(Re)existência nas ruas: entre punição e caridade


resumo resumo

Lauro José Siqueira Baldini
Ana Elisa Volpato Ortolano



Introdução

 

 

O presente artigo reúne e aprofunda os gestos de interpretação propostos em Ortolano (2017), dos enunciados do programa Destilado da Rua[1] presentes no documentário Devolvam nosso microfone! - O povo da Rua e a Hegemonia da Comunicação[2], recortados a partir de algumas perguntas que, no embate com o corpus, produziram deslocamentos que nos levaram a diversos materiais de diferentes momentos históricos. Esse percurso foi traçado levando em conta, principalmente, o primado do simbólico (ou do significante) e a língua como uma relação entre significantes dentro de um sistema de valores e, por isso, base comum de processos discursivos diferentes (HENRY, 2013). Essa relação entre significantes é material na medida em que funciona negativamente na estrutura. Pensamos a língua como o que se repete materialmente, a base simbólica da significação. E o sentido é material por ser efeito, tal qual o sujeito, também efeito.

Partimos também dos textos de Haroche, Pêcheux e Henry (2007) para pensar outro primado de uma Análise do Discurso que se proponha materialista: o primado da contradição sobre os contrários. A forma material é significante porque é histórica - ou seja, há um efeito de um conjunto de (in)determinações históricas que garantem sua textura. O sujeito é sempre-já-aí (constituído como sujeito pela Ideologia), suporte/efeito sem causa dos processos históricos. O indivíduo, para nós, analistas do discurso, não passa de uma ficção metodológica.

Percorremos vias e materiais distintos, “numa relação construída entre arquivo e corpus, abrindo possibilidade de interpretação” (CHAVES, 2015, p. 137), pelas e nas quais montamos o corpus de nossa pesquisa compondo: textos institucionais da Associação Cândido Ferreira, falas e músicas do programa Destilado da Rua da Rádio Maluco Beleza, um artigo online do Jornal Brasileiro de Psiquiatria sobre a Síndrome de Diógenes, um panfleto de uma campanha da prefeitura de Campinas “Troque esmola por cidadania” e a contravenção de vadiagem do Código Penal Brasileiro.

A singularidade do nosso objeto nos permitiu ver uma articulação incontornável entre dois objetos paradoxais: a loucura e a pobreza. Essas são duas discursividades com genealogias específicas, “que se encontram, se atravessam, se articulam em um determinado momento contingente da história” (BARBOSA FILHO, 2016, p.118) para produzir mecanismos de exclusão e controle dos corpos nas/pelas cidades.

Separamos em três sessões este processo discursivo do Destilado da rua, levando em conta “um discurso-prévio atualizado no acontecimento da enunciação” (CHAVES, 2015, p.22), ou seja, a construção de um efeito de sentido que não começa no programa “e sequer possui um início detectável, mas que deve ser remetido às relações de sentido nas quais é produzido” (CHAVES, 2015, p.22):

  1. O barril, a rua e a lou(cura): a louca resistência ao controle moral

  2. Humano, bicho e lixo: quem nós somos para vocês?

  3. Prometeram a cidadania para a gente destruindo a nossa e até hoje não cumpriram isso daí

 

1. O barril, a rua e a lou(cura): a louca resistência ao controle moral

 

1.1 Os malucos belezas e a loucura pobre da pobreza louca

 

O Sanatório Dr. Cândido Ferreira foi fundado em 1919 em Campinas sob o nome de Hospício para Dementes Pobres do Arraial de Sousas.[3] Foucault (2008) propõe um olhar histórico para as clínicas com análises de documentos, laudos e outros materiais e vincula seu nascimento a uma necessidade de uma elite médica: era preciso corpos para pesquisar a cura de doenças. Abriram-se as clínicas e aqueles que não podiam pagar consultas domiciliares (com médicos que eram médicos da família) eram internados nessas clínicas e serviam para o avanço da pesquisa científica. A doença tem como suporte o doente, o que o torna, infelizmente, o corpo/objeto da medicina.

Como suporte intercambiável (pobres morrem aos montes e sempre há um novo pobre doente/demente), são os corpos pobres dementes o próprio objeto do laboratório clínico. O nome dado ao hospital Cândido Ferreira reforça a análise foucaultiana, tendo em vista que explicita que seu público era demente pobre.

Wilson Klain (2018) destaca que, na produção histórica (desde o século XIX) da necessidade de divisão da cidade tal como se apresenta hoje, os saberes/pesquisas que se voltaram para aquilo que incomoda o homem produziram práticas de controle do homem estudado (o demente pobre). É isso que ele (re)interpreta como biopoder: centralizado no discurso e na prática médica, haveria nos hospícios, nos hospitais e nas casas de assistência a promessa de eliminar a loucura por meio do controle do espaço e do tempo (e do corpo).

Esse controle moral dos corpos não é da ordem de um ritual sem falhas: há uma percepção entre aqueles que querem normatizar e aqueles que são normatizados que escapa - algo que atormenta e que angustia as pessoas (Klain, 2018). A medicina produz - muito próximo ao modo religioso - uma forma de controle moral, quando, a partir do século XIX, adentra o espaço da família. Há um encontro da medicina e da propriedade privada e, mais especificamente, daquilo que ancora o saber médico no jurídico.

Klain (2018) traz o enunciado-base desse século: sem lar, não há família; sem família, não há moral; sem moral, não há Estado. É aqui que duas finalidades de uma saúde higienista são construídas: a higiene moral (para os nomais) e o tratamento moral (para os dementes pobres).

A pobreza e a demência são nomes que se sobrepõem e se confundem na história, inclusive na arquitetônica das cidades, nas suas divisões e interdições. Aqui jaz a eficácia da máxima jurídica: propriedade privada, família, igualdade e liberdade e aquilo que escapa e se inscreve no silêncio: a doença, a loucura e a pobreza.

Importante destacar que as posições sujeito não são anteriores à criação das instituições, pois:

 


Não há na luta ideológica (tampouco nas outras formas da luta de classes) ‘posições de classes’, existindo abstramente, que se aplicariam, em seguida, aos diferentes ‘objetos’ ideológicos regionais de situações concretas, na Escola, na Família, etc. É aqui que se dá o nó contraditório entre reprodução e transformação das relações de produção, no nível ideológico, na medida em que não são ‘objetos’ ideológicos regionais tomados um a um, mas o próprio corte em região (Deus, a Moral, a Lei, a Justiça, a Família, o Saber, etc.) e as relações de desigualdade-subordinação entre essas regiões, que constituem o palco da luta ideológica de classes (PÊCHEUX, p.5, 2018).

