A imagem da Barra, em Salvador, entre os séculos XVI e XXI


resumo resumo

Márcia Maria Couto Mello
Luan Britto Azevedo
Lays Britto Azevedo



A imagem da cidade

Este artigo foi desenvolvido a partir de um levantamento bibliográfico, visando obter dados que permitissem historiar o processo de evolução urbana da área da Barra e, em paralelo, encontrar aporte teórico que possibilitasse uma leitura iconográfica das imagens que dali se constroem a partir das arquiteturas. Também foi realizada uma pesquisa de campo para auxiliar na percepção sobre o uso e a apropriação daquele espaço, e para que imagens atuais pudessem ser fotograficamente capturadas, sob ângulos e vertentes semelhantes às imagens do século passado, as quais foram selecionadas em acervos pessoais de colecionadores. Por conseguinte, a análise do material coletado se fundamentou em conceitos engendrados sobre a imagem da cidade, além da própria visibilidade.

A imagem, dentro do contexto urbano e social, pode ser entendida como uma atmosfera criada, intencionalmente ou não, com a capacidade de impregnar o imaginário coletivo através de um conjunto de códigos que evocam uma ideia específica ao se pensar num objeto. Segundo Ferrara (2000, p. 11), “a percepção da imagem da cidade é um elemento indispensável à produção da identidade e à compreensão dos significados urbanos”.

Enquanto Pesavento (1999, p. 16) argumenta que “a imagem da cidade é a própria identificação do espaço urbano, compreendido como um todo na sua materialidade imagética”, para Lynch (1999, p. 9), a “imagem ambiental da cidade pode ser decomposta em: identidade, estrutura e significado”. Com base nesses argumentos, entende-se que a imagem da cidade transcende as possibilidades de identificação estrutural e espacial para representar simbolicamente territórios onde as arquiteturas se inserem e as urbanidades acontecem.

A imagem que se constrói sobre um lugar está intimamente ligada à simbologia dos elementos que ela possa retratar (LYNCH, 1999; PESAVENTO, 1999; FERRARA, 2000; MELLO, 2004). Enquanto um sistema semiológico, a arquitetura comunica tanto pela expressão, quanto pelo conteúdo e os objetos arquitetônicos são elementos significantes que simbolizam significados passíveis de decodificação através da funcionalidade (ECO 1974; MELLO, 2004).

De acordo com Mello (2011 e 2004, p. 45-9), a imagem que se captura de uma cidade se dá entre perceptos e afectos, pois ela é “uma representação resultante de todas as experiências, impressões, posições e sentimentos que as pessoas têm em relação a um determinado espaço”. Entretanto, a leitura de um espaço urbano, feita a partir do conjunto representado nas imagens dos componentes da paisagem, precisa ser analisada de forma ampla e múltipla, levando-se sempre em consideração as relações históricas, iconológicas e contextuais que as justifiquem, pois o que interessa para a interpretação de uma imagem urbana ultrapassa a sua condição formal.

É necessário entender por que algumas partes da cidade, assim como partes de um organismo vivo, são mais privilegiadas que outras. Para tal, a arquitetura se mostra um aspecto importante para indicar as necessidades que foram priorizadas, algumas vezes seguindo modas e tendências de um determinado período, ou até mesmo atendendo a ideais que são nacionalmente cultivados. A escala de análise da arquitetura de um lugar vai desde o micro, pessoas e suas necessidades, até o macro, todo o contexto urbano no qual se insere (MELLO, 2004).

A cidade de Salvador é dotada de geografias, arquiteturas e espaços urbanos de indiscutível potencial imagético, o que pode ser percebido na zona da Barra, particularmente nos trechos da Avenida Sete de Setembro e da Avenida Oceânica, em iconografias capturadas ao longo dos séculos – fator que confirma a escolha do recorte espaço-temporal desta pesquisa.

 

A Barra, em Salvador

Com o nome de São Salvador, a primeira capital do Brasil foi fundada em 1549, por decreto de D. João III, rei de Portugal. O ponto de chegada da esquadra portuguesa que trazia Thomé de Souza, o primeiro governador-geral do Brasil, foi a Ponta do Padrão, atual praia do Porto da Barra, onde, em 1952, foi erguido o Marco de Fundação da Cidade do Salvador (figura 1).


