O sentido na relação da cidade linkada no digital


resumo resumo

Soeli Maria Schreiber da Silva



Neste artigo proponho-me a estudar como a cidade se significa pelo digital, como ler o digital na cidade a partir da não transparência da linguagem? Vou observar a materialidade específica da ideologia no discurso digital no atravessamento do espaço da cidade. Vou tomar excertos de propagandas nos quais o digital aí aparece e o confronto que se dá entre as linguagens.

Nesse processo configura-se a significação

 


O sujeito ao se significar, significa-se (...) há a interpelação do indivíduo, afetado pela língua, em sujeito pela ideologia. O que resulta em uma forma sujeito histórica. Em nosso caso, a capitalista. Esta por sua vez, declina-se em sua relação com o Estado de maneira própria à sua forma. Como o Estado capitalista funciona pelo jurídico, esta forma sujeito funciona com seus direitos e deveres. (ORLANDI, 2010: 6-7)

 

Orlandi nos mostra como compreender a interpelação do indivíduo em sujeito. A língua, o Estado e o sistema regulam esse funcionamento. Também a memória faz parte do processo da interpelação. Em se tratando da memória da máquina, para Orlandi, trata-se de uma memória metálica porque não se produz pela história, é distribuída em série e interna a repetição e quantidade (ORLANDI, 2010: 9).

Nessa perspectiva, vamos analisar o espaço urbano como considera Orlandi:

 


É o enquadramento dos fenômenos ou práticas que acontecem na cidade. Estamos assim, considerando o espaço como parte do acontecimento discursivo urbano. Portanto, não se trata nem do espaço empírico nem do espaço concreto material em si, mas desse material que significa, que tem sua historicidade, espaço de significação afetado pela ideologia em que sujeitos vivem. (ORLANDI, 2010:12)

 

Para ler a significação no espaço da cidade, vamos analisar a não transparência, mostrando como se dá o espaço de enunciação em que línguas se distribuem e se dividem mobilizadas por locutores, alocutores, locutários, alocutário e enunciadores.

“A relação de uma expressão em um enunciado só pode ser analisada se considerarmos que este enunciado é enunciado em um texto.” (GUIMARÃES, 2003:24). E diria que os enunciados se dão num acontecimento em que se cruzam ícones, símbolos gráficos, números e nomes que se constituem no texto numa relação de integração.

Para Orlandi,


Pela ideologia, se naturaliza assim o que é produzido pela história: há transposição de certas formas materiais em outras, isto é, há simulação (e não ocultação de “conteúdo”) em que são construídos transparências (como se a linguagem não tivesse sua materialidade, sua opacidade) para serem interpretados por determinações históricas que aparecem como evidências empíricas. (ORLANDI, 2004:31)

 

Orlandi nos explica como funciona esse material, como há a transposição. Assim, podemos tratar da relação da Língua Portuguesa com a Língua Inglesa nos textos que analisamos. Não há a oposição forma/conteúdo. Orlandi afirma:


 


A noção de forma material institui um espaço teórico particular que não reconhece a divisão forma/conteúdo. Ela tem vigência justamente na perspectiva que considera a relação entre a língua como sistema sintático intrinsecamente passível de jogo e a discursividade como inscrição dos efeitos linguísticos materiais na história. (M. PÊCHEUX, 1994) (ORLANDI, 1996, p.28)


 

Vamos considerar o enunciado na textualidade e acrescentamos que a “interpretação deriva de um discurso que a sustenta, que a provê de realidade de significação.” (ORLANDI, 2004:52).

Na Semântica do Acontecimento de Guimarães (2002) podemos dizer que enunciados são ditos por alguém, sendo enunciações que se relacionam aos memoráveis e esses memoráveis sustentam a significação do enunciado na textualidade.

Dias (2016) estuda a materialidade do digital analisando “a emergência da Discursividade digital no urbano.” (DIAS, 2016:157).

Dias (2018) pensa na mobilidade do sujeito na cidade como CONECTICIDADE “a sociedade contemporânea formada por redes de conectividade é a conecticidade.” (DIAS, 2018: 119). Seu modo de analisar a questão compreende “o funcionamento do discurso digital no processo de produção dos sentidos da/na cidade, pelo modo de individuação dos sujeitos.” (DIAS, 2018: 119).

