“Aqui em Rondônia é assim”: representações imaginárias em memes cômicos sobre os rondonienses


resumo resumo

Ilka de Oliveira Mota
Erich Lie Ginach



1. Introdução

O estado nortista de Rondônia e seus cidadãos vêm sendo significados de forma pejorativa em discursos humorísticos e jocosos que circulam em diferentes mídias. A apresentadora Angélica, da TV Globo, disse que “Rondônia fica no fim do mundo à esquerda” (PROFESSOR NAZARENO, 2011) e o humorista Rafinha Bastos, em um de seus shows de stand-up comedy, formulou piadas como as seguintes: “Se Deus é brasileiro, saibam que ele sacaneou Rondônia”; “Está com autoestima baixa? Vai pra Rondônia!” (Rafinha Bastos fala sobre carecas e Rondônia, 2012). Esses dizeres acabaram provocando a aparição de contradizeres que chamamos de Discurso do Orgulho Rondoniense (doravante DOR), cujos sentidos se contrapõem aos discursos negativos sobre o estado e seu povo[3].

Parte dos textos com discurso favorável aos rondonienses corresponde ao corpus aqui analisado, proveniente da página do Facebook encerrada “Aqui em Rondônia é assim”, que divulgava eventos e fazia denúncias e humor com o estado e seus costumes. As formulações escolhidas são memes verbovisuais cômicos e agressivos que têm como característica a mobilização de sentidos de gênero e da oposição rural/urbano para significar positivamente o rondoniense. O objetivo do artigo é explicitar os efeitos de sentidos dessas representações imaginárias e compreender os processos discursivos que as constituem. Além de categorias da Análise de Discurso (ORLANDI, 1999, 2001; PÊCHEUX, 1990), são tomados conceitos da teoria freudiana do cômico (FREUD, 1989).

Num estudo desse tipo o texto é considerado em sua materialidade linguístico-histórica. O formulado, seja qual for a linguagem que utilize, é remetido a um discurso (objeto não empírico) produzido em determinadas condições de produção atravessadas por formações ideológicas. O objetivo é compreender como o discurso funciona, produz sentidos, nessas condições. O sentido não é sempre o mesmo para todos os locutores, pois eles ocupam distintas posições ideológicas.

2. O discurso memético e o espaço digital

O conceito de meme foi formulado em 1976 no livro “O Gene Egoísta”, do biólogo e divulgador científico inglês Richard Dawkins (PASSOS, 2012). Para o autor, o meme é análogo ao gene, termo cunhado no início do século XIX no campo da Biologia. Enquanto o gene é uma unidade biológica que luta para se propagar em organismos vivos, o meme se espalha na sociedade sob a forma de ideias, discursos[4]. Por essa razão, o termo passou a designar qualquer texto, de qualquer materialidade (verbal, visual, verbovisual ou audiovisual), geralmente de caráter cômico, que circula ostensivamente na internet[5]. É uma forma de discurso que é produzida e circula predominantemente no meio digital ou cibernético.

O que determina a duração dos memes são as várias formas pelas quais os sujeitos interagem com eles na Grande Rede. Para Gunders & Brown (2010), a Internet fornece condições para que os memes sejam passados adiante mais rapidamente do que qualquer outro suporte material seria capaz de fazê-lo virtualmente antes da existência da Grande Rede. Segundo Souza (2013, p. 135), “[...] a Internet tem modificado ainda mais a forma rápida como os ‘memes’ se recombinam, transformam-se e se espalham.”

Outro aspecto fundamental do discurso memético é sua anonímia. Ele geralmente não traz uma assinatura, um nome de autor. Isso não significa ausência de autoria, que vai além de um nome, é uma função discursiva (função-autor), princípio de unidade e coerência de um texto (Orlandi, 1999). No caso do meme, sua forma histórica de autoria prescinde do nome de autor. Esse modo de existência tem implicações: é difícil ou mesmo impossível responsabilizar juridicamente o autor de um meme agressivo, por exemplo. Na maior parte das vezes só é possível responsabilizar os internautas que os compartilham. Existem alguns sites ou até indivíduos que assinam os memes que criam, mas são minoria.