Figura 1: Marco de Fundação da Cidade de São Salvador, inaugurado em 1952

Fonte: http://bahia.ba/salvador/mais-cinco-monumentos-serao-reconhecidos-como-patrimonio-historico/ (04/10/18)

Porém, antes mesmo da sua fundação, na cidade já haviam se estabelecido alguns europeus, dos quais, alguns conviviam com as tribos indígenas tupis (Tupinambás e Tupiniquins) na zona identificada atualmente como orla da Barra. Segundo Moureau (2011), naquela área habitava uma comunidade indígena em cerca de 300 cabanas, dispersas entre a Ponta do Padrão e a enseada.

Com a chegada de Thomé de Sousa, na cidade foram construídas arquiteturas militares e definiu-se uma organização política, dando início, de fato, à cidade de São Salvador da Baía de Todos os Santos (MOUREAU, 2011). Entre os séculos XVII e XVIII, da Ponta do Padrão à enseada foram edificadas arquiteturas que ainda hoje representam iconograficamente a Barra e até mesmo a cidade de Salvador, a exemplo do Forte de Santo Antônio da Barra (onde mais tarde foi construído um farol), o Forte de Santa Maria e o Forte de São Diogo (visualizado ao fundo da imagem na figura 1).

Contudo, apesar do desembarque e do marco oficial de fundação erguido nas areias da praia do Porto da Barra, a implantação da cidade de Salvador ocorreu, ainda no século XVI, na atual zona portuária, por questões estratégicas de segurança, onde uma acentuada escarpa que divide a cidade em dois planos favorecia a defesa contra invasores estrangeiros e índios não catequizados (PINHEIRO, 2002). Considerada como um dos limites ao sul da cidade devido à sua situação geográfica, a Barra foi ocupada em 1534 pelo donatário da capitania hereditária da Baía de Todos os Santos, Francisco Pereira Coutinho, e permaneceu até meados de 1860, como um espaço preenchido por roças, sítios e chácaras, com o solo “todo coberto de verdura e casas de campo” (TOLLENARE, 1956 apud HOLTHE, 2002, p. 36).

Conforme se observa na fotografia que ilustra o cartão-postal intitulado pelo editor como Quintas da Barra (figura 2), veiculado na década de 1910, apesar da arquitetura que destaca o farol e a Villa do Pereira, a paisagem da Barra permaneceu imageticamente semelhante entre os anos de 1860 e o início do século XX.

 

Figura 2: cartão postal – Quintas da Barra, anos de 1910

Fonte: acervo dos autores

 

No início do século XX, o governo de José Joaquim Seabra buscava, por meio das reformas de modernização da cidade, retomar a importância de Salvador com relação às atividades portuárias, além de atrair e incentivar as indústrias e o comércio. As intervenções objetivavam expandir a cidade, solucionar os problemas de saneamento e alargar as vias centrais, em primeiro plano, mas tinham como outro ideal embelezar a cidade nos moldes parisienses, seguindo o modelo haussmaniano (MELLO, 2004).

No processo de modernização foi incluído o aterro de grandes áreas na Cidade Baixa e uma nova reconfiguração espacial também direcionou o crescimento da cidade para a zona da Barra, que se converteu de um espaço caracterizado por quintais e casas veraneio a um requisitado espaço residencial da elite baiana. Nas primeiras décadas do século XX, a imagem da Barra sofria modificações a partir das novas arquiteturas que se edificavam em terrenos mais amplos, o que possibilitava iluminação e ventilação aos ambientes internos das casas que podem ser observadas nas figuras 3, 9 e 15.


 

 

 

Figura 3: cartão postal do Porto da Barra, primeiras décadas do século XX

Fonte: acervo dos autores

Dava-se início ao processo de urbanização na Barra, já reconhecida desde aquela época como um importante espaço soteropolitano. Grandes investimentos foram feitos para a ampliação das principais vias de acesso – a Avenida Sete de Setembro (interligando a Barra ao Centro) e a Avenida Oceânica (ligando a Barra ao Rio Vermelho, fotografada em visadas opostas nas figuras 3 e 4).

 

Figura 4: obras na Avenida Oceânica, Barra-Rio Vermelho, primeiras décadas do século XX

Fonte: acervo dos autores

 

Conforme registrou Mello (2004), além da execução das obras, era intenção divulgar o processo de modernização que construía uma nova imagem afrancesada para a cidade que seria divulgada para o mundo como up-to-date, em cartões postais. Isso justifica as inúmeras imagens fotográficas que ilustram os cartões postais com cenas de execução das melhorias que estavam sendo feitas em toda a cidade, incluindo as várias etapas das grandiosas obras que envolviam técnicas construtivas modernas para implementar e adequar novas vias de acesso a Barra à topografia da cidade (figura 4).

