Entre o boi e o neon: identidades e identificações de gênero


resumo resumo

Rodrigo Souza Fontanini de Carvalho
Ricardo Gaiotto de Moraes



Apresentação

Este artigo[1] busca expressar, a partir de uma abordagem interdisciplinar, o resultado de cruzamentos de enunciados e teorias que, provindos de diversas áreas do conhecimento, tratam da performatividade e das representações de gênero no filme Boi Neon (2015), de Gabriel Mascaro. Seguindo um viés ensaístico, o texto propõe uma análise descritiva e interpretativa do filme, levando em consideração maneiras de ver, sentir, expressar e dar vida às identidades dos sujeitos-personagens, sobretudo do ponto de vista de suas relações culturais e de gênero.

A escolha do cinema como meio de análise deu-se por ser um dispositivo tecnológico capaz de abranger amplas interações culturais com o espectador, graças a seus múltiplos espaços interdiscursivos, abarcando, com eficiência, as questões multimodais da linguagem, no âmbito verbal e não verbal, servindo de produção de sentidos e de realidades diversas; da arte como uma poética que critica e confronta valores de sua época (rompendo paradigmas e reiterando outros); e da mídia como veículo de disseminação de enunciados e memórias sociais, indicando receptividade, aceitação e resistência do público.

A seleção do filme de longa-metragem Boi Neon foi feita devido a sua recente produção e notável visibilidade no cenário cinematográfico, o que o tornou alvo de inúmeras críticas e o fez alcançar grande público. Lançado em setembro de 2015 na Itália e em janeiro de 2016 no Brasil, foi o segundo filme de ficção dirigido e roteirizado pelo pernambucano Gabriel Mascaro. Boi Neon teve grandes participações em festivais de cinema e acumulou dezenas de prêmios, dentre eles o de melhor filme no Festival do Rio, Adelaine Film Festival, Warsaw Film Festival, Festival de Cartagena. O elenco é formado por Juliano Cazarré (que interpreta o protagonista Iremar), Maeve Jinkings (Galega), Alyne Santana (Cacá), Samya de Lavor (Geise), Vinícius de Oliveira (Júnior), Carlos Pessoa (Zé), Josinaldo Alves (Mário) e Abigail Pereira (Valquíria).

Em seu enredo, Boi Neon trata da vida do protagonista Iremar, um vaqueiro de curral – aquele que viaja pelo sertão preparando os bois das vaquejadas para entrarem na arena – cujo sonho é ser estilista de moda no polo de confecções do agreste. A personagem central encontra-se rodeada por outras figuras, como Zé e Júnior (parceiros de curral), Galega (dançarina e motorista de caminhão) e Cacá (filha de Galega), com as quais convive formando uma pequena comunidade.

Por abordar contextos relacionadas à vida cotidiana do nordestino brasileiro humilde e trabalhador, o filme proporciona reflexões acerca da formação das identidades das personagens da narrativa e de como essas identidades podem estar relacionadas à formação dos sujeitos contemporâneos, razão pela qual foi escolhido como corpus deste trabalho. Foram selecionadas cenas do filme que contivessem situações com potencial para discussão e análise da formação identitária das personagens e de seus laços sociais, ligando-os às questões de gênero social e de identidade cultural, a fim de compreender as relações e as práticas sociais que implicam a constituição do sujeito no discurso cinematográfico, bem como a maneira com que o filme rompe e reitera valores sociais presentes no imaginário coletivo.

Os temas centrais deste trabalho são as identidades cultural e de gênero, voltadas, particularmente, para a figura múltipla do protagonista Iremar e suas masculinidades, e as suas relações afetivas e familiares, que, em constante mudança com o tempo, renovam-se e adquirem diferentes significados e valores. Permeadas por seus sonhos, as personagens revelam a complexidade do sertanejo brasileiro contemporâneo e permitem a identificação (por semelhança e diferença) com o espectador e com outras culturas que, em evolução e transformação contínuas, envolvem relações humanas capazes de preservar e romper tradições e dicotomias – aspecto que dá motivação e sentido à produção deste texto, daí sua contribuição para as áreas de linguagem, mídia e arte.

Não foi intenção problematizar a questão da ficção como representação da realidade – até porque, ao longo do texto, admite-se o filme como um potencial produtor de realidades. As subjetividades das personagens presentes em Boi Neon são analisadas do ponto de vista de suas relações consigo mesmas e com o(s) outro(s), considerando-as sujeitos que se configuram a partir de um híbrido de identidades que podem romper dicotomias e ampliar as possibilidades de suas multiplicidades. Trata-se com grande destaque a questão das identidades de gênero, mais pontualmente das masculinidades, a partir das quais as personagens são capazes de reassumir e repetir suas subjetividades de diferentes modos.

O método de construção do texto e da análise do objeto de trabalho fez-se a partir de colagens, justaposições, torções de enunciados que não se prendem a um sistema cartesiano de pensamento, pelo contrário, possibilitam a constante (des)construção e (re)organização do conhecimento, desenvolvendo-o por outras perspectivas, permitindo a ele novos sentidos. Para isso, buscou-se suporte no conceito de rizoma, de Deleuze e Guattari (1995), a fim de criar um texto capaz de entrelaçar-se de modo a gerar ramificações horizontais (ora frutificadas, ora aéreas), conexões entre qualquer ponto do texto com outro, multiplicidades entre interpretações, movendo lugares, desconstruindo dicotomias, dinamizando relações, formando uma mescla de reflexões.

 

(Des)construindo identidades e identificações

Logo nas primeiras cenas de Boi Neon, o espectador presencia a representação de um evento comum no Nordeste brasileiro: a vaquejada. Dois homens, montados em seus cavalos, perseguem um boi solto na arena a fim de derrubá-lo dentro de uma faixa de areia demarcada por cal. Quando puxado pelo rabo, o animal é lançado ao chão com as patas para cima, enquanto os cavaleiros recebem aplausos da plateia. Nas cenas seguintes, em cortes repentinos, Iremar, figura masculina, aparece, primeiramente, em plano aberto, caminhando por um chão de terra repleto de restos de tecidos coloridos e pedaços de manequins; depois, em plano de conjunto, essa mesma figura mede, com uma fita métrica, a cintura de Galega, personagem feminina. Em outro momento do filme, ao escurecer do dia, o mesmo evento da vaquejada torna-se mais interessante: o boi, coberto por pó de tinta neon, é refletido por intensas luzes negras e se sobressai no centro da arena, proporcionando ao público um espetáculo repleto de cores e sons. Nos bastidores, homens ofuscados e silenciados pelo brilho dos holofotes transportam e cuidam dos gados, limpando-os, alimentando-os.