Essa peculiaridade se ajusta a uma das características do espaço digital: a importância maior dada ao compartilhamento do que à explicitação da autoria. Mesmo quando o autor deseja mostrar seu nome, é difícil controlar um texto que pode ser compartilhado milhões de vezes e ter o nome apagado. Mas a anonímia também é uma defesa para o autor: ela o protege de ataques pela Rede e pelo aparato jurídico.

Quanto à formulação, o meme pode ter uma forma fixa ou se repetir com algumas alterações. Aparece em diferentes linguagens, mas são extremamente comuns os híbridos, que associam imagem e um pequeno texto, como ocorre no corpus aqui analisado, em que o componente imagético corresponde a uma fotografia e o verbal, a um enunciado-legenda (“Aqui em Rondônia é assim” ou similar). Combinados, esses elementos constituem unidades de sentido que produzem diferentes efeitos cômicos.

3. O campo da comicidade

Freud (1989) inclui os efeitos cômicos no que chama de campo da comicidade, um conjunto de processos associados à liberação de prazer por meio de uma técnica específica. Para ele, a comicidade é produzida não apenas pelo conteúdo de uma piada ou chiste, mas também por seu modo de elaboração, perspectiva importante para uma abordagem discursiva, que considera a materialidade dos sentidos. Analisando o modo de formulação do cômico, Freud distingue três grandes subclasses: o chiste, o cômico e o humor.

A subclasse do chiste [Witz] inclui a comicidade que provém do jogo com a linguagem. É, por exemplo, a história do rei que, passeando por suas terras, encontra um homem simples muito parecido com ele e lhe pergunta se sua mãe já tinha estado na corte, ao que o homem responde que não, mas seu pai, sim (FREUD, 1989). O Witz é uma forma condensada, que extrai o máximo de sentido de uma economia de expressão. À pergunta chistosa e ofensiva do rei sugerindo que a mãe do súdito também seria a sua, o último retruca com outro chiste, sugerindo que seu pai é que teria engravidado a mãe do rei. Dito dessa forma não seria um chiste e não provocaria o mesmo efeito, se transformando num conflito verbal aberto entre os personagens.

Em relação ao cômico [Komik], Freud (1989, p. 180, tradução nossa) diz que



A descoberta de que se tem o poder de tornar cômico a outro dá acesso a um insuspeito ganho de prazer cômico e dá origem a uma refinada técnica. Também é possível tornar a si mesmo cômico. Os recursos que servem para tornar alguém cômico são, entre outros, a colocação da pessoa objeto em situações cômicas, a imitação, o disfarce, o desmascaramento, a caricatura, a paródia, o travestismo [Negrito nosso]. Como se sabe, estas técnicas podem entrar ao serviço de tendências hostis e agressivas.


Freud se pergunta por que rimos do palhaço. Para ele, rimos por seu gasto excessivo de movimentos. Observa que esse tipo de comicidade não se produz apenas artificialmente, mas no curso da vida cotidiana, de modo não deliberado. Cita como exemplos o excesso de gasto da criança que põe a língua para fora quando está aprendendo a escrever e os adultos que nos parecem cômicos por movimentos expressivos exagerados. O prazer é produzido pela superioridade que sentimos em relação ao outro.



O cômico nasce de uma percepção do contrário, como na história da velha de Pirandello que, já decrépita, cobre-se de maquiagem, veste-se como uma moça e pinta os cabelos. Ao se perceber que aquela senhora é o oposto do que uma respeitável senhora deveria ser, produz-se o riso, que nasce da ruptura das expectativas, mas, sobretudo, do sentimento de superioridade. (Saliba, 2002, p. 24).


Saliba (2002) observa que a percepção do contrário, porém, pode transformar-se num sentimento do contrário quando aquele que ri procura entender as razões pelas quais a velha se mascara na ilusão de reconquistar a juventude perdida. Nesse contexto a velha da anedota não está mais distante do sujeito que percebe, porque o último se imagina no lugar da velha, seu riso se mistura com a compreensão piedosa e se transforma num sorriso. Nesse ponto, Pirandello começa a diferenciar o cômico do humor.