Após os investimentos em infraestrutura, deflagrou-se uma nova imagem para a Barra devido à pavimentação das vias com calçadas alargadas e à instalação de equipamentos e mobiliários urbanos (MELLO, 2004). Em meados do século XX, disputando espaços entre as antigas residências, surgiam arquiteturas modernas despertando o interesse de novos moradores e transeuntes que buscavam novos espaços públicos de lazer (figura 10).

A partir da década de 1960, algumas arquiteturas foram adaptadas ou edificadas para a instalação de estabelecimentos isolados e pequenas galerias, voltados ao comércio e aos serviços de produtos elitizados, contribuindo para que Barra se tornasse um microterritório de moda em Salvador. Mais uma mudança ocorria na sua imagem, provocada pelas arquiteturas e pelos modos de se conviver com aquele espaço, que passava a ser movimentado por hotéis, restaurantes, bares, clubes, discotecas e butiques. Nos anos de 1980 foi inaugurado o Shopping Barra, que na época era o segundo maior shopping center da cidade, inserindo novos comércios, serviços e espaços de lazer semi-privados, aumentando significantemente o fluxo de transeuntes e veículos pelas ruas da Barra e valorizando os imóveis localizados em seu entorno.

No século XXI, além da implantação de arquiteturas multifuncionais com apart-hoteis, flats e hostels, a Barra passou por um grande processo de transformação do seu espaço urbano. Em 2013, a Prefeitura Municipal de Salvador, sob a gestão de Antonio Carlos Magalhães Neto, lançou o Projeto de Requalificação da Orla da Barra (figuras 5 e 6) – uma intervenção concluída em 2014, que incluiu uma nova dinâmica de circulação: a proibição do trânsito de automóveis nas vias principais e a construção de novas calçadas, vias compartilhadas, ciclovias, áreas de esportes, novas praças e restaurantes funcionando em espaços comuns.


Figuras 5 e 6: imagens virtuais do Projeto de Requalificação da Orla da Barra (Avenidas Sete de Setembro e Oceânica, respectivamente)

Fonte: http://atarde.uol.com.br/bahia/salvador/noticias/1527396-revitalizacao-da-barra-consome-45-do-valor-destinado-a-orla (25/09/18)

 

A partir das novas formas de uso e apropriação do solo, como consequência inevitável da intervenção supracitada, a imagem da Barra, mais uma vez, sofreu alterações significativas, contudo, cabe comentar que não se observam críticas positivas sobre as mudanças que de fato ali se efetivaram. De acordo com Andrade (2016, p. 9)


 


Desde a divulgação das imagens da intervenção, o projeto foi objeto intenso de críticas, principalmente no que diz respeito (mais uma vez) à ausência de participação da população em seu processo de elaboração. Somente quando as obras já estavam em andamento, e já sob o impacto das mudanças, os moradores e comerciantes, por meio de suas associações, conseguiram estabelecer o diálogo diretamente com os agentes envolvidos, discutindo principalmente as alterações no trânsito e suas consequências, que já vinham ocorrendo. Mais de um ano após a conclusão das obras, as críticas à intervenção ainda encontraram espaço nas redes sociais, revelando o incômodo trazido pelas mudanças, especialmente no que diz respeito aos aspectos de uso e apropriação dos espaços do bairro.


 

Ainda conforme Andrade (2016), esse dispendioso projeto visava a construção de uma nova imagem, que fosse estratégica na inserção de Salvador no panorama mundial de cidades turísticas e culturais. Todavia, as percepções e as informações obtidas in loco para complementar este estudo confirmaram que imagem da Barra continua pontuada pelas suas arquiteturas militares do século XVII. Ao se analisar a sua imagem atual, entende-se que a arquitetura iconológica ali existente possibilita uma construção imagética singular sobre os seus espaços repletos de historicidade e as intervenções recentes funcionam imageticamente apenas como pano de fundo para as edificações seculares.  

 

A arquitetura iconológica e a imagem da Barra

Para lastrear este estudo foram selecionadas iconografias de alguns monumentos arquitetônicos edificados ao longo das avenidas Sete de Setembro e Oceânica, que possibilitam a construção imagética da Barra, os quais podem ser visualizados no mapa da figura 7. São prédios inseridos na paisagem e espaços urbanos que se destacam não apenas pela forma arquitetônica que exibem, mas também devido às características históricas e valores simbólicos que possibilitam compreender as transformações que ali ocorreram ao longo do tempo.