Vejamos os recortes para análise:


Fonte: acervo da autora

Saliente-se que estamos analisando enunciados segundo Guimarães. No quadro (1) temos duas portas e acima delas “Frutas Peixe”. Na primeira, o quadro divide-se em logo, título e telefones linkados ao WhatsApp com dois telefones separados por barra (que pode ser lido como: adicione “Frutas Peixe”). Na segunda, primeiro temos o ícone do Facebook com o “efe” em branco e fundo azul e ao lado o título “Frutas Peixe” também em azul. Na fachada da primeira porta temos dois telefones ao lado e ao primeiro o enunciado ícone do WhatsApp. Os dois integram-se ao título e ao logo em forma de uma laranja. Do mesmo modo no quadro 2, o logo do Facebook acompanha “Frutas Peixe” e pode ser lido como “vá ao Facebook”. Temos dois links para acesso ao WhatsApp.

Dias (2018) em suas orientações, falando sobre a relação com a máquina salienta que sempre os instrumentos auxiliaram o homem. A pesquisadora desconstrói essa visão e passa a tratar do homem determinado pela máquina, na medida em que, para além de um mero auxiliar, o homem não consegue mais fazer coisas sem a máquina, ela passa a ser constitutiva do seu modo de existência. Segundo Dias (2018), com o surgimento de corporações como o Facebook, as mudanças impõem-se; inclusive afirma que as instituições estão sendo desmanteladas pelas corporações. Esse acontecimento do digital afeta a cidade. Hoje é comum numa rápida olhada pela cidade vermos outdoors com ícones do Facebook e do WhatsApp.

Guimarães (2018) formula as categorias de cena enunciativa: locutor, locutário, Alocutor, alocutário, e enunciadores. Vamos analisar as enunciações na textualidade numa relação de integração. Temos um Alocutor comerciante que relaciona o nome “Frutas Peixe” de seu estabelecimento ao Facebook, como modo de possibilitar aos consumidores um acesso linkado ao digital. O nome indica que no local há frutas e peixes. Esse nome, na primeira fachada está integrado ao logo laranja. O sentido desse nome constrói-se na relação com as cores amarelo, alaranjado da laranja e a palavra frutas em alaranjado e no verde a palavra peixe, na relação com o ícone do WhatsApp. Na segunda parte da fachada “Frutas Peixe” está em azul, ao lado do ícone do Facebook em fundo azul, que é a cor do ícone Facebook e com o efe em branco. O Alocutor comerciante afetado pelo digital convoca o alocutário consumidor a visitar o Facebook. O alocutário consumidor, ao olhar para a fachada visualiza além da loja física. Esse modo da fachada circular na cidade tem a ver com a formulação dessa enunciação e da fachada. Esse sentido vai além da fachada empírica. Ele se dá na relação da cidade com o digital. A convocação para o Facebook não é uma relação de sentido de convocação. Essa convocação dá-se na relação com uma circulação de loja além de loja física. Enquanto Enunciador Universal o Alocutor comerciante indica o Facebook e o WhatsApp para acesso.

Há aqui um memorável (Guimarães, 2002) do Facebook pela cor que o identifica. A relação de não transparência da linguagem e de ideologia é a visualização da loja além dela, além da fachada física pela formulação e circulação na Avenida São Carlos, da cidade de São Carlos, numa relação com o digital. O espaço da cidade integra-se nas relações de enunciação que integram-se às linkagens.

Acessei o Facebook e pesquisei “Frutas Peixe”, apareceram três quadros, mas nenhum tem a ver com o nome “Frutas Peixe”. Na aba localizar, escrevi “Frutas Peixe”. Cliquei em “ver tudo”, para ver todos os resultados da pesquisa, adicionei filtros, filtrei por categoria, cliquei na categoria “negócio local ou lugar”, não apareceu nada. Coloquei na aba de pesquisa “Frutas Peixe São Carlos”. Só me deram ocorrências para fotos relacionadas a cada palavra pesquisada. Na sequência adicionei o contato que indicava no estabelecimento, o primeiro não constava no aplicativo do WhatsApp e, no segundo recebi a resposta, como podemos ver na captura de tela abaixo:


Fonte: acervo da autora

Vamos analisar também como se dá o acesso. Na descrição vamos linkando em diferentes abas, como já descrevemos. Os links na era digital “significam esse caráter de índice, de indexação, tal como a informática designa o termo, e “liga” o sentido entre o que é designado/referido no nome/título e a outra parte do texto.” (SCHREIBER DA SILVA, STALHAUER, 2016, p.578).

Assim, há um caminho de acesso a percorrer da fachada para a página da loja. Na nossa descrição este caminho da fachada à página no Facebook que estamos chamando de link. Não encontramos nada linkando em diferentes abas, não encontramos a loja.