O humor ou Galgenhumor, “humor negro”, ao contrário do cômico, surge diante da adversidade: o prazer humorístico se produz com afetos que normalmente seriam penosos. Freud dá como exemplo a frase que diz a si mesmo, no caminho para o patíbulo, o réu condenado à morte na segunda-feira: “Vá, comece bem a semana!”. O discurso do réu economiza um afeto doloroso em proveito do prazer humorístico, mecanismo defensivo – e de resistência política, diríamos – do sujeito.

Pode-se dizer que a comicidade é uma forma de expressão lúdica. Porém, não se pode dizer que seja sempre lúdica para todos os locutores, como exemplificam os textos cômicos acima. Na história do rei cada personagem/enunciador tem sua vez para fazer do outro objeto do discurso cômico e num primeiro momento a personagem de Pirandello é apenas objeto do cômico. A posição dos locutores no discurso faz diferença para o efeito cômico.

Orlandi (1983) propõe uma tipologia discursiva que leva em conta a reversibilidade das posições dos locutores, o referente do discurso (aquilo a que ele se refere) e a natureza do sentido (paráfrase ou polissemia). A autora distingue os tipos lúdico, polêmico e autoritário, fazendo a ressalva de que devem ser entendidos como dominâncias, pois cada texto apresenta condições específicas. O lúdico aparece nos discursos que tendem à polissemia, o autoritário nos discursos mais fechados ao sentido outro e o polêmico se equilibra entre eles.

No polêmico há tensão entre os locutores, cujas posições diferem e disputam o referente. Seu ponto limite é a injúria. O chiste do rei, em que este e um homem do povo se confrontam com chistes, fica entre o polêmico e o lúdico na quase injúria contida pela polissemia dos enunciados. Já o discurso autoritário tem reversibilidade impossível ou reduzida, com predomínio da perspectiva de um dos locutores e um sentido dominante. Seu limite é a ordem militar. Corresponde à situação da personagem de Pirandello que, como objeto cômico, não alterna sua posição com quem ri dela; o sentido dominante é o ridículo da velha. Por fim, no discurso lúdico as posições são reversíveis, a polissemia predomina e não há disputa pelo referente. Seu extremo é o nonsense. É lúdico o discurso da personagem que consegue extrair humor da sua própria morte, se deslocando da posição de condenado para a de quem é capaz de ter um prazer cômico. O humor negro no sentido freudiano parece tender apenas ao funcionamento lúdico.

4. O imaginário de Rondônia e a gênese do DOR

Na perspectiva da Análise de Discurso (AD), que é materialista, os sujeitos e os sentidos são construções simbólicas e históricas, produzidas em condições específicas (ORLANDI, 1999). Os sentidos de Rondônia e rondoniense têm ligação com as particularidades da história do estado. Como formula Orlandi (2004, p. 11), “Em suas inúmeras e variadas dimensões: material, cultural, econômica, histórica, etc. O corpo social e o corpo urbano formam um só”.

Situada na Amazônia brasileira, Rondônia é vizinha dos estados do Amazonas, Acre e Mato Grosso e de outro país, a Bolívia. Sua população é formada por número expressivo de migrantes de diversas partes do Brasil, mas ainda conta com uma grande variedade de povos indígenas[6] (SANTOS, 2014). Na economia, as atividades de maior relevância são a agricultura e a pecuária, o chamado agronegócio. É um estado que tem, portanto, traços rurais muito fortes.

Essas condições fizeram com que Rondônia fosse significada como fronteira selvagem, rural e precária, e os rondonienses, como rudes, tanto em representações feitas pelos próprios rondonienses como em discursos de pessoas de fora do estado sobre os rondonienses (ver falas de celebridades na Introdução). Na internet, essas imagens podem ser localizadas, sobretudo, em memes. O recorte discursivo abaixo, por exemplo, traz um meme com representação imaginária de Rondônia feita do lugar de um rondoniense.

