Cidade, memória e a formação de sentidos urbanos na dialética do espaço geográfico.


resumo resumo

Alex Manetta



Introdução

A história humana não se desenrola apenas nos campos de batalhas e nos gabinetes presidenciais. Ela se desenrola também nos quintais, entre plantas e galinhas, nas ruas de subúrbios, nas casas de jogos, nos prostíbulos, nos colégios, nas usinas, nos namoros de esquinas. Disso eu quis fazer a minha poesia. Dessa matéria humilde e humilhada, dessa vida obscura e injustiçada, porque o canto não pode ser uma traição à vida, e só é justo cantar se o nosso canto arrasta consigo as pessoas e as coisas que não tem voz. (Ferreira Gullar, Corpo a corpo com a linguagem).

O espaço geográfico passou a existir a partir da intervenção humana no espaço natural. Emergiu como produto social e como a cultura que libertou a humanidade de toda forma rígida de controle que rege o comportamento animal. Esse desenvolvimento ocorreu através de descobertas e de inovações que possibilitaram ao homem interpretar e organizar seu entorno. O homem, dotado dessa possibilidade, adquiriu progressivamente um relativo domínio sobre outros seres vivos e sobre os elementos físicos, aumentando sua capacidade de realização. Durante esse processo, à realidade objetiva do espaço natural se sobrepôs a realidade projetiva nascida da iniciativa humana (ISNARD, 1982).

Na dinâmica do espaço geográfico, os sistemas de objetos herdados denominados rugosidades constituem precedentes incontestáveis para as possibilidades de ação humana, de maneira que se apresentam como condição ao desenvolvimento das sociedades. É dessa maneira que a história se projeta no espaço e se reflete através de atuações sucessivas (ISNARD, 1982).

Braudel (1989) corrobora com a ideia de que as manifestações econômicas, políticas e culturais, sua produção e difusão, dependem indiscutivelmente da existência material, de modo que o espaço geográfico não se constitui como um simples palco no qual se desenvolvem as ações humanas.

Nesse sentido, Santos (1996) desenvolveu o conceito de espaço geográfico como um conjunto indissociável, solidário e contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, que pode também ser definido como a relação dialética entre uma tecnoesfera e uma psicoesfera[1]. Esse conceito de espaço geográfico encontra suas bases filosóficas na proposta de Sartre (1960), quando define a existência de uma dialética entre o ‘domínio do homem pela matéria trabalhada’ e o ‘domínio da matéria pelo homem’, segundo a qual a matéria é regida pela ação. Por outro lado, somente a totalidade inerte da matéria trabalhada, ao registrar e conservar - como ‘memória de todos’ - as formas que o trabalho anterior lhe imprimiu, permite a superação de cada momento histórico, em um processo no qual os resultados da ação se inscrevem na matéria tanto quanto a ação é a instrumentalização da realidade material presente.

Dentro desses parâmetros o espaço geográfico se constitui uma totalização imperfeita, sempre buscando totalizar-se, representando uma abstração cuja materialização se reconhece através das cidades, das paisagens, das regiões e dos territórios. Esse instrumental teórico e filosófico permite trabalhar o conceito de rugosidade como um termo que designa a memória sobreposta das sucessivas relações e dos sucessivos modos de produção, memória esta que além de material é também imaterial (SANTOS, 1996).

Seguindo essa linha de raciocínio, o espaço geográfico - como um sistema indissociável de objetos e de ações - é concebido como a memória presente de todos e a base material/imaterial que oferece os limites e as possibilidades de conhecer o passado, de viver o presente e de planejar o futuro. E a cidade é uma das expressões materiais dessa memória.

Na cidade os sistemas com elevada densidade técnica se contrapõem e contraditoriamente se complementam a elementos resultantes de práticas cotidianas, o que inclui em sua dinâmica tanto os vetores da modernidade quanto os elementos que remontam a tempos passados que sobrevivem inseridos na lógica urbana (SANTOS, 1979).

Enquanto materialização do espaço geográfico a cidade se constitui como a realidade presente que dá sentido ao fenômeno urbano, reunindo sistemas de objetos técnicos de variadas idades e de inúmeras procedências e uma gama enorme de intencionalidades, de conhecimentos, de ideologias e de crenças (SOUZA, 1997).

