As possibilidades de fracasso do discurso de ódio.



Gabriela Agostinho Pereira[1]
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3343-0053
DOI: https://doi.org/10.20396/rua.v29i2.8675164

 

Abordar a temática do discurso de ódio não é tarefa simples, entre as inúmeras questões que surgem ao pensarmos a respeito do tema, talvez a mais complexa esteja nos limites entre o discurso de ódio e a liberdade de expressão. Como endereçar o discurso de ódio no sentido de enfraquecê-lo, sem abrir brechas e precedentes para possíveis censuras? Como preservar aqueles afetados pelo discurso de ódio sem limitar os discursos? É necessário limitar o discurso de ódio? Se o discurso de ódio faz alguma coisa, como faz e por que faz? Judith Butler busca responder essas questões em seu livro Excitable Speech: A Politics of the Performative, lançado em 1997 e traduzido para o português em 2021 com o título “Discurso de Ódio: Uma Política do Performativo”. Na obra, Butler (2021) reflete acerca dos possíveis efeitos do discurso de ódio e propõe caminhos de endereçamento da questão, defendendo a possibilidade dos sujeitos em se reapropriar dos discursos de ódio e subvertê-los, na medida que a construção dos sujeitos se dá pela linguagem e a linguagem pode ser vulnerável.

Para abordar a questão da vulnerabilidade da linguagem, Butler (2021) questiona qual seria a força exercida pelo enunciado no sujeito e como seria possível entender as falhas dessa força, ou seja, qual é a força das palavras que ferem e como é possível escapar-las? A autora resgata as concepções de atos de fala de J.L Austin, questionando o entendimento de que para saber a efetividade de um enunciado, seria necessário compreendê-lo na “situação de fala total”. Ao apresentar a divisão dos atos de fala entre ilocucionários e perlocucionários, onde “o ato de fala ilocucionário é, ele próprio, o feito que dele deriva; o perlocucionário somente leva a certos efeitos que não são a mesma coisa que o ato de fala em si” (BUTLER, 2021, p.14), a autora destaca a dificuldade em encontrar a “situação de fala total” até mesmo nos atos ilocucionários. Uma que vez esses atos fazem o que dizem no momento que dizem, encontrar sua situação total envolveria “um entendimento de como certas convenções são invocadas no momento do enunciado” (BUTLER, 2021, p.14), porém, a autora argumenta que o problema está justamente na dificuldade em identificar a concepção de “momento”, ou seja, a temporalidade dos atos de fala.

Butler (2021) destaca a característica ritualizada dos atos ilocucionários, característica esta já preconizada por Austin, afirmando que “como enunciados, funcionam na medida em que se apresentam como um ritual, ou seja, repetidos no tempo, e, consequentemente, na medida em que sua esfera de atuação não está restrita ao momento do enunciado em si” (2021, p.14). Se tais atos fazem o que dizem no momento do enunciado, esse momento não é apenas o momento em si, não é um momento único e isso se dá justamente devido sua característica ritualizada, uma vez que o momento “é uma historicidade condensada: ele excede a si mesmo em direção ao passado e ao futuro, é um efeito de invocações prévias e futuras que simultaneamente constituem a instância do enunciado e dela escapam.” (BUTLER, 2021, p.15). Com isso, Butler destaca a questão da temporalidade como parte constitutiva da dificuldade de avaliar os efeitos dos atos de fala com precisão, uma vez que os atos de fala não podem ser facilmente definidos por seus limites de tempo e espaço. Se os efeitos constituem a instância do enunciado e dela escapam, os efeitos dos atos de fala são imprevisíveis e essa imprevisibilidade os tornam vulneráveis na medida em que os efeitos do enunciado podem fracassar.

Dessa maneira, nem mesmo os atos de fala ilocucionários seriam capazes de fazer o que dizem quando dizem, pois há sempre uma brecha temporal entre aquilo que foi dito e seus efeitos, assim, todo discurso seria perlocucionário na medida em que levam a certos efeitos, mas não são o efeito em si. Butler sustenta a hipótese de que “o discurso está sempre, de alguma forma, fora do nosso controle” (2021, p. 34), até mesmo os discursos de ódio e, nesse sentido, é possível que os discursos de ódio não produzam os efeitos aos quais se propõe na medida em que estão sujeitos ao fracasso. Butler utiliza discursos de ameaças para exemplificar a capacidade de fracasso do discurso, argumentando que

 