 

Figura 7: Localização de elementos iconológicos, configuradores da paisagem na Barra

Fonte: elaborado pelo autor, com base no Google Earth https://earth.google.com/web/ (28/12/2016)

 

O Forte de Santo Antônio da Barra (figura 8), também conhecido como Farol da Barra, marcado no mapa em vermelho, foi por muito tempo considerado um símbolo de cidade segura para Salvador, sua aparição era constante em mapas da Baía de Todos os Santos, principalmente nos séculos XVII e XVIII. A divulgação ilustrando esta fortificação não se deve somente à sua importância histórica, mas foi estrategicamente usada no início do século XX para construir a imagem de uma cidade protegida contra os ataques estrangeiros, assim como para remediar a ideia de ameaça indígena no entorno da Villa do Pereira, que se situava na Barra (MELLO, 2004).

 

 

Figura 8: Forte de Santo Antônio da Barra – Farol da Barra

Fonte: acervo dos autores

 

Tombado como patrimônio histórico e cultural, além de sediar o Museu Náutico da Bahia, o Farol da Barra atualmente é tido como um ponto de referência para o Carnaval de Salvador, servindo de principal plano de fundo para imagens capturadas constantemente pelas emissoras de televisão, identificando e divulgando a cidade. De acordo com Mello (2004), trata-se de um ícone arquitetônico de expressivo potencial imagético que constrói uma imagem simbólica para a cidade.

Em visada oposta à figura acima, as arquiteturas que podem ser vistas na Avenida Oceânica, fotografadas no início do século XX (figura 9), registram a época em que a cidade se afrancesou e adotou a estética art nouveau em contraponto às tradicionais fachadas coloniais barrocas.

 

Figura 9 – cartão postal, Avenida Oceânica, início do século XX

Fonte: acervo dos autores

Como apontado anteriormente, a Avenida Oceânica em plena fase de construção, em 1914 (figura 4), já era símbolo da modernização. A transformação interferiu diretamente na imagem da área, que recebeu infraestrutura, como novos meios de transporte, água encanada e iluminação elétrica, passando a abrigar novas tipologias arquitetônicas, configurando uma imagem de “cidade urbanizada européia”, típica da Belle Époque.

Ao longo do Porto da Barra (indicado em verde no mapa, que pode ser visualizado da figura 15 a 18), o Forte de Santa Maria (arquitetura vista à margem direita das figuras 15 e 16), sinalizado no mapa pela cor preta, também é um marco histórico e arquitetônico identificador da paisagem da Barra.

O Forte de São Diogo (sinalizado pela cor roxa no mapa e visto ao fundo das figuras 1, 17 e 18) compunha, junto às outras duas fortificações da Barra, um triângulo de defesa na área onde as caravelas aportavam, e, mais tarde, o fogo cruzado que disparavam evitava que as embarcações entrassem na Baía de Todos os Santos. Tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), as fortificações que representam a arquitetura militar do período colonial são monumentos de indiscutível valor histórico e arquitetônico para a cidade de Salvador.

Outro ícone arquitetônico edificado na Barra é o Edifício Oceania, sinalizado no mapa pela cor amarela (ao fundo da figura 10 e nas figuras 13 e 14), erguido em 1942 (no terreno vazio que pode ser visto na figura 3) reafirmando a presença do estilo art déco na imagem da cidade de Salvador. A arquitetura moderna que pode ser vista em algumas poucas casas da figura abaixo, capturada do singelo Morro do Cristo (cor azul no mapa, ponta à direita das figuras 13 e 14), contribuía para contextualizar o prédio na imagem da cidade em meados do século XX.

 

Figura 10: cartão postal da Avenida Oceânica, Edifício Oceania e Farol da Barra, anos de 1950

Fonte: acervo dos autores

A imagem da Barra entre os séculos

A imagem da Barra construída ainda no século XVI a partir da arquitetura militar, como um espaço fortaleza, se modificou ao longo dos séculos, perpassando por uma imagem de cercania da cidade com poucas casas e espaços verdes até o início do século XX. Todavia, o contraste que se percebe na imagem da Barra desde então é grande, conforme se observa nas figuras 11 e 12, capturadas de ângulos semelhantes, da Avenida Oceânica. As avenidas que se adaptaram às imagens modernizadas de outras épocas, atualmente reportam uma imagem de cidade tropical urbanizada, que privilegia o turismo e as atrações noturnas, características que juntamente com o evento do carnaval se configuraram como principais aspectos levados em consideração nas últimas intervenções.