Nesse contexto, o conhecimento das principais tendências do processo de urbanização ocorre simultaneamente ao reconhecimento da realidade material e simbólica que carrega consigo a memória de todos, que constantemente se transforma, se adapta, se (re)significa e se (re)compõe como espaço geográfico.




Justificativa e objetivos

Apesar do considerável número de trabalhos publicados sobre memória, espaço, cidade e a formação de sentidos do/no urbano, reconhece-se - juntamente com Seemann (2002) - que as contribuições específicas da geografia tendem a serem sistematicamente negligenciadas.

O termo memória, por exemplo, possui uma grande variedade de significados, em acordo com a área do conhecimento à qual se faz referência - história, filosofia, arquitetura, linguística ou psicologia. Em suas peculiares acepções, concepções e interesses, cada disciplina trabalha a partir de suas respectivas definições, consensos e dissensos (ABBAGNANO, 2000).

Da mesma maneira que outras áreas do conhecimento, a geografia carrega consigo interessantes possibilidades de trabalhar a questão da memória, assim como a do discurso urbano, porém, partindo de seu objeto[2], através de um esforço teórico e conceitual que se soma à tendência de reafirmação da importância do espaço geográfico na teoria social critica, descrita por Soja (1993).

Feitas essas considerações, se define o objetivo geral desse artigo: contribuir com os estudos sobre memória, formação de sentidos no/do urbano e cidade, a partir das possibilidades dadas pelo conceito de espaço geográfico.

Como objetivos específicos se propõem:

  • trabalhar a noção de cidade como a memória material e imaterial sobreposta de sucessivos sistemas de relações e a noção de urbano como realidade social composta de relações que não podem dispensar a existência material;

  • reconhecer a importância da relação dialética entre a memória herdada e a assimilação de vetores da modernidade no desenvolvimento de ações inovadores promovidas pelos circuitos populares da cultura e da economia urbana;

  • aportar uma discussão sobre linguagem e os processos de (re)significação simbólica no/do urbano, sustentada pela reflexão sobre a dinâmica do espaço geográfico e de sua materialização como cidade.


A cidade e o urbano no período contemporâneo[3]

Em acordo com Lefebvre (1969) a cidade, como realidade presente e imediata, existiu antes mesmo da urbanização como centro da vida política, social e econômica. É o local onde se acumulam riquezas, conhecimentos, técnicas e obras. A própria cidade é uma obra realizada por pessoas e por grupos de pessoas bem determinadas, segundo condições singulares dadas nos sucessivos períodos históricos.

A cidade muda quando muda sua sociedade, fazendo interagir uma ordem próxima e uma ordem distante que se impõe projetando-se sobre o plano da vida imediata, em um processo no qual o poder se inscreve tanto através das normas jurídicas e de comportamento social quanto através de sua disposição material, em uma interação que torna cada cidade singular (LEFEBVRE, 1969).

A cidade é a sede do poder político, o lócus da inovação técnica e da organização da produção, ao gerenciar amplas divisões sociais e territoriais do trabalho (SINGER, 1987). Santos (1979, 1993 e 1994a) revela uma cidade heterogênea, resultado de uma modernização seletiva dentro de seus limites, onde o tempo é coexistente e as temporalidades variam de modo simultâneo. Reúne todas as diferenças e revela condições para a convivência entre poderes extremamente desiguais. A cidade é a condição de uma divisão do trabalho que acolhe todos os tipos de capital e que permite a cooperação entre indivíduos e empresas.

Para Souza (1997) a cidade é o concreto, um conjunto de objetos regido por intencionalidades precisas, uma forma-conteúdo que abriga a coexistência e o debate, é a negação da natureza por meio da técnica. É a materialidade visível do urbano, essa noção abstrata que dá sentido à cidade.

Orlandi (2001a, p. 11) compreende a cidade em sua diversidade, como lugar de frustrações, de constrangimentos, de jogos, da irrupção do irrealizado e de novas formas sociais. Desde essa perspectiva, “a cidade tem seu corpo [...] e tem nele suas formas”: o rap, a poesia, a música, os grafitos, as pichações, os outdoors, as rodas de conversa e vendedores de coisa alguma.