Recorte 1

(Página do Facebook encerrada “Aqui em Rondônia é assim”)

A expressão “Aqui em Rondônia é assim”, dêitica, situa o locutor no estado e introduz o outro enunciado: “O quebra-molas vai até você!”. A última frase é um chiste, pois gera comicidade num jogo de sentidos entre suas palavras e a imagem. Justaposta à fotografia da enorme cobra, a frase nomeia um signo da natureza (cobra) com um signo do urbano (quebra-molas). A urbanidade rondoniense é atravessada pelo imaginário de rural e selvagem, o que produz o efeito cômico. O texto não agride o estado ou seu morador, mas não questiona ou desloca o imaginário posto; adere a ele. A maior parte dos memes sobre Rondônia formulados pelos próprios rondonienses apresenta esse funcionamento.

Outros textos vão tomar as representações imaginárias de terra selvagem, distante, pouco desenvolvida e outras para significar pejorativamente Rondônia ou seus cidadãos. Os recortes abaixo exemplificam essa postura.

Recorte 2

Resultado de imagem para memes de rondônia

(https://onsizzle.com/i/outra-cidade-137-km-apa-iba-na-rondonia-melhor-ir-8280379)

Recorte 3

Resultado de imagem para memes de rondônia

(http://geradormemes.com/meme/4aj1mm)

No recorte 2, um quadrinho cômico, o personagem esgotado que engatinha no deserto prefere o caminho para a cidade mais distante, situada a 137 km, do que ir para Rondônia, que fica “Virando a esquina”. Embaixo uma legenda diz: “Melhor ir pra outro lugar mesmo”. É uma representação cômica e exagerada de Rondônia como o pior dos mundos. Também é interessante notar a confusão do estado com uma cidade, já que o caminho escolhido pelo homem é nomeado como “Outra cidade” em relação à Rondônia. Nessa troca de palavras o texto revela um conhecimento incorreto do estado, afetável por preconceitos.

No recorte 3, o enunciado linguístico vem sobre um meme muito conhecido na internet, uma imagem do filme “A fantástica fábrica de chocolate”. Nela o personagem olha com um sorriso para seu interlocutor, que é visto por trás. O sentido construído é de que o personagem que sorri é quem faz a pergunta ou comentário sobreposto à imagem. Aqui são duas perguntas: “Você é de Rondônia? Então você manuseia a cobra?”. Mais uma vez se remete ao imaginário da natureza e da presença de cobras para significar Rondônia, mas agora com sentido malicioso, o que se consegue com a expressão polissêmica “manuseia a cobra”. É, portanto, um chiste, que extrai sua comicidade de um jogo com a polissemia das palavras. Funciona de modo autoritário, já que a voz do interlocutor está ausente e ele é posto no lugar de objeto cômico do locutor.

Foram discursos como os desses memes, sarcásticos e provocativos, que estimularam o surgimento do DOR, exemplificado pelo meme abaixo.

Recorte 4

(Página do Facebook encerrada “Aqui em Rondônia é assim”)

A pergunta “Algo contra os índios?”, dirigida a alguém de fora de Rondônia, é irônica, pois sobreposta à imagem da índia bonita, da qual se supõe que o interlocutor deverá gostar (“Aposto que tu queria tá aqui agora!”). Um signo típico do estado, o indígena, é tomado para significar uma Rondônia bonita, digna de orgulho. O enunciado implica um preconceito não-dito do seu leitor (“Algo contra os índios?”), mas não o ataca e não chega a ser agressivo. Passemos à análise dos memes cômicos agressivos dirigidos a não rondonienses.

5. O funcionamento dos memes cômicos agressivos dos rondonienses

Cada um dos textos aqui analisados é compreendido como um recorte, isto é, um fragmento que correlaciona linguagem e contexto sócio-histórico (ORLANDI, 1983)[7]. Todo texto é um “exemplar do discurso” (ORLANDI, 1999), representa um discurso que se dispersa em vários textos, e apresenta regularidades discursivas que mostram sua filiação ao imaginário e à ideologia.

Segundo Pêcheux (1990), as formações imaginárias designam o lugar que os protagonistas do discurso atribuem a si e ao outro, a imagem que fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro e do objeto do discurso. Não se trata do lugar empírico, sociologicamente marcado e descritível, mas dos lugares representados nos processos discursivos, que deixam marcas na superfície do texto. Ao se analisar essas marcas e remetê-las aos discursos que representam é possível compreender como os sentidos se relacionam uns com os outros na história.

