O controle da paisagem urbana – “rolêzinho”: jovens que incomodam


resumo resumo

Rafael Lopes de Sousa
Álvaro Cardoso Gomes
Luiz Antonio Dias



O presente artigo é resultado de investigações ainda em andamento no Grupo de Pesquisa, “Culturas Juvenis, Consumo e Mobilidade Urbana na Contemporaneidade”, iniciadas em 2016, junto ao Programa de Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Santo Amaro (UNISA). O objetivo principal desse grupo de estudo é o de desvendar a relação que os jovens de periferia estabelecem com os centros iluminados da cidade de São Paulo. Para isso, buscamos compreender as amplas possibilidades abertas por suas vivências cotidianas: para onde e movidos por quais interesses esses jovens se deslocam, de que forma vivenciam e elaboram experiências na cidade, quais as estratégias de apropriação do espaço urbano e como oferecem visibilidade às suas intervenções culturais.   

No presente artigo optamos em trabalhar com um fenômeno de ampla repercussão entre os jovens da periferia de São Paulo. Trata-se do “rolêzinho” e suas estratégias para o mundo do consumo, do lazer e da mobilidade urbana na cidade. Com essa agenda o “rolêzinho” tornou-se, em muitos aspectos, um importante porta-voz das demandas de aproximação e distanciamento dos jovens com os espaços de convivência coletiva da cidade. Fenômenos como a força mobilizadora do movimento hip hop, a catarse hedonista dos pancadões funks e o fetiche consumista que orientam as ações dos “rolêzinhos” oferecem-nos, por um lado, pistas para compreender melhor a ascensão da cultura periférica e apontam, por outro lado, para um cenário de transição muito mais complexo do que faz supor a consagrada visão binária que separou o fazer cultural entre produtores e consumidores. Uma explicação possível para esses fenômenos pode ser encontrada no conceito de “circulação cultural”, elaborado por Mikhail Bakhtin e que posteriormente teve a sua relevância confirmada em estudos desenvolvidos por Carlo Ginzburg[1].

A hipermodernidade[2] reforçou a importância do conceito de circulação cultural, ao aproximar a agenda sociocultural de diferentes culturas juvenis. Essa experiência criou, por exemplo, as condições necessárias para que os jovens de classe média mergulhassem no mundo dos pancadões funks e aí vivessem uma inédita aventura; permitiu também que os jovens da periferia se entusiasmassem com as novas possibilidades de consumo e lazer e deslocassem as suas pretensões, vontades e desejos das bordas da sociedade para os centros iluminados das lojas de grife dos shoppings centers.        

A pergunta que se faz então é: os grupos culturais podem interferir na forma com que os jovens de periferia se apropriam do espaço urbano? Nossa hipótese é a de que o fazer cultural desses grupos cria uma importante agenda de mobilização e pertencimento que ajuda os seus membros a se apropriem dos espaços da cidade. Essa apropriação não ocorre, todavia, de forma pacífica, daí as táticas de fazer e desfazer aparências utilizadas pelos jovens periféricos para resistir à segregação urbana. Essas táticas passam pelo consumo, pela criação de símbolos de pertencimento e alcançam um lazer dionisíaco que incomoda os moradores dos centros iluminados da cidade. Esse incômodo está e esteve relacionado com aquilo que foi e é definido como culturalmente aceito em nossos múltiplos cenários urbanos. Nesse sentido, é interessante notar que enquanto os pobres estiveram “confinados” na periferia, esse incômodo não provocou nenhuma reação exacerbada nas instâncias privilegiadas do tecido social. Quando, porém, esses atores sociais resolveram frequentar lugares e paisagens nunca antes frequentados por seus antepassados, o chão e as certezas de nossa democracia racial sentiram-se perigosamente ameaçados. Essa ameaça virou realidade após a abrupta movimentação e a repentina chegada de um exército de “estranhos” no território da segurança e do conforto da classe média.

A cidade de São Paulo constitui, pois, um importante campo de análise para o aprofundamento dessas reflexões. Foi nessa cidade que os jovens, unidos por laços de simpatia, criaram as condições para o surgimento do “rolêzinho”, são elas: funk como trilha sonora, roupas de grife para ostentação, Facebook e WhatsApp como plataforma prioritária de comunicação e o mais importante, participar dos “rolê” nos shoppings nos finais de semana. Participam desse grupo, jovens de 14 a 17 anos, que não se concentram numa determinada área da periferia, ou seja, não estão localizados num território, mas dispersos nos vários bairros periféricos da cidade de São Paulo. Apesar de dispersos em diversos territórios, os jovens do rolezinho elegeram os centros iluminados da cidade para suas reuniões.