Do ponto de vista discursivo, a cidade pode ser interpretada como um espaço simbólico particular, que tem sua materialidade e que produz sua(s) significância(s). Em outras palavras, a cidade caracteriza-se por dar forma a um conjunto específico de interpretações que constitui o urbano. Quanto ao urbano, de um lado disponibiliza referências e permite a unidade imaginária que desencadeia a possibilidade do sujeito identificar-se, ao mesmo tempo em que resulta em uma perda que instala o sujeito urbano no real da cidade (ORLANDI, 1999).

Nesse sentido, Santos (1996, p. 263-264), quando se refere ao migrante que chega pela primeira vez a uma cidade grande, afirma:


Vir para a cidade grande é, certamente, deixar atrás uma cultura herdada para encontrar outra. Quando o homem se defronta com um espaço que não ajudou a criar [...] cuja memória lhe é estranha, esse lugar é a sede de uma vigorosa alienação [...] digamos que o passado é [...] outro lugar [...] no lugar novo [...] é mister encarar o futuro: perplexidade[4] primeiro, mas, em seguida, necessidade de orientação [...] quando essa síntese é percebida, o processo de alienação vai cedendo ao processo de integração [...] e o indivíduo recupera parte de seu ser que parecia perdida [...] nesse sentido a memória coletiva é apontada como um cimento indispensável à sobrevivência das sociedades, o elemento de coesão garantidor da permanência e da elaboração do futuro [...] e [...] o espaço é um dado fundamental nessa descoberta [...] num processo sempre renovado.


Em acordo com Lefebvre (1969), o aumento gradativo da população que vive nas cidades e que adota como meta a vida urbana revela a tendência de urbanização da sociedade. O urbano seria assim uma realidade social composta de relações que não podem dispensar a existência de uma morfologia material para que se torne realidade efetiva.

No Brasil, assim como em outros países subdesenvolvidos, o processo de urbanização tem sido acompanhado por um processo de metropolização. As metrópoles abrigam a parcela mais significativa das atividades hegemônicas de produção e de controle do capital, onde se verificam os salários mais altos. Essas enormes cidades abrigam também uma gama diversa de rendimentos do trabalho e atualmente detêm o maior poder de atração sobre os pobres do campo e de outras cidades (SANTOS, 1994a).

A economia urbana, por ser diversa e fragmentada, exige associações de tempos e de formas de trabalho. Por isso, nas grandes cidades existem as condições ideais para a convivência entre capitais tão desiguais. Nesse contexto são efetivadas novas e múltiplas possibilidades de uso e de ocupação da cidade pelos agentes da política, da cultura e da economia, em um momento no qual a difusão e a incorporação de técnicas, de ideias e de hábitos exógenos aos lugares se elevam a uma amplitude e a uma extensão nunca antes vistas (SANTOS, 1994a).

As redes e sistemas responsáveis pela difusão dos vetores da modernidade - objetos, técnicas e conceitos exógenos aos lugares - se realizam principalmente no âmbito do espaço econômico, também conhecido como espaço reticular. Seu uso é altamente seletivo e abrange as áreas estrategicamente valorizadas das cidades e dos territórios, onde se desenvolvem o gerenciamento, os fluxos e o acúmulo do capital (SANTOS, 1996).

Essa modernização, por ser incompleta e seletiva, é acompanhada pela expansão de empregos mal remunerados, pela pobreza e pelas condições de vida a ela correspondentes. É quando ocorre uma adaptação da economia através da proliferação de atividades com os mais diferentes níveis de capital, de organização e de tecnologia. São atividades que surgem para suprirem a demanda por empregos e por serviços que a economia monopolista não atende (SANTOS, 1994a).

Nesse contexto é fundado o espaço banal - ou espaço de todos os homens - através da contiguidade, da convivência e da coexistência. Inclui tudo aquilo que imprime vivacidade aos lugares, revelando a importância de ações capazes de organizações relativamente restritas do espaço, representando interesses vigentes em escala local (SANTOS, 1996).

Segundo Souza (1997) é na cidade que a complexidade de produtos e de subprodutos da modernidade se complementa, contexto no qual os agentes urbanos se transformam e se readaptam, partindo da realidade material presente, de inovadoras dinâmicas sociais e de inéditas possibilidades de ação.