A ameaça afirma a certeza iminente de outro ato futuro, mas a afirmação em si não pode produzir esse ato futuro como um de seus efeitos necessários. Esse fracasso em cumprir a ameaça não coloca em questão o estatuto do ato de fala como ameaça - apenas questiona sua efetividade. A pretensão que fortalece a ameaça, no entanto, é a de que o ato de fala que constitui a ameaça materializará completamente o ato ameaçado pelo discurso. Tal discurso é, portanto, vulnerável ao fracasso, e é essa vulnerabilidade que deve ser explorada para combater a ameaça. (BUTLER, 2021, p.28)

 

Defender que discursos violentos e de ódio podem não ter efetividade, ou em outras palavras, podem não fazer muita coisa, pode parecer em um primeiro momento uma ideia radical, afinal parece fundamental compreender que palavras fazem algo e que fazemos algo com as palavras, os discursos possuem funções ideológicas (BAKHTIN, 1988) e o poder está inscrito na linguagem (BARTHES, 1988). Porém, Butler (2021) faz uma inversão de lógicas já estabelecidas a respeito da linguagem nos levando a refletir sobre sua agência, sua vulnerabilidade e sobre novos caminhos de enfraquecimento do seu poder. Ao afirmar que os discursos de ódio podem não ter efetividade, Butler (2021) não defende necessariamente que esses discursos não possuem efeito algum, mas sim que eles podem não possuir efeitos na medida em que seria possível subvertê-los através da própria linguagem, na temporalidade circunscrita entre o dizer e o fazer.

É relevante a reflexão de que os discursos podem não ter efeito, pois nos ajuda a levantar discussões acerca das armadilhas relacionadas aos limites entre a liberdade de expressão e o discurso de ódio. Butler (2021) traz à tona o questionamento de quem deve interpretar o que as palavras e os discursos significam e o que eles performatizam, criticando a ideia de que esse poder de interpretação deva ser responsabilidade exclusiva do Estado, uma vez que pode abrir caminhos para que o Estado imponha a sua própria violência.

Em sua obra, Butler (2021) exemplifica a imposição do Estado em relação ao discurso de ódio através de decisões da Suprema Corte dos Estado Unidos feitas no sentido de privilegiar objetivos conservadores, ou seja, o Estado se apropria do conceito de discurso de ódio para limitar discursos políticos de ordem progressista que, por sua vez, já são limitados socialmente em razão do próprio discurso de ódio. Assim, delegar ao Estado o papel de definir o que é ou não um discurso de ódio, pode abrir brechas para que grupos políticos progressistas, por exemplo, sofram uma dupla violência: a primeira em razão dos discursos de ódio direcionados a eles; a segunda em razão das decisões dos tribunais que podem trabalhar no sentido de limitar os discursos desses grupos. Butler (2021) então propõe que o Estado produz discursos de ódio ao afirmar que o discurso de ódio “não é considerado odioso ou discriminatório até que um tribunal tenha decidido que ele é. Não existe discurso de ódio no sentido pleno do termo até que - e a menos que - um tribunal decida que é disso que se trata” (2021, p.162). Dessa maneira, a autora argumenta que esses discursos passam a existir quando o judiciário permite que existam.

Butler (2021) deixa claro que, apesar do judiciário produzir discursos de ódio através de suas sentenças, ele não causa os discursos de ódio, destacando a relação temporal entre o enunciado odioso, o enunciado da justiça que o define como odioso e a dependência entre ambos. A indissociabilidade entre o discurso de ódio e o discurso da justiça é para Butler (2021) um dos motivos pelo qual não devemos submeter o discurso de ódio a um tribunal, uma vez que é o tribunal que vai decidir se o discurso é odioso ou não, ou seja, a justiça terá o papel de selecionar os atos de fala que entrarão na categoria de discursos odiosos, “assim, essa categoria é uma norma legal a ser ampliada ou restringida pelo poder judiciário da maneira que este achar mais apropriada” (BUTLER, 2021, p.164). Sob essa perspectiva, as tentativas de enfraquecimento do poder do discurso de ódio que passam pela justiça precisam ser avaliadas cuidadosamente para que a seleção de enunciados considerados odiosos não acabe contribuindo para reproduzir e intensificar violências voltadas a grupos vulneráveis.