Uma linha de estudos que guarda afinidades com este artigo é constituída por pesquisadores (ABRAMO, 1994; ARCE, 1997; CALDEIRA, 2001; GÓMEZ-GRANELL E VILA, 2003) que vêm tentando compreender esse novo protagonismo dos jovens na arena pública. Essa nova condição juvenil começou a ganhar contornos na segunda metade do século XX com a conquista da autonomia financeira (MORIN, 1969) trazida à tona pelas conquistas econômicas da geração pós-guerra e ganhou outros significados no final do século XX e foi lentamente alterando e fortalecendo a agenda pública dos jovens com novas vontades, desejos e saberes que afrontam as convenções e critérios de rigidez do mundo adulto. (ABRAMO, 1994).    

Diversas medidas públicas adotadas na cidade de São Paulo da década de 1990 para cá facilitaram a mobilidade desses jovens. Por exemplo, no início da década de 1990, com a privatização da Companhia Municipal de Transporte Coletivo (CMTC), a região metropolitana de São Paulo avança em seu projeto de encurtar as distâncias geográficas entre o centro e a periferia. Ainda que o interesse principal dessa medida fosse o de servir a agenda do trabalho, ou seja, possibilitar uma melhor locomoção dos trabalhadores de periferia para as fabricas, o fato é que os filhos desses trabalhadores utilizaram o transporte para sair do isolamento de suas regiões e, num mesmo movimento, estabelecer contato com outras regiões da cidade. Uma década mais tarde, com ações adotadas na gestão de Marta Suplicy (2001-2004), como o aumento dos investimentos destinados para a construção dos corredores de ônibus e a criação do Bilhete Único, essa realidade começa a ser alcançada. Aos benefícios trazidos por essas iniciativas somar-se-ia a ascensão da chamada “classe C” que, doravante, de posse de mais dinheiro para o gasto diário, expõe suas antigas necessidades de consumo para a sociedade (NEGRI, 2010). Talvez por isso observa-se, nesse mesmo período, o crescimento do interesse dos formadores de opinião pelos produtos culturais “periféricos”. A lógica que orientou e ainda orienta esse interesse foi e ainda é a lógica do “mercado”. Assim, se a vida, os costumes e os hábitos da periferia estavam circulando e causando fascínio em ambientes frequentados pela classe média, tornava-se, então, necessário fazer dessa demanda um grande e lucrativo negócio. 

Essa oportunidade foi rapidamente captada pela Rede Globo de Televisão que inicia em seu núcleo de dramaturgia uma série de telenovelas temáticas para trabalhar essa realidade. Em 2006 a telenovela Cobras & Lagartos (João Emanuel Carneiro) teve a sua trama ambientada no universo da periferia e seu protagonista era um vendedor ambulante. Esse personagem – cujo nome era “Foguinho” – viveu muitas desventuras na vida pessoal e profissional, mas, apesar de todos os percalços, perseverou e ascendeu socialmente, graças ao biônimo honestidade e criatividade, “características inatas” do homem pobre. O modo de vida desse personagem tornou-se, pois, um exemplo a ser seguido por seus semelhantes dentro e fora da tela. Ao ser ambientada na periferia e, ao investir em um negro como personagem central de sua trama, essa telenovela inovou a narrativa da teledramaturgia e deixou um legado altamente positivo para o núcleo de entretenimento da Rede Globo de Televisão; de sorte que, pouco tempo depois, as telenovelas Duas Caras (Agnaldo Silva, 2007), Cheias de Charme (Felipe Miguez e Isabel de Oliveira, 2012) e Avenida Brasil (João Emmanuel Carneiro, 2012) tiveram suas tramas construídas com personagens populares e ambientadas em bairros periféricos e sonorizadas com músicas que representavam esses contextos.

Idealizar a imagem do pobre é uma estratégia de marketing consagrada na teledramaturgia brasileira. Seus roteiristas só não imaginavam que um dia os personagens concebidos para os padrões da estrutura folhetinesca viessem expor as suas ambições e expectativas de vida no mundo das realizações e contradições humanas. 