Esses fatos, conceitos e categorias trazem à tona a importância simultânea das heranças do passado e dos vetores da modernidade na (re)formulação estratégica de discursos, de sentidos e de ações, colocada em prática tanto pelos agentes hegemônicos da política, da economia e da cultura quanto pela população relativamente excluída dos maiores benefícios da urbanização e do crescimento econômico contemporâneo.


Possibilidades de ação na cidade contemporânea: heranças do passado, vetores da modernidade, (re)significação e inovação.

Reconhece-se a existência de uma significativa gama de ações que animam a cidade e que dão sentido ao fenômeno urbano contemporâneo. Essa diversidade foi agregada por Ribeiro (2000) em dois tipos qualitativamente diferentes, cujo caráter dual ajuda a salientar a importância das relações dialéticas entre as heranças do passado e os vetores da modernidade no desenvolvimento de estratégias inovadoras, promovidas principalmente pelos agentes populares da cultura, da política e da economia urbana.

Dentro desses parâmetros a ‘ação estritamente gerida e administrada’ está articulada ao fluxo de ordens e de mensagens que corroboram com a razão econômica global. Ao penetrar no tecido social, através de redes de estímulo cultural, este tipo de ação adequa em grande medida o comportamento geral à reprodução sistêmica do consumo (RIBEIRO, 2000).

Esse tipo de ação revela sua condensação material através de objetos com elevada densidade técnica, como sistemas de comunicação de massas, sistemas financeiros internacionais e centros comerciais modernos, cuja existência favorece fluxos ordenados de informações, de pessoas, de mercadorias, de discursos e de dinheiro (SANTOS, 1996).

A existência desses fixos e desses fluxos - constituídos a partir de ações que carregam enormes cargas de racionalidade econômica - corresponde ao domínio do ‘circuito superior da economia urbana’. Pela influência política, social e econômica de seus agentes, assim como pelo privilégio do controle das principais redes de produção e de processamento da informação, esse circuito tem a possibilidade de instalar sistemas de objetos onde se julga mais conveniente, prática essa que induz à especialização funcional de alguns lugares e que permite a tomada de ações racionais sobre espaços também racionalizados (SANTOS, 1979).

A observação simultânea da ampliação da intencionalidade na tomada de decisões, na construção de sistemas de objetos técnicos e na definição de suas normas de utilização, caracteriza o processo qualificado como ‘enrijecimento da cidade’, cuja vigência funda novas modalidades de segregação e de escassez, resultado combinado da política, da ciência, da tecnologia e da concentração do capital financeiro no processo de produção/reprodução dos espaços urbanos (SANTOS, 1996).

Esse tipo de ação racional exerce uma opressão sistêmica no tecido social, fato que estimula a ação como resistência aos mecanismos de controle da vida coletiva, resistência essa cuja coerência se encontra precisamente no espaço banal, onde os agentes populares encontram lógicas internas próprias, inovadoras e localmente constituídas (SANTOS, 1994a). Surge assim um tipo de ‘ação espontânea’ que protesta, reivindica e constantemente readapta os espaços urbanos desvalorizados pelos agentes hegemônicos da política, da cultura e da economia (RIBEIRO, 2000).

Sartre (1960) denominou contra-finalidade esse tipo de solidariedade criada diante da ameaça comum de alienação e de escassez, categoria que inclui os movimentos urbanos de revalorização da arte, da cultura e da economia popular.

A ação social, ao se deslocar para o âmago do dia-a-dia, demanda o conhecimento de esferas da vida coletiva que até poucas décadas eram secundarizadas na reflexão sobre o capitalismo. A ação no cotidiano, assim revalorizada, é reconhecida como depositária de formas inovadoras de conhecimento e de exercícios do poder (SANTOS, 1994a), dentre as quais são destacadas as manifestações populares da cultura e da economia urbana.

O ‘circuito inferior da economia urbana’, produto da solidariedade, das heranças do passado e do conhecimento local, se associa a esta organização horizontal que funda a escala do cotidiano, cujos parâmetros são a vizinhança, a co-presença, a intimidade, a emoção, a cooperação e a socialização. Esse circuito se mantém através do trabalho intensivo e de capitais reduzidos, utiliza dinheiro líquido e o conhecimento interpessoal. É reconhecido pela capacidade de gerenciar organizações relativamente restritas do espaço. Sua flexibilidade frente ao endurecimento da cidade surge como uma (re)ação que permite a utilização de espaços desvalorizados como abrigo de atividades econômicas, políticas e culturais populares (SANTOS, 1979).