Essa sequência de cenas descrita revela um contexto do qual é parte o protagonista Iremar. Sua figura, porém, surge nos bastidores do palco da vaquejada, ora como curraleiro (aquele que prepara os gados antes de soltá-los na arena), ora como artista que mede silhuetas e cria roupas femininas. Junto com Zé – seu parceiro de curral –, Galega – dançarina e motorista – e Cacá – filha pequena de Galega –, formam uma pequena comunidade, uma família, unida pela afetividade e pelo sacrifício do trabalho. Durante suas viagens pelo sertão, seguindo as vaquejadas de cidade em cidade, dentro de um caminhão dirigido pela mãe de Cacá, Iremar desenvolve suas criações artísticas, desenha, recorta e costura modelos de roupas femininas com os tecidos que encontra pelo caminho.

A partir da trama criada pelo discurso cinematográfico, é possível analisar, na constituição das personagens e de seus conflitos, formas de identificação, reconstrução e preservação de valores sociais. Tomando como exemplo as performances de gênero que o filme recorta, é possível observar que o enredo se organiza a partir da tensão entre o espaço agreste, povoado com personagens que desempenham atividades ligadas ao trabalho manual, e a sensibilidade desses seres humanos com sonhos que parecem transbordar os limites da vida marcada pelo espaço e pelo trabalho. Como se desenvolverá ao longo deste ensaio, diante da paisagem do sertão nordestino, pode-se flagrar personagens que pintam novos tons vindos de seus sonhos e reconfiguram noções de identidades culturais e de gêneros sociais, a partir das quais é possível refletir sobre como tradições são reinterpretadas de maneira a quebrar e a perpetuar paradigmas sociais. São justamente esses questionamentos que interessam a este trabalho: Como se dá o processo de formação identitária do protagonista Iremar? Que formas de sexualidades e de masculinidades envolvem o protagonista? Como seu processo de (des)identificação se relaciona com o de outras personagens da narrativa? Como as personagens encaram suas identidades culturais e de gênero?

Para discorrer sobre os processos identitários em Boi Neon, parte-se da seguinte cena do filme: um cenário em plano aberto revela a imagem de um lixão ao ar livre. Ao fundo, um caminhão descarta sobras de tecidos variados. Iremar surge caminhando em meio aos restos com um pano umedecido recobrindo sua cabeça, na tentativa de protegê-lo da temperatura quente do lugar. Conforme anda, a personagem tem seus pés engolidos pelo chão meio seco e meio lamacento. Sua vestimenta confunde-se com a aridez acinzentada da paisagem, o que supõe uma relação de continuidade entre personagem e espaço. São do mesmo tom, formam identidades semelhantes. Mais ao fundo, o solo aparece coberto por retalhos coloridos, os quais Iremar se abaixa para pegar. Encontram-se, ainda, espalhados pelo cenário, pedaços de um manequim de plástico. O protagonista torna-se uma pequena parte naquele cenário que, superficialmente, aparece tingido pelas cores dos panos que lhe abrem um leque de possibilidades de escolha, mas que, por baixo, em sua origem e raiz, é duro e difícil de penetrar.

Iremar, confundido com o cenário, parece dele emergir. Nordestino e Nordeste são abordados imagética e discursivamente para mostrarem uma multiplicidade de identidades que se cruzam, (des)construindo estereótipos que, por sua vez, também são produtivos, concretos e se materializam ao serem subjetivados. Conforme expõe Albuquerque (2011), pensar na relação nordestino/Nordeste é um processo de reconstrução de um grupo de enunciados e imagens que se repetem em diferentes discursos, épocas, estilos, e não como uma homogeneidade. Segundo o estudioso, desde o final do século XIX, grandes mudanças econômicas decorrentes da intensa industrialização e da urbanização fizeram despontar no país um acentuado regionalismo que tratava de diferentes maneiras o desenvolvimento das regiões Norte/Nordeste e Centro-Sul. O receio pela perda de identidade da região Nordeste fez com que os discursos estereotipados e foco de preconceitos reorganizassem memórias (coletivas e individuais) capazes de ligar presente e passado, inventando tradições, daí a imagem tradicional dessa região voltada a um histórico rural, não modernizado, popular. Se, por um lado, a visão tradicionalista de artistas e intelectuais apoiava a busca por uma memória de origem que trouxesse visibilidade à região, lembrando do passado como forma de compreender o presente, por outro lado, permitiu pensar outras formações identitárias, novas imagens de práticas, culturas e histórias, ora remetendo ao tradicional, ao engessado, ora reinterpretando, recolocando valores. Assim, sob tal ponto de vista, deve-se pensar o Nordeste – espaço essencial do discurso de Boi Neon – como um potencial produtor de sentidos, de possibilidades que ressoam em todo o social, extrapolando fronteiras, sensibilizando e instaurando formas de ver e de significar.

Diante dessa visão de Nordeste/nordestino, pode-se pensar, analogamente, na imagem do protagonista do filme: Iremar é parte dos bastidores da vaquejada, pois limpa, penteia e conduz o gado, assemelhando-se à imagem de um trabalhador bruto, rústico, de expressão sisuda. Além disso, o ambiente quente em que se encontra, cercado de areia e dejetos, remonta à ideia de pobreza, sujeira, mal cheiro e desconforto. Animalizado e introspectivo em um território inóspito, percebe-se, porém, ao longo da narrativa, que o protagonista é um indivíduo complexo que busca, em seus sonhos, a delicadeza de ser um estilista de moda, de manipular não apenas o gado e a areia acinzentados de um espaço pouco modernizado, mas também de trabalhar com tecidos coloridos e extravagantes provindos de um ambiente industrializado e globalizado. Ele se coloca entre a masculinidade viril da arena e a sutileza de preparação do boi e de suas vestimentas, constituindo-se como um sujeito multifacetado.