 

Estranhos na Paisagem Urbana: Genealogia do “rolezinho”

 

Em meados da década de 1990, a sociedade brasileira vivia um momento particularmente delicado para a população da periferia. Era o início do governo de Fernando Henrique Cardoso, que, em nome da “austeridade econômica” promovia uma política de “enxugamento do Estado Brasileiro”, resultando em muitas perdas de direitos sociais. Os jovens dessa época inquietavam-se com a pauperização de suas vidas e respondiam de diferentes maneiras ao que consideravam uma agressão do governo contra as conquistas sociais. Em 1995, o grupo “Mamonas Assassinas” expressava um dos muitos sentimentos que angustiava a vida desses jovens, ao traduzir em verso e prosa, o desejo, latente desejo, de participar e usufruir da vida sociocultural de sua cidade:


Esse tal de ‘Chópis Centis’/é muicho legalzinho/pra levar as namoradas/e dar uns rolezinhos/Quando eu estou no trabalho/ não vejo a hora de descer dos andaime/pra pegar um cinema do Schwarzenegger/ também o Van Daime.  (Mamonas Assassinas, 1995).


 

O que exatamente mudou quase duas décadas após as investidas icônicas que os integrantes do grupo “Mamonas Assassinas” fizeram em favor dos templos do consumo? Mudou fundamentalmente o poder de compra, de mobilidade e de comunicação dos jovens pobres com a sociedade. Na esteira dessas mudanças, o que antes parecia verossímil, como a felicidade sugestivamente artificial descrita na sequência dos versos da canção – “Quanta gente/quanta alegria/a minha felicidade/é um crediário nas Casas Bahia”, – foi colocado sob suspeição pelos jovens do “rolêzinho”, os quais, diferentemente da geração de seus pais, rejeitam enfaticamente os produtos de qualidade duvidosa comercializados nas prateleiras das Casas Bahia.

Ao abandonar esse importante referencial de consumo que orientou e controlou, por muito tempo, o crédito de seus familiares, as novas gerações não o fazem gratuitamente. Agem cientes, absolutamente cientes, dos riscos que essa atitude representa e talvez por isso busquem em seus ídolos, principalmente nos representantes do “funk ostentação”, novos modelos e patamares de inspiração para dialogar com a sociedade.

Esses questionamentos produziram experiências inovadoras na paisagem urbana, sendo que uma das mais representativas foi a sonoridade da música funk. Essa novidade caiu no gosto dos jovens de classe média que já se mostravam saturados da mesmice e da artificialidade das trilhas sonoras convencionais de suas vidas. Pode-se dizer que, desde o advento do rock and roll, os jovens reivindicam uma maneira de tocar, que pouco se importa com a técnica e pouco se preocupa com a mensagem poética e melódica de suas músicas. Segundo Jacques (2010), essa pragmática compreensão da vida e da arte deixou um legado musical que se pauta basicamente na ênfase do prazer de tocar e na liberdade de escrever versos em detrimento da técnica instrumentista e composicional. Os herdeiros dessa tradição questionam, então, todos os princípios da estética musical que tem suas raízes no Canto Gregoriano, em que se deu a racionalização da música por meio de elaborações acústico-matemáticas (JACQUES, 2010, p. 06). A rejeição da música racionalizada é também a rejeição do comportamento racionalmente orientado e é isso, exatamente isso, o que marcou toda a trajetória das subculturas jovens no cenário pós rock and roll.

O questionamento de todos esses valores sinaliza também o enfraquecimento do projeto de modernidade que, desde Iluminismo, vem orientando às ações do homem. Daí as dificuldades de transmitir para as novas gerações valores e verdades universais, intento dos ideólogos iluministas. Gianni Vattimo (1992) enxerga o desgaste dessas referências como algo positivo, pois a dissolução dos pontos de vista centrais representa uma ruptura com as verdades absolutas que sempre foram narradas por quem detém o poder. Ocorre que, em um mundo pautado pelo anonimato das redes sociais, o aparelho do Estado já não consegue mais controlar ou manipular as ações do indivíduo que anseia cada vez mais por “um ideal de emancipação que tem antes na sua base a oscilação, a pluralidade, e por fim, o desgaste do próprio princípio de realidade” (VATTIMO, 1992, p.13). Esse avanço é factível pela possibilidade de democratização das relações, com destaque, sobretudo, para a voz das minorias.

No caso particular dos “rolêzinhos”, a prioridade de seus convivas sempre pareceu ser a de vivenciar as experiências do espaço urbano e do consumo em todas as suas dimensões. Com essa determinação rompem com as determinações de uma cidade compartimentada e, com seus fazeres culturais, questionam a “perda da função comunitária, educativa e civilizatória da cidade” (Gómez-Granell e Vila, 2003, p.18).  Assim, colocam em xeque o modelo de vida das elites que se recolhem em seus enclaves fortificados e reforçam a segregação dos grupos sociais de forma explicita (CALDEIRA, 2000, p. 12).

