Um corpo em jogo: discurso, imersão e tecnologia


resumo resumo

Greciely Cristina da Costa



Introdução


Tenho tentado compreender de que modo regimes de visualidade, visualização e visibilidade têm produzido e/ou afetado, na contemporaneidade, formas de existência a partir da relação que eles mantêm com o corpo, com a imagem, com a tecnologia e com a memória discursiva no processo de produção de efeitos de sentido que derivam da modelização do mundo e do sujeito; e, também, a partir da relação que se estabelece com uma mudança, em jogo, entre o olhar e o mundo e o olhar o mundo, pensando como as relações sociais podem ser afetadas por essas formas de existência. Sendo assim, buscarei, neste artigo, mostrar como os conceitos de imersão, interatividade e imagem de síntese estão na base do que tem sido chamada de realidade virtual a fim de observar a construção imaginária de sociedade e de relações sociais no universo dos jogos eletrônicos. Tomo, então, como lugar de observação o espaço de jogos eletrônicos, considerando, sobretudo, que os jogos não são apenas brincadeira de criança, nem simples opção de entretenimento, mas configuram-se como objetos ideológicos tais como o trabalho, o prazer sexual, a natureza, a ciência ou a razão que Pêcheux explica não poderem receber o “status de objetos lógicos e formais (se considerarmos a lógica aqui como uma disciplina de comunicação unívoca)” (2011, p. 97). Nas palavras do autor, esses objetos ideológicos “apenas existem como relações de forças historicamente móveis, como movimentos flexíveis que são surpreendentes por causa do paradoxo que eles possuem. Esses movimentos funcionam como unidades divididas” (idem, ibidem, p. 97), cuja propriedade dos objetos ideológicos consiste em serem ao mesmo tempo idênticos e antagônicos entre si.

A pergunta que me lança nesta compreensão tem a ver, por um lado, com a crescente oferta de diferentes dispositivos eletrônicos tais como os mais diferentes simuladores disponibilizados por empresas diversas, instituições, inclusive as de ensino, como atividades de negócio, de lazer, de relacionamentos, esportivas, entre outras. Como exemplo tem-se: The Sims, Fifa, GTA, MaxPayne e o Love Plus, da Nintendo. Por outro lado, minha questão tem a ver com o corpo, com o papel do corpo, com a construção, projeção e inscrição do corpo nesses espaços de significação que resultam de processos da digitalização e modelização numérica da vida social. Como podemos pensar a relação entre mundo-homem-máquina em condições de produção marcadas cada vez mais, de uma parte, pela industrialização da vida e de outra, pela tecnologização das relações sociais?

Levando em consideração que é “a linguagem que faz da imagem um objeto, e do olho um sujeito”, de acordo com Parente (1993, p. 29), como o corpo discursivamente funciona aí como elo material da relação do sujeito com seu corpo, com um corpo outro, aquele que é projetado na imagem dos jogos; entre o si e o outro de si?


Pressupostos Teóricos

Teoricamente, me filio à Análise de Discurso. Contudo quero enfatizar que minha compreensão é conduzida, mais especificamente em referência à perspectiva discursiva, pelos estudos de Pêcheux, à medida que tomo os jogos eletrônicos como objetos ideológicos, como apontei anteriormente; pelas reflexões de Orlandi, que concebe o corpo como materialidade específica do sujeito, que, enquanto “corpo simbólico, corpo de um sujeito, ele é produzido em um processo que é um processo de significação, onde trabalha a ideologia, cuja materialidade específica é o discurso” (ORLANDI, 2012, p. 85). Isso significa desestabilizar a ideia de corpo apenas como um construto orgânico, biológico, físico, carnal, ou ainda em oposição a espírito ou alma. Nem se trata de tomar o corpo coisificando-o, como instrumento, mas, sim, como constituído materialmente pela linguagem, pela história e pela ideologia. E, ainda, me guio pelos estudos de Dias (2011) que, ao refletir sobre o corpo, discursivamente, sublinha que ele é afetado pelos sentidos engendrados tanto pela tecnologia quanto pela sociedade. Prova disso é o fato de que muitas tecnologias intervêm na sociedade de modo a conformar o corpo em determinadas lógicas sociais, afirma a autora. Assim, analisando o modo de funcionamento do kinect, Dias ressalta que o corpo “toma o lugar dos periféricos como o mouse e o teclado e se torna, ele mesmo, um periférico” (p. 61-62).