Solitário na cena, Iremar parece isolado em seu desejo, pois, aparentemente, é o único que almeja um futuro diferente em meio a um ambiente hostil. No entanto, ele é apenas uma dentre as várias personagens da trama que, exercendo suas ações individualmente, buscam sonhos diversos. Conforme se desenvolve a narrativa, revelam-se outras formas de olhar, ler e interpretar objetos que soam familiares, como as relações sociais e de gênero, o trabalho, o convívio familiar, os desejos das personagens que criam um limite híbrido que está, ao mesmo tempo, dentro de uma memória coletiva – a qual as define como sertanejos rústicos, da atividade agropecuária – e fora dela – a sensibilidade, a delicadeza de lidar com outras realidades possíveis. As solidões, os desejos, as histórias, os atos, as ações de cada uma falam sobre uma identidade que se transmuta entre o coletivo e o individual. Exemplo disso é a personagem Cacá que, em sua condição de criança e mulher, embora participe do trabalho cotidiano dos vaqueiros – o que a faz reiterar as ações das personagens adultas, como uma perpetuação de um ritual fadado a repetir-se na história –, transpõe as fronteiras entre o cercado da arena dos gados (associado ao ambiente pequeno, limitado, que tradicionalmente remete ao doméstico, ao familiar) e seu desejo de ter a mesma liberdade que admira nos cavalos (associados à amplidão, à liberdade, ao contato com o outro). A garota constantemente desenha cavalos nas páginas de revistas de mulheres nuas (as mesmas em que Iremar risca seus croquis) e brinca com um pequeno cavalo alado e brilhante, que bate asas conforme o vento o atravessa e pisca em meio aos bois deitados entre cercas. Os cavalos de Cacá figuram sonhos que percorrem caminhos livres, porém limitados pelo território seco em que permanecem; os cavalos, em metáfora, parecem sobrevoar os gados aprisionados em sua dura realidade.

Para interpretar as múltiplas identidades presentes em Boi Neon, opta-se, primeiramente, por um diálogo com Deleuze e Guattari (1995) a respeito da noção de sujeito como dobra. Segundo os autores, os sujeitos configuram-se a partir de um híbrido que rompe dicotomias e os coloca no limite do entre, já que são parte de uma produção com sua exterioridade. A imagem da identidade é, ao mesmo tempo, o que está dentro em contato com o que está fora e vice-versa. Deleuze e Guattari substituem a lógica do isso ou aquilo pela do isso e aquilo, ampliando as possibilidades de multiplicidade do sujeito e dando espaço para suas identidades (no plural). Isso porque os sujeitos estabelecem um contínuo de conexões e processos, movimentos e descansos, capacidades de afetar e serem afetados. Interioridade e subjetividade são um (des)dobramento da exterioridade, em que, nessa relação entre interior-exterior, há decodificação, mistura entre o que é parte do território interno e parte do externo, criando uma outra fronteira, um deslocamento.

A fim de expandir essa imagem do sujeito que atravessa o outro (e é por ele também atravessado), que não se mantém estático e que se desdobra em suas relações heterogêneas, pode-se relacioná-la ao conceito de rizoma, também explorado por Deleuze e Guattari (1995). Segundo os autores, qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro, por isso, sob esse ponto de vista, as relações entre os sujeitos formam-se de maneira mais horizontal, não sendo possível identificar um eixo central, um início nem um fim, mas um meio que se conecta com um todo, que, como a dobra, forma um conjunto de fios que perpassam uns os outros, entrelaçando-se. Um rizoma não começa nem conclui, é um meio orientado por uma junção, uma adição que incrementa o ser, movendo identidades, destruindo dicotomias, dinamizando relações, criando lugares. É o meio, o entre que constituem e transformam as identidades dos sujeitos, dando-lhes múltiplas dimensões e desdobramentos resultados de conexões ampliadas, aumentadas, somadas. Essa multiplicidade definida pela mescla, pelo hibridismo, pela relação entre o estar dentro-fora das conexões é o que gera a ocupação de outro(s) espaço(s), outra(s) fronteira(s).

Pode-se entender como esses processos são construídos na narrativa de Boi Neon ao analisar o filme como um sistema de “colagem” de cenas, em que algumas delas sofrem cortes repentinos, mas são retomadas (sempre de maneira diferente, incrementada, ressignificada) ao longo da trama, o que permite pensar no filme como uma sequência justaposta que cria momentos de suspensão e de frutificação, proporcionando uma leitura rizomática a partir da qual não se estabelece começo nem fim, mas meio. Nesse sentido, a dobra de Iremar significa agrupar, agregar, compor, agenciar, romper com antigas dicotomias, incorporando-as e internalizando-as de maneira a modificarem limites e reconstruírem experiências, (re)criando outras delimitações, outros cenários que remetem à oposição interno-externo. Em vários momentos, Iremar aparece reconstruindo o manequim encontrado no lixão. A cada vez que a ação é retomada, é feita de maneira diferente: primeiramente, o objeto despedaçado, jogado ao chão, é recolhido pelo protagonista; depois, ele inicia um processo de (re)montagem da estrutura do manequim, acrescentando-lhe um suporte que o permite ter de volta uma função; finalmente, a estrutura é vestida e utilizada como modelo para que o protagonista desenvolva suas criações artísticas. Tem-se um manequim despedaçado, nu, deslocado de seu território original, que, nas mãos de Iremar, é recolocado, reestruturado, porém, não da mesma maneira, modificado, servindo como base para novas invenções do estilista.

Essa sequência de cenas, quando percebida pelo espectador perspicaz como um processo de continuidade, pode ser interpretada como uma metáfora da formação identitária do próprio Iremar: a cada experiência de vida, lugar por onde passa, forma de relação com as outras personagens, desejo que surge de tornar-se estilista internacional, o protagonista transpõe fronteiras e se (des)constrói como vaqueiro-estilista, nunca da mesma forma, mas mais complexo, agregado por outros significados. Suas identidades são, assim, redefinidas, desconstruindo espaços que permitem ampliar a visão sobre quem é, do que é capaz, o que pensa e diz, como se reconhece no mundo. É uma (con)fusão de fios que se entretecem e estão, ao mesmo tempo, por cima e por baixo, por dentro e por fora. Pensando na concepção de sujeito conforme Domènech et al. (2001), é um outro que, tendo sua subjetividade atravessada, impede uma identidade fechada. Ainda segundo o autor, admitir a imagem do sujeito em oposição com seu exterior é estabelecer uma análise parcial da realidade social, daí a função da dobra: deslocar os indivíduos para um universo de fluxos gerados entre órgãos e objetos, humanos e espaço, sujeitos e instituições.

Dentro desse processo de formação de identidades múltiplas, cabe interpretar o protagonista como um sujeito complexo, constituído de masculinidades. O uso plural do termo, segundo Zurian (2011), caracteriza as diversas construções de identidades assumidas pelos homens, ou seja, o questionamento do modelo heterossexual tradicional como forma de entender as possibilidades de transformações e as maneiras de ser do homem contemporâneo – discussão que teve início com o desenvolvimento dos estudos de gênero iniciados nos Estados Unidos, principalmente nos anos de 1950, embasados pelos movimentos feminista, de libertação gay e pelos estudos sobre homossexualidade. Não se pode citar, porém, a questão das masculinidades sem isolá-la de sua relação com as feminilidades, por isso, de acordo com o referido autor, é importante distinguir três conceitos básicos: sexo, que se refere a uma perspectiva biológica, a qual divide as funções masculinas e femininas do ponto de vista da formação genital; sexualidade, representada por um conjunto de práticas e desejos sexuais; gênero, o conjunto de valores, comportamentos e atitudes que cada cultura (pre)supõe aos indivíduos do sexo masculino e feminino, mas não limitado ao fator biológico. Isso significa que, uma vez culturais, as discussões de gênero incorporam visões sociais a respeito do que se diz ser a essência do homem e da mulher, interpretando-os como referência única e absoluta e, com isso, atribuindo ao homem normatividade.