Foi, aliás, essa determinação de se fazer presente em todos os setores da sociedade, e não apenas naqueles indicados e delimitados para eles, que assustou e incomodou os setores privilegiados da sociedade, que sempre esperaram “gratidão”, “docilidade” e “respeito” da “nova classe média”. Afinal, os novos consumidores só haviam alcançado esse status depois da adoção de algumas políticas de redistribuição de renda e de inclusão social como a Bolsa Família e o ProUni, em uma inédita medida de cooperação entre o Estado reformador e o Capital negociador. Deveriam, portanto, em gesto de reconhecimento e boa vontade, aceitar o seu “lugar social” e não incomodar os “outros”.

O “rolêzinhos” estruturou-se como fenômeno juvenil na cidade de São Paulo entre dezembro de 2013 e janeiro de 2014. Trata-se do encontro de jovens da periferia, marcado por redes sociais, que teve como objetivo primordial encontrar diversão e lazer nos espaços seguros dos shoppings centers. Essa estratégia de reunião pública atendia a duas outras urgentes necessidades da vida desses jovens: fugir do “campo minado” de seus bairros e atrair a participação de um maior e mais qualificado público feminino para os seus eventos.  

Num primeiro momento, essa estratégia atingiu o seu objetivo – estima-se que o primeiro encontro no Shopping Metrô Itaquera, em 7 de dezembro de 2013, contou com a presença de aproximadamente 6.000 pessoas – porém, numa segunda etapa, ela foi severamente combatida pelos setores privilegiados da sociedade, que viam no deslocamento desse imenso contingente de “estranhos”, da periferia para o centro, um fator de risco para a segurança pública da cidade, mesmo que a finalidade do encontro pudesse resultar em lucratividade comercial. Ainda que estivesse imbuída das “boas intenções juvenis” de divertir-se e trocar experiências, o fato é que eles eram e são estranhos em território “alheio” e representam uma ameaça real à homogeneização da paisagem urbana:


 


Os estranhos são pessoas que você paga pelos serviços que elas prestam e pelo direito de terminar com os serviços delas logo que já não tragam prazer. Em nenhum momento, realmente, os estranhos comprometem a liberdade do consumidor de seus serviços. (BAUMAN, 1998, p. 41).


 

São estranhos porque do ponto de vista socioeconômico os praticantes dos “rolêzinhos” são negros ou mestiços, filhos dos migrantes, em geral, nordestinos e mineiros, que chegaram maciçamente nas décadas de 1960 e 1970 às metrópoles do Sudeste e se fixaram nas grandes periferias. Suas vidas foram marcadas pela pouca autonomia financeira e por uma mobilidade urbana quase sempre precária. Daí as eternas dificuldades de viver aventuras e experiências pessoais fora de suas regiões. São invasores do espaço alheio porque romperam unilateralmente o pacto de “boa vizinhança” concebido – no passado – em bases frágeis e desiguais para intencionalmente favorecer os “donos” da cidade e deliberadamente segregar os seus pais, ao sugerir um “lugar social” especifico para os seus encontros de lazer.

No universo das contradições urbanas das grandes metrópoles, o movimento hip hop foi, talvez, o primeiro a colocar em questão as restrições de consumo e de mobilidade impostas aos jovens da periferia. Assim, enquanto as elites buscam soluções para a insegurança, construindo enclaves fortificados para se proteger e fugir do incômodo de compartilhar seus espaços de convívio com pessoas “diferenciadas”, o rap – voz amplificada da periferia – denuncia todas as formas de preconceito e exclusão social praticada contra os seus semelhantes. Talvez por isso, a sonoridade de suas músicas – com muitos gritos, sussurros, sirenes e tiros – já causava incômodo aos transeuntes, por retratar e divulgar, para além de suas localidades, o cotidiano violento da periferia, que as telenovelas e seriados de televisão insistem em romantizar.   