Sobre a imagem de síntese, trata-se da imagem que não tem mais a necessidade de um referente no mundo. Ela é gerada pelo computador, a partir de uma maquete digital em três dimensões. Em relação a ela, me pauto nos trabalhos de Robin (2003), que parte do pressuposto de que:

Nós estamos imersos em imagens virtuais e imagens de síntese. A imagem virtual resulta da digitalização codificada de uma informação. Ela é pixalizada, sendo o pixel a menor unidade da informação que compõe a imagem. Cada pixel, e essa é a perspectiva da imagem virtual, pode ser controlado, modificado, metamorfoseado, contrariamente aos cristais de prata da imagem tradicional. Podemos, assim, tornar as fotos híbridas, criar “rostos impossíveis”, dar “vida” a pessoas desaparecidas (p. 426 – tradução minha).


E me baseio, também, em Parente (1993), para o qual as novas tecnologias permitem que as imagens não parem “de fazer nascer o visível, através de circuitos cada vez mais complexos que formam uma interface luminescente”. O autor enfatiza o fato de que esses circuitos “são ao mesmo tempo políticos, geográficos, culturais, espaciais, ideológicos, tecnológicos” (p. 13).

Com base nesses pressupostos teóricos, passo a observações em relação ao funcionamento do corpo e da imagem de síntese em dois jogos: o primeiro Favela Wars, o segundo Battlefield.


Favela Wars[1]


Imagem 1 - Recorte do trailer do jogo eletrônico Favela Wars

“Torne-se o rei do morro ou acorde na vala” são as duas alternativas com as quais o jogador se depara logo ao entrar no universo do jogo eletrônico Favela Wars. Alternativas que funcionam mais como imperativos, pois a partir daí o jogador só pode “escolher” entre ser traficante ou policial, na disputa pelo território de favelas e controle do tráfico no Rio de Janeiro. Disputa mortal: ou mata ou morre.

Ao fazer essa “escolha”, o jogador seleciona um avatar que não é criado à sua imagem e semelhança, mas, trata-se de um corpo pré-definido pela máquina que o projetará no universo do jogo, no Rio de Janeiro; armas e equipamentos, também, devem ser escolhidos, conforme seu avatar. Seguem dois recortes que apresentam esses avatares.

Imagem 2 – Recorte do trailer do jogo eletrônico Favela Wars

Imagem 3 – Recorte do trailer do jogo eletrônico Favela Wars

Se o jogador escolhe ser o policial, pode ser o soldado, o batedor, o cabo, o sniper, o artilheiro, o químico, o engenheiro ou o tanque. Caso o jogador escolha ser o traficante, tem como possibilidade ser o bandido, o falcão, o vapor, o soldado do morro, o matador, o sequela, o chapa-quente. Todos caracterizados, com corpos, tarefas, habilidades e funções específicas e disponíveis em fases também específicas do jogo. Essa personalização, no e pelo jogo, é chamada de diferentes papéis táticos.

O texto de abertura do jogo, que, também, aparece no trailer, enuncia qual é narrativa do game da seguinte maneira:

“Rio de Janeiro, 2041. A guerra pelo controle do tráfico de drogas piora a cada dia. Policiais e Traficantes só descansarão quando a última Favela estiver sob seu controle. Policiais e Traficantes só descansarão até o último inimigo cair. Qual lado você escolherá?”

Favela Wars projeta, na tela, uma imagem do Rio Janeiro, como a das favelas do Complexo do Alemão, Morro do Borel, Lapa, Corcovado etc. A narrativa se passa em 2041 e o jogador é levado a “experimentar” um ou outro lugar. Em cena uma imagem da cidade e de suas favelas, de polícia e traficante na disputa pelo controle do tráfico, é importante destacar.