Embora essa visão ainda seja uma cultura arraigada na maioria das sociedades alicerçadas sob ótica patriarcal, ela vem sendo desmitificada. De acordo com Zurian (2011), o masculino não é mais um conceito único e hermético, mas amplo, levando em conta as diferentes maneiras de ser e de sentir o mundo, isto é, as masculinidades. A dicotomia entre o homem e a mulher se reestrutura cada vez mais: ele não é apenas o sujeito viril, dominante, que ostenta o poder e não deve agir com emoção, passividade e hesitação; nem ela deve ser submissa, frágil, dependente. Não se trata de uma divisão entre o que pode ou não pode ser, mas entre o que pode e também pode não ser.

Ainda na visão do autor, com o passar dos tempos, as construções socioculturais e ideológicas moldaram o conceito do que é ser homem e mulher. Constantemente compreendidos como gêneros excludentes, opostos, acabam por incorporar valores distintos um do outro, os quais são perpetuados historicamente. Assim, o masculino impõe-se sobre as mulheres e a ordem heterossexual reprime quaisquer outras possibilidades que se afastem desse sistema normativo. O domínio e a exploração sofridos pelas mulheres por parte dos homens também os afetam, uma vez que lhes é fixado um conceito hermético de única masculinidade permissível, o que determina a heterossexualidade como padrão de relação entre os gêneros, o sexo e a sexualidade. A não aceitação do diferente é, com isso, reiterada ao conceito tradicional de homem, que passa a elegê-lo como representação máxima da masculinidade, do sentido de “macho”, da masculinidade hegemônica.

Sabendo que o gênero se constrói nas relações sociais e, consequentemente, de poder, as quais orientam o modo de atuar dos sujeitos, é necessário compreendê-las para que a normatividade e os modelos tradicionais excludentes libertem-se. Para Zurian (2015), cabe repensar os valores plurais que transformam e identificam o homem nos tempos atuais, aquele capaz de dilatar antigos valores e adquirir outros relacionados a uma masculinidade liberta do padrão heteronormativo. Tem-se, nesses termos, uma desconstrução da masculinidade como padrão único e um reconhecimento dos distintos modos de exercer práticas sociais.

Quando se faz referência às representações sociais e de gênero, deve-se pensar ainda na representação das mulheres, sua objetificação, sexualidade corporal, beleza e valores. É mais comum o discurso da representação dos homens e a constatação da sua dominação e de seu protagonismo com relação à mulher (ZURIAN, 2011). Pensando de maneira similar no aspecto da representatividade, Miskolci (2006) admite que, tradicionalmente, a subjetividade da mulher é construída para agradar a um outro, enquanto a do homem, para o domínio de si e do outro. Tal processo rotula a relação de oposição entre os gêneros e enquadra os sujeitos em formas corporais socialmente entendidas como masculinas ou femininas.

Há em Boi Neon vários exemplos das relações de gêneros. Um deles se refere aos múltiplos caminhos percorridos por Iremar, que apontam para as complexidades dos sujeitos contemporâneos de assumirem, simultaneamente, suas diversas posições sociais. Tradicionais e cristalizados modelos de identidades são reinventados, fazendo emergir outras culturas que, por sua vez, permitem novos e não experimentados laços com o outro. Pode-se considerar Iremar um protagonista multifacetado, uma vez que lhe é difícil demarcar ou enquadrar uma masculinidade apenas; não se trata de uma personagem linear, mas, sim, que apresenta identidades, permanecendo em uma zona híbrida, limítrofe, permeada por uma condição de tradição e seu rompimento. Iremar é vários, pois se constitui da soma de fragmentos históricos e sociais a ele associados – metaforicamente, os pedaços de tecidos que ele incorpora em sua caminhada pelo chão nordestino por onde passa –, não correspondendo às construções heteronormativas do heterossexual ou do homossexual. Revela-se, então, o quão complexa pode ser a trajetória desse sertanejo contemporâneo, questionando-se um universo em transformação e modernização no que diz respeito às discussões de gênero social e estereótipos masculino e feminino.

Outro exemplo depreendido do filme é o relacionamento entre Iremar e Galega: vivendo em um ambiente hostil, guiados, muitas vezes, pelo instinto desejante e quase animal em que se inserem, não se notam indícios de qualquer relação entre eles que não a amizade, o que, de certa forma, configura um aspecto de maior igualdade e horizontalidade entre ambos, e não de submissão. A inquestionável força física de Iremar – que sustenta a aparência de “macho” tradicional – mescla-se com a suavidade e a leveza de seu gosto pela moda feminina, ao passo que Galega, na sua sensualidade erótica de dançarina, detém o domínio das atividades e das ferramentas mecânicas utilizadas para a manutenção do caminhão – o que significa, ao mesmo tempo, cuidar dos afazeres domésticos, já que o veículo é também a casa onde habitam. Nesse contexto, estereótipos se reinventam, tanto na condição do homem do campo trabalhador, forte em sua aparência e que sonha com a moda, quanto na posição da mulher, que zela pela casa/caminhão e faz o trabalho mecânico.

Pode-se pensar que o homem (Iremar) se desloca nas/pelas suas masculinidades tal qual a mulher (Galega) se reinventa como sujeito, rompendo com os dualismos excludentes, redefinindo-se como aquela que cria significados de si mesma. Tal aspecto é semelhante à explicação de Tourraine (2004), segundo a qual o sujeito mulher passou de seu papel central de mera cidadã para trabalhadora com o decorrer dos tempos, mudança profunda que acarretou grande transformação de sua imagem. Para o sociólogo, o que está em jogo no movimento de mulheres é a possibilidade e a necessidade de pôr fim a um sistema polarizado no campo das relações de gênero, não apenas transformando ou substituindo o feminino pelo masculino. Tais polarizações, superadas no nível individual, constituem sujeitos inteligentes, sensíveis, que têm noção de suas heranças culturais e podem, a partir delas, reconstruir as partes do mundo na própria vida. O autor, exemplificando como essas dicotomias têm sido quebradas recentemente, cita a questão da transexualidade, que destrói a hegemonia da heteronormatividade e, consequentemente, do dualismo homem-mulher; cita, ainda, a fragilidade masculina ou aquilo considerado socialmente como “coisa de macho”, apontando que, por trás desse fenômeno, mesmo no nível mais simples, há um movimento forte que compreende tratar de avaliar-se a si mesmo como sujeito.