Adjudicar ao Estado o papel de selecionar e definir o que é um discurso odioso a fim de encontrar soluções para esse discurso é também assumir que o judiciário é neutro e essa assumpção parece um tanto quanto inocente. Porém, se a legislação não é o melhor caminho para endereçar a questão do discurso de ódio, o que pode ser feito para enfraquecê-lo? Como ele pode fracassar? Butler argumenta que

 

Quando a tarefa de reapropriação [do discurso de ódio], no entanto, é assumida dentro do domínio do discurso público protegido, suas consequências parecem mais promissoras e mais democráticas do que quando a tarefa de julgar a natureza da injúria causada pelo discurso é confiada à justiça. (BUTLER, 2021, p.170)

 

Portanto, seria possível diminuir a força do discurso odioso através das tentativas de inversão de seu significado e das maneiras de contestá-lo. Butler (2021) propõe que para reduzir os efeitos do discurso de ódio, é preciso subvertê-los dentro da temporalidade existente entre os atos de fala e os próprios efeitos, através de repetições que deslocam seu significado e que tornam possível sua inversão. Os discursos insurrecionários seriam a melhor resposta aos enunciados injuriosos. Porém, é preciso questionar qual seria a medida ideal em contextos nos quais não há a possibilidade de um contradiscurso por parte do sujeito a quem o discurso se dirige. Não obstante, é preciso refletir acerca de quais seriam os efeitos do discurso de ódio que de fato o torna bem sucedido uma vez que o discurso pode fracassar ao não fazer exatamente o que diz, mas ainda assim pode ter efeitos nocivos que resistem naquilo que não é enunciado, mas está no enunciado. Um discurso que diz que as mulheres merecem apanhar, por exemplo, pode não ser efetivo caso nenhuma mulher sofra agressão em razão desse discurso, mas possui outros efeitos nocivos na medida em que promove a ideia de que mulheres em geral são inferiores e assim, o discurso é bem sucedido do ponto de vista ontológico e da subjetividade dos sujeitos. O discurso pode fracassar por não conseguir fazer aquilo que se propõe, mas pode ser efetivo por ferir as subjetividades do sujeito e Butler (2021) não se debruça de maneira extensa a essa questão. Portanto, como esperar que os atingidos pelo discurso o subvertam para enfraquecê-lo ao mesmo tempo que o discurso os enfraquece em uma esfera ontológica?

Apesar de Butler (2021) reconhecer que em alguns casos a necessidade de regulamentação do discurso de ódio seja evidente, afirmando que não se opõe a todo tipo de regulamentação, ela não esclarece quais seriam as regulamentações que considera como necessárias, porém afirma que não acredita em regulamentações que atribuem uma característica ilocucionária ao discurso uma vez que essas medidas acabam utilizando a censura como solução. Para a autora,

 

Se admitirmos que o discurso de ódio é ilocucionário, nós aceitamos igualmente que as palavras causam danos imediata e automaticamente, que a cartografia social do poder é a sua causa e que não somos obrigados a precisar dos efeitos concretos que o discurso de ódio produz. O dizer não é ele próprio o fazer, mas pode levar ao fazer de um dano, e é isso que deve ser combatido. (BUTLER, 2021, p. 171)

 

Questionamos, então, quais seriam os efeitos “concretos”? De quais efeitos do discurso Butler está se referindo quando argumenta que esses efeitos podem não se concretizar? Por óbvio, ao propor a possibilidade de subversão do discurso de ódio por parte daqueles que por ele são atingidos, Butler (2021) fortalece a atuação política de grupos sociais vulneráveis e enfraquece o controle estatal, contribuindo muito para a discussão a respeito do tema e com propostas alternativas para o enfrentamento do discurso odiosos. É evidente a importância de encontrar maneiras de enfrentar o discurso de ódio sem a necessidade de dependermos exclusivamente da decisão estatal, porém é também necessário contar com o suporte de intervenções jurídicas para os casos onde não há a possibilidade de subversão.

Por fim, é importante destacar que em sua obra, Butler (2021) não faz referência ao discurso de ódio em ambientes midiatizados como os sites de redes sociais, uma vez que naquele momento não era necessariamente uma preocupação de seu tempo. Após mais de duas décadas do lançamento de seu livro, é válido refletirmos acerca das mudanças sociais e tecnológicas que ocorreram durante o período e os impactos que tiveram em relação aos discursos de ódio. Ainda que a capacidade de subversão do discurso de ódio seja uma alternativa importante e essencial para o seu enfraquecimento, e a concepção dos discursos como perlocucionários garanta mais chances de não sermos afetados pela censura, é importante refletir acerca de uma possível regulação a certos discursos uma vez que podem fracassar ao não fazer o que dizem, mas ainda assim podem ser bem sucedidos sob outros aspectos, especialmente em uma realidade midiatizada que conta com o suporte de plataformas de tecnologia para visibilizar e intensificar tais discursos.

Referências

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1988.

BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1988.

BUTLER, Judith. Discurso de ódio: uma política do performativo. Traduzido por Roberta Fabbri Viscardi. São Paulo: Editora Unesp, 2021.

                                                                                      


[1] Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da ESPM-SP, integrante do Grupo de Pesquisa em História, Comunicação e Consumo. E-mail: gaapereeira@gmail.com.