 

Hoje, pós-reforma psiquiátrica, fruto de muita luta política em torno dos significados de hospício, doença, dementes, etc., se extinguem os manicômios e o Cândido Ferreira troca seu nome para Associação de Assistência, que tem como finalidade “a prestação gratuita de assistência e desenvolvimento de atividades de ensino e pesquisa, assim como apoiar o desenvolvimento do Sistema Único de Saúde SUS, para usuários assistidos nos campos da saúde mental em particular e de saúde em geral”.[4]

Rompe-se com os sentidos anteriores em que a loucura é designada como demência e seu portador como demente, gerando nomes como saúde mental (ao invés de doença) e seus portadores, ao buscar tratamento na associação, tornam-se usuários. Importante notar que se inscreve por ausência em saúde mental a questão da doença/demência, marcando um deslize de sentidos que abre o campo da loucura para a questão da saúde e não somente o restrito olhar para a doença/demência. Visto que uma Associação de Assistência é uma Associação de Assistência a alguém - agora indeterminado - se escreve pelo silêncio e se inscreve na rede de memórias que retomaram aqueles que necessitam de tratamento (médico? terapêutico? social? moral?). Lembra do “aqueles que...” da produtiva forma jurídica? Estranhamente familiar:

 


A evidência de que ‘eu sou realmente eu’ (com meu nome, minha família, meus amigos, minhas lembranças, minhas “ideias”, minhas intenções e meus compromissos), há o processo da interpelação-identificação que produz o sujeito no lugar deixado vazio: ‘aquele que...’ isto é, X - impostas pelas “relações sociais jurídico-ideológicas” (PÊCHEUX, p.159, 1988)

 

Pensando, ainda, em relação à presença/ ausência, vemos que na designação dementes pobres há uma articulação entre dois objetos paradoxais – que são objetos “simultaneamente idênticos consigo mesmo e se comportam antagonicamente consigo mesmos” (PECHÊUX, 2011, p.115) - a pobreza e a loucura. Essa articulação é deslocada ao mesmo tempo que retomada em usuário do SUS assistido no campo da saúde mental. Além disso, os dementes pobres/usuários do SUS assistidos no campo da saúde mental continuam sendo objeto de pesquisa e ensino (desenvolvimento de atividades de ensino e pesquisa).

Apesar disso, o deslocamento mexe com as redes de memória e produz esses outros sentidos e abre, ao nosso ver, novos gestos de interpretação. Em 2002, dentro da Associação de Assistência, foram criados o ponto de cultura Maluco Beleza e a Rádio Online Maluco Beleza, ambos com o propósito de diminuir o preconceito relativo à loucura, mostrando novas possibilidades de tratamento e de convivência com as diferenças e com os diferentes.[5]

Assume-se, então, nesse enunciado, a produção histórica da diferença e abre-se a possibilidade para outras interlocuções e outros lugares enunciativos (com a criação de uma rádio online e de atividades culturais abertas ao público). A imagem evocada por essa designação e pendurada no Ponto de Cultura é a do cantor Raul Seixas (2017) e a letra da música Maluco Beleza:

 


Sd (1) enquanto você se esforça pra ser um sujeito normal e fazer tudo igual


Sd (2) Eu do meu lado, aprendendo a ser louco um maluco total na loucura real controlando a minha maluquez misturada com a minha lucidez vou ficar, ficar com certeza maluco beleza.


Sd (3) E esse caminho que eu mesmo escolhi é tão fácil seguir por não ter onde ir.


 

Propomo-nos a (re)ler essa sequência discursiva, pensando nos efeitos produzidos pela sua linearidade e trabalhando os efeitos enunciativos na sintaxe. As sequências discursivas acima constroem um eu em oposição ao você; e um louco/maluco beleza em oposição a um sujeito normal. O normal vem prescindido de sujeito e o louco não: será que a falta de opções marca uma falta de sujeito/agência? Propusemo-nos a olhar para essas sequências a partir de um gesto descritivo-interpretativo presente em Barbosa Filho (2016), negando a linearidade e horizontalidade do enunciado, pensando que a coordenação entre dois enunciados na Sd(1) marcados pela conjunção e estabelece a seguinte relação:

 


Sd (1) enquanto você se esforça para {ser um sujeito normal/fazer tudo igual}.


Sd(1.1)Enquanto [é] um sujeito normal [aquele que] se esforça para {ser um sujeito normal/fazer tudo igual}. (SEIXAS, 2017).


 

O eu é construído nas sequências discursivas em oposição a você, com base em uma relação: {Enquanto x é aquele que y, do outro lado, z é aquele que w}.

 


Sd (2) Eu do meu lado {aprendendo a ser um louco/ maluco total na loucura real controlando a minha maluquez misturada com a minha lucidez} vou ficar maluco beleza.


Sd(2.1)Do outro lado, [fica] maluco beleza [aquele que] aprende a ser um louco/maluco total na loucura real, controlando a maluquez misturada com a lucidez. (SEIXAS, 2017).

 

As sentenças discursivas produzem um efeito de pré-construído de um eu diferente do você, sendo o você, (re)escrito como sujeito normal. O sujeito normal - você - faz tudo igual, DO OUTRO LADO, o maluco beleza - eu - aprendo a ser maluco total na loucura real. A sintaxe, com seu papel fundamental na estruturação do sujeito, produz de um lado e do outro, é ou fica, sujeito normal/maluco beleza. São dois lados: um é necessário o esforço, o outro, apesar de ser passível de aprender, é tão fácil seguir por não ter onde ir. A negação desliza o sentido de sujeito normal como aquele que se esforça por ter onde ir e, chegar lá exige fazer tudo igual. Tudo isso ocorre por um processo de sustentação (Pêcheux, 1988) que apaga essa divisão e produção do pré-construído sujeito normal, que só é possível porque “algo fala antes de algum lugar” (Pêcheux, 1997).

É, portanto, na negação da igualdade tanto no onde chegar e no como chegar (fazendo tudo igual) que se constrói o maluco beleza e a separação entre o eu e o você - E um eu não pareço com você/não sou você. Ou seja, afirma-se a diferença constitutiva do Estado Capitalista e o estranhamento à máxima: “Somos iguais perante a lei (e perante os médicos)”. Escreve-se maluco beleza nos enunciados e cria-se uma relação material entre pobre demente/usuário assistido e o maluco beleza (eles se inscrevem num encadeamento):

 


demente pobre ͢→ usuário do SUS assistido no campo da saúde mental → maluco beleza


demência/pobreza → saúde mental → loucura real

 

Entendendo os processos de polissemia como um “processo de instauração da multiplicidade de sentidos” (ORLANDI, 1984, p.11), na medida em que limita e é limitado pelo processo de paráfrase, “que é o processo pelo qual procura-se manter o sentido igual sob diferentes formas” (ORLANDI, 1984 p.11), lemos esse trajeto como um gesto interpretativo que faz ecoar na história uma tensão entre o Estado (burguês) e os pobres - entre os normais e os dementes.

Ressaltamos que o maluco beleza da rádio não é o mesmo maluco beleza cantado nos shows de rock do Raul Seixas. São processos discursivos distintos que os produzem - em outras condições de produção - mas são eles que mantêm e legitimam a disputa pelos sentidos de loucura: não é a normalidade falando da loucura, mas a loucura apontando para a normalidade.

 

 

 

 

  1.  A síndrome do filósofo que vivia como um cão

 

Buscando entender a existência de um sentido partilhado (Rodriguez, 2014) a partir do qual certos indivíduos e espaços são significados como pobres, dementes, drogados, perigosos e decadentes, num percurso de memória, recorremos à maneira que um filósofo, que foi retratado por seus seguidores como um personagem conflitivo (Rodriguez, 2014) na medida em que ultrapassava as barreiras entre público e privado de sua época (comer, urinar, se masturbar em público – barreiras ainda presentes hoje), foi (re)significado no discurso médico atual:

 


Sd (3) A Síndrome de Diógenes recebeu esse nome em homenagem a Diógenes de Sínope, filósofo grego representante do cinismo. O cinismo é uma corrente filosófica que prega o desapego aos bens materiais, por acreditar que a felicidade não depende de nada externo à própria pessoa. Diógenes – o filósofo que vivia como um cão – morava em um barril. Seus únicos bens eram uma túnica, um cajado e uma tigela, simbolizando desapego e autossuficiência perante o mundo (STUMPF; ROCHA; 2017, GRIFO NOSSO).