Fazendo relação com o filme Boi Neon, esses exemplos se concretizam em diversas cenas, como a que Iremar e Zé tentam entrar, de maneira escondida, em um evento onde ocorre um leilão de cavalos. Os dois buscam uma forma de ganhar dinheiro, recolhendo, na penumbra dos estábulos, sêmen de um cavalo de raça pura – provavelmente para vendê-lo posteriormente. Interessa, nessa tomada, saber que, para infiltrar-se nos bastidores do leilão, as personagens contam com a ajuda (que envolve, inclusive, suborno financeiro) de Valquíria, uma transexual que enfeita, penteia e arruma os cavalos que subirão ao palco do evento. Tem-se, na cena, a relativização de uma heteronormatividade dominante, posto que é ela que permite a entrada dos dois homens e que tem, com isso, controle sobre suas ações. Além do mais, a partir dos diálogos da cena, dá-se a entender que Iremar já a conhecia, tanto que se aproxima dela de maneira sedutora, envolvente, elogiando-a. Há relativização do paradigma do “homem macho” que assume interesse sexual por seu oposto, porém, nesse caso, expõe-se uma outra possibilidade de masculinidade, não a tradicional, a do entre. Valquíria, tal qual Iremar, apresenta-se como uma personagem híbrida na condição de cuidadora dos animais, vestindo-os de maneira extravagante, chamativa, espetaculosa, ao passo que permanece nos bastidores do evento, sem que sua imagem seja exposta ao público local. O entre é, então, o que constitui e transforma as identidades dos sujeitos, dando-lhe múltiplas dimensões e desdobramentos advindos de conexões cada vez mais amplas. Nesses desdobramentos, tanto Valquíria quanto Iremar revelam-se sujeitos complexos em suas trajetórias, pois questionam um universo em transformação e modernização no que diz respeito às discussões de gênero social e estereótipos masculino e feminino. Ambos passam a ser observados em suas performatividades, ela como uma transsexual caracterizada pelas diversas construções de identidades assumidas, questionando o modelo tradicional patriarcal, de heterossexualidade hegemônica, e ele como um modelo não normativizado, o qual entende as possibilidades de suas transformações e suas maneiras de ser. Buscando confrontar as expectativas de um público acostumado a padrões binários, sobretudo no âmbito da identificação de gênero, o filme reencena os modos do homem sertanejo, recolocando peças de um imaginário machista tradicional e, ao mesmo tempo, instaurando um arranjo pautado no entre, no reconhecimento da performatividade de gênero. Isso possibilita entender a reconstrução de uma forma outra de enfrentar os limites da sexualidade, um jeito de viver além das normas ligadas a uma tradição de gênero, pensando como as tradições culturais de um Nordeste atual, ainda machista, ressignificam de maneira a romper com ideias e reescrever outros rastros, a fim de jogar com a noção de criação imaginária que faz cineasta e espectador refletirem a respeito de uma memória apoiada no passado e que indaga o futuro.

Outro exemplo pode ser percebido na construção da imagem da personagem Geise. A vendedora de perfumes grávida e segurança de uma fábrica de tecidos, em uma de suas visitas ao grupo de curraleiros, sente-se atraída por Iremar e presenteia-o com um perfume, com o intuito de convidá-lo a uma visita em seu trabalho na fábrica durante a noite. Na porta da fábrica, os dois se reconhecem e conversam. No diálogo, ele questiona, de maneira irônica e jocosa, o traje da moça: um uniforme preto de segurança, boné, cabelos presos e uma arma posta na cintura. Ela retruca o comentário, dizendo que ele também não está se parecendo com um vaqueiro: bem vestido, perfumado, asseado, com calça e camiseta limpas. Além disso, ele não gosta de armas e ela, com um revólver preso à cintura, não tem medo de usá-las, está acostumada. Na penumbra, a moça permite que ele entre e desfrute da emoção de estar no local de seus sonhos. Dezenas de bancadas com máquinas de costura surgem em plano médio e deslumbram o protagonista. O formato fálico de carretéis rosa prenunciam subversivas relações de gênero. Um momento com pouca troca de palavras. Ela toma a iniciativa de beijá-lo. Despem-se e transam sobre a mesa de corte de tecidos. O sexo é explorado e dá continuidade ao subversivo. A câmera, em movimentos lentos, percorre, em plano médio, as personagens em seu ato sexual durante quase dez minutos de encenação, fazendo o espectador acompanhar a relação em sua duração quase real, o que se assemelha à dimensão do documentário (traço característico de obras anteriores do diretor), cujo sentido é criado pela disposição de uma câmera “indiscreta” que observa, na ficção, a intimidade das personagens.

Se, por um lado, isso parece incômodo por expor grande intimidade, por outro, dialoga com o jogo de revela/esconde que cria uma dimensão da corporalidade produzida tanto para construir a heterossexualidade de Iremar quanto para recriar a imagem da mulher atravessada pelos campos das masculinidades. Trata-se de uma segurança noturna de fábrica – posição social geralmente atribuída aos homens por conta da associação tradicional entre masculinidade e força física. Ademais, é ela que busca em Iremar o prazer, que toma frente das decisões, que age no jogo da conquista, sendo ele apenas guiado e seduzido, tornando-se quase um objeto sexual de desejo dela. É interessante, ainda, notar que ela está esperando um bebê e ele não é o pai da criança, portanto, a ideia de figura imaculada da grávida, presente no imaginário coletivo, é desconstruída e a personagem passa a despertar sensualidade. Os discursos (quase silenciosos, não fossem as respirações ofegantes) de ambos, reinterpretam esse imaginário, agregando a ele novos valores sociais. Relacionando a cena às palavras de Bessa (2007), um filme abre-se para a reconstrução de uma forma outra de enfrentar os limites da sexualidade, um jeito de viver além das normas ligadas a uma tradição de gênero. Semelhantemente, Miskolci e Pelúcio (2017) afirmam que há um impacto na forma como os sujeitos pensam a si mesmos, uma vez que são explorados novos horizontes que povoam, com imagens, os desejos, os sonhos e as realidades diversas que vão além daquelas imediatamente acessíveis (pelo espectador, no caso do filme). Isso significa que a produção fílmica possibilita uma abertura ao dizer dos espaços social e afetivo aos quais foram atribuídas características culturais estereotipadas, sexualizantes. Os discursos das personagens rompem com uma lógica identitária, uma expectativa nos moldes tradicionais e constroem sujeitos de múltiplas faces.

