A representação da realidade periférica em Letras de Liberdade: “Lembranças ao Vento”, de Márcio Marcelo do Nascimento Sena


resumo resumo

Ana Paula F. Nobile Brandileone
Caroline Helena dos Santos



1. Ficção brasileira contemporânea: breves reflexões

 

A literatura brasileira contemporânea é marcada pela heterogeneidade, isto é, pela variedade de tendências estéticas, as quais revelam, dentre outras características, a presença de recursos literários como a intertextualidade e a metalinguagem, temas urbanos e/ou regionalistas, prosa histórica, social e/ou urbana, formas reduzidas ou não, técnicas de escrita inovadoras ou que têm a marca da tradição: “[...] são múltiplos tons e temas e, sobretudo, múltiplas convicções sobre o que é literatura” (RESENDE, 2008, p.17). Vale dizer, entretanto, que essa multiplicidade não é fenômeno exclusivo da ficção brasileira de hoje, mas tônica de qualquer período artístico.

A diversidade da literatura brasileira contemporânea ainda se revela na relação e/ou no contato estabelecido com o leitor, que se manifesta nos mais diferentes suportes, os quais oferecem novos caminhos para a publicação das obras, “[...] que na era da comunicação informatizada, não se limita mais ao papel ou declamação (RESENDE, 2008, p.25). Nesse novo contexto de produção, o livro impresso não é, portanto, o principal suporte, haja vista a presença dos blogs e demais redes sociais atuando como uma nova possibilidade de os escritores terem a sua produção literária difundida. Assim, os escritores deixam de lado o “[...] mercado tradicional do livro”, uma vez que “[...] com essas novas plataformas de visibilidade da escrita surgiu um inédito espaço democrático e foram criadas condições para um debate mais inédito em torno de novas propostas de escritas” (SCHOLLHAMMER, 2011, p. 13). Um dos desdobramentos mais positivos oferecidos pela tecnologia é que os escritores não mais esperam “[...] a consagração pela academia” (RESENDE, 2008, p. 17). Não por acaso, a produção literária contemporânea é muito fértil e diversa.

Apesar da diversidade da literatura contemporânea, Resende (2008) assegura que há três linhas de força dominantes: a presentificação, o retorno ao trágico e a violência.

Sobre a presentificação, a autora (2008) afirma que há um sentido de urgência em retratar o momento presente, espaço e tempo de hoje, por isso predomínio do olhar sobre o agora, em detrimento do passado ou do futuro: “[...] a manifestação explícita, sob formas diversas, de um presente dominante no momento de descrença nas utopias que remetiam ao futuro, tão ao gosto modernista, e de certo sentido intangível de distância em relação ao passado” (2008 p. 26-27).

Em consonância com Resende (2008), Schollhammer (2011) assinala que o escritor contemporâneo “[...] parece estar motivado por uma grande urgência em se relacionar com a realidade histórica, estando consciente, entretanto, da impossibilidade de captá-la na sua especificidade atual, em seu presente” (SCHOLLHAMMER, 2011, p 10). Exemplo disso é que parte da produção ficcional contemporânea brasileira é formada por autores que estão à margem da sociedade - detentos ou ex-detentos, moradores da periferia dos grandes centros urbanos - que, eliminando mediadores, tornaram-se agentes da sua própria história. Este traço revela certo caráter de urgência pela investigação que se quer fazer do presente. A presentificação relaciona-se, ainda, com a tendência minimalista dos procedimentos narrativos da ficção contemporânea, pois segundo Resende “[...] a presentificação me parece também se revelar por aspectos formais, o que tem tudo a ver com a importância que vem adquirindo o conto curto ou curtíssimo em novos escritores [...]” (2008, p. 28).

Sobre o retorno ao trágico, Resende (2008) diz que a presença do trágico deste momento pós-globalização “[...] estabelece um efeito peculiar com o indivíduo, supera-o e traça uma relação direta com o destino” (RESENDE, 2008, p. 29). A este respeito é importante destacar que a tragédia pessoal dos personagens é decorrente da tragédia social, isso porque o meio em que o indivíduo vive, as condições a que é exposto - miséria, violência, vulnerabilidade social -, leva-o a um destino “inevitável” que, não raro, no cotidiano, é exposto pelas mídias. Desse modo, as produções contemporâneas mesclam o trágico do cotidiano das periferias das grandes cidades com a dinâmica da urgência:

 

 

 

A manifestação de forte sentimento trágico que aparece na prosa pode se reunir ao sentido de presente de que já falei, já que nas narrativas fortemente marcadas por um páthos trágico a força recai sobre momento presente imediato, presente, [...] (RESENDE, 2008, p. 30).