Imagens 3 e 4 - Recortes do trailer do jogo eletrônico Favela Wars

Na descrição dos policiais, lê-se que a eles são atribuídas: Técnica, Disciplina e Precisão. Já na descrição de traficantes, em vez de uma enumeração de características, ou habilidades, lê-se: A morte vem de cima. Seja pela enumeração, seja por esse segundo enunciado, o que se assenta ou ecoa na/pela formulação é o efeito pré-construído. No primeiro caso, os atributos Técnica, Disciplina e Precisão remetem “a uma construção anterior, exterior, mas sempre independente, em oposição ao que é ‘construído’ pelo enunciado” (PÊCHEUX, 1988, p. 99), ou seja, há uma injunção à uma imagem de polícia que não é a nossa, sem tática, sem estratégia etc. No segundo caso, o efeito de universalidade do tipo “aquilo que todo mundo sabe” é evocado, pois, a partir de uma paráfrase, teríamos, pela nominalização o seguinte dizer: O traficante mata no morro, isto é, a morte vem de cima.



Tanto pelo corpo projetado quanto pelas descrições que compõem a narrativa de Favela Wars, é possível observar a eficácia material do imaginário (PÊCHEUX, 1988, p.119). Também, é interessante notar o modo como a memória se diz, se atualiza em Favela Wars, isto é, a narratividade da qual se constitui o jogo. Narratividade, enquanto definida por Orlandi (2013), como efeito-memória,

maneira pela qual uma memória se diz em processos identitários, apoiados em modos de individuação do sujeito, afirmando/vinculando seu pertencimento a espaços de interpretação determinados, consoantes a específicas práticas discursivas. Espaços de interpretação encarnados [...] Esses “espaços de interpretação” são o que significa/corporifica/materializa/historiciza o espaço urbano (p. 28).

Jogos como esse são construídos a partir de um imaginário de oposição, que, às vezes, faz funcionar a oposição entre o bem e o mal, mocinho e bandido, legal e ilegal, vítima e bandido, com recorrência em um cenário de guerra. Em Favela Wars há um inimigo a ser destruído, para o policial esse é o traficante; para o traficante o inimigo é o policial. O modo como o corpo é construído, formulado para cada um explicita quais são os sentidos em jogo em conjunção com o que atribuído a cada um na caracterização/descrição. Aos policiais, a imagem de um super esquadrão: forte, inteligente, preparado. Aos traficantes, a imagem inversa só que atravessada pela brutalidade.

Quem vence o jogo? Quem cumpre o maior número de missões, ou seja, quem passa de uma fase a outra, marca pontos, chega ao final do jogo. Cada jogo define critérios; disponibiliza itens como, por exemplo, armas, para cada ação; estabelece pontos e estratégias para que o jogador passe de uma fase uma fase para outra.

Em relação aos jogos eletrônicos de modo geral, é importante retomar o fato de que de passatempo, criado no final da Segunda Guerra Mundial e o início da Guerra Fria como forma de distração no contexto tenso de guerra para os soldados, a um poderoso dispositivo de simulação, que foi aprimorado pela indústria bélica no desenvolvimento de testes e ambientes virtuais de simulação de ações militares, tornou-se mídia de entretimento (cf. FINCO & FRAGA, 2013). Neste ínterim, o jogo eletrônico tem me interessado por dois principais aspectos, a meu ver, indissociáveis: 1) pela relação entre ideologia e memória na construção do espaço do jogo e constituição do sujeito-jogador; 2) pela ligação da tecnologia com o corpo na configuração de sistemas de teledetecção e dispositivos de projeção.

O primeiro aspecto tem a ver com o fato de que a criação da chamada realidade virtual explicita um funcionamento ideológico a partir das formações imaginárias presentes em toda a caracterização do jogo. Aí jogam linguagem, ideologia, memória discursiva na construção do game a partir do modo como a imagem de inimigo ou de mocinho e de bandido são construídas via imaginário, isto é, ideologicamente. Isto posto, tendo em vista que a “interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia produz uma forma sujeito histórica com seu corpo”, o que, de acordo com Orlandi, corresponde a “uma forma histórica (e social) do corpo, se pensamos o corpo do sujeito” (ORLANDI, 2012, p. 86).

A escolha entre se projetar no jogo como um (traficante) ou outro (policial) é resultado da interpelação ideológica do jogador, da determinação histórica dos sentidos. O que significa apontar para um processo de identificações em jogo. O jogador é interpelado pela ideologia e a partir daí se identifica com um ou outro e se projeta no jogo a partir de outro de si. Esse Outro concebido, conforme Orlandi, como exterioridade constitutiva, interdiscurso, memória estruturada pelo esquecimento.