Entretanto, ao adicionarmos um telefone, fomos informados que a loja fechou.


Fonte: acervo da autora

A fachada 2 apresenta um título “Território Fit” com o logo entre as duas palavras. Logo abaixo o número do telefone com o nº 16 3419.9174 e abaixo ao lado esquerdo o logo do Facebook e o título “Território Fit Academia”. Ao lado direito uma moça sorridente estica a mão num gesto de alcançar a Academia pelo Facebook, e claro, para ter acesso a essa academia.

O Alocutor da Academia apresenta um nome título “Território Fit” na língua portuguesa e na língua inglesa em amarelo, separados pelo logo da Academia, abaixo o ícone do telefone é acompanhado do número (16 3419.9174) significam na integração com o título indicando para ligar para a Academia, numa relação de catáfora, logo abaixo com o ícone do Facebook em amarelo e o título modificado para especificar o primeiro título “Território Fit Academia”. Academia especifica o título. A mudança na cor do ícone tem uma relação com o memorável dessa enunciação no título, na medida em que o ícone do Facebook é identificado também pela cor azul. Nessa fachada as cores dos ícones de telefone e Facebook integram-se a cor do título. O sentido do gesto da moça esticando o braço também linka ou convoca o alocutário. Ao acessar a Academia pelo Facebook, essa convocação dá-se pelo Facebook. O ícone do telefone e da Facebook estão próximos do gesto da moça sorridente e significam o alcance da Academia.

Nessa relação da cidade a pergunta que se pode fazer é: Por que optar pelo ícone do Facebook na fachada? Os dados apresentados na fachada vão além da Academia. E a novidade do digital é o acesso aos dados e à quantia de informações, também porque o Facebook funciona como um lugar que se linka para obter essas informações. A fachada e o outdoor passam a ter o título, a especificação e o gesto com a mão que convoca para a Academia linkando o Facebook. Acessando o Facebook há diferentes informações.

Fiquemos atentos para a visão de Dias (2018) de memória como “lugar de contradição que escapa da máquina e se inscreve na história”. Dias diz que “a relação necessária com a máquina, na medida em que circula, acaba tendo efeitos no sujeito e esse efeito é o que escapa e se inscreve na história” (DIAS, 2018), na medida em que a circulação é ideológica e vai afetando o alocutário consumidor. Assim, tanto o Alocutor da Academia é determinado e convocado a se relacionar com o digital no gesto de convocações dos ícones para serem linkados, como também o locutário consumidor é determinado pelos dados fornecidos pela corporação, no caso Facebook.


Fonte: acervo da autora

O outdoor está disposto assim: no centro, o nome “Rota 14” que é o apelido do estabelecimento, logo abaixo TATTOO BARBER SHOP, em língua inglesa. Logo abaixo o primeiro telefone 9 8163-9058 com o nome do tatuador “Andy” e o símbolo gráfico correspondente a máquina de tatuagem. Ao lado, em seguida, o telefone 99141-0988, abaixo o nome “Daniel” e ao lado o símbolo gráfico da navalha ou do corte de barba e depois o telefone 99376-0246, e abaixo o símbolo gráfico de uma tesoura ou corte de cabelo e o nome de “Rafael.”.

Abaixo, ao lado esquerdo o logo com o símbolo gráfico da máquina de tatuagem R14 e o símbolo gráfico da navalha. E por último a faixa completa com o logo do Facebook, o apelido “Rota 14” e o nome em inglês “Tattoo Barber Shop”, tudo escrito em letra branca sobre vermelho da faixa.

Quando cliquei na aba de pesquisa do Facebook para localizar o local, apareceram muitas informações: endereços, mapa, emails, comentários.

 


Fonte: acervo da autora

 

Rota 14, nome apelido do local é estendido em inglês Tattoo Barbe Shop especificando e substituindo Rota 14. O sentido dos telefones com os símbolos gráficos de máquina de tatuagem, corte de barba e tesoura acompanhados do primeiro nome da pessoa que trabalha com a respectiva especialidade para os três casos é definido pelo símbolo gráfico. Isso já dá um sentido do ícone da especialidade migrado do digital para o outdoor, em vez de ícone, o símbolo gráfico. Por fim, o Rota 14 é condensado em R14, tendo ao lado esquerdo o gráfico da máquina de tatuagem e à direita a navalha de barbear. Ao lado do ícone acompanha um título estendido Rota 14 Tattoo Barber Shop numa totalização dos títulos do local que veio construindo-se no texto do outdoor. Podemos dizer que o locutor comerciante de início reduz o título que na sequência amplia; apresenta os telefones, gráficos e nomes dos responsáveis pelo trabalho. Depois reduz o nome para R14, e só apresenta dois gráficos: a máquina de tatuagem e a navalha.