 

Nesse contexto, a violência se apresenta como uma das mais significativas linhas de força. Sobre o tema da violência, sobretudo a transposição da violência urbana para literatura, Resende (2008) questiona: “É possível, hoje, discutir a situação política do atual estado do mundo sem passar pelo debate da violência, sua produção, sua narrativa?” (RESENDE, 2008, p. 34).

A partir da leitura de algumas obras de autores marginais, pode-se perceber que a presença da violência está entrelaçada à produção literária periférica. É o caso, por exemplo, de “Lembranças ao vento” (2000), objeto de análise deste artigo, cujo personagem protagonista, situado à margem de um conjunto de forças dominantes, tem a sua vida associada aos conflitos especialmente relacionados à violência, oriunda, em última instância, da exclusão social a que foi submetido. 

Ainda no que diz respeito à presença da violência nas narrativas contemporâneas, Resende (2008) diz que “[...] a violência urbana tornou-se, mercadologicamente, uma boa opção” (RESENDE, 2008, p. 37). Nesse contexto, não é incomum encontrar alguns críticos que acusam a narrativa contemporânea de exibir excesso de realismo, igualando-se à mídia, cujo interesse se centra na “vida real”, na “vida como ela é”. É o caso de Schøllhammer, que considera a literatura hoje não muito diferente nem melhor na relação que estabelece com os meios de comunicação, na sua sede de nos superexpor à realidade:

 

 

Numa situação em que os meios de comunicação nos superexpõem à “realidade”, seja dos acontecimentos políticos globais, seja da intimidade franqueada de celebridades e de anônimos, numa cínica entrega da “vida como ela é”, as artes e a literatura deparam-se com o desafio de encontrar outra expressão de realidade não apropriada pela indústria do realismo midiático (SCHOLLHAMMER, 2011, p. 57).

 

Também Resende faz considerações a este respeito, afirmando que “[...] quando esse realismo ocupa de forma tão radical a literatura, excesso de realidade pode se tornar banal, perder o impacto, começar a produzir indiferença em vez de impacto” (2008, p. 38).

Outro aspecto da literatura contemporânea que merece destaque é o fato de ela, não raro, deixar de lado a violência das grandes cidades e se aproximar da vida ordinária. Desta forma, os autores contemporâneos inspiram-se também em histórias do dia-a-dia, que trazem à tona universos íntimos e não apenas o retrato dos problemas sociais dos excluídos socialmente. A este respeito Schollhammer traz a seguinte consideração:

 

 

[...] a ficção contemporânea não pode ser entendida de modo satisfatório na clave da volta ao engajamento realista com os problemas sociais, nem na clave do retorno da intimidade do autobiográfico, pois, nos melhores casos, os dois caminhos convivem e se entrelaçam de modo paradoxal e fértil. (2011, p.16)

 

A partir do exposto, pode-se dizer que literatura contemporânea relaciona-se com a realidade, seja como referência de sua expressão ou como alvo de seu gesto. Não por outro motivo é que os escritores contemporâneos sentem-se responsáveis pelo lugar em que vivem e buscam intervir nele de maneira ativa, valendo-se da literatura como objeto de transformação; como é o caso da literatura marginal. Assunto para o próximo tópico.

 

2. Da conceituação do termo “Literatura Marginal”

            Dentre as muitas possibilidades de compreender o discurso literário contemporâneo é entendê-lo como ferramenta de leitura e escrita do mundo que fortalece e muda conceitos, desconstrói e constrói identidades e problematiza as relações humanas. Posto que o discurso literário contemporâneo é produto da cultura e de demais instâncias - política, econômica, social e histórica -, pode-se afirmar que hoje as minorias ocupam posições e/ou lugares que antes eram reservadas a determinados grupos hegemônicos.