Os “rolêzinhos” resgatam, pois, a agenda musical do rap, imprimindo, todavia, um teor menos politizado aos seus encontros. No rap, o que incomoda é o engajamento e o demasiado realismo de suas narrativas. No funk – trilha sonora dos “rolêzinhos” – apesar de não encontramos a mesma verve política do rap, ainda assim incomoda pela “vulgarização” generalizada de seus atos e gestos, pela erotização desmedida de suas danças e pelos exagerados decibéis em que suas músicas são executadas. Eis aí algumas das condições indispensáveis para reunir multidões na hipermodernidade. Pode-se dizer, então, que em um mundo marcado pelo anonimato das redes sociais e pelo indisfarçável individualismo egocêntrico dos fones de ouvido os “rolêzinhos” desafiam essa lógica reducionista do “eu sozinho” trazendo a público um chamado ao coletivismo, que se fortalece em torno de uma trilha sonora concebida para não se ouvir sozinho nem em volume baixo.

Um referencial que pode nos ajudar a analisar criticamente esse mal-estar que permeia as relações humanas na hipermodernidade pode ser buscado em Bauman (1999), a partir do qual podemos compreender que as pretensões de homogeneização das relações sociais, seja pela via do consumo, seja pela via do “aculturamento”, não obtiveram o êxito esperado, uma vez que nem uma, nem outra conseguiu realizar os múltiplos desejos que atravessam a vida do ser antropológico. Por isso, ainda que a aposta de humanização pelo fetichismo e pela reificação seja o projeto central da hipermodernidade é bom lembrar que é nas contradições, reveladas no cotidiano, que o homem escapa das pretensões totalizantes desta sociedade e viabiliza ou­tros projetos de vida. Em suas palavras:


 


A globalização tanto divide como une; divide enquanto une — e as causas da divisão são idênticas às que promovem a uniformidade do globo. [...] Uma parte integrante dos processos de globalização é a progressiva segregação espacial, a progressiva separação e exclusão. As tendências neotribais e fundamentalistas, que refletem e formulam a experiência das pessoas na ponta receptora da globalização, são fruto tão legítimo da globalização quanto a “hibridização” amplamente aclamada da alta cultura — a alta cultura globalizada (BAUMAN, 1999, p.7 e 8). [Os grifos são nossos].

 

No mundo onde as relações humanas ficam, cada vez mais, subordinadas aos signos da moda e os shoppings centers tornam-se representações privilegiadas do consumo e do fetiche parece, então, legítimo que os jovens da periferia busquem a inclusão por meio do consumo e da ostentação de marcas famosas que circulam nesses espaços. Desde o advento do Occupy Wall Street, passando pelo “Ocupe São Paulo”, até o encontro com as “Jornadas de Junho de 2013”, que os jovens vêm rediscutindo a importância da mobilidade urbana e as consequências desastrosas do consumo para a saúde do planeta.

Os “rolêzinhos” podem, portanto, ser interpretados como uma tentativa de democratizar os espaços urbanos numa clara expansão e reorientação dos jovens com o universo do consumo que, na hipermodernidade, ocupa um lugar de destaque na vida dos indivíduos. “O consumo, tornado um denominador comum para todos os indivíduos, atribui um papel central ao dinheiro nas suas diferentes manifestações; juntos, o dinheiro e o consumo aparecem como reguladores da vida individual” (SANTOS, 2003, p. 57).

 

Rompendo Fronteiras: os “rolêzinhos” nos espaços iluminados da cidade

 

A preocupação com o dinheiro já ocupava lugar central na narrativa dos rappers. “[...] Sim, ganhar dinheiro ficar rico, enfim [...] Quero um futuro melhor [...] Quero que meu filho nem se lembre daqui [...] Sim, ganhar dinheiro ficar rico, enfim/
A gente sonha a vida inteira e só acorda no fim [...]” (RACIONAIS MC’s, 1993). Em busca desse objetivo, os filhos e netos de migrantes construíram uma trajetória voltada para outras prioridades e deixaram para trás as preocupações que pautaram as mobilizações sociais de seus pais e avós, que lutavam basicamente por acesso à educação, direito à saúde e moradia digna. É importante ressaltar, todavia, que essas demandas não foram abandonadas pelos jovens da periferia que militam nos “rolêzinhos”. O que ocorreu, contrariamente, foi que depois de superar, ainda que parcialmente, as dificuldades vividas pela falta de dinheiro para o gasto diário, eles reinventaram suas necessidades, ampliaram a agenda de suas reivindicações e ocuparam os centros iluminados da cidade onde desafiadoramente entoaram a nova palavra de ordem de suas vidas: “É tudo nosso!”[3]