O segundo aspecto refere-se à ligação da tecnologia com o corpo, marcada por diferentes dispositivos na construção de personagens, cenários, movimentos corpóreos e movimento de sentidos, que, em conjunto, afetam/constituem o sujeito jogador. Refiro-me aqui mais diretamente à imagem de síntese que é criada pelo computador. Essa imagem permite ver a complexidade da construção de um corpo e de um espaço no universo dos jogos eletrônicos. Refiro-me, também, aos dispositivos tecnológicos tais como óculos, plataformas, calçados e outros que capturam o movimento do corpo do jogador e o projetam na tela do game.


Battlefield[2]

A partir dessas observações, meu intuito é dar visibilidade à forma pela qual o corpo, agora de outra maneira, está investido em um processo de significação, no qual a imagem de síntese contribui para a construção de um corpo e de um espaço, tomando como lugar de observação o jogo Battlefield.



Para tanto, busco explicitar de que maneira o corpo se configura como elo entre a interatividade e a imersão, e elo, também, entre um espaço no mundo e o espaço criado pelo/no jogo eletrônico. O que me interessa é mostrar como a interatividade e a imersão são ideologicamente construídas.

O que está em jogo é, na instância da significação, a projeção de espaços que se constituem diferentes em relação ao modo como o sujeito se inscreve nele. E, neste processo de inscrição, o corpo ocupa um lugar específico. Acerca disso, Orlandi (2012) salienta que:

Como sabemos nem os sujeitos, nem os corpos, pensando-se a significação, são evidentes. Ainda é sempre a opacidade, a não transparência da linguagem, que se apresenta quando pensamos discursivamente. Ou, dito de outra forma, o corpo da linguagem e o corpo do sujeito não são transparentes. São atravessados de discursividade, efeitos de sentidos constituídos pelo confronto do simbólico com o político em um processo de memória que tem sua forma e funciona ideologicamente. O que redunda em dizer que, assim como as nossas palavras, nosso corpo já vem sendo significado, antes mesmo que não o tenhamos, conscientemente, significado (p. 92).

Em relação ao jogo eletrônico Battlefield, é importante ressaltar que ele é um jogo de tiro em primeira pessoa, isto significa que o jogador entra no jogo, o observa da perspectiva do protagonista da narrativa do game, como se jogador e personagem fossem um só observador. Trata-se de um efeito da relação homem-máquina-imagem, produzido pela articulação do sujeito com seu corpo, do corpo com o espaço (tecnológico) do jogo e com o espaço em que está inserido no mundo. Trata-se, ainda, de um efeito ligado à ideia de interatividade do sujeito com seu corpo e de imersão do corpo no universo dos jogos eletrônicos, considerando que “a realidade virtual buscaria oferecer um 'efeito de real' às imagens por ela construídas, e uma sensação de presença em seus ambientes” (FERREIRA, 2010, p. 159 - grifo do autor). Assim, a interatividade se refere à conexão do jogador com a realidade criada pela tecnologia do jogo e a imersão diz respeito ao funcionamento dos dispositivos eletrônicos. Efeito possível a partir do modo como o corpo vai se configurando como um elo entre a interatividade e a imersão. Mas como estas duas funcionam?

Para jogar Battlefield é necessário usar um sapato especial, que desliza sobre uma esteira omnidirecional. Essa esteira por sua vez permite ao jogador se inclinar para diversas direções, correr, andar, pular, etc. sem sair do lugar. O jogador também tem de usar óculos, como o Oculos Rift, que dá acesso às imagens projetadas na tela, e uma arma, como mostram as imagens[3] 5, 6 e 7, abaixo:


Imagem 5

Imagem 6

Imagem 7

É da perspectiva da arma empunhada, vista por meio dos óculos, que o jogador é lançado para o espaço do game. Seus movimentos corporais são capturados pela plataforma e simulados no interior da narrativa do jogo. É, portanto, o jogador que direciona com seus movimentos o desenvolvimento da narrativa (enredo, personagens, cenário etc.) já previamente construídos graficamente pela máquina.

As imagens do jogo são constituídas por imagens de síntese, isto quer dizer que não se trata de imagens especulares. Entretanto, a captura dos movimentos corporais se mistura com as imagens de síntese.