 

Essa sequência discursiva produz efeitos de sentidos em que o nomear da síndrome é uma homenagem a um filósofo e esta homenagem funciona com base no reconhecimento de sintomas de uma doença no filósofo. Surge a inquietante pergunta: como é possível que se faça uma homenagem a alguém, sendo que esta homenagem coloca este alguém na posição de doente? Ou, em outras palavras: em que medida dar o nome de alguém a uma doença (sendo este alguém um filósofo, não um médico que “descobriu” a doença) pode ser uma homenagem?

 


Sd (3.1) filósofo Diógenes ͢ morador de barril ͢ desapegado ͢ doente mental


Sd (3.2) maluco beleza ͢ morador de rua ͢ pobre ͢ demente


 

Para compreendermos melhor a relação criada no enunciado entre os modos de vida do filósofo (viver como um cão – morar num barril) e os sintomas da doença nomeada em homenagem ao filósofo, trazemos um relato de atendimento a uma paciente (suposta) portadora da Síndrome de Diógenes:

 


Sd (4) No segundo atendimento, M. mostrou-se ansiosa e inadequada. Na sala de espera, mexia na lixeira. Confirmou que costumava recolher objetos do lixo alheio. Justificou-se dizendo que as pessoas do bairro jogavam fora coisas boas. Admitiu o uso de etílicos dizendo que bebia vinho algumas vezes apenas em casa. Ao exame, apresentava higiene satisfatória. Usava blusa de inverno em dia quente. Mantinha atitude desconfiada. Estava consciente, orientada globalmente e sem alterações senso perceptivas. O pensamento apresentava-se organizado. Sem alterações de memória. O humor estava moderadamente deprimido. O juízo crítico era comprometido. O Mini Mental foi 27/30 e o teste do relógio foi normal. A revisão laboratorial não mostrou alterações. Ressonância magnética do crânio evidenciou focos de alteração de sinal na substância branca nos hemisférios cerebrais, presumivelmente relacionados à microangiopatia, sem relevância clínica (STUMPF; ROCHA; 2017).

 

Nessa sequência discursiva se constrói uma divisão entre aquilo considerado normal (sem alterações, satisfatório) e o que é inadequado a partir da posição-sujeito médico (construída também no e pelo enunciado):

É considerado normal/doente aquele que x/y:

X

Y

apresentar higiene satisfatória ao exame

mostrar-se ansioso e inadequado/ mexer na lixeira na sala de espera

estar consciente, orientado globalmente e sem alterações senso perceptivas

recolher objetos do lixo alheio

Apresentar pensamento organizado

admitir usar etílicos

Sem alterações de memória

usar blusa de inverno em dia quente

Mini mental e teste do relógio normal.

manter atitude desconfiada

Apresentar alterações na ressonância clínica sem relevância clínica

ter humor deprimido

 

O juízo crítico ser comprometido

 

A Sd(4) produz - em um formato de prontuário médico - um efeito de real, na medida que constrói um olhar clínico sobre o doente, a partir de exames, num efeito de transparência que produz a evidência de que, a partir das sequências y, o diagnóstico de síndrome de Diógenes (dado no primeiro atendimento) fosse confirmado, mesmo levando em conta as sequências x. Isso nos aponta para “os equívocos na língua, quando a falta de um espaço conceitual preciso no discurso médico afeta a imprecisão do diagnóstico, dando contornos ambivalentes aos sentidos de corpo, de doença, de desvio” (BARBOSA FILHO, 2017, p. 13).

Podemos dessegmentar a Sd(5) para pensarmos no uso do discurso relatado, por meio do qual se produz um espaço enunciativo marcado pela consignação da alteridade, em que o outro (o doente) é falado pelo prontuário:

 


Confirmou que costumava recolher objetos do lixo alheio. Justificou-se dizendo que as pessoas do bairro jogavam fora coisas boas. Admitiu o uso de etílicos dizendo que bebia vinho algumas vezes apenas em casa. (STUMPF; ROCHA; 2017).

 

No jogo sintático do confirmar que, justificar que, admitir que..., é possível pensar as formas como os enunciados da paciente foram (re)significados pelo discurso médico:

 


Pegar coisas boas que as pessoas jogam fora > ͢recolher objetos do lixo alheio


Beber vinho algumas vezes apenas em casa > ͢fazer uso de etílicos. (STUMPF; ROCHA; 2017).

 

Entendemos, a partir das Sd(4) e Sd (5), que há uma forte oposição moral a qualquer desvio de normas de comportamento, fortemente vinculada a uma oposição moral ao drogado (uso de etílicos – não presente em Diógenes), ao vadio-sujo (dorme num barril, mexe no lixo) e à loucura (na medida que uma síndrome está dentro do campo da saúde mental). Ansioso, inadequado, deprimido, desconfiado e comprometido são as formas textualizadas para determinar o sujeito doente: em um raciocínio tautológico - é deprimido aquele que apresenta humor deprimido, é inadequado aquele que apresenta comportamento inadequado - esse processo de sustentação do discurso médico com base numa forma lógica (e também jurídica) inscreve por ausência a indeterminação: “Quem nós somos para vocês?”, enunciado lacunar e afrontador retirado de falas na rádio Destilado da Rua, que produz eco em todo nosso percurso de leitura.

Não é possível encontrar demente pobre nos artigos sobre síndrome de Diógenes, mas parece-nos que algo permanece na relação de sentidos entre os doentes e os sintomas falados a partir da posição-sujeito médico, numa relação entre o que é (im)possível aparentar, ser e usar. Esse (im)possível toca diretamente no controle moral do corpo e naquilo que fundamenta a prática médica numa questão jurídica; o sujeito de direito e de deveres - aquele passível de ser individualizado, responsabilizado, e consequentemente, de ser tratado e controlado. No entanto, sabemos, desde Freud, que algo escapa:

 


Tomar até o final a interpelação ideológica como um ritual, supõe reconhecer que não é um ritual sem falha, falta e rachadura: ‘uma palavra por outra’ é a definição da metáfora, mas é também o ponto onde um ritual ideológico vem se quebrar no lapso. (...) A ideologia toca o inconsciente pelo viés do impossível. O lapso e o ato falho marcam o impossível de uma dominação ideológica fora de toda contradição. (PÊCHEUX, 2018, p.16).


 


 


 


 


 


 

2. Humano, bicho e lixo: quem nós somos para vocês?

 

2.1 A gente é só, sabe o quê? Mais um ser humano.

 

Tendo em vista que as formações discursivas sempre estão em relação e que os sentidos não possuem origem detectável, analisamos a seguinte sequência discursiva recortada de falas dos programas da rádio Destilado da Rua, inter-relacionando às sequências discursivas analisadas na seção anterior:

 


Sd (6)Ah! As pessoas tratam a gente assim como [assim como o que? ] /tipo assim, se a gente pede uma moedinha aqui outra ali, a gente ainda consegue [o que?], mas algumas pessoas tratam a gente assim como lixo. É morador de rua? É ladrão. É isso [isso o que?]. É aquilo. [aquilo o que?] Você entendeu? Eu falo para vocês, a gente não é nenhum criminoso, não é nada, a gente é só, sabe o quê? Mais um ser humano. (GRIFOS NOSSOS). (MÍDIA LIVRE VAI JÃO, 2017).

 

Analisamos, com base em Cardoso (1995), que os demonstrativos anafóricos isso e aquilo não retomam um elemento referencial (não estão retomando, pelo dito, nenhum sintagma do texto), mas sim um elemento exofórico, do interdiscurso. Isso produz um efeito de distanciamento entre “o espaço enunciativo do discurso que se constitui na interlocução e o interdiscurso do interior do qual se buscam elementos socialmente já avaliados para a constituição dos referentes” (CARDOSO, 1995, p.169). Em outras palavras, o uso do isso e aquilo permite que o enunciador não assuma as formulações pressupostas, então, fica a cargo do ouvinte preencher os sentidos de isso e aquilo nesse texto.