Na literatura, Schollhammer (2011) afirma que a primeira safra de textos marginais tem o seu marco com a publicação da obra Estação Carandiru, de Drauzio Varella, em 2001, que “[...] procura refletir os aspectos mais inumanos e marginalizados de nossa realidade social” (2011, p. 99). Para o autor, o reflexo imediato foi “[...] uma nova onda de romances, biografias e relatos diversos sobre a realidade marginal brasileira do crime, das prisões e das periferias mais atrozes [...]” (2011, p.99). Dentre eles, Schollhammer cita Memórias de um sobrevivente, de Luiz Alberto Mendes (2001), seguido pelo volume de contos Tesão e prazer, de 2004; Sobrevivente du Rap, organizado por Bruno Zeni; Diário de um Detento, de Jocenir, e Pavilhão 9 – Paixão e morte no Carandiru, de Hosmany Ramos, os dois últimos publicados em 2001. Sem falar na coletânea de contos Literatura Marginal – talentos da escrita periférica, organizada por Ferréz, de 2005[1], e Letras de Liberdade, organizada por Fernando Bonassi, em 2000, também uma seleção de contos, dos quais “Lembranças ao vento” é matéria de análise deste artigo.    

Com o surgimento da literatura marginal houve uma nova criação discursiva, em que as minorias fazem uso da palavra, sem intermediadores. Situação diversa da ficção até então produzida que, apesar de jogar para o centro das discussões os excluídos sociais, não tinham voz, ainda que vez; como é o caso, por exemplo, dos romances sociais da década de 30.

O fato de o escritor atuar como mediador intelectual do discurso do menos privilegiado, levando a voz do próprio escritor se misturar, não raro, à voz ficcional, produz uma aproximação da literatura marginal ao mais cotidiano autobiográfico, segundo afirma Schollhammmer:

 

 

Criou-se, assim, um neodocumentarismo popular, baseado na prosa testemunhal, autobiográfica e confessional, muitas vezes dando voz a sobreviventes dos infernos institucionais do Brasil, e que se estabelece na zona cinza entre ficção e documentarismo, capaz de conquistar uma fatia significativa do novo mercado editorial. (2011, p. 99).

 

Patrocínio também traz reflexões a este respeito e aponta que na Literatura Marginal a produção literária ocupa um espaço entre o testemunho e a criação artística, por isso a leitura dos textos literários ditos marginais deve estar “[...] ancorada na compreensão da dimensão política e social de sua intervenção enquanto manifestação artística e literária” (PATROCÍNIO, 2013, p. 49).

Já para Ferréz, os únicos habilitados ao exercício literário é o sujeito que se encontra às margens das esferas do poder, já que a produção literária marginal não apenas põe à mostra o retrato do espoliado, como também assume o ângulo do espoliado, cujo discurso é produzido sob a sua perspectiva:

 

 

A literatura marginal, sempre é bom frisar, é uma literatura feita por minorias, sejam elas raciais ou socioeconômicas. Literatura feita à margem dos núcleos centrais do saber e da grande cultura nacional, ou seja, os de grande poder aquisitivo. Temos assim duas pessoas de que particularmente sou fã e não estou sozinho na admiração, estou falando de Plínio Marcos e João Antônio, como autores marginais, ou seja, à margem do sistema, já que falavam de um outro lugar com voz que se articulava de uma outra subjetividade (tá vendo, quem disse que maloqueiro não tem cultura? (FÉRREZ, 2005, p.12)

 

Se a produção literária marginal é definida por autores que estão situados à margem dos centros hegemônicos e cuja literatura é "[...] ferramenta para o estabelecimento de uma compreensão de estruturas sociais desiguais e para denunciar as situações de vulnerabilidade sofridas pelos residentes em favelas e bairros de periferia" (PATROCÍNIO, 2013, p. 49) faz-se necessário, segundo Patrocínio, “[...] utilizar uma chave de leitura que possibilite uma análise conjugada: ler no texto literário a presença do sentido político e social do movimento” (2013, p.51). Pois se trata da produção de um sujeito oriundo da margem, que faz uso de um discurso de resistência a uma norma imposta – seja ela estética, política ou ideológica.. Nesse contexto é pertinente trazer à tona as palavras de Foucault que afirma que “[..] o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo pelo que se luta, o poder de que queremos nos apoderar” (2008, p.10). Ou seja, por ser produzido por autores que estão fora do espaço hegemônico, o discurso literário marginal assume uma dimensão que transcende o ato de criação literária artística, adquirindo, também, um sentido político; há luta pelo empoderamento das minorias que detêm este discurso (PATROCÍNIO, 2013).