A quebra de paradigmas tradicionais, na visão de Miskolci (2006), pode levar a modificações que criam subjetividades e estilos de vida diversos, os quais, baseados em uma ética mais libertária, produzem novas formas de sociabilidade. Essa ideia parece ir ao encontro do que afirma Zurian (2011): tradicionalmente, o homem assumiu uma condição social associada à esfera do público (trabalho, política) e do poder, do profissional e do social, do centro familiar, da autonomia e da capacidade de decisão. Porém, mais recentemente, o homem contemporâneo tem abarcado qualquer âmbito de representação social, apresentando-se em outras esferas de caráter mais privado (historicamente atribuídas às mulheres), como na intimidade com os amigos e com a própria família, sendo mais vulneráveis e dependentes (inclusive das mulheres).

Nesse aspecto, em Boi Neon, observa-se uma fusão dos discursos de gênero social, rompendo com a dicotomia tradicional homem-mulher. Isso ressalta a visão de como o filme produz uma realidade que segue e rompe com bases da construção do imaginário social e, por isso mesmo, torna-se uma das principais ferramentas de mudança de mentalidade na construção de possíveis masculinidades. É uma arte que se propõe a desmontar, desconstruir mitos da masculinidade hegemônica e da heterossexualidade normativa, aquelas reguladas pelo machismo e pela centralização do “macho”, recolocando a posição do homem em uma realidade onde a mulher também é um sujeito ativo no âmbito pessoal, social, econômico, profissional, político, cultural e sexual. Exploram-se, com isso, temas a partir dos quais, no filme em análise, é possível pensar como as tradições culturais de um Nordeste atual, ainda machista, são ressignificadas de maneira a romper ideias – como a inversão dos papéis tradicionais de gênero social, até então baseados no patriarcado – e reescritas a partir de outros rastros, por vezes, apagados ou rememorados, fazendo cineasta e espectador refletirem a respeito de uma imagem que se apoia no passado e indaga o futuro.

Boi Neon, buscando confrontar as expectativas de um público acostumado a padrões binários de identificação de gênero, reencena os modos do homem sertanejo, recolocando peças de um imaginário machista tradicional; ao mesmo tempo, instaura um arranjo pautado na exaltação do entre-lugar e de reconhecimento da performatividade de gênero. Esses entre-lugares podem ser compreendidos, nos termos de Bhabha (1998), como aqueles que iniciam outros signos identitários, abrindo espaço para outras ideias de sociedade e outros modos de subjetivação. O entre não é o novo nem o antigo, é uma fusão em que não se retoma meramente o passado como causa social e o presente como ruptura ou vínculo, mas se renova o passado, reconfigurando-o como um entre-lugar, produzindo “figuras complexas de diferença e identidade, passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão” (BHABHA, 1998, p. 19), o que afasta qualquer noção de identidade original ou tradição (pré)concebida. Volta-se, aqui, à noção de delimitação híbrida entre grupo e indivíduo, condição que parece abranger a narrativa de Boi Neon, em que espaço, tempo e personagens mesclam-se, fazendo com que os sujeitos adquiram uma multiplicidade que se modifica e aumenta. Para Iremar, não importam os dualismos ou as dicotomias, pois suas identidades estão além disso: um vaqueiro que lida com os dejetos do gado e gosta de estar perfumado; um artista sonhador que desenha roupas, mas vive vestido com roupas velhas; um homem que convive em meio à terra do sertão e se importa com sua boa aparência. Um sujeito, portanto, que tem identidades somadas e não delimitadas.

Sob essa análise, o corpo é também um espaço que fala de maneira inteligível, acrescentando um sentido político ao filme e revelando a violência e o prazer que habitam o mesmo lugar. Isso é percebido em cenas do cotidiano das personagens, como o momento em que Iremar e outros vaqueiros banham-se. Na tomada, todos dividem o mesmo espaço, compartilham as mesmas bacias de água com que se lavam. O filme coloca em mesmo plano a imagem do homem ensaboando seu corpo robusto, musculoso, escultural, marcado por um peitoral grande e forte, de pernas definidas que insinuam seus membros viris e sexualidade exacerbada, e a imagem do homem em sua rotina, comum, que observa a nudez como algo banal, não sensualizado, sem conotação erótica. Deve-se perceber como essa cena se liga à imediatamente anterior, em que Iremar e outros dois vaqueiros conduzem o gado de maneira agressiva, utilizando pedaços de paus e levantando poeira ao ar. Há uma continuidade entre as cenas, embora justapostas com corte, que funde o homem selvagem, despreocupado de sua aparência física, com o sertanejo contemporâneo, sofisticado e moldado no cuidado com o próprio corpo.

O estereótipo do corpo é reiterado, transitando entre o vaqueiro rude e o estilista sensível, o comum em sua historicidade e o espetacular enquanto cultura de consumo. Os movimentos lentos da câmera e os planos gerais ou de conjunto que permeiam maior parte das cenas só ressaltam essa característica, impondo força, presença e resistência às personagens comuns e diferentes. O corpo que, despido, toma banho é o mesmo que se relaciona com outros, que deseja sexualmente e que sonha. Trata-se de uma recolocação do masculino patriarcal em contato com outros fatores que ampliam suas identidades, possibilitando que ele seja plural e contemple semelhanças e diferenças de outros modelos de masculinidade, próprios de outras culturas e sociedades, abandonando a representação que põe o masculino e o humano no mesmo plano. Os corpos, fazendo referência a Pinto (2016), agem e alteram-se em suas relações com o espaço e o tempo, modificando sua significação, seus discursos, sua historicidade com passado, presente e futuro constitutivos.