Aqui, é necessário pensarmos esse uso dos demonstrativos, tendo em vista que “o que liga o dizer e a sua exterioridade é constitutivo do dizer” (ORLANDI, 2010, p. 14) e que “o sujeito da análise do discurso não é o sujeito empírico, mas a posição sujeita projetada no discurso” (ORLANDI, 2010, p.15), relacionada às condições de produção desse enunciado descrito na Sd (6):

O locutor, enunciando de/pelo programa de rádio Destilado da Rua direcionado a um público desconhecido – heterogêneo, introduz em seu discurso o nome recebido por um outro – morador de rua- e nega (a gente não é) sentidos estabilizados no imaginário da cidade que relacionam o morador de rua a vadiagem, drogadição, loucura, pobreza, etc. A antecipação é, em grande parte, responsável pela argumentação dessa sequência discursiva, pois o uso de tipo assim, isso, aquilo funciona a partir “da imagem que o locutor faz da imagem que o interlocutor tem dele” (ORLANDI, 2010, p.16).

Propomos, como gesto de interpretação, (re)ler a Sd (6) da seguinte maneira:

 


Sd(6.1) Ah! As pessoas tratam a gente assim como [cachorro] tipo assim, se a gente pede uma moedinha [ossinho] aqui outra ali, a gente ainda consegue [ser visto como bicho], mas algumas pessoas tratam a gente assim como lixo. É morador de rua? É ladrão. É isso [demente pobre]. É aquilo [vagabundo drogado]. Você entendeu? Eu falo para vocês, a gente não é nenhum criminoso/nada [retoma o isso e aquilo], a gente é , sabe o quê? Mais um ser humano. (MÍDIA LIVRE VAI JÃO, 2017).

 

Vemos, a partir da progressão por justaposição da Sd(6), a maneira como se construíram enunciativamente as disputas de sentidos em morador de rua (pobre demente/pobre coitado e ladrão/vagabundo) – dando a ver o processo discursivo que produz o pedinte/demente pobre (pedir uma moedinha aqui outra ali), e por isso, ainda consegue ser visto como um bicho (um filósofo que vive como um cão – um doente que remexe o lixo alheio) merecedor de caridade/assistência/tratamento, mas/e ao mesmo tempo produz o ladrão/vagabundo/drogado (imoral) e é tratado como um lixo (dispensável, desprezível, sujo, inútil), merecedor de punição, por negação.

É, nesse enunciado contingente, que acidentalmente aparece pela primeira vez nesse estudo uma afirmação de humanidade que se repetirá e se deslocará inúmeras vezes nas falas da rádio Destilado da Rua: A gente é só mais um ser humano. O encadeamento de a gente não é como a gente é só mais um produz a seguinte relação: A gente não é ser humano+x, a gente é só mais um ser humano.

O funcionamento do marca a (im)possibilidade de dizer: ser humano criminoso. A gente não é ser humano (criminoso, viciado, louco, vagabundo, etc), a gente é só ser humano.  Mas dizer a gente - morador de rua - é só mais um ser humano, marca a (im)possibilidade de marcar uma diferença no que seria o ser humano?

Para darmos ênfase a essa construção A gente é só mais um ser humano, tendo em vista as condições de produção desse enunciado, trouxemos para discussão os estudos de Butler (2010), buscando devolver a opacidade... Primeiramente, pontuamos a impossibilidade de pensar o corpo humano/vida humana sem pensar nas condições de produção e manutenção desse corpo:

 


(...) a normas, a organizaciones sociales y políticas que se han desarrollado históricamente con el fin de maximizar la precariedad para unos y de minimizarla para otros. No es posible definir primero la ontología del cuerpo y referirnos después a las significaciones sociales que asume el cuerpo. Antes bien, ser un cuerpo es estar expuesto a un modelado y a una forma de carácter social, y eso es lo que hace que la ontología del cuerpo sea una ontología social. (BUTLER, 2010, p. 15).

 

É, desse modo, levando em conta o funcionamento do simbólico, que a autora nos sugere pensar a diferença entre apreender e reconhecer uma vida: é porque “hay «sujetos» que no son completamente reconocibles como sujetos, y hay «vidas» que no son del todo —o nunca lo son— reconocidas como vidas” (BUTLER, 2010, p.17) que a evidência em um ser humano não é tão evidente assim:

 


Si el reconocimiento caracteriza un acto, una práctica o, incluso, un escenario entre sujetos, entonces la «reconocibilidad» caracterizará las condiciones más generales que preparan o modelan a un sujeto para el reconocimiento; los términos, las convenciones y las normas generales «actúan» a su propia manera, haciendo que un ser humano se convierta en un sujeto reconocible. (...) En este sentido, la reconocibilidad precede al reconocimiento. (BUTLER, 2010, p. 19).


 

Esse gesto analítico desliza os sentidos: a questão não é como incluir mais pessoas dentro das normas já existentes e sim pensar como as normas existentes determinam o reconhecimento e a priori a reconhecibilidade de uma vida, de maneira diferencial:


 


De hecho, una figura viva fuera de las normas de la vida no sólo se convierte en el problema que ha de gestionar la normatividad, sino que parece ser eso mismo lo que la normatividad está obligada a reproducir: está viva, pero no es una vida. Cae fuera del marco suministrado por las normas, pero sólo como un doble implacable, cuya ontología no puede ser asegurada pero cuyo estatus de ser vivo está abierto a la aprehensión. (BUTLER, 2010, p.22).


 

Temos a contradição fundante da normatividade: a diferença/exclusão que ela parece obrigada a reproduzir é a mesma que ela busca gestionar sobre o nome de problema. É da ordem do impossível assegurar que toda vida tenha o mesmo <<status de vida>> numa sociedade que funciona pela exploração do homem pelo homem... Mas não é exatamente sobre/a partir (d)esse impossível que se produz o Direito?

 


De ahí que, con referencia a cualquier ser vivo, no sea posible afirmar por adelantado que existe un derecho a la vida, puesto que ningún derecho puede mantener alejados todos los procesos de degeneración y de muerte; esa pretensión es la función de una fantasía omnipotente del antropocentrismo (que busca negar la finitud del anthropos igualmente) (...). (BUTLER, 2010, p.37).

 

Os distintos modos de apreender, controlar e administrar uma vida produzem definições do que seria uma vida propriamente dita, com base em dois principais esquecimentos: de que os animais morrem e de que os homens são animais. É nesse sentido que Butler (2010) trabalha o conceito de Biopolítica: o discurso da vida em geral e o da biomedicalização em particular.

Esse pensamento vai ao encontro das discussões sobre o discurso higienista do século XIX em diante, quando nos esbarramos no sujeito, aquele que aparece como primeiro e único responsável por suas (más) ações. É no conceito jurídico de pessoa que se constitui a indeterminação base da liberdade do sujeito como o próprio apagamento da dependência “de uma vida humana à outras vidas humanas, inclusive e principalmente anônimas” (BUTLER, 2010, p.30).


 


La distribución diferencial de la precariedad es, a la vez, una cuestión material y perceptual, puesto que aquellos cuyas vidas no se «consideran» susceptibles de ser lloradas, y, por ende, de ser valiosas, están hechos para soportar la carga del hambre, del infraempleo, de la desemancipación jurídica y de la exposición diferencial a la violencia y a la muerte. (BUTLER, 2010, p.45).