            Em consonância com Foucault (2008), também Paulo Patrocínio assevera que a literatura marginal são os discursos de “[...] sujeitos periféricos que romperam a silenciosa posição de objeto para entrarem na cena literária utilizando a literatura enquanto veículo de um discurso político formado no desejo de autoafirmação” (2013, p.12). Termômetro do discurso de autoafirmação e de empoderamento das minorias é a antologia de contos Letras de Liberdade, que foi publicada em 2000, e que traz em sua composição relatos de presidiários, narrados em primeira ou terceira pessoa, os quais foram selecionados no concurso “Letras de Liberdade”, realizado na Casa de Detenção de São Paulo (Carandiru), do qual participaram 345 detentos. A respeito da gênese do concurso literário afirma Wagner Veneziani Costa, editor da obra:

 

 

 

[...] é importante destacar o quão sensibilizado ficamos. Sensibilizados, talvez, pela ocorrência de fatos importantes simultaneamente ao inicio do concurso. Sensibilizou-nos, por exemplo, saber que, enquanto no Carandiru todos estavam “ocupados” escrevendo suas histórias, em vários outros presídios aconteciam rebeliões (2000, p.9).

 

Sob esta perspectiva, o concurso assumiu uma importante estratégia para a ressocialização daqueles que estavam segregados da sociedade, estimulando os detentos a ter “[...] vontade de participar de uma vida da qual foram excluídos. (Se justa ou injustamente, isso já é outra história!)” (COSTA, 2000, p. 10). A respeito da obra organizada por Fernando Bonassi, Resende traz a seguinte reflexão:

 

 

 

[...] o conjunto de escritos dos presos do Carandiru em Letras de liberdade, coloca dentro do sistema literário, sem intermediários, a realidade de excluídos da grande cidade. Mas não é apenas colocar o foco de luz sobre a arena mostrada em toda sua terrível realidade que lhes interessa. O que procuram, ao desejar fazer literatura, é levar tal realidade para a ágora, para o espaço de discussão de intelectuais (que mereçam esta qualificação), editores, políticos, públicos, enfim, mas levar por suas próprias mãos. É dessa maneira que ocupam a pólis e criam uma nova forma de literatura assumidamente política.  (2008, p. 39).

 

Na perspectiva de refletir sobre a representação dos territórios marginais, este artigo tem por objetivo analisar o conto “Lembranças ao vento”, de Marcio Marcelo do Nascimento Senna, que compõe a antologia Letras de Liberdade, organizada por Fernando Bonassi, publicada em 2000.

 

3. “Lembranças ao vento” e a injustiça no cárcere

Em “Lembranças ao vento”, o leitor entra em contato com a história ficcional de Jesus, narrada por Márcio Marcelo do Nascimento Sena, que tomou conhecimento da história de sua vida porque era igualmente detento e, posteriormente, tornou-se seu professor na Casa de Detenção:

 

 

 

Jesus foi classificado para o curso de alfa um, ou seja, o início da alfabetização, e por coincidência veio estudar em minha turma. Ele tinha um interesse muito grande que me incentivava a preparar sempre coisas novas. Logo acabamos ficando amigos e ele sempre me procurava fora do horário de aula para pedir que eu escrevesse algumas cartas. Foi assim que me inteirei de toda sua situação (SENA, 2000, p. 76). 

                                                                                                                                 

Desse modo, conforme destacado anteriormente, o conto assume forte teor autobiográfico, já que o narrador é, em última instância, Márcio, o autor, que narra a história de Jesus. Nas palavras de Antônio Torres, em posfácio intitulado “Chega a parecer uma ficção”: “As lembranças do presidiário Márcio Marcelo do Nascimento Sena, Prontuário 145.349, cela 426-E, pavilhão 7, são, na verdade o relato de um erro chocante, sem remissão” (2000, p. 79). Torres ainda comenta que “O autor do relato, Márcio Marcelo, embora aprisionado em números e grades, tem a sorte de estar vivo para contar a história de um companheiro de prisão ainda mais desafortunado [...]” (2000, p. 79).

Nesse contexto, é importante especificar que são considerados autores marginais os que são representantes de uma produção que visa tornar visível a voz da periferia e o território em que o mesmo se encontra. São estas novas subjetividades, representação social internamente marcada pela diferença cultural, que compõem as “novas vozes” da literatura contemporânea: “[...] a partir de espaços que até recentemente estavam afastados no universo literário” (RESENDE, 2008. p. 17). Assim, a voz que narra não é de um mediador com o olhar de fora, mas que fala de uma perspectiva de dentro, trazendo discussões que remetem à massa dos excluídos sociais; como é o caso de Márcio, que narra a experiência do cárcere.  