Há ainda outras personagens possíveis de serem exploradas sob esse ponto vista e com as quais Iremar se relaciona ao longo da narrativa, o que permite pensar que o protagonista é apenas uma das possibilidades de subversão do hegemônico. Exemplo disso é a imagem de Júnior, jovem vaqueiro de curral contratado para substituir o antigo curraleiro Zé. A figura, de início, não é bem recebida por Iremar, que o trata de maneira ríspida, desprezada. No entanto, percebem-se outras formas de identificação da nova personagem e de sua corporalidade: característica peculiar e incomum naquele ambiente hostil, Júnior preocupa-se excessivamente com o corpo, principalmente com o cuidado dos longos cabelos. Há uma cena em que Júnior penteia-os e alisa-os em frente ao espelho, enquanto convive com os gados, mais ao fundo, dividindo o mesmo espaço. Aos poucos, o que parecia estranho a um cuidador de gado transforma-se também em desejo, afinal, o que diferencia também gera identificação. Galega logo se vê atraída por Júnior, a ponto de essa relação de admiração culminar em um ato sexual em meio aos animais do curral. O corpo de Júnior torna-se, nesse contexto, um entre-lugar que rompe com a visão física e estereotipada do vaqueiro rústico. Ele é um sujeito envolvido em um processo de devir a partir do qual é possível reassumir e repetir sua subjetividade de diferentes formas. Tanto quanto Iremar, ele é um sujeito liberal e multifacetado: o vaqueiro selvagem dialogando com o homem sensível, vaidoso; a continuidade entre a livre circulação do campo, da agricultura, do dividir espaço com animais (e a consequente animalização do ser humano) e a da cidade, da industrialização, do equipamento elétrico que a personagem utiliza para alisar seus cabelos.

Outro exemplo de reconfiguração das relações entre as personagens é a noção de família ilustrada em Boi Neon. Embora Iremar seja protagonista do filme, ele é parte de um agrupamento de sujeitos que também deve ser analisado em sua totalidade, como uma família. Isso significa que sua figura é construída, em parte, na relação com aqueles que o acompanham, ou seja, seu grupo familiar, de convivência – assim denominado considerando que os integrantes estabelecem relações afetivas dentro de um mesmo espaço, compartilhando valores e criando identificações. É uma família, no entanto, cujos papéis sociais não são bem definidos, como o são em um padrão tradicional pais-filhos. Tem-se uma estrutura com imperfeições – os momentos de briga entre Galega e Cacá; com ausências – a falta do pai da criança; com substituições – Iremar é a figura masculina que, em certos momentos, assume função de cuidador, em quem a menina se espelha, ainda que nada disso seja pretensão dele; com modificações – o vaqueiro Zé que deixa o grupo e tem seu lugar assumido por Júnior; e com movimentações – literalmente na estrada, dentro de um caminhão, ou na constante troca de posição social entre as personagens. Pode-se dizer uma família rizomática, como tantas outras contemporâneas, sem estrutura fixa, que se estabelece a partir de laços afetivos únicos, inigualáveis e modificados com o tempo.

Exemplo disso é a cena em que Iremar aparece ao lado de Cacá, escrevendo em um caderno e conversando com a garota, o que remete à imagem do pai que lê e ensina para a criança à noite antes de dormir. Em outro momento, sentado em chão de terra, Cacá aprecia Iremar, com suas ferramentas, serrando e reconstruindo o manequim encontrado. Retoma-se a figura paterna que transmite conhecimentos práticos ao filho, ensinando-lhe ações e habilidades que fazem parte de seu cotidiano. Ainda na mesma cena, o laço afetivo é ressaltado quando Cacá pede um abraço a Iremar, produzindo um discurso de vínculo amoroso. Em outro momento, Iremar fica bravo com Cacá – e dá-lhe uma bronca – por ela desenhar e rabiscar silhuetas de cavalos nas revistas que ele costuma usar para rascunhar suas criações artísticas. Em todos esses casos, tem-se a imagem do autoritarismo, fruto do jogo de poder, da subordinação, da repressão que o mais velho, tido como mais responsável, exerce sobre o outro mais novo, seja ensinando ou repreendendo a criança em seus atos, isto é, repassando os valores e a ética daquela (micro)sociedade. Nessas tomadas, nota-se que a relação entre os dois, no entanto, não é fraterna – o que já é, por si só, um rompimento de uma tradição que atribui ao pai tais cuidados, afinal não cabe a Iremar tais responsabilidades –, mas retoma um jogo de poder baseado no domínio do mais experiente (aquele que carrega a sabedoria) e da própria figura do homem detentor do domínio da situação, já que o protagonista representa socialmente a desigualdade nas relações de gênero e de poder dentro do próprio ambiente familiar.

Nesse sentido, o conceito de família é expandido e afrouxado, assemelhando-se mais a uma comunidade unida por laços afetivos historicamente construídos, com os quais as personagens aprenderam a conviver. Tem-se uma instituição familiar no âmbito das relações afetivas, da demarcação de alguns papéis e de posições e funções a serem exercidas. Porém, a todo momento, essas condições ora retomam o padrão heteronormativo, patriarcal, tradicional, ora fogem dele, revertendo valores e assumindo outros. Essa construção familiar, por vezes subversiva, evidenciada no filme não é, no entanto, um modelo raro na sociedade atual. Trata-se de um agrupamento de laços afetivos e sociais que congraçam, compartilham um mesmo espaço e, com isso, rompem com a noção da estereotipada instituição familiar mãe-pai-filhos. Isso ocorre, por exemplo, com Galega, ao assumir a posição de dona e condutora do caminhão – função que, no imaginário heteronormativo, é  relacionada ao homem, associando-se à imagem de que ela é capaz de levar as outras personagens centrais ao contato com outros territórios e, consequentemente, com a busca de seus possíveis sonhos. Ela ainda colabora sendo modelo das criações artísticas de Iremar e, ao mesmo tempo, faz uso dessas criações para conquistar seu sonho de ser vedete. Em Galega também está centrada a posição tradicional de mulher que cuida da cozinha, da comida e das atividades que envolvem os afazeres domésticos, como servir as refeições e lavar a louça – por vezes sendo ajudada por Cacá, igualmente representada na figura de uma mulher. Além disso, os jogos de poder entre masculino e feminino e de afetividade podem ser percebidos na relação entre Galega e Júnior, quando se revelam desejados sexualmente um pelo outro, conforme exposto.

Tal ideia relaciona-se ao conceito de rizoma, uma vez que os relacionamentos se cruzam – ainda que rapidamente ou de maneira fluida, podendo se perder (como no caso da personagem Zé, que deixa o grupo) – gerando relações diversas entre os integrantes, em um processo de rompimento das funções tradicionais e de volta a um padrão, ainda que incomum, de divisão de papéis exercidos. A falta da família tradicional, com funções de pais e filhos instituídos, afeta ainda a questão do gênero social, ou seja, do papel dos pais como aspecto fulcral para a formatação da sexualidade dos filhos, contribuindo para o fato de que se combinem sexualidades renovadas, limítrofes, híbridas (como as de Iremar e Júnior). A relação entre Cacá e as outras personagens – sobretudo o protagonista –, nesse sentido, explora o fato de ela ser uma menina que frequenta um ambiente infantil diferente do esperado pelo espectador, uma vez que ela pode não se tornar uma mulher formatada nos moldes da feminilidade normativizada. Isso significa que, tradicionalmente, caberia a Cacá aprender a cuidar dos afazeres de casa (cozinhar, lavar, limpar), brincar com bonecas ou utensílios que simulassem aparelhos domésticos e frequentar uma escola ou ambiente de estudo próprio de uma educação formal, o que não acontece, já que a menina gosta de estar ao lado dos cavalos e, por vezes, passa a noite sozinha apreciando, escondida, os animais que, para ela, significam liberdade, coragem, vitalidade. Enquanto eles correm soltos nos campos, ela sonha, ainda que sua mãe insista em dizer-lhe que nunca poderá ter um, pois vaquejada não é lugar para menina pequena.