Embora a imagem de síntese não provenha de uma imagem no mundo, ou seja, o referente não é o da imagem especular, trata-se ainda de uma construção referencial pautada em um imaginário de mundo e de suas mais diferentes relações sociais. Ou seja, de uma construção discursiva dos referentes.

Em Battlefield, o roteiro, também, é o do confronto de inimigos, pois é um jogo de guerra, cujo objetivo é vencer a batalha em um contexto caótico de destruição. A memória discursiva é aí convocada na constituição dos efeitos de sentido produzidos pela máquina, pelo homem, pelas imagens por meio da projeção de pré-construídos, pelos quais “um elemento irrompe no enunciado [na imagem] como se tivesse sido pensado ‘antes, em outro lugar, independentemente’” (PÊCHEUX, 1988, p. 156 – grifos do autor). Isso porque o efeito de pré-construído é um efeito provocado pelo retorno da memória na base do dizível, do visível, no intradiscurso.

Nesse processo de significação, o corpo funciona como elo entre a máquina e o homem, entre jogo e jogador, configurando-se como um dispositivo e ao mesmo tempo (se) significando, inscrevendo o sujeito em uma posição discursiva por meio do “‘sempre já-aí’ da interpelação ideológica que fornece-impõe a ‘realidade’ e ‘seu sentido’ sob a forma da universalidade” (PÊCHEUX, 1988, p. 164 - grifos do autor).

O corpo dos jogos eletrônicos assim se situa entre o mundo, a máquina e a imagem, entre-corpos, o corpo no mundo e o corpo, no mundo, projetado na tela, produzido pela/na imagem de síntese, entre-espaços. Trata-se de uma relação do homem com a máquina, que rompe com oposições tais como natural/artificial, pois transgride a fronteira entre o humano e a máquina ao projetar um outro de si, simbolicamente, discursivamente. Trata-se de um outro de si, constituído na instância da significação, como efeito de sentido que resulta de uma relação entre homem e máquina, imagem e tecnologia, enquanto discursividade. Por conseguinte, como ressalta Orlandi “não se pode pensar o sujeito sem o corpo, e o corpo sem os sujeitos e os sentidos” (2012, p. 97).

Em Battlefield[4], um dos dizeres sobre o jogo, presentes em sua página na internet, explicita o modo como o sujeito é convocado a ocupar um lugar e um corpo no espaço do jogo quando o descreve afirmando:


  1. “É um mundo de policiais contra criminosos”.

Desta forma, o espaço é caracterizado pelo conflito entre inimigos: policiais e criminosos.

Na sequência, convoca o jogador a fazer uma escolha já pré-determinada historicamente:

(02) “Você pode invadir cofres ou salvar reféns. De qual lado da lei você quer estar?”.

Há aí a projeção de um sujeito que pode se inscrever ou como policial, ou como criminoso, fazendo com que ocupe uma ou outra formação discursiva que por sua vez determina o que pode e deve ser dito (PÊCHEUX, 1988). Oposição essa que retoma a memória discursiva, marcando a dicotomia entre o bem e o mal.

Dentre as características do jogo anunciadas no site, aparece em destaque, em caixa alta:

(03) “A EXPERIÊNCIA DE TIRO EM PRIMEIRA PESSOA COMPLETA”.

Neste enunciado, a experimentação do tiro e a referência à primeira pessoa completa trabalham na construção imaginária de um espaço de experimentação para o “eu”, de um jogador que pode imergir nesta “realidade” por completo, produzindo pelo menos dois efeitos de sentido: 1) o de estar por completo (imergir) e 2) o de ser/estar completo na experiência (ilusão de completude).

A partir de formas no imperativo, tais como:

(04) “Faça o roubo perfeito”

(05) “Lidere sua equipe”

(06) “Dispute no mundo de policiais e criminosos”

um sujeito universal é enunciado e convocado a fazer, a liderar, a disputar, a estar no controle. Observa-se aí um trabalho incessante da memória discursiva que joga em parceria com a ideologia na produção de evidências, na produção de um efeito de sentido: de ser, de existir e, ao mesmo tempo, controlar o jogo, controlar cada ação, controlar o espaço do jogo.