O corpus do presente estudo foi formado com memes da página encerrada do Facebook “Aqui em Rondônia é assim!”. Fazem parte do que chamamos de DOR, mas têm como traço específico serem cômicos e agressivos, mobilizando sentidos de gênero e opondo urbanidade a ruralidade para valorizar o rondoniense. Em relação a eles, nossos objetivos são: 1) descrever o modo como significam e 2) com base nessa descrição, compreender seu funcionamento discursivo, o modo como eles se relacionam com a ideologia para significar esses e outros textos semelhantes.

As imagens dos memes não mostram necessariamente Rondônia e rondonienses; pelo contrário, talvez nenhuma delas seja da Rondônia real. Porém, isso não importa, pois da perspectiva do discurso o que vale são as representações imaginárias e os efeitos que produzem.

Selecionamos cinco recortes com alguns dos discursos mais frequentes entre os memes cômico-agressivos da página e os dividimos em dois grupos de acordo com seus sentidos dominantes. Contudo, essa diferença não quer dizer que não se inter-relacionem de alguma forma, como se verá.

Grupo 1: o rondoniense supermacho

Recorte 5

Recorte 6

Nesses recortes, como em todos os memes sob análise, o enunciado dêitico “Aqui em Rondônia é assim...” ou similar (“Em Rondônia...”) aparece no alto, precedendo espacialmente a imagem que o complementa. Essa estruturação mostra que o meme se constitui num jogo entre verbal e não-verbal, pois as duas materialidades se articulam em termos sintáticos e semânticos.

No recorte 5, o enunciado “Gilette é coisa de frutinha!!!”, complementando a imagem do homem prestes a se barbear com motosserra, contrasta os hábitos do homem rondoniense com os de outras regiões, que usariam lâmina de barbear convencional “Gilette” e por isso seriam menos machos. O termo “frutinha” é uma forma pejorativa para designar gays. No recorte 6 aparece o mesmo tipo de contraste exagerado entre o forte e o fraco com base na inferiorização da identidade gay, nomeada caricatamente como “biba”: “Nóis cumprimenta com um abraço e um tapinha nas costas. Delicadeza é coisa de biba!!!”. “Tapinha” é uma formulação cômico-irônica, já que justaposta à imagem da marca de tapa violento nas costas de um homem.

Ambos os recortes utilizam a técnica do cômico, o exagero caricatural de traços, para construir a imagem de um rondoniense excessivamente macho e rude que se opõe à do homem supostamente menos masculino de outros lugares. Como costuma acontecer (FREUD, 1989), o efeito cômico também é produzido pela ridicularização do outro.

Grupo 2: a criança forte

Recorte 7

Recorte 8

Recorte 9

Resultado de imagem para la em rondonia é assim

Nos recortes 7, 8 e 9, o ponto de comparação é a infância. De forma exagerada, cômica, as crianças de Rondônia são mostradas como fortes e destemidas: um menininho encara boi enorme, outro mama numa vaca e uma menina brinca com uma grande serpente. Em contraste, as crianças de outros lugares são caracterizadas linguisticamente como “fracas”, porque tomam bebida industrializada (“toddynho”) e brincam com “carrinho de rolimã” ou “cachorrinho” em vez de brincarem com animais perigosos. Esses recortes opõem o elemento natural/rural (boi, mamar na teta, serpente) ao fabricado/urbano (toddynho, carrinho de rolimã, cachorrinho), caracterizando aquele como forte e o último como fraco.

Tanto as imagens do grupo 1, que mostram homens adultos, como as do grupo 2, com crianças, têm como ponto comum a comparação da força dos sujeitos. Reunindo todos esses traços temos:



OPOSIÇÕES DOS RECORTES

Rondônia/rondoniense

Alteridade

Natureza/Campo

Cidade

Força/Coragem

Fraqueza

Identidade Macho

Identidade Gay

Rudeza

Delicadeza

Brincadeira com animal selvagem/feroz

Brincadeira com animal doméstico/inofensivo ou brinquedo convencional



Tendo como referência a tipologia discursiva proposta por Orlandi (1983), há predominância do discurso autoritário. O enunciador significa positivamente o rondoniense em detrimento do sujeito de outro lugar, a quem nem é dada voz, apenas imposto um sentido negativo. O outro é comicamente inferiorizado nessas sequências.