Márcio Marcelo do Nascimento Sena nasceu em 07 de junho de 1970, na cidade de São Paulo.  De apelido Pantera, foi condenado há 21 anos de prisão por assalto a mão armada e homicídio. Fora professor de Jesus quando estiveram juntos na Casa de Detenção, conforme descrito em sua página no site Facebook[2]. Atualmente é escritor, coordenador e fundador do Grupo Editorial Beco dos Poetas. A literatura para ele possui função emancipatória. Recentemente, em 24 de junho de 2016, a biblioteca comunitária Beco dos Poetas, da qual é coordenador, ganhou o prémio Milton Santos, 2016, na categoria l, Sarau Matinal Beco dos Poetas.

             Em “Lembranças ao vento”, o discurso narrativo inicia-se em um momento adiantado da estória, o que obriga o narrador a narrar depois, no plano do discurso, o que aconteceu antes no plano da estória. Desse modo, a estória tem o seu início quando o narrador joga, ao vento, os pedaços do que restara da fotografia de Jesus (que ele encontrou e rasgou), levando-o a recordar as experiências vividas por Jesus:

 

 

 

Num impulso apanho e, rasgando-a em pedaços pequenos, vou em direção à janela grande, de grades grossas, jogando os pedaços amassados como uma última homenagem. Observo o vento carregar cada pedaço, como as cinzas da tristeza que ficou, recordando como tudo aconteceu... (2000, p. 73).

 

 

Fazendo uso da analepse, o narrador revisita a vida de Jesus. Entendida como “[...] todo movimento temporal retrospectivo destinado a relatar eventos anteriores ao presente da ação e mesmo, em alguns casos, anteriores ao seu início” (REIS; LOPES, 1988, p.230), a analepse é um recurso narrativo importante no conto, uma vez que descortina linhas de força temática e ideológica. Desse modo, mais do que um signo técnico-narrativo do âmbito da representação discursiva do tempo, a analepse orienta-se aqui no sentido de atingir a contextura semântica da obra.

Ativando a memória para construir a vida de Jesus para o leitor, o narrador introduz personagens secundários, não menos importantes para o desenrolar da estória.  Lazinha, sua esposa, a mãe, o irmão e a filha, Ana Carolina, bem como situações narrativas, como a vida no sítio em Pernambuco, onde o personagem passara parte de sua existência, e a vinda para São Paulo, espaço no qual sofre as piores experiências.

Colocando-se em uma posição de quem conhece na sua totalidade os eventos que narra, Márcio Marcelo, que se coloca como narrador testemunha, emprega o pressuposto da linearidade narrativa para relatar os eventos ocorridos antes da condenação de Jesus. Assim, antes mesmo de relatar o flagelo sofrido por ele na prisão, o narrador constrói a sua imagem atrelada a de uma classe marginalizada, já que deixara Pernambuco para tentar uma vida melhor em São Paulo: “A seca destruíra toda esperança de colheita naquele ano. Foi quando Jesus, desesperado, resolveu vir para São Paulo. Sem dinheiro, decide vender o jumento Adamastor único animal que sobrevivera à seca” (SENA, 2000, p. 73). Junto dele traz Lazinha, sua esposa, para a periferia na cidade grande. Mais tarde nasce sua filha. Na condição de pedreiro, não consegue emprego; ofício diferente do que exercia no Nordeste, onde trabalhava na roça, em um pequeno sítio em Garanhuns. Por isso revolta-se e caí no alcoolismo. É Lazinha quem fica responsável por sustentar a família e Jesus, por sua vez, comprometido com os afazeres domésticos e os cuidados da criança.

Em um determinado dia, Lazinha sai para trabalhar e deixa Ana Carolina com Jesus, que bebe e dorme profundamente:

 

 

No canto uma cabeceira da cama, a mamadeira já azeda contribuía para o mau cheiro. Lazinha faz um gesto para apanhá-la. Percebe o sangue no lençol, abraça assustada, a menina. Sente o bumbum e a coxa suja com sangue seco, a frieza do corpo... Grita, caí desmaiada [...] (p, 75).

 

Responsável pela morte da filha, pois tudo indicava que ele, o pai, havia estuprado a menina, Jesus é preso. Na prisão, onde fica oito meses, até conseguir a primeira audiência, sofre toda sorte de violência:

 

 

 

Dez horas sai a “subidinha”, o café noturno. A água esquenta, Jesus observa. Alguém pergunta se ele está encarando, a água cai... Jesus grita, começa o castigo, um fio é esticado e ligado na tomada.