Da quarta versão de Battlefield, recortei as seguintes sequências discursivas que permitem observar o modo pelo qual o jogo é apresentado, visando à constituição do sujeito-jogador e do espaço do jogo. Vejamos:

(07) NO MEIO DE UM CONFLITO MUNDIAL

Battlefield 4 coloca você na pele do sargento dos fuzileiros navais americanos Daniel Recker, membro do pelotão Lápide. No meio do conflito mundial entre os EUA, a Rússia e a China, você participará da guerra a pé e em unidades terrestres, marítimas e aéreas.

(08) LUTE PARA VOLTAR PARA CASA

Por sorte, você não está sozinho neste campo de batalha. Os laços criados com os membros do seu pelotão serão fortalecidos a cada perigo enfrentado. Não os decepcione: eles precisam de você tanto quanto você precisa deles para sobreviver.

(09) CONFRONTOS NAS RUAS

O Battlefield 4 transporta a batalha para diversos territórios urbanos, como o subúrbio de Baku e os arranha-céus de Xangai, transformando-os em cenários dinâmicos e explosivos para o pelotão Lápide.

Situado no meio de um conflito mundial entre EUA, Rússia e China, o jogador é convocado a colocar-se na pele de sargento americano, que não está sozinho e precisa do seu pelotão para sobreviver ao mesmo tempo em que dele depende o pelotão. Relação essa que se dá na luta para voltar para casa. Lute é o imperativo do jogo.

O confronto se dá em diversos territórios urbanos, de Baku a Xangai, ou seja, o espaço é o da rua, aquele possibilitado pelo Battflefield 4, que transporta o jogador para espaços extremos: para o subúrbio, ou para um grande centro.

O herói é americano, o inimigo Rússia e China, em conjunto com o cenário de explosões, destruição, essas discursividades explicitam já-ditos de guerra, violência e caos, e ao mesmo tempo levam o sujeito-jogador a ocupar uma posição discursiva determinada: a de herói – que pode vencer ou perder, premissa do jogo – num mundo ideologicamente construído.




Algumas considerações

Neste universo do jogo eletrônico, partindo da perspectiva de que o corpo pode ser tão afetado “quanto o é, em nossa sociedade de consumo, de mercado, de tecnologias. Ele funciona estruturado pelos modos de produção da vida material que condicionam o conjunto dos processos da vida social e política” (ORLANDI, 2012, p. 95). É nesta direção que procurei dar visibilidade para a forma como o corpo significa nos jogos eletrônicos tendo em vista a maneira como ele é discursivizado, significado, afetado pelo imaginário que, por sua vez, traz à tona certas relações sociais no domínio construído discursivamente por imagens de sínteses, cuja ligação com a memória se dá, pois, de acordo com Gadet e Pêcheux (2004), a formulação em uma língua universal lógico-matemática tem sua memória.

Neste domínio, o corpo no jogo eletrônico configura-se num processo de significação que passa pelo corpo empírico, corpo no mundo, corpo projetado na tela, construído a partir de códigos binários.

Corpo de um sujeito convocado a ocupar um lugar em uma formação discursiva prenhe de sentidos. O corpo aí se configura num mesmo-outro espaço. Um corpo dispositivo. Um corpo mediador entre um espaço e outro, entre um sentido e outro, entre um corpo e outro. Um corpo deslocado de uma formação discursiva para outra, constituindo uma ou outra posição-sujeito, no jogo possível da linguagem, da memória, da ideologia e da história.

As discursividades permitem entrever a inscrição do corpo em um dispositivo paralelamente à configuração de um espaço de significação que convoca o jogador a ocupar uma posição discursiva específica no corpo em jogo, um corpo que “não escapa à determinação histórica, nem à interpelação ideológica do sujeito [pois]... O corpo não é infenso à ideologia” (ORLANDI, 2012, p. 95).

O corpo na relação com a tecnologia torna-se um lugar de múltiplas experimentações que se ancoram no regime da imagem de si, desde a aparência física, que vai da escolha de um avatar no espaço digital, até a colocação de próteses, constituindo assim formas de existir e de significar no mundo.

Em face da série mundo-homem-máquina, no contexto dos jogos eletrônicos, entram em discussão as noções de imersão, interatividade e informação uma vez que se apresentam na relação com a imagem contemporânea (tecnológica, digital). As duas primeiras noções são consideradas no campo da Comunicação e da Informática, como formas de tornar os jogos mais realísticos. Articuladas, a imersão é tratada como um artifício que faz com que o jogador tenha a sensação de deslocamento do corpo, de entrar num outro espaço, enquanto a interatividade é vista como elemento fundamental dos jogos, concebida como possibilidade de fundir o lugar do receptor e do emissor em só (LÉVY, 1999), interatividade entre homem-máquina, ou entre o jogador e o jogo.