O trabalho de reescrita do texto exclui ao reduzir o nome e o amplia e nesses modos o alocutário consumidor, pela repetição na inclusão e exclusão do nome, vai lendo o texto. Qual é o sentido do nome Rota 14? Há um memorável de movimento; trata-se de uma loja, diversificada com atendentes específicos e nomeados, de exclusividade. Não é qualquer um que irá atender o consumidor.

O ideológico direcionado pelo link, no sentido de que tem um endereço nomeando a presença do ícone do Facebook, funciona como uma espécie de legitimação da loja. Por que optar pelo ícone do Facebook na fachada? Porque ele legitima a ideologia de informação da quantidade e dos dados, e também porque é o ícone que dá a relação de conecticidade, conforme diz Dias. A cidade não está separada do digital. Ao linkar no Facebook há a ligação entre a cidade e o digital.

Consideremos ainda o reaparecimento de barbearias no espaço da cidade, em que tinha desaparecido. Há aí um outro sentido para a barbearia e os novos cortes de cabelo, ao lado de tatuagem, um novo modo do alocutário consumidor se inscrever e estar conectado na conecticidade. A língua inglesa aqui tem uma forma material, noção desenvolvida por Orlandi (2012) para pensar a forma discursiva, nem empírica, nem abstrata, mas linguístico-histórica. A forma da língua é material porque se constitui na história. Assim, o fato de significar como sendo dito em inglês. Não se diz “tatuagem” mas “tattoo”, tem a ver com o processo de significação de tatuagem, o ideológico está funcionando para que se diga tattoo e não tatuagem.

No Facebook, o alocutário consumidor encontrará endereços, comentários, dados sobre corte de cabelo, tatuagens sendo feitas.


Fonte: acervo da autora

 

            Busquei compreender como a cidade  se significa pelo digital,trabalhando com os conceitos de forma material,textualidade, link e memória.Assim,pode-se compreender a relação da cidade com o digital na análise de uma materialidade específica.É desse modo que o Alocutor comerciante e o alocutário consumidor estão inscritos na conecticidade, na relação cidade/digital como modo de legitimação de loja e do sujeito comerciante e sujeito consumidor. O ideológico funciona pela quantidade de informações e dados que se podem obter pela linkagem no domínio do digital. O sujeito é tomado e movido pelo digital, na medida em que vai aos dados, às quantidades de informações, às novidades (também parte de um imaginário). Esse é o funcionamento do ideológico. Para o sujeito, “ser tomado” e “ser movido” são apagados pela ideologia. 

 

Referências

 

DIAS, C. A materialidade do Digital na mobilidade urbana: espaço, tecnologia e discurso. IN: Revista Línguas e Instrumentos Linguísticos, n. 37, jan-jul, 2016.

DIAS, C. Linhas, redes e filamentos: no fio do discurso da cidade. IN: Rua (online). Especial Cidade Conectada, 2016.

DIAS, C. Análise do Discurso Digital: sujeito, espaço, memória e arquivo. Campinas, Pontes, 2018.

GUIMARÃES, E. Semântica do Acontecimento. Campinas, Pontes, 2002.

GUIMARÃES, E. A marca do nome. IN: Rua, Campinas, 9: 19 a 31, 2003.

GUIMARÃES, E. Semântica: enunciação e sentido. Campinas, Pontes, 2018.

ORLANDI, E. Exterioridade e Ideologia. IN: Caderno de estudos linguísticos. Campinas: 27-33, jan/jun, 1996.

ORLANDI, E. Interpretação: Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Campinas, Pontes, 4. ed., 2004.

ORLANDI, E. A contrapelo: incursão teórica na tecnologia – discurso eletrônico, escola, cidade. IN: Revista Rua, v.16, n.2, 2010.

STAHLHAUER, A. S., SCHREIBER DA SILVA, S. M. A geografia, a identidade das línguas e as divisões de langues e dialectes no site de relações estrangeiras da Suíça: reflexões sobre o sentido da designação no texto. Revista Rua, Campinas, n.22, v.2. Novembro 2016, p.573-591.

 

Data de Recebimento: 03/07/2019
Data de Aprovação: 29/11/2019