Figuras 11 e 12: Avenida Oceânica, início dos séculos XX e XXI

Fontes: cartão postal e fotografia, acervo dos autores

 

As fotografias acima (figuras 11 e 12) evidenciam uma descontinuidade arquitetônica, empobrecida do ponto de vista estético, devido às características tipológicas do conjunto de edifícios que constroem a paisagem. A imagem da Barra, portanto, dependente ainda da qualidade das edificações monumentais históricas que se tornaram referência iconológica e um marco simbólico da sua paisagem, as quais continuam sendo os pontos mais visitados e valorizados pelos turistas.

Percebe-se que não houve o aproveitamento de uma estética inovadora, como a que pode ser vista nas construções antigas da secular Avenida Oceânica, para configurar a imagem atual da Barra. A arquitetura ali edificada nas últimas décadas produziu prédios comuns, que poderiam estar inseridos em qualquer lugar, sem carregar uma simbologia própria, diferente do Forte Santo Antônio da Barra ou do anteriormente citado Edifício Oceania, que pode ser visto nas figuras 13 e 14, fotograficamente capturado nos anos de 1950 e em 2016, respectivamente.

 

Figuras 13 e 14: Edifício Oceania, séculos XX e XXI

Fontes: www.salvador-antiga.com/barra/edificio-oceania.htm (28/12/2016) e acervo dos autores

 

Segundo o Inventário do Docomomo (2007), “o Edifício Oceania foi marcante por ser uma edificação em altura, em local ocupado por baixo gabarito. Apesar das inovações formais, não influenciou a produção arquitetônica local”. Construído no contexto da Segunda Guerra Mundial, foi primeiro edifício multirresidencial de grande porte edificado na Bahia propondo um novo modelo de moradia, até então desconhecido, já que o padrão social da época era unirresidencial.

Contudo, a Barra foi e ainda é considerada uma zona nobre da cidade de Salvador. Ao se caminhar pelas suas principais avenidas percebe-se como a urbanização e apropriação dos lotes deixaram de se aliar ao contexto da imagem, para corresponder às necessidades mais urgentes, como a construção de edifícios multifuncionais, por exemplo, sobretudo a partir da década de 1970.

Nas capturas feitas a partir de eixos de visadas semelhantes, nas figuras 15 e 16, com fotografias do Porto da Barra, se percebe nitidamente que a imagem é pontuada pela presença do Forte de Santa Maria. Expostas lado a lado, as fotografias também possibilitam uma observação das modificações tipológicas e arquitetônicas que construíram a imagem da Barra, ao longo dos séculos.   

 

Figuras 15 e 16: Porto da Barra e Forte de Santa Maria, século XX e XXI

Fontes: cartão postal e fotografia, acervo dos autores

 

As fotografias das figuras 17 e 18, registradas de pontos de captura inversos às anteriores proporcionam a visualizar o Forte de São Diogo e, ao alto, a Igreja Santo Antônio da Barra. Quanto ao trecho da Avenida Sete de Setembro, entre o Forte de Santa Maria e o Forte de Santo Antônio da Barra, pode-se observar como a urbanização alterou a imagem que se tem do espaço, quando muitos casarões e antigos palacetes foram substituídos por edifícios, ao mesmo tempo em que a vegetação nativa foi dizimada.


Figuras 17 e 18: Porto da Barra e Forte de Santa Maria, século XX e XXI

Fontes: cartão postal e fotografia, acervo dos autores

 

A imagem das figuras 16 e 18 mostram o Porto da Barra em seus dias atuais. Percebe-se nestas fotografias a ameaça que os atuais espigões representam à imagem da cidade, ao se constatar que as torres da pequena igreja ficam suprimidas nas imagens. Confirma-se uma desconfiguração da vista frontal daquela orla, quando os arranha-céus desviam a atenção do observador na tentativa de transformar monumentos históricos, como o Forte de São Diogo a Igreja de Santo Antônio da Barra, em elementos secundários da paisagem.

 

Considerações transitórias

Este estudo evidencia que a imagem que se constrói sobre uma cidade está intimamente ligada à arquitetura, entretanto, não se podem desprezar as configurações espaciais nem as questões que envolvem o uso e as apropriações do solo no qual a arquitetura se insere.

