).

[7] Assumo aqui o léxico de Linn da Quebrada.

[8] “Bixaria” é um trocadilho com a palavra Bruxaria. Bruxaria é a prática das bruxas. Bixaria é a prática das bixas.

[9] “Amapô de Carne e Osso”. Canal Secretaria Nacional da Juventude. YouTube. 2017. 

[10] Financiamento coletivo. A ideia é que os fãs dos artistas ou bandas e aqueles que gostarem da proposta possam doar e arrecadar dinheiro para ajuda-los a iniciar a carreira ou realizar algum projeto artístico.

[11] Nomenclatura da indústria fonográfica para “música de trabalho” ou “música de divulgação”, ou seja, significa que uma canção é viavelmente comercial e faz parte de algum álbum que já foi ou será lançado. 

[12] Dados verificados em minha pesquisa de mestrado, intitulada: “Corpos trans e os lugares que (não) podem ocupar: o discurso de Linn da Quebrada e produção de sentidos na cidade”.

[13] Cisheterossexual, resume o que venho discutindo neste artigo. Isto é, o espaço é predominantemente masculino e reforça regras masculinas para corpos inseridos em um padrão masculino. Portanto, é “cis” em relação à norma de gênero e é “hetero” em relação à norma de sexo/sexualidade. O espaço urbano perpetua a masculinidade.