 

− Você vai ficar chocado com o que vai acontecer – diz um, com sorriso, tocando Jesus com o fio. Gritos são ouvidos. O distrito está em silêncio. Grito de estuprador não conta, pensa o delegado [...] (SENA, 2000, p. 76).

 

Tendo contraído HIV, morre depois de pouco mais de 2 anos: “No dia da sua prisão, fora estuprado e contaminado no distrito policial...” (2000, p.78).  Antes de sua morte, entretanto, a imprevisibilidade do desfecho, surpreendendo o leitor: “[..] Na autópsia constara que sua filha havia morrido de diarreia crônica e desidratação. Foi com os olhos marejados que completou: - “E... Era virgem como Maria, a mãe de Jesus” (SENA, 2000, p. 78). A ausência na caracterização psicológica de Jesus é decorrente do foco narrativo selecionado. Por adotar uma posição periférica em relação à estória que narra, o narrador restringe-se à condição de testemunha, afinal ele não sabe senão aquilo que presenciou e/ou ouviu, o que limita a sua visão global dos acontecimentos e, assim também, o acesso ao universo íntimo do protagonista, Jesus.

Como elemento indissociável da narrativa, o espaço nem sempre possui a mesma importância que os seus demais elementos configuradores. No caso do conto em questão, no entanto, o espaço narrativo assume enorme relevância na constituição dos sentidos da narrativa, na medida em que figura situações de opressão, violência e confinamento, mediado pela focalização do narrador: “Quatro metros quadrados é o espaço destinado a seis pessoas, que atualmente recebe sessenta, devido à superlotação. Cada preso tem sua história. Cada história sua lembrança [...]” (SENA, 2000, p. 75).

Esta discussão encontra eco nas considerações de Patrocínio (2013) que afirma que um dos elementos mais importantes na Literatura Marginal é a territorialidade do texto, seja porque a periferia dos grandes centros urbanos ou os enclaves murados em seu interior, como as prisões, tornam-se o cenário das narrativas, seja porque os autores são moradores da periferia. Nesse contexto, o termo marginal decorre de um princípio socioeconômico e também geográfico. No caso de “Lembranças ao vento”, o autor, além de morador da periferia, também esteve preso e, por isso, tem legitimidade para narrar esta estória (segundo os pressupostos de Ferréz, em citação acima transcrita); o mesmo se dá em relação à territorialidade do conto. Como migrante nordestino, Jesus foge da miséria em que vivia no Nordeste para tentar a vida na cidade de São Paulo. A falta de oportunidade de trabalho, que se associa à sua condição de não alfabetizado, leva-o a residir na periferia da cidade, em um barraco na favela Nova Esperança. Vítima de um mal entendido, Jesus é preso e condenado, injustamente, pela morte da filha. O que fica é que os descaminhos vividos por Jesus põem em relevo a condição moral e social daqueles que vivem em situação periférica no contexto social brasileiro, os “ex-cêntricos”, para usar um conceito de Linda Hutcheon (1991).

O conto “Lembranças ao vento” é composto por vários espaços: o sítio em Pernambuco, o barraco na favela Nova Esperança, em São Paulo, e a Casa de Detenção. Contudo, considera-se que a Casa de Detenção, mais especificamente a prisão e a escola, auxiliam, mais que os demais espaços narrativos, a compor o destino trágico de Jesus.

A violência é um tema complexo e abrangente, que se inscreve para além de sua figuração mais notória, a violência física, os maus tratos e agressões. Ela possui múltiplas variáveis, tais como violência civil, social, econômica, cultural e política, ou múltiplos matizes e tons, haja vista as suas especificidades, como violência familiar, moral, psicológica, sexual, étnica, doméstica, de gênero. Entretanto, como afirma Michaud, há em todas as facetas da violência um denominador comum:

 

Há violência quando, numa situação de interação, um ou vários atores agem de maneira direta ou indireta, maciça ou esparsa, causando danos a uma ou várias pessoas em graus variáveis, seja em sua integridade física, seja em sua integridade moral, em suas posses, ou em suas participações simbólicas e culturais. (MICHAUD, 1989, p. 20).