 

Precisamos considerar a exposição diferencial à violência e à morte quando pensamos “mais um ser humano”, devolvendo então esse enunciado às suas condições de produção. Isso é, lemos esse enunciado levando em conta a maximização da precarização da vida de/na rua:

 


(...) as mortes de rua não são entendidas, justificadas ou sequer nomeadas pelas autoridades. Estas mortes são normalmente caladas, um silêncio que caminha em paralelo com o próprio anonimato das vidas que antecederam. As vidas de rua constituem figuras eminentemente públicas e paradoxalmente destituídas de estatuto político. A visibilidade a que são expostas apenas reforça o estigma e estereótipo de ‘gente inútil’, ‘descartável’, ‘sem valor’. Ou então, em seu extremo negativo, compondo parte das ‘classes perigosas e poluentes’. Sua exposição parece apenas confirmar seu precário anonimato. Isso, pois sua aparição como problema público se faz não a partir de sua colocação como sujeito político, mas como corpo abjeto, objeto redundante que incomoda. (RUI [et all], 2016, p.25).

 

2.2 A propriedade privada cromossômica

 

“A ideologia jurídica denuncia-se desliando o seu ato de nascimento. E o seu ato de nascimento é o posturar que o homem é naturalmente um sujeito de direito, isto é, um proprietário em potência, visto que é de essência apropriar-se da natureza” (EDELMAN, 1976, p.25). É, aqui, no conceito jurídico de pessoa, que reside a base de toda narrativa mistificadora do Direito, a liga entre o sujeito e a propriedade privada - “a pessoa humana é juridicamente constituída em sujeito de direito, em <<sempre-já sujeito>> independentemente da sua própria vontade” (EDELMAN, 1976, p.28).


 


(...) o sujeito de direito é a expressão geral e abstrata da pessoa humana. O que torna esta expressão eficaz é a capacidade geral do homem de ser senhor de si e logo adquirir. Se esta capacidade é o modo de ser do sujeito, é porque o sujeito pode/ quer/ consente / é livre de poder dispor de si e de adquirir. (EDELMAN, 1976, p.28).

 

A liberdade é, então, a propriedade privada de si próprio que garante a possibilidade de adquirir/e de se vender. E, aqui, também reside o cerne do Direito que se autosustenta e basta por si só: o sujeito de propriedade:

 


O mistério deste direito objetivo mantém-se integralmente. Tudo o que se sabe acerca dele é que dá à pessoa o poder de ser proprietário ou patrão. É este conceito de direito que determina para o Direito, o domínio do direito. É o Sujeito que determina o sujeito. Traduzamos: o Comércio prova-se pelo comércio. É uma tautologia mistificadora. (EDELMAN, 1976, p.30).


 

É nos silêncios dessa tautologia mistificadora e naquilo por onde ela escapa (tendo em vista que o próprio funcionamento da ideologia jurídica torna inútil a questão do seu funcionamento) que podemos ver aquilo que a ideologia jurídica (faz) apagar: ela torna mais eficazes as relações de produção e garante a exploração do homem pelo homem pela divisão do trabalho:


(...) o sujeito de direito existe em nome do direito, isto é, o Direito dá-lhe o seu poder; ainda melhor: ele dá ao direito o poder de lhe dar um poder; por outro lado, o poder que ele deu ao direito regressa a ele: o poder do direito não é senão o poder dos sujeitos de direito: o Sujeito reconhece-se a si próprio nos sujeitos. (...)O poder (a propriedade) no Poder (o Estado). (...) Basta ao direito dizer que o Homem tem um Poder, que este Poder protege o seu Interesse, e que a sua vontade livre é uma vontade que quer o seu Interesse para <<pôr em andamento>> a ideologia jurídica. (EDELMAN, 1976, p.5).


 

Tendo em vista esse funcionamento da ideologia jurídica, construiremos um percurso de textualização da vadiagem, pelo discurso jurídico, em diferentes momentos históricos:

 

 

 

2.3 Legislação sangrenta

 

Marx (2017) direciona nosso olhar para a transformação dos plebeus em mendigos, ladrões, vagabundos na transição dos modos de produção feudais para os modos de produção capitalista, com a criação, no fim do século XV, de uma legislação sangrenta na Europa Ocidental:

 


Os expulsos por dissolução dos séquitos feudais e pela expropriação violenta e por sacões da terra, este proletariado fora-da-lei não podia, possivelmente, ser absorvido pela manufactura nascente tão rapidamente quanto era posto no mundo. Por outro lado, estes [homens] subitamente catapultados para fora da sua órbita de vida habitual não se podiam adaptar tão subitamente à disciplina da nova situação. Transformaram-se massivamente em mendigos, ladrões, vagabundos, em parte por inclinação, na maioria dos casos por constrangimento das circunstâncias. Daqui, no fim do século XV e durante todo o século XVI, em toda a Europa ocidental, uma legislação sangrenta contra a vagabundagem. Os pais da classe operária actual foram, antes do mais, castigados pela transformação, a que foram sujeitos, em vagabundos e pobres. A legislação tratava-os como criminosos «voluntários» e pressupunha que dependia da boa vontade deles que continuassem a trabalhar nas velhas condições que já não existiam mais. (MARX, 2017, grifos nossos).


 

Assim, Marx (2017) analisa as leis sangrentas pondo em evidência que “a parceria entre a burguesia e o Estado está na gênese da legislação sobre o trabalho constituída pela exploração do trabalhador e ao mesmo tempo inimiga dele no seu decurso” (CHAVES, 2015, p.79). As leis trabalhistas e a lei de vadiagem significam o corpo do proletário como mercadoria: é um corpo útil para o Estado/burguesia quando vende sua força de trabalho por um preço baixíssimo (similar [?] à escravidão), mas considerado inútil quando não vende sua força de trabalho (está sem trabalho) e (re)transformado em mercadoria (escravidão). Dessa maneira, os aparelhos repressivos do Estado controlam esse corpo para que ele se encaixe em duas posições: proletariado ou escravizado (marcando o corpo do vagabundo). Isso ocorre no processo de consolidação do capitalismo.

Apontamos, a partir de Marx (2017), a transformação de populações em vagabundos pobres pela falta de trabalho e propriedade privada e depois em criminosos, exatamente por essa mesma falta. A falta é a falha do próprio sujeito (sujeito que é dono de si próprio para poder vender a sua mão de obra), passível assim de penalização. Essa penalização no século XVI era marcada no corpo: era o próprio Aparelho repressor do Estado que tatuava, assim como os bichos (vacas, etc), a marca do crime da falta: vagabundo.

Aqui, o vagabundo pobre faz ressoar o demente pobre e as faltas são a marca desses corpos: falta de trabalho (formal), falta de moradia (família, propriedade privada), falta de saúde (mental). Por hora, buscaremos mostrar outras formas de textualização da vadiagem: no campo do jurídico no/do Brasil.

 

2.4 Perversão dos costumes e caráter

 

Em nosso país, a lei da vadiagem toma corpo com a criação do Código Penal do Império do Brasil em 1830: “Art. 295. Não tomar qualquer pessoa uma occupação honesta, e útil, de que passa subsistir, depois de advertido pelo Juiz de Paz, não tendo renda sufficiente.” (BRASIL apud FABRETTI;RACHID, 2017, p.5).