Diante das regularidades discursivas do corpus, restam algumas perguntas fundamentais: por que a identidade gay e a urbana são usadas como forma de agressão? Que processos discursivos, ideológicos e inconscientes, sustentam esses sentidos? Se ficarmos no intradiscurso ou texto, nível superficial (ORLANDI, 2001), podemos dizer que os discursos agressivos dos rondonienses são respostas na mesma moeda a discursos pejorativos sobre Rondônia e seus habitantes. Mas precisamos nos perguntar sobre o nível profundo ou interdiscurso.

A identidade gay tem sido historicamente perseguida e significada como negativa, de livros do Antigo Testamento aos discursos homofóbicos contemporâneos. Por essa razão, chamar um homem de “frutinha” ou “biba”, como se vê no corpus, pode ser uma injúria. Também há um discurso que associa homossexualidade a maior educação e urbanidade. O homem cisgênero rural tende a se ver e a ser visto como mais macho e rude do que o homem cisgênero urbano e escolarizado, que seria mais feminino. Para esse interdiscurso, bons modos e outros hábitos associados à urbanidade são gays e, portanto, passíveis de ridicularização (recortes 5 e 6). Inversamente, a rudeza, que seria negativa, se converte num traço positivo para o homem rondoniense.

Quanto à ideia do sujeito rural forte e corajoso que desde criança está em contato com animais perigosos, ela também tem seu percurso na história. Um de seus precedentes está em “Os Sertões” (1902), de Euclides da Cunha, que diz que o sertanejo “é um forte” e o descreve como um misto de Hércules e Quasímodo – feio e sem elegância, porém forte e corajoso –, o oposto do habitante fraco e doentio das cidades do litoral brasileiro. Os iluministas europeus do século XVIII já associavam os males e fraquezas da humanidade à degradação da vida urbana e defendiam o fugere urbem (“fugir da cidade”) como forma de encontrar a essência humana mais simples e harmônica no meio rural. São Francisco de Assis, na Idade Média, foi o porta-voz de uma ideologia semelhante de valorização do natural/rural em oposição à vida fútil e estéril da cidade. Ele também propunha uma vida em harmonia com a natureza e por isso é o patrono da Ecologia. A esse respeito cabe lembrar a crítica feita por Orlandi (2001b, p. 4-5):



Quero aqui acrescentar que não concordo com duas espécies de falas que “pairam” sobre a cidade. Uma delas, subproduto dos discursos ecologistas (em que, na relação de perdição e salvação, o mundo seria salvo por uma romântica volta ao campo, este evidentemente “puro” e despoluído do próprio homem, voltando a ser significado pela Mãe Terra), é a fala que refere ao catastrófico: a cidade seria uma monstruosidade da agressão do homem à natureza. A isso eu responderia que ela é uma forma do homem, definido não como “espécie” mas como ser histórico e simbólico, produzir (sic) sua vida na convivialidade. E, a outra fala, que também alimenta o imaginário negativista da cidade, é um subproduto de posições teóricas igualmente catastróficas (e nostálgicas) e que desemboca na naturalização da violência. [Negrito nosso]


Se há nesses memes um movimento de afirmação de Rondônia e seu povo contra os discursos que os inferiorizam, ele se dá reproduzindo sentidos semelhantes àqueles que sofrem os rondonienses. A valorização do rondoniense se apoia na visão preconceituosa da alteridade gay, representada de forma estereotipada por meio de sentidos como fraqueza e fragilidade (recortes 5 e 6) ou na sobrevalorização do natural/rural em detrimento do urbano (recortes 7, 8 e 9).

As sequências discursivas analisadas, e esse é um ponto muito importante, não representam a totalidade do DOR, que inclui outros sentidos. Além disso, as representações dos e sobre os rondonienses não se limitam aos memes da página de Facebook pesquisada. Elas são encontradas em vários espaços digitais e podem produzir efeitos bem diferentes dos apresentados aqui. Tome-se por exemplo o recorte abaixo.