Orlandi (1999), parafraseando a Henry (1997), assume que não há fato que não faça sentido, que não peça interpretação e que não reclame que lhe achemos suas causas e consequências. Sendo assim, durante o processo dialético que relaciona sistemas de objetos e sistemas de ações na materialização da cidade, são criados e recriados sentidos, que por sua vez determinam a constituição dos sujeitos, nesse caso, sujeitos urbanos, e as mais variadas possibilidades de (re)ação.

A cidade, como um lugar simbólico particular, gera sujeitos que se subjetivam de maneira diversa, onde os sentidos que aí se constituem tendem a ser também diversos. Considerando a convivência de uma quantidade significativa de pessoas na realidade material da cidade, se assume uma diversidade também significativa de subjetivações e, portanto, de sentidos. Não havendo espaços vazios, mas sim saturados, no espaço simbólico da cidade, se assume que há uma tendência de saturação dos sentidos, o que tem como resultado a geração de conflitos. Pensados desta maneira, os conflitos urbanos são antes de tudo, conflitos de sentidos (ORLANDI, 2001 e 1999).

O conhecimento desses processos contribui para a compreensão do funcionamento do urbano, do citadino e do social, nesse espaço simbólico que é a cidade. Pensando assim os sentidos do/no urbano, e procedendo a uma observação sustentada na análise do discurso, pode-se dizer que as relações sociais se (re)significam constantemente na cidade, na reprodução e na ruptura de paradigmas, através da emergência de processos que reafirmam ou que perturbam a organização social vigente. O discurso social, nessa perspectiva, apresenta-se como metáfora[5] da divisão social (ORLANDI, 2001b).

De fato, a estrutura funcional da cidade, mesmo que parcialmente enrijecida, permite a todo instante a criação e a recriação de laços sociais, o abandono de antigos traços culturais e a assimilação de conteúdos culturais novos. É nesse processo que a população pobre cria um ‘caldo de cultura’ para que vicejem forças menos modernas, mas não menos dinâmicas e nem menos expressivas, relativas aos circuitos populares da cultura, da política e da economia urbana (SANTOS, 1996).

A criatividade é atributo dos setores populares que, sempre na precariedade e muitas vezes atuando fora das normas técnicas, jurídicas e comportamentais, tendem a inovar, seja em sua localização, em sua rede de relações, em seus conceitos, em suas estratégias de atuação ou ainda através dos sistemas de objetos e dos serviços por eles criados ou readaptados.

Santos (2000) explica que a pobreza é uma situação de carência, mas também de luta ativa. Os pobres não se entregam e descobrem a cada dia formas inéditas de trabalho, nas quais a herança do passado é temperada pelo sentimento de urgência, essa consciência do contemporâneo que é também motor do conhecimento.

O viés revolucionário dos circuitos populares aparece, pois, quando tendem a romper com as normas preestabelecidas pelo espaço reticular através da subversão, gerando uma opção de desligamento[6] - mesmo que momentâneo - da rigidez contemporânea, ao mesmo tempo em que aparece como opção de inclusão social e econômica para amplas parcelas da população urbana. Salienta-se que a resistência acontece não só quando se procura relembrar a história dos lugares e do povo daqueles lugares através da manutenção de festas, de hábitos, de rituais, enfim, de manifestações tradicionais, mas também quando se inova no sentido de se preservar a solidariedade orgânica[7].

Sobre este aspecto da realidade já notava Bakheuser (1944), que atividades econômicas e culturais são praticadas como forma de sobrevivência por vastas parcelas da população, ao ocuparem a cidade como podem: quer se acumulando no centro urbano, se disseminando pelos subúrbios ou se espalhando pelas ruas, praças e galerias ‘na mercancia ambulante de produtos vários’.

Santos (2000) reconhece que a própria exclusão garante a transformação de impulsos globais pelos agentes da cultura e da economia popular, como um alimento da política dos pobres que se dá independentemente de partidos políticos, de autarquias administrativas e de outros tipos de organização oficial.