O cineasta parece, com isso, criar uma viagem narrativa através dos olhos da câmera, pareando sociedades, economias, políticas e culturas diversas, sejam próximas e distantes, presentes e passadas, e imaginando, por meio de suas personagens, formas de identificação e de ser, a fim de criticar, confrontar e criar realidades capazes de reconstruir e preservar valores. Exploram-se, então, cenas que se aproximam do cotidiano do espectador, trabalhando temas como sexualidades e identidades, sem grandes acontecimentos ao longo da trama. Até mesmo os desejos e sonhos do protagonista permanecem suspensos ao final: Iremar não consegue largar a vida de vaqueiro de curral para viver da moda. Há, portanto, fragmentos de momentos da vida corriqueira de personagens que tentam simplesmente sobreviver no mundo, e esse já é o conflito central.

Graças a seu caráter artístico, Boi Neon expressa um meio de produção de enunciados que, coexistindo em um mesmo espaço (o próprio cinema), resistem ao tempo e se ressignificam. Sendo o filme um produtor de diversas leituras e interpretações, não deve ser entendido hermeticamente, mas como uma narrativa em constante processo de construção e desconstrução dos enunciados. Pela imagem de Iremar, é possível perceber que as personagens não se reduzem ao trabalhador rústico, introspectivo em seu território, mas são sujeitos complexos mesclados à delicadeza de seus sonhos. O discurso produzido pelo filme reitera conexões que evidenciam e fundamentam momentos históricos tanto da produção quanto da exploração dos sentidos da trama por parte do espectador, fazendo compreender o funcionamento do que pode ser o discurso do filme, suas estratégias e sua linguagem, a fim de criar sentidos diversos que se abram a diferentes formas de pensamento, revisitando antigos e atuais valores e revelando limites e possibilidades que não funcionam como um sistema excludente, mas vão além das relações dicotômicas do certo ou errado, do isso ou aquilo, pois as identidades são múltiplas e formadas por uma adição de experiências, contatos, tempos, espaços.

O filme é capaz de criar personagens que pensam seus próprios processos de formação em relação a outras, dando oportunidade a múltiplas identidades e resultando em um híbrido que rompe dicotomias e as colocam no limite do entre, tornando-as parte de uma produção com sua exterioridade. É na relação com o processo de formação de identidades múltiplas que o protagonista do filme pode ser analisado como um sujeito complexo em sua trajetória de sertanejo, que questiona um universo em transformação no que diz respeito às discussões de gênero social e estereótipos masculino e feminino. Percebe-se, pela imagem de Iremar, que as personagens não se reduzem ao trabalhado rústico, mas são indivíduos complexos mesclados à delicadeza de seus sonhos. Iremar deve, então, ser observado em suas masculinidades – conforme já explicado, segundo Zurian (2011) –, cujo uso do termo no plural caracteriza as diversas construções de identidades assumidas pelos homens contemporâneos, que questionam o modelo tradicional patriarcal – aquele que impõe uma hegemonia branca e heterossexual –, ou seja, em suas diversas construções de identidades como homem contemporâneo, que ora escapa ora reitera um modelo tradicional e socialmente normativizado como forma de entender as possibilidades de suas transformações e suas maneiras de ser.

O discurso fílmico produzido ressalta, ainda, conexões que evidenciam e fundamentam os momentos históricos tanto da produção quanto da exploração dos sentidos da trama por parte do espectador, fazendo compreender o funcionamento do que pode ser o discurso do filme, suas estratégias e sua linguagem, a fim de criar sentidos diversos que se abrem a diferentes formas de pensamento, revisitando antigos e atuais valores. Dessa forma, Boi Neon dialoga não apenas com o contexto local do sertanejo agreste, mas com outras culturas que lidam com os processos de formação de identidades e de relações humanas, já que remonta mundos possíveis dentro dos quais as personagens aproximam-se do dia a dia de espectadores reais, funcionando como uma produção que preserva e rompe suas tradições e dicotomias, recolocando grupos socialmente desfavorecidos por suas raízes históricas (como o Nordeste pobre, difícil e machista) em um campo cultural e intelectual (o cinema político, engajado), fazendo com que memórias sejam reescritas e recontextualizadas em diferentes perspectivas, passando a um circuito de maior visibilidade e reconhecimento do público. Com isso, o filme é capaz de criar a identidade de uma cultura local que pensa seus próprios processos de formação em relação a outras, abrindo-se para novas culturas e dando oportunidade a múltiplas identidades.

Nesse sentido, Boi Neon, buscando confrontar as expectativas de um público muitas vezes acostumado a padrões binários, sobretudo no âmbito da identificação de gênero, pode reencenar os modos do homem sertanejo, recolocando peças de um imaginário machista tradicional e, ao mesmo tempo, instaurando um arranjo pautado no reconhecimento da performatividade de gênero, a fim de compreender como os sujeitos configuram-se em um híbrido que rompe dicotomias e os coloca no limite, na fronteira, tornando-os parte de uma produção com sua exterioridade. Isso possibilita refletir sobre a reconstrução de uma forma outra de enfrentar os limites da sexualidade, um jeito de viver além das normas ligadas a uma tradição de gênero, e sobre como as tradições culturais de um Nordeste atual, ainda machista, ressignificam de maneira a romper com ideias e reescrever outros rastros que jogam com a noção de criação imaginária, fazendo cineasta e espectador refletirem a respeito de uma memória apoiada no passado e que indaga o futuro.

 

Bibliografia

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Filmografia

BOI neon. Direção: Gabriel Mascaro. Fotografia: Diego Garcia. Imovision, 2015. Versão AppleTV (103 min).

 

 


Data de Recebimento: 28/03/2018
Data de Aprovação: 12/09/2018

 

 

[1] Artigo desenvolvido a partir de capítulo de dissertação de mestrado intitulada “Entre o Boi e o Neon: Fragmentos de memórias, identidades, imagens e sons no filme de Gabriel Mascaro”, financiada pela CAPES, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Linguagens, Mídia e Arte (PPG-LIMIAR) da Pontifícia Universidade Católica de Campinas.