                       

Partindo desse pressuposto, o espaço da prisão é onde Jesus tem a sua integridade física, moral e psicológica violentada: “Os moradores da cela em que colocam Jesus ficam indignados, acham-se ofendidos, sabem que para manter o respeito terão que dar uma lição em Jesus. Alguns são contra, mas a voz da maioria é que prevalece. E a maioria quer crucificar Jesus” (SENA, 2000, p.76). Este trecho remete a um código do sistema prisional: aos estupradores, o estupro. Olho por olho, dente por dente. No excerto acima transcrito, é válido, ainda, atentar-se para a intertextualidade trazida pelo conto, uma vez que o narrador remete a estória do personagem Jesus aos acontecimentos relacionados à morte e crucificação de Jesus Cristo. A Jesus, o filho de Deus, o apelo da maioria prevaleceu: “Portanto, estando eles reunidos, disse-lhes Pilatos: Qual quereis que vos solte? Barrabás, ou Jesus, chamado Cristo?” (BÍBLIA SAGRADA, 2011, p. 1349.). Abaixo a condenação de Jesus:

 

 

Porque sabia que por inveja o haviam entregado.

 

E, estando ele assentado no tribunal, sua mulher mandou-lhe dizer: Não entres na questão desse justo, porque num sonho muito sofri por causa dele.

 

Mas os príncipes dos sacerdotes e os anciãos persuadiram à multidão que pedisse Barrabás e matasse Jesus.

 

E, respondendo o presidente, disse-lhes: Qual desses dois quereis vós que eu solte? E eles disseram: Barrabás.

 

Disse-lhes Pilatos: Que farei então de Jesus, chamado Cristo? Disseram-lhe todos: Seja crucificado.

 

O presidente, porém, disse: Mas que mal fez ele? E eles mais clamavam, dizendo: Seja crucificado.

 

Então Pilatos, vendo que nada aproveitava, antes o tumulto crescia, tomando água, lavou as mãos diante da multidão, dizendo: Estou inocente do sangue deste justo. Considerai isso.

 

Então soltou-lhes Barrabás, e, tendo mandado açoitar a Jesus, entregou-o para ser crucificado. (BÍBLIA SAGRADA, 2011, p. 1349).

 

Assim como Jesus, o filho de Deus, também aqui a injustiça se faz presente: Jesus, o protagonista do conto, era inocente; não tinha violentado a filha.

Já a escola, ainda que situada em um espaço de exclusão social, surge como uma força contra a marginalização social. É onde o narrador não apenas conhece Jesus, dada a convivência entre aluno e professor, mas também o leva a conhecer a sua estória, que é matéria do conto: “Era dia de prova na escola. Novos alunos seriam aceitos. Eu estava meio apressado. O dia seria longo. Havia 130 candidatos para entrevistar. Achei engraçado saber que um deles se chamava Jesus” (SENA, 2000, p.77).

Considerando que a Literatura Marginal “[...] não se baseia apenas no texto literário”, mas sim no movimento que o discurso opera “[...] tratando a literatura como veículo de intervenção social” (PATROCÍNIO, 2013, p.18), pode-se considerar a história narrada por Márcio uma escrita literária de cunho intervencionista e, portanto, comprometida com a transformação social. O que gera de um lado o questionamento e a revisão de valores e condutas, convidando o leitor a tomar um posicionamento crítico e de combate a um discurso que rejeita o excluído social, já que o contato com esta representação opera o desenvolvimento de uma capacidade reflexiva sobre si mesmo e o mundo e, de outro, abre espaço para a contestação e a denúncia, como podemos observar no trecho abaixo em que o narrador desvela a demora para a realização da autópsia da filha Ana Carolina:

 

 

Disse que o Juiz havia pedido a autópsia do corpo da filha, mas o IML estava em greve, por isso não foi possível fazê-la nos primeiros dias de sua prisão [...]. Quando tudo se normalizou e ele conseguiu a primeira audiência, já havia se passado oito meses. Na autópsia constara que sua filha havia morrido de diarreia crônica e desidratação (2000, p. 77 – 78).

 

O narrador também delata a violência que existia dentro daquele que foi considerado maior presídio do Brasil: “[..] ficou sabendo estar contaminado com o vírus HIV. No dia de sua prisão, fora estuprado e contaminado no distrito policial... (SENA, 2000, p.78). Nesse contexto, a literatura passa a ser utilizada como uma manifestação artística que expressa as mazelas sociais sofridas por aqueles que estão/vivem à margem da sociedade.  Neste conto, a situação de vulnerabilidade e a figuração da violência está vinculada ao ambiente carcerário ocupado por um morador da periferia, sujeito desprovido de amparo social, judicial, moral, etc.