A noção de exclusão, apesar de suas ambiguidades, recorta uma problemática emergente e em permanentemente mudança, caracterizada tanto por privações e constrangimentos quanto por alternativas de comportamento (OLIVEIRA e PINTO, 2001) e não deve, portanto, ser entendida de maneira literal, mas sim como uma porta que se fecha para uma gama de relações e não para outras (DUFFIELD, 2001: 5; VEGA e KRUIJT, 2007).

Por isso, simultaneamente ao processo de exclusão relativo às (im)possibilidades de trabalho digno e de obtenção de renda nos setores formais da economia globalizada, admite-se a vigência de processos de integração através de setores informais, ou até mesmo clandestinos, como alternativas de inserção aos fluxos gerados pela economia global.

Os circuitos populares urbanos utilizam de forma flexível os objetos que constituem a cidade, pois, ao invés de criarem sistemas densos em técnica, eles adaptam o meio construído ocupando ruas, praças, viadutos, escolas, parques e outros espaços, onde comerciantes de pequeno capital e artesãos, assim como membros de grupos da cultura popular, põem em prática estratégias que primam pela solidariedade orgânica, se valendo de situações cara-a-cara e da panfletagem na divulgação de festas e de outros tipos de eventos, praticas ainda muito frequentes apesar da emergência das redes sociais por meio digital (MANETTA, 2003).

Na tentativa de aprofundar essa discussão, recorremos mais uma vez a Santos (2000), quando sugere uma divisão entre cultura de massas e cultura popular, sendo que a primeira é conduzida pelo mercado cego, indiferente às heranças do passado e às realidades locais, enquanto a segunda representa a resistência à homogeneização, garantia de que a conquista dos lugares pelos vetores externos jamais é completa.

Em uma aproximação grosseira, a cultura popular estaria no âmbito do circuito inferior da economia urbana, representando uma resistência à tendência de homogeneização e ao descaso com a memória local, enquanto a difusão de uma cultura de massas, como ação eminentemente econômica, faria parte integrante do circuito superior da economia urbana. Admite-se ainda a existência de formas mistas e sincréticas que teriam o espetáculo como resultado. A própria cultura popular se difunde por meios próprios da cultura de massas, não de modo rígido e alienado, mas exaltando a vida e o cotidiano através de atividades com conteúdo não globalizado, já que sua base se encontra no lugar (SANTOS, 2000).

Essa abordagem da cidade e do urbano expõe as relações lugar/mundo, que causam repercussões e reorganizações não só econômicas e culturais, tal como nos evidencia a noção dos circuitos da economia urbana, mas repercussões indiscutivelmente espaciais e discursivas, por se tratar de intervenções relativas às esferas da materialidade, da criação de sentidos e da ação.

Seguindo essa linha de raciocínio, os dois circuitos da economia urbana existem pelas diferentes oportunidades de consumo e de ação que abrange a população como um todo, já que o circuito superior atende às necessidades das classes privilegiadas e em parte da classe média, enquanto o circuito inferior atende principalmente as necessidades das classes de baixa renda (ALMEIDA, 2000).

Admite-se, no entanto, que a ação dos agentes hegemônicos e dos agentes hegemonizados acontece articuladamente nas mais importantes esferas da vida social, de modo que sua divisão conceitual em dois tipos distintos, ação estritamente gerida e administrada e ação espontânea, assim como a divisão da economia urbana em dois circuitos, um superior e outro inferior, encontra sentido apenas para fins analíticos.

Sugere-se que é justamente no movimento dialético de constituição e de materialização do espaço geográfico, onde as novidades convivem com as heranças de tempos passados, se complementam e se contrapõem, que os agentes populares da economia, da cultura e da política se (re)significam[8] e criam formas inovadoras de ação, dando realce à criatividade, à memória e à contemporaneidade, já que se alimentam da atualidade e do cotidiano, sendo a cidade o lócus privilegiado desse processo, ao reunir agentes, sujeitos, objetos, discursos e intencionalidades extremamente diversos.


Considerações Finais.

Os circuitos superior e inferior da economia urbana são frutos do mesmo processo de modernização incompleta e da relativa inclusão/exclusão de agentes urbanos nos fluxos da economia global. A modernidade cria atividades extremamente seletivas dentro na cidade contemporânea que, uma vez amalgamadas às heranças do passado, geram práticas; sentidos; ordens e organizações singulares.