Temos que pensar esta lei e a que a substituirá na República em relação às suas condições de produção:

 


... um Rio de Janeiro tumultuado, assolado por doenças epidêmicas, como a febre amarela, dispondo de precária infraestrutura e inchado demograficamente devido à migração expressiva de estrangeiros - em sua maioria de origem portuguesa - e ao contingente de escravos libertos vindos da zona rural. Transformações políticas, econômicas e sociais que se iniciam no fim do império para o começo da república e se ligam à transição do trabalho escravo para o livre-assalariado, bem como à formação de uma ordem burguesa. (CHAVES, 2015, p.80).


 

Ou seja, é em um cenário “caracterizado pela construção de uma ideologia positiva do trabalho, regras higiênicas aplicadas ao espaço público e difusão de valores morais à figura do cidadão” (CHAVES, 2015, p.81) que entra em vigor no Código Penal de 1890, “o caráter geral da disposição relacionada à repressão daquele que, sendo apto para o trabalho, não o faz porque não quer” (FABRETTI; RACHID 2017, p.5):

 


Art. 399. Deixar de exercitar profissão, officio, ou qualquer mister em que ganhe a vida, não possuindo meios de subsistência e domicílio certo em que habite; prover a subsistência por meio de occupação prohibida por lei, ou manifestamente offensiva da moral e dos bons costumes. (BRASIL apud FABRETTI; RACHID, 2017, p.5).

 

Esta formulação devolvida às condições de produção - transplantação do discurso médico europeu para as relações sociais no espaço da cidade brasileira em um contexto de transição do trabalho escravo para o livre assalariado e de formação de uma ordem burguesa brasileira – aponta a jurisdição do controle do corpo negro agora liberto, não considerado útil pelo Estado/burguesia por não ser mais mercadoria e não estar vendendo sua mão de obra (parte por inclinação, maioria por constrangimento das circunstâncias) e, por isso, considerado como um corpo perigoso, violento, hostil - como vemos em Fabretti e Rachid (2017):

 


No próprio ano de sua ocorrência [abolição da escravidão], em 1888, surge uma proposta de lei à Câmara dos Deputados pelo Ministro da Justiça – Ferreira Vianna, o qual imaginava que o número excessivo de libertos, sem emprego e sem moradia, era fator potencial ao aumento da criminalidade; isso devido ao ócio que experimentavam. (p.5).

 

A questão do possuir domicílio certo em que habite vai desaparecer em 1941, no Decreto-lei 3.688: “Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, em ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita” (BRASIL apud FABRETTI; RACHID, 2017, p. 5).

Podemos perceber que é a partir do funcionamento do ou que se cria uma relação de determinação de ociosidade: sendo significada como aquilo que alguém sendo válido para o trabalho se entrega, podendo ser tanto: o não ter renda que lhe assegure meios bastante de subsistência ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita. Vemos, dessa forma, que ocupação ilícita interdita trabalho na/de rua/informal, tendo em vista que não fica especificado o que seria essa ocupação ilícita: recobre de criminalidade qualquer forma de ganhar dinheiro na rua, na medida que o ilícita retoma occupação prohibida por lei, ou manifestamente offensiva da moral e dos bons costumes.

Fica evidente que os sentidos de trabalho são determinados tanto pela lei quanto pela moral e bons costumes. Apesar do enunciado domicílio certo que habite ter sido retirado, parece-nos que ele continua operando, também, numa relação de pressuposição, no pré-construído ociosidade.

Esse sentido de ociosidade como contravenção é forjado na medida em que se constrói, no campo jurídico e político, a nacionalidade brasileira:

 


Tendo a saúde sido posta como agente transformador de uma sociedade avaliada doente, a nova ordem, que visava à civilização, passou a ser estabelecida por meio da conjugação entre aspectos médicos e legais.


A proposta era o estabelecimento de uma sociedade aos padrões europeus de desenvolvimento. Todavia, grande parcela desse todo social era considerada degenerada em virtude de ‘vícios’, tais quais o alcoolismo, a prostituição e a vadiagem; que, inclusive, representavam um perigo à medida que impulsionavam a criminalidade. (FABRETTI; RACHID, 2017, p.6).

 

Vadiagem enquanto crime tem, desse modo, uma relação constitutiva com outras discursividades, mesmo tendo genealogias diferentes, como a da loucura, drogadição e pobreza, sentidos saturados em perversão dos costumes e caráter:

 


Mendicidade, vagabundagem, roubos, lesões corporais, estupros, atentados contra o pudor, incestos, incêndios e suicídios estavam relacionados com a perversão dos costumes e do caráter, provocada pelo álcool, pela relaxação de costumes, pelo desdém das conveniências, pelo abandono das ocupações, pelo egoísmo, pela brutalidade, pela incapacidade para o trabalho e, por fim, pela demência. (CANCELI apud FABRETTI; RACHID, 2017, p.7).

 

Temos, a partir do processo de textualização da demência, da pobreza, da drogadição como criminalidade, a não separação entre a moral e o Direito. A partir dos pré-construídos vagabundo, demente pobre, drogado e ladrão, os discursos na e da cidade operam por exclusão a determinados corpos, considerados não civilizados e que têm, então, sua cidadania consignada sob a condição de mudança de conduta. Ou seja, é necessário que, por meio de penas, o indivíduo aprenda e abandone a ociosidade, para assim ser reconhecido enquanto cidadão.

Dito de outro modo, temos que a pobreza, a demência, a drogadição são revestidas de criminalidade, a partir de uma moralidade que permite separar com base entre o normal e o doentio, retomado em moral e bons costumes, diferenciar trabalho de trabalho de rua/esmola: aqui incluso, dis(puta)damente no interior da formação discursiva higienista, trabalhos perigosos, deploráveis que não são significados como trabalho nos sentidos partilhados sobre cidade que operam numa divisão política/simbólica entre um corpo hostil e cidadão.

É essa memória de exclusão simbólica e política na e pela cidade que permite a associação óbvia: é morador de rua? É ladrão, É isso, É aquilo, ou seja, “é fundamental compreender essa sequência nas relações que ela estabelece com outras sequências no interdiscurso, todas afetadas (de maneiras distintas) por uma série de determinações” (BARBOSA FILHO, 2016, p.88).

Fabretti e Rachid (2017) apontam a questão da interpretação no jurídico, na medida em que o vadio é uma questão “própria do sistema gerador de absorção do trabalhador pelo mercado” (p.11) significada enquanto uma contravenção prevendo: “Pena - prisão simples, de quinze dias a três meses. Parágrafo único. A aquisição superveniente de renda, que assegure ao condenado meios bastantes de subsistência, extingue a pena”. (BRASIL, 2017).

Interessante notar a contradição em que opera essa penalização: se é preso por não ter trabalho (o que é considerado trabalho segundo a lei e segundo a moral e os bons costumes) e por não ter domicílio certo (funcionando na distinção não-dita entre desempregado e morador de rua, retomando o já-dito sobre vadiagem no discurso jurídico – da inauguração da lei até sua última alteração), mas pode-se ser isento da pena caso haja a aquisição superveniente de renda, ou seja, caso este indivíduo arrume um trabalho (venda sua força de trabalho) e consiga domicílio certo.

Assim, a formulação da contravenção entende a ociosidade, retomando as palavras de Marx (2017), como inclinação e não como constrangimento das circunstâncias – apagando a exclusão destes indivíduos do mercado de trabalho formal na e pela retomada dos sentidos produzidos nas leis sangrentas - significando, pelo silêncio, a criminalização da pobreza (e da loucura, a partir de demente pobre/vagabundo pobre) produzida no e pelo discurso jurídico.