Recorte 10

Imagem relacionada

Esse meme, comparado aos anteriores, mostra sofisticação. O enunciado “Como o povo pensa que é em Rondônia” focaliza o próprio funcionamento do imaginário, uma ideia que o povo faz das coisas. O homem das cavernas diante de um computador de pedra corresponde à representação distorcida de Rondônia e do rondoniense como primitivos e precários. A comicidade é extraída do exagero dessa imagem. O meme não apenas está descolado de imagens típicas de Rondônia e dos seus habitantes como as critica por meio da estruturação cômica. Esse recorte mostra que nem todo discurso cômico sobre Rondônia vem das mesmas posições, podendo revelar distanciamento crítico.

6. Considerações finais

Os memes são textos verbovisuais em que palavra e imagem se articulam para produzir efeitos de sentidos. O material aqui analisado, proveniente da página encerrada do Facebook “Aqui em Rondônia é assim”, faz parte do que chamamos de DOR (Discurso do Orgulho Rondoniense). Foi produzido como réplica a discursos jocosos e agressivos sobre Rondônia e seu povo que têm circulado na sociedade brasileira. Assume a forma de um discurso cômico agressivo que toma sentidos de gênero e da oposição rural x urbano para construir uma identidade rondoniense positiva. Como ocorre com muitos memes, não trazem nome de autor.

A análise mostrou que a valorização do estado e dos seus habitantes se dá por meio do processo cômico da inferiorização do outro, significado como covarde, fraco ou gay. Por sua vez, esse processo se sustenta num interdiscurso que marca esses traços de forma negativa. Ao defender e exaltar o rondoniense, inscreve-se em sentidos também naturalizados sobre identidades de gênero e de ruralidade ou urbanidade: quanto mais rural, mais masculino; quanto mais urbano, mais fraco ou próximo do homossexual; quanto mais rural, melhor. Nesses textos o DOR se assenta no mesmo (paráfrase) e o seu modo de funcionamento não desloca os sentidos.

O trabalho também permitiu mostrar que, como observa Freud (1989), o cômico pode servir a ideologias hostis, não sendo uma simples brincadeira sem maiores consequências. De modo complementar, Orlandi (1983) propõe uma tipologia que leve em conta o modo de funcionamento e não o simples conteúdo do texto. Embora os memes tenham uma aparência lúdica por trazer o jogo e a brincadeira, eles podem funcionar ao modo do discurso autoritário. No corpus analisado, o discurso inferioriza e desqualifica seus interlocutores (todos aqueles que são diferentes), apagando qualquer tipo de interlocução. Mostrou-se muito produtivo considerar em conjunto o estudo de Freud (1989) sobre os chistes e o de Orlandi (1983) sobre a tipologia de discursos para abordarmos o funcionamento do cômico.

Apesar desses sentidos tratados pela análise, o DOR não se limita a eles e pode assumir outras formas menos preconceituosas e esquemáticas.




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREUD, S. El Chiste e su Relación con lo Inconciente. In: __________. Obras Completas. Trad. de José L. Etcheverry. Buenos Aires: Amorrortu. v. 8. 2ª ed., 1ª reimpressão, 1989.

GUNDERS, J.; BROWN, D. The Complete Idiot’s Guide to Memes. New York: Alpha, 2010.

ORLANDI, E. P. A desorganização cotidiana. Escritos nº 1: percursos sociais e sentidos nas cidades, Campinas, v. 1, p. 3-10, 2001b.

_____________. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. São Paulo: Brasiliense, 1983.

_____________. Análise de Discurso: Princípios & Procedimentos. Campinas: Pontes, 1999.

_____________. Cidade dos sentidos. Campinas: Pontes, 2004.

_____________. Discurso e Texto: formulação e circulação dos sentidos. Campinas: Pontes, 2001a.

PASSOS, M. V. F. O gênero “meme” em propostas de produção de textos: implicações discursivas e multimodais. In: Simpósio Internacional de Ensino da Língua Portuguesa, 2., 2012, Uberlândia. Anais... Uberlândia: EDUFU, 2012. Disponível em: <www.ileel.ufu.br/anaisdosielp/wp-content/uploads/2014/.../volume_2_artigo_204.pdf>. Acesso em: 6 set. 2017.