Nessa dinâmica os circuitos de ordem global representam os vetores da modernidade, que através de sistemas de objetos técnicos e de uma racionalidade econômica predominante estão presentes simultaneamente em inúmeros pontos do planeta, tendo como resultado um processo de parcial homogeneização.

Por outro lado, os circuitos de ordem local estão fortemente atrelados à memória e aos impulsos que organicamente se desenvolvem nos lugares, fato que os torna singulares. Seus agentes reconhecem a diversidade e a assimilam. Justamente por esse motivo apreendem formas, discursos, sentidos e conceitos inéditos, em um processo que revela sua relativa espontaneidade e capacidade de adaptação, como tentativa de amenizar as pesadas coações da racionalidade capitalista.

Salienta-se que com a crescente exclusão econômica, expressa nas cidades como um tipo de exclusão sócio espacial, os circuitos de ordem local tendem a se expandirem como possibilidade de inclusão de maiores e mais diversificadas parcelas da população.

A partir dos antecedentes contidos em Santos (1991), conclui-se que um novo tipo de planejamento pode ter a cidade como lócus, uma vez que se olhe para as contra-finalidades resistentes à ação hegemônica, já que a busca por uma maior integração social, assumida pelos setores populares da cultura, da política e da economia urbana, demonstra possibilidades criativas e inovadoras fundadas tanto na contemporaneidade quanto nas heranças do passado, revelando formas inovadoras de conhecimento cotidianamente (re)adquiridas, (re)significadas, (re)formuladas e (re)adaptadas.


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Data de Recebimento: 06/06/2016
Data de Aprovação: 02/02//2017




[1] Anteriormente, Carvalho (1945), já havia disponibilizado os termos adequados para expressar a dialética entre sistemas de objetos e sistemas de ações em geografia, ao denominar psicoesfera as bases imateriais - crenças, ideias, conhecimentos e o processo de criação de sentidos - e tecnoesfera as bases materiais - ou a ‘biosfera tecnificada’ - que juntas são responsáveis pela constituição, dinamização e materialização do espaço geográfico.

[2] A partir das propostas contidas em Isnard (1982) e Santos (1978), se considera o espaço geográfico como o objeto de estudo por excelência da geografia.

[3] A referência temporal ao período contemporâneo encontra-se precisamente delimitada pelo reconhecimento do processo de globalização, vigente desde último quarto do século XX até os dias atuais.

[4] Halbwachs (1990), parafraseando Auguste Comte, já havia observado que o equilíbrio mental dos indivíduos depende em boa parte da estabilidade da esfera material. Dentro desses parâmetros, sugere-se que rupturas bruscas no contato com o entorno material imediato tende a causar perturbações psíquicas. Até mesmo fora dos casos patológicos, quando algum acontecimento obriga a convivência em um novo entorno material, os indivíduos - antes de a ele estarem adaptados - atravessam um período de incertezas, como se houvessem perdido suas personalidades.

[5] A metáfora, segundo Pechêux (1975) e Orlandi (1996), na análise do discurso, significa a transferência de sentidos e não figura como na retórica clássica. Transferência é aí justamente a possibilidade de interpretação, a relação constitutiva com o trabalho da memória, dos processos de identificação dos sujeitos em seu movimento. Em uma palavra, transferência significa ressignificação, historicização dos sentidos em que se simbolizam o mesmo e o diferente.

[6] Löwy (2002) descreveu a busca pelo ‘reino da liberdade’ como uma tentativa eminentemente subversiva de restabelecer no coração da vida humana a poesia, a paixão, a imaginação, o mito, o sonho, a revolta e a utopia, processo esse que pode ser realizado por meio da ‘deriva’: um passeio fora da ‘gaiola de aço’, essa metáfora que representa as pesadas coações do ‘reino da razão instrumental’, descritas por Santos (1994b).

[7] Em acordo com Castillo, Toledo e Andrade (1997), solidariedade orgânica faz referência à solidariedade gerada no contexto da convivência e da co-presença, sendo vigente em escala local.

[8] Em acordo com Orlandi (1996), ressignificação significa a historicização dos sentidos em que se simbolizam o mesmo e o diferente.






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