Essa contradição é o equívoco operante entre as discursividades assistencialistas/de saúde e de segurança, que produz práticas (prisão e assistência) e lugares (cadeia e instituições de assistência) entre a piedade e a punição: demente pobre -> usuário assistido/criminoso.

 

3. Prometeram a cidadania para a gente destruindo a nossa e até hoje não cumpriram isso daí

 

3.1 Troque esmola por cidadania

 

Nessa seção, propomos uma análise de um enunciado recortado do panfleto da Prefeitura de Campinas, de uma campanha denominada Troque Esmola por Cidadania, realizada desde de 2016:

 


Sd (7) Dar comida pode atender a uma necessidade momentânea. O ato de dar comida pode apenas fortalecer a permanência das pessoas na rua sem perspectiva de uma vida melhor.


Sd (8) Não doe roupas, cobertores e colchão para quem está na rua. Sua doação pode fazer apenas com que essa pessoa permaneça na rua embaixo das marquises, calçadas e viadutos.[6]


 

A formulação troque sua esmola por cidadania constrói uma relação de impossibilidade de conciliação entre esmola e cidadania, jogando com a própria produção do morador de rua que precisa submeter sua cidadania – que nessa discursividade é quase a dignidade humana – para pedir e sobreviver de esmolas. Saiba porque dar esmola não ajuda conjuga dois enunciados: Dar esmola não ajuda com você precisa saber disso [porque você não sabe, quem sabe somos nós].

Este nós funciona, nesse jogo pronominal, enquanto nós das instituições de assistência que auxiliamos essas pessoas a saírem das ruas. Entra em disputa, então, o reconhecimento de uma outra esmola – mais legítima porque intermediada por instituições que se ocupam, justamente, de tirar essas pessoas das ruas – sem considerar o lugar daquele que necessita dela, como se isso fosse uma decorrência natural das relações da cidade, articulando:

 


... discursividades jurídicas, administrativas, científicas, políticas, pedagógicas (...) sinalizando um processo ao mesmo tempo universalizante e privatizante que produz um efeito de mascaramento/simulação da divisão desigual dos indivíduos no direito à cidade. (CHAVES, 2015 , p.32).

 

Assim, o que dá materialidade a esse sujeito que permanece na rua é a consignação de sua cidadania – deixar de ser cidadão – para ser esse sujeito inominável (o seu nome não aparece na campanha, apenas como quem está na rua, a pessoa em situação de rua, pessoas pedintes, flanelinhas, vendedores de bala e nome de ofícios), nunca como cidadão.

Vale a pena destacar doar comida é dar esmola e não ajuda porque resolve uma necessidade momentânea, ao contrário do trabalho voluntário, pelo qual a pessoa em situação de rua pode buscar comida. O que está em jogo é a/o (falta de) trabalho e o nome que ele recebe nas instituições: trabalho voluntário - negando que as instituições funcionam por divisões do trabalho e por relações de produção - e interditando a possibilidade do acesso à comida que não seja por meio da venda da mão de obra. Apaga-se a pequena oferta de trabalho para tamanho proletariado fora-da-lei e as condições precárias de sobrevivências desses corpos que têm a fome/frio (re)escrita/o como necessidade momentânea.

 

3.2 Troque cidadania por esmola

 

Nesta seção, analisaremos a letra da música Amigo flanelinha, de Osvaldo Silva, tocada diversas vezes no programa Destilado da rua, na medida que textualiza a permanência da rua e o flanelinha presentes na Campanha acima analisada:

 


Choro só em pensar o amiguinho [menor de idade, identificação, diminutivo indicando] que eu conheci,


numa tarde de sol com um balde, água e sabão.


Com a flanela na mão no sinal vermelho. [é o lugar que o define]


Senhor, roupa suja e de pés no chão.


Todo dia toda hora ele tava alí


não tinha pai não tinha mãe [ausência de família], ele me falou:


Minha casa é a rua [mas, e, no entanto...] eu durmo nas praças.


após me servir, chorando me pediu:


- Senhor, um trocado por favor! Chorando suplicou.


- Vivo nas ruas a muito tempo, comendo o pão que o diabo amassou, o meu sonho é ir a escola, não lavar carros e nem cheirar cola e na minha solidão é o meu desabafo. As drogas me dominam, não consigo fugir [pra onde]. O povo passa e eu as vezes na praça sugando aquela cola que não tem valor.


Sou filho do mundo jogado [por quem?] ao nada [não é só vazio... ausência, falta];


Feito poeira na estrada. (SILVA, 2017).


 

Nos primeiros trechos da música, podemos apontar “a radicalidade das práticas de Estado e do poder econômico que se desenvolvem não apenas sobre o conceito jurídico de ‘pessoa’, mas sobre a materialidade corporal desses sujeitos: sobre a carne e sobre a pele” (BARBOSA FILHO, 2016, p.20), que constrói o corpo do morador de rua enquanto corpo fragmentado pelo efeito de metonímia: um balde, água e sabão, com flanela na mão no sinal vermelho, roupa suja e de pés no chão.

O corpo é inscrito pela ausência, sendo escrito numa relação em que é possível substituir mão por flanela e pés por chão. O corpo do flanelinha está atado ao corpo da cidade no sinal vermelho. O espaço ocupado pelo corpo nas fronteiras simbólicas/políticas da cidade enquadra o corpo-rua. Roupa suja como a calçada suja, um corpo sujo porque todo dia toda hora ele tava ali no sinal vermelho.

A relação constitutiva entre sujeito, espaço e sentidos textualizada nessa música dá a ver o processo pelo qual a rua é definida como falta: de trabalho, de vestimenta (limpa), de moradia e de família. Essa definição determina, por oposição, a posição sujeito-cidadão:


 


A representação dominante sobre a rua, que a configura como um espaço de ausências, lamina dos habitantes de rua o direito à cidade, por um lado, ao mesmo tempo que é produtora de um modo específico de conceber o social (e a si mesmos, como donos da sociedade), como dignos, limpos, democráticos, moralizados, familiares, autônomos e trabalhadores. (RUI [et al], 2016, p.17).

 

Essa tensão produz o cidadão definido a partir do que o flanelinha não tem e, por nada ter, seu corpo também não tem valor: Sd (9) O povo passa e eu às vezes na praça sugando aquela cola que não tem valor. Sd (9.1) } que não tem valor (SILVA, 2017).

Como aquele que não tem valor/ filho do mundo jogado ao nada/ poeira na estrada, ao flanelinha lhe cabe o sofrimento, choro, desespero, servidão, enquanto ao cidadão lhe cabe a pena, generosidade, caridade, etc. A esmola, nessa discursividade, se escreve como trocado, podendo ser substituída numa relação associativa por uma moedinha da fala analisada no capítulo 2 – o flanelinha, então, recebe um tratamento de bicho.

Quando colocamos em relação esta posição flanelinha com a campanha Troque esmolas por cidadania, percebemos seu funcionamento com base numa culpa religiosa que coloca o cidadão como aquele que pode ajudar em oposição aos efeitos de sentido da campanha, que desliza esse sentido para esmola não ajuda/ pode apenas fazer com que a pessoa permaneça na rua.