Na Barra, observa-se a dependência dos diversos ícones arquitetônicos para a construção de imagens. Através das arquiteturas erguidas ao longo dos séculos, aquele microterritório tem a capacidade de retratar a história da cidade e informar sobre os modos de coexistir com o espaço e com a cidade em cada tempo.

Conforme as fotografias recentemente capturadas na Barra, observa-se que muitos prédios do nosso patrimônio histórico e cultural continuam presentes, apesar das modificações quanto às suas funcionalidades.

As transformações urbanísticas ali efetivadas foram radicais e, assim como a arquitetura, confirmam a sua importância para a cidade. A abertura de grandes avenidas, no início século XX, tinha como objetivo principal a expansão da cidade e, logo em seguida, interligar a Barra a outros bairros, o que valorizou e dinamizou o espaço. As transformações ocorridas na segunda metade do século XX contribuíram para a valorização imobiliária e confirmaram a Barra como um local singular, quando expressivos empreendimentos do comércio e de serviços se instalaram naquela zona, que era habitada e frequentada pela elite soteropolitana. Inclusive, a Avenida Oceânica foi o ponto de lazer e encontro mais famoso da cidade, até os anos de 1980.

Entretanto, a requalificação feita no século XXI, não pode ser entendida sob a mesma ótica positiva das transformações anteriores, considerando-se aspectos relativos à valorização do solo. Afinal, a reconfiguração urbana advinda do Projeto de Requalificação da Orla da Barra, nesta última década, atende principalmente as necessidades dos turistas e privilegia grandes festas populares, a exemplo do carnaval. A proibição ao acesso de veículos em diversas ruas, associada à falta de espaços planejados para estacionar, inclusive nas duas grandes avenidas da orla, modificou vertiginosamente a dinâmica da área hoje referente ao bairro da Barra, que subitamente sofreu uma expressiva desvalorização imobiliária e a maior parte dos estabelecimentos de comércio e serviços teve suas portas fechadas.

Consequentemente, face a um projeto urbanístico que não teve por base a opinião dos seus moradores, a Barra se transformou em um espaço desarticulado da cidade e a sua imagem foi visivelmente alterada. Hoje, apesar de ter sido revista proibição da circulação de alguns veículos, o espaço encontra-se bastante pobre em relação aos elementos que configuram uma paisagem “de alto padrão”, o que nos induz a questionamentos acerca dos impactos que se delinearão nas próximas décadas sobre a imagem da Barra.

 

Referências

ANDRADE, Luis Guilherme A. de. Políticas públicas e produção do espaço: o caso da orla marítima de Salvador/Ba. Anais do IV ENANPARQ - Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo. Porto Alegre: UFRGS, 2016. Disponível em: <https://www.anparq.org.br/dvd-enanparq-4/SESSAO%2009/S09-02-ANDRADE,%20L.pdf>. Acesso em: 23 set. 2018.

ECO, Umberto. As formas do conteúdo. São Paulo: Perspectiva, 1974.

FERRARA, Lucrecia D’Alessio. Os significados urbanos. São Paulo: Edusp, 2000.

 Urbanismo. Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2002.

Inventário do Docomomo Brasil / Arquivo PPGAU-UFBA – International working parting for documentation and conservation of buildings, sites, neighbourhoods of the modern moviment. Ficha mínima do Edifício Oceania. 2007. Disponível em: <http://www.docomomobahia.org/fm/docomomo_ed_oceania.pdf>. Acesso em: 03 ago. 2017.

LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

MELLO, Márcia Maria Couto. Salvador multimagética: a imagem do Bairro do Comércio construída através dos cartões-postais (1890-1950). 259f. Dissertação (Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2004.

MELLO, Márcia Maria Couto. Modas, arquiteturas e cidades: interfaces, conexões e interferências. 263f. Tese de Doutorado (Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011.

MOREAU, Filipe Eduardo. Arquitetura militar em Salvador da Bahia – séculos XVI a XVII. 373f. Tese de Doutorado; (Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Universidade de São Paulo, 2011.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. O imaginário da cidade – visões literárias do urbano: Paris, Rio de Janeiro; Porto Alegre. Porto Alegre: UFRGS, 1999.

PINHEIRO, Eloisa Petti. Europa, França e Bahia – difusão e adaptação de modelos urbanos (Paris, Rio e Salvador). Salvador: EDUFBA, 2002.

 


Data de Recebimento: 27/03/2018
Data de Aprovação: 11/10/2018