PÊCHEUX, M. Análise Automática do Discurso (AAD-1969). In: GADET, F. & HAK, T. (orgs). Por uma análise automática do discurso. Trad. de Bethania S. Mariani et al. Campinas: Ed. Unicamp, 1990, p.163-252.

SALIBA, E. T. Raízes do Riso: a representação humorística na história brasileira da Belle Époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

SANTOS, V. S. O processo de ocupação de Rondônia e o impacto sobre as culturas indígenas. Fórum Identidades, Itabaiana, ano 8, vol. 16, p. 197-219, jul./dez. 2014. Disponível em: <https://seer.ufs.br/index.php/forumidentidades/article/download/4267/3544>. Acesso: 6 set. 2017.

SOUZA, C. F. Formações discursivas que ecoam no ciberespaço. Revista Vértices, Campo dos Goytacazes, v. 15, nº 1, p. 127-148, jan./abr., 2013. Disponível em: <http://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/1809-2667.20130011>. Acesso: 6 set. 2017.

Websites

Aqui em Rondônia é assim. Página do Facebook encerrada.

Como o povo pensa que é em Rondônia. Meme. Website removido.

Melhor ir pra outro lugar mesmo. Quadrinho cômico. Disponível em: <https://onsizzle.com/i/outra-cidade-137-km-apa-iba-na-rondonia-melhor-ir-8280379>. Acesso em: 14 ago. 2017.

PROFESSOR NAZARENO. Caso Angélica – Por que falam mal de Rondônia? Rondoniaovivo, 10 fev. 2011. Disponível em: <http://www.rondoniaovivo.com/noticias/caso-angelica-por-que-falam-mal-de-rondonia-por-professor-nazareno/72177>. Acesso em: 1º de julho 2016.

Rafinha Bastos fala sobre carecas e Rondônia. Youtube. Enviado em 2 fev. 2012. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=pxjEN__1-51>. Acesso em: 1º de julho 2016.

Você é de Rondônia? Meme. Disponível em: <http://geradormemes.com/meme/4aj1mm>. Acesso em: 14 ago. 2017.



Data de Recebimento: 24/04/2017
Data de Aprovação: 21/08/2017

[3] Esse tipo de discurso não se restringe a Rondônia, mas inclui outros estados do Norte que sofrem o mesmo tipo de preconceito, como pudemos verificar em outras páginas da internet.

[4] Graças a essa contribuição, Dawkins é considerado o criador da Memética, o estudo formal dos memes (SOUZA, 2013).

[5] De acordo com Souza (2013, p. 129), no espaço discursivo da cibercultura, “[...] os usuários começaram a utilizar a palavra ‘meme’ para se referir a tudo que se propaga, ou mesmo se espalha aleatoriamente na Grande Rede – em especial – fragmentos com algum conteúdo humorístico.”

[6] São os Aikanã, Ajuru, Amondawa, Arara, Arikapu, Ariken, Aruá, Cinta Larga, Gavião, Jabuti, Kanoê, Karipuna, Karitiana, Kaxarari, Koiaiá, Kujubim, Makuráp, Mekén, Mutum, Nambikwara, Pakaanova, Paumelenho, Sakurabiat, Suruí, Tupari, Uru Eu Wau Wau, Urubu, Urupá. Alguns desses povos apresentam subgrupos.

[7] Nas palavras de Eni Orlandi (1983, p. 172), “a noção de recorte (que, como dissemos, desloca a de segmentação) é a operação que representa a maneira de instaurar a pertinência, a relevância. A relevância se faz no texto enquanto este é a unidade, a totalidade que organiza os recortes. Há, no texto enquanto totalidade, uma variação interna que se mostra em subunidades que são as sequências. Tanto a noção de tipo como a de relevância podem-se aplicar às sequências, importando, no entanto, como as sequências se organizam no todo do qual são partes” (o itálico é da autora). Em síntese, o recorte é concebido como unidade discursiva.