Há, então, uma disputa de sentidos que se dá na articulação da loucura, pobreza, drogadição, vadiagem, produzindo práticas, lugares e discursos divididos entre o punir e o ajudar. Visando criar um efeito de fechamento, trazemos uma última fala que textualiza essa tensão:

 


Sd(10) Então é o seguinte, primeiro, a gente vai no SOS rua e não tem a atenção que nós merecemos, os moradores de rua, porque querendo ou não o SOS rua é nosso. A assistência social também, do centro pop também, nós vamos lá para pegar uma ficha para almoçar no Bom Prato, também não é liberado, quem tem cadastro lá só almoça na parte da tarde, isso tá errado, porque o cadastro é o tanto que vocês quer e não o tanto que nós queremos. Porque primeiro, tudo que tá lá é nosso. Prometeram a cidadania para a gente destruindo a nossa e até hoje não cumpriram isso daí. Já tá errado. Somos tratados na rua como lixo, guarda municipal vem e nos agride, guarda municipal vem e tira da onde nóis tamo, primeiro, o centro pop inventou um papel lá que segundo a justiça que nóis podemos permanecer no lugar que nós estamos com direito da gente, embora não estejamos roubando ninguém nem fazendo nada de errado com ninguém, mas quando nós estamos nesse lugar, nóis fala do nosso direito, assim mesmo somos agredidos e expulsos do lugar que nóis estamos, pô, quem nós somos para vocês? O albergue é uma merda, perdão o palavrão, mas tá uma merda. É só 5 dia lá e depois expulsa a gente como se fossemos um cachorro, como se fosse um lixo, como se fosse ninguém. Depois nóis queremo entrar lá de novo para tomar um banho, falta pouco a gente ficar ajoelhado lá para pedir somente um banho, comida? Para o tanto de marmitex que chega lá, eles jogam tudo no lixo, verifica o lixo lá, e num dá para ninguém, isso é errado. Acredito que meu tempo acabou, pensa sobre isso, se você quer verdadeiramente nos ajudar ou só tá aqui fazendo cena mesmo. (MÍDIA LIVRE VAI JÃO, 2017, grifos nossos).


 

Essa sequência discursiva fecha todas as análises feitas anteriormente: o Estado que, através de políticas, saberes, instituições e aparelhos, transforma uma parcela da população em moradores de rua (ladrão, vagabundo, demente, não-cidadão) é o mesmo que promete restituir essa cidadania.

Evidencia-se a (im)possibilidade da negociação da alteridade quando o que está em jogo é a permanência: mesmo que exista um direito de permanecer - embora não roubando ninguém nem fazendo nada de errado com ninguém [?] - na rua, é a partir da negação dele que se construíram, historicamente, as práticas repressoras do Estado (vide análise da contravenção da vadiagem) e essas práticas violentas permanecem, apesar/ao mesmo tempo que a prática de assistência do mesmo Estado/burguesia.

Pensamos, a partir de um efeito de fechamento, que se constrói, pelo atravessamento de discursividades médicas, assistencialistas e jurídicas, a transformação de corpos em problemas funcionando na contradição entre as soluções propostas: o Estado que auxilia (por meio de instituições de assistência e de saúde) e o Estado que pune (como infração por meio de aparelhos repressivos).

 

Considerações finais

 

Tomamos como ponto de partida analítico desse artigo uma aposta que diz que esse processo de constituição de sentidos de drogados, vagabundos e criminosos no imaginário está fortemente relacionado às tensões que envolvem a presença e ações de determinados corpos no espaço público. Pensamos assim, que determinados corpos são mais ou menos perigosos se oferecem mais ou menos “risco à suposta homogeneidade do imaginário das elites políticas e econômicas do Brasil” (BARBOSA FILHO, 2017, p.5), ou seja, ameaçam “o corpo político, os ‘cidadãos’” (BARBOSA FILHO, 2017, p.5).

Esses corpos perigosos são vulneráveis às arbitrariedades das instituições, estando expostos à violência de Estado que se exerce “não apenas no conceito jurídico de pessoa, mas no corpo” (BARBOSA FILHO, 2017, p.5): encarceramento, interdição a certos espaços, etc (vide a existência ainda hoje da contravenção de vadiagem). E é sobre esse corpo que os discursos médicos sobre a saúde mental articulam loucura, pobreza, drogadição e vadiagem. Também é sobre ele que se exerce o controle pela vitimização do discurso assistencialista de suas ações (horários de entrada, promessa de mudar de situação, disciplina, abstinência, etc). (BARBOSA FILHO, 2017).

Consideramos, a partir do percurso percorrido nesse trabalho, que se constrói, pelo atravessamento de discursividades médicas e jurídicas, um problema que tem como solução a contradição: auxílio (por meio de instituições de assistência e de saúde) e punição (como infração por meio de aparelhos repressivos). Sendo assim, o Estado, que por meio de políticas, saberes, instituições, produz o morador de rua como não cidadão, é o mesmo que promete restituir esta cidadania e é o mesmo que, como aparelho repressor, o pune.

Dito de outra forma, o Estado, por meio de instituições e discursos, opera por exclusão na e pela cidade produzindo cidadãos e não cidadãos, punindo esses últimos (tanto com a consignação da cidadania como pela violência no corpo - agredidos e expulsos como lixo) ao mesmo tempo em que faz cena de que quer ajudá-los: o que está em questão é a “organização da sociabilidade e do limite entre a diferença tolerável e a alteridade inegociável na cena pública, dando visibilidade à articulação entre os domínios da pobreza urbana, da medicina, do direito e das políticas públicas.” (BARBOSA FILHO, 2017, p.3).

Mas algo falha entre o controle e gerenciamento dos corpos e o embate diário do (re)existir nas ruas. Esses corpos perigosos falam, e falam desses lugares enunciativos (Zoppi Fontana, 2003) marcados por diversas transformações: é/existe enquanto corpo-objeto da prática e do discurso médico, constituído como sujeito pela Ideologia “É morador de rua? É ladrão. É isso. É aquilo”, sujeito-de-direito e por isso pessoa do jurídico “aquele que se entrega habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, em ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita”. Desses lugares, desestabilizam os sentidos estagnados de normalidade, humanidade e cidadania, deixando sentidos que sempre escapam: Pô, quem nós somos para vocês? Apontam que os equívocos e deslizes que transformam (e produzem) um efeito-sujeito são o lugar próprio da resistência.

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Data de Recebimento: 31/082018
Data de Aprovação: 28/01/2019

 

 

[1] No começo de 2017, na cidade de Campinas, tivemos o privilégio de acompanhar reuniões de ensaio, produção e gravação do programa Destilado da Rua na Rádio Maluco Beleza. O prédio da rádio é onde funciona o Ponto de Cultura Maluco Beleza e compõe uma série de prédios pertencentes ao Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira, no distrito de Sousas. A rádio era composta por uma equipe especializada que trabalhava para o Ponto de Cultura - que realizava as gravações, edições, publicava no website, etc - e a equipe de locutores do programa, que não era fixa: era composta por assistentes sociais e usuários do Centro de Referência Especializado para Pessoas em Situação de rua (Centro POP), militantes do Movimento Nacional da População de rua Pólo de Campinas, militantes da Mídia Livre Vai Jão, entre outros.

[2]Desenvolvido pelos coletivos responsáveis pelo funcionamento do programa Destilado da Rua a partir de recortes das falas do programa, das intervenções e protestos de rua da população de rua e reuniões do Fórum da População em Situação de Rua de Campinas. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=R6SQpKNVzdI&t=939s>.

[3] Disponível em: <http://candido.org.br/site/>

[4] Disponível em: <http://candido.org.br/site/>

[5] Disponível em: <http://candido.org.br/site/>

[6] Panfleto com informativos da Campanha realizada pela Prefeitura Municipal de Campinas, discutidos na Reunião da Rádio Destilado da Rua, realizada no Centro Pop em 2017. Disponível em: < http://www.campinas.sp.gov.br/noticias-integra.php?id=30069> Acesso em: abr. 2017.