Mas ao apresentar-se como veículo de intervenção social, comprometido com a autonomia social do indivíduo, já que lança mão da literatura para veicular um discurso de formação de uma perspectiva crítica sobre o real, o conto também assume uma fala doutrinadora e reformista cujo fim é persuadir e, mais diretamente, aconselhar o sujeito marginal, acenando para os perigos e, consequentemente, apontando para os “bons” caminhos. Nesse contexto é que a narrativa também aponta para o caráter salvacionista da educação, considerando o papel da leitura e do saber na emancipação das comunidades periféricas como saída para a consolidação de um sonho de progresso coletivo: “Caro professor, sinto informá-lo: morreu ontem à tarde seu amigo Jesus. Suas últimas palavras foram em agradecimento por ensiná-lo a ler e que Deus o abençoe” (SENA, 2000, p. 78).

Assim, o texto literário assume um contorno formativo. Porém, a formação que o autor almeja não é apenas do leitor enquanto consumidor de textos literários, mas, sobretudo, do leitor enquanto sujeito. Nesse sentido, a literatura passa a instruir, já que o conto pode ser lido como histórias de proveito e exemplo, seja pelo lado positivo ou negativo.

            Claramente, a atuação de Márcio Marcelo do Nascimento Sena como escritor e articulador social não se dissocia da participação política, que implica em uma atitude de intervenção na realidade, que passa necessariamente por uma mudança de olhar: “[...] a regra é só uma, mostrar as caras. Não somos o retrato, pelo contrário, mudamos o foco e tiramos nós mesmos a nossa foto” (FERRÉZ, 2005, p. 9). Desse modo, a passagem da posição de objeto para a de sujeito permite ao autor marginal não apenas projetar a sua voz, a fim de articular uma crítica inovadora das raízes da desigualdade social, mas, de posse da linguagem e dos meios de expressão, “tomar de assalto” o território das letras, privilégio daqueles que antes detinham o controle das representações, ainda que frequentemente incapaz de transformar o sentimento e a ideia em algo propriamente criativo. Como é o caso do conto aqui em discussão “Lembranças ao vento”, que, ainda que busque uma força estética, há, sobretudo, a força política da palavra que, muitas vezes, pouco se distingue da criação literária com cunho militante.

 

 

 

Referências

BÍBLIA SAGRADA. Matheus. Barueri: Sociedade Biblíca do Brasil, 2011, p. 1295-1352.

COSTA, Wagner Veneziani. Palavras do editor. In: BONASSI, Fernando (org.) Letras de Liberdade. São Paulo: WB Editores, 2000. p. 09-10.

FERRÉZ (org.). Terrorismo literário. In: Literat ura marginal: talentos da escrita periférica. Rio de Janeiro: Agir, 2005.

FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. 5ª ed. São Paulo: Loyola, 1999.

HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

MICHAUD, Yves. A violência. São Paulo: Ática, 1989.

PATROCÍNIO, Paulo Roberto Tonani do. Escritos à margem: a presença de autores de periferia na cena literária brasileira. Rio de Janeiro: 7 Letras; FAPERJ, 2013.

REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: Ed. Ática, 1988.

RESENDE, Beatriz. Expressões da literatura brasileira no século XXI. Rio de Janeiro. Casa da Palavra, 2008.

SCHOLLAMMER, K. Erik. Ficção brasileira contemporânea. 2ª ed. Rio de Janeiro. C. Brasileira, 2011.

SENA, Márcio Marcelo do Nascimento. Lembranças ao vento. In: BONASSI, Fernando (org.) Letras de Liberdade. São Paulo: WB Editores, 2000. p.73-77.

TORRES, Antônio. Chega a parecer uma ficção.. In: BONASSI, Fernando (org.) Letras de Liberdade. São Paulo: WB Editores, 2000. p. 78-79

 

 

Data de Recebimento: 25/02/2018
Data de Aprovação: 15/12//2018

 

 

 

[1] Dentre os textos publicados na edição especial da revista Caros Amigos,Literatura Marginal – A Cultura da Periferia Ato I, Ato II e Ato III”, publicados entre agosto de 2001 a abril de 2004, Ferréz selecionou alguns deles para compor esta coletânea de contos.