Sobre imersão, Ferreira (2010) traça um panorama mostrando como essa noção é definida por Radford (2000), Murray (1998), Couchot (2003) e Ermi e Mäyrä (2005). O que essas definições têm em comum é, segundo Ferreira, o fato de ligar imersão e realidade, como se o jogo digitalmente produzido, levasse o jogador a sentir-se presente em uma outra realidade.

Da perspectiva discursiva, o que merece ser discutido é como imersão, interatividade e informação são discursivizadas. Foi o que tentei mostrar até então, sobretudo, em relação ao corpo que, enquanto, construído torna-se informação: imagem numérica, nas palavras de (DIAS, 2011), ou imagem de síntese. E, como tal, produz efeitos de sentido e sujeito. O que significa dizer que produz subjetividade. E isso importa para a compreensão da sociedade contemporânea em suas formas de significar, de existir.

Para dar um fecho a esta etapa da reflexão, trago uma citação de Parente (1993) que afirma que:

As novas tecnologias de produção, captação, transmissão, reprodução, processamento e armazenagem da imagem estão aí, como uma realidade incontornável: o telescópio, o microscópio, a radiografia, a fotografia, o cinema, a televisão, o radar, o vídeo, o satélite, a fotocopiadora, o ultrassom, a ressonância magnética, o raio laser, a holografia, o telefax, a câmera de pósitrons, a infografia (p.13).


São máquinas de visão que alteram o regime de visibilidade, de visualidade ou de visualização à medida que não mais representam o visível, mas tornam visível, incidindo na relação do olhar e do mundo, permitindo-a transformar-se em olhar o mundo. Olhemos então para o mundo de modo a observar como os objetos, que dele fazem parte, são constitutivamente ideológicos.


Referências Bibliográficas:

DIAS, C. Cidade, Cultura e Corpo: a velocidade do mundo. Campinas, SP: LABEURB/UNICAMP, 2011.

FERREIRA, E. Paradigmas do jogar: Interação, corpo e imersão nos videogames. Ciberlegenda, n. 22, 2010. Disponível em: http://www.uff.br/ciberlegenda/ojs/ index.php/revista/article/view/80

FINCO, M. D.; FRAGA, A. B. Corpo joystick: cinema, videogames e estilo de vida ativo. Licere, Belo Horizonte, v.16, n.3, set/2013.

GADET, F.; PÊCHEUX, M. A língua inatingível. Campinas: Pontes, 2004.

LÉVY, P. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999.

ORLANDI, E. P. Discurso em Análise: sujeito, sentido, ideologia. Campinas, SP: Pontes, 2012.

_____________ A palavra dança e o mundo roda: Polícia! In: GUIMARÃES, E. (Org.) Cidade, Linguagem e Tecnologia: 20 anos de História. Campinas, SP: LABEURB, 2013.

PARENTE, A. Imagem-máquina. A era das tecnologias do virtual. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993. v. 1. 304p.

PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso: Uma Crítica à Afirmação do Óbvio. Trad. ORLANDI, E. P. [et al.]. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1988.

______________ A língua inatingível. Em: Análise de Discurso – Michel Pêcheux. Textos escolhidos por Eni P. Orlandi. Campinas: Pontes, 2011.

ROBIN, R. La mémoire saturée. Paris: Éditions Stock, 2003.

Data de Recebimento: 14/07/2016
Data de Aprovação: 03/10/2016


[1] O trailer do jogo pode ser acessado em: https://www.youtube.com/watch?v=Khzko_IzT54. Todas as imagens e recortes textuais apresentados, neste artigo, foram recortados desse trailer. Sugiro ao leitor que assista ao vídeo para melhor acompanhar a análise.

[2] O trailer do jogo está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=aTtfAQEeAJI

[4] A página do jogo está disponível em: http://www.battlefield.com/pt_BR/. Os recortes apresentados no decorrer das análises foram retirados dessa página.






REVIEW
resenha

ARTES
artes