Deixam evidenciado, assim, que não aceitam as determinações das barreiras geográficas nem se contentam com as migalhas que outrora foram oferecidas aos seus pais. Agora, além do básico eles querem também o direito à plena mobilidade, à livre circulação, querem, enfim, “conquistar” a cidade inteira com o direito inclusive de frequentar os shoppings centers sem serem constantemente constrangidos por seguranças privados e agentes do Estado:

 

Os centros comerciais e os supermercados, templos do novo credo consumista (...), impedem a entrada dos consumidores a suas próprias custas, cercando-se de câmeras de vigilância, alarmes eletrônicos e guardas fortemente armados; assim fazem as comunidades onde os consumidores afortunados e felizes vivem e desfrutam de suas novas liberdades; assim fazem os consumidores individuais, encarando suas casas e seus carros como muralhas de fortalezas permanentemente sitiadas. (BAUMAN, 1998, p. 24).

 

Todos os esforços segregacionistas empreendidos para perpetuar os muros de isolamento entre ricos e pobres são agora questionados de maneira mais enfática pelos jovens dos “rolêzinhos”. Em outras palavras, eles buscam pela via do consumismo um atalho para superar alguns dos traumas psíquicos que as privações materiais impingiram às suas vidas. Confrontam, com essa estratégia, os limites e também as restrições para a utilização do espaço público e viabilizam uma discussão das normas, valores e regras que regulamentam a vida do indivíduo em sociedade.  Acossada por essas novas demandas, os setores privilegiados da sociedade agem precipitadamente e inscrevem as práticas dos “rolêzinhos” no terreno da marginalidade, bloqueando, assim, qualquer possibilidade de mediação entre os envolvidos.

Essa indisposição aflorou quando os encontros deixaram de ser praticados em espaços exclusivamente públicos para flertar com os espaços “privados”. É o que deixa entrever o depoimento de um dos pioneiros desses encontros em uma reportagem veiculada no programa Fantástico da Rede Globo de Televisão:

 

Depois que a gente ficou conhecido, a gente falou: Vamos fazer um encontro de fãs. Porque muitas fãs moram longe e não têm a oportunidade de vir aqui, conhecer a gente, tirar foto. Aí a gente simplesmente postou: Encontro de Fãs no Shopping Ibirapuera, tal dia. Aí elas estavam lá. Umas 50 mais ou menos.

 

Essa iniciativa repercutiu positivamente e caiu no gosto da garotada que marcou novos encontros que tiveram a adesão de uma legião de seguidores. Além de aumentar o público eles adicionaram também novos atrativos às reuniões como a “exótica” trilha sonora de suas regiões. A música sempre foi uma manifestação sem fronteiras definidas. Foi essa peculiaridade que fez o funk, apesar de “exótico”, cair no gosto dos jovens de classe média que reproduziram nos centros iluminados os valores do gueto. Confirma-se, assim, os princípios da circulação cultural, ou seja, que a cultura superior e a inferior estão em constante processo de retroalimentação.   

Quando os “rolêzinhos” iniciaram as suas intervenções na arena pública, muitos não se deram conta era de que esses eventos estavam intimamente ligados ao chamado “funk ostentação”. Na periferia da cidade de São Paulo, essa modalidade musical já havia ganhado espaço e notoriedade entre os jovens por, entre outros motivos, narrar o cotidiano e ao mesmo tempo fazer a exaltação do consumo e da riqueza sem constrangimentos. O cotidiano relatado nas crônicas musicais, plenamente conhecido pelos ouvintes, criou as condicionantes para fortalecer os vínculos de pertencimento entre o fã e ídolo; já o consumo e a riqueza exerceram, como ainda exerce, a função de espelho, ou seja, meta a ser alcançada pelo fã.

Em videoclipes, postados inicialmente no site Youtube os MC’s (Mestres de Cerimônias) aparecem vestindo roupas de grifes, cercados por belas mul­heres, dirigindo automóveis de luxo e quase sempre cobertos por joias. Um dos mais conhecidos desse gênero é MC Guimê, que teve uma de suas músicas, “País do futebol”, como tema de abertura da telenovela Geração Brasil (Felipe Miguez e Isabel de Oliveira, 2014), veiculada na Rede Globo de Televisão às 19 horas e que tinha o seguinte refrão:


 


Eu vim pelas taças pois, raça/ Foi quase dois palito/ Ontem foi choro, hoje tesouro/ E o coro grita: ‘Tá Bonito’/ Eu sou Zona Norte, fundão/ Swing de vagabundos/ Dos que venceu a desnutrição/ E hoje vai dominar o mundo/ [...] No flow, por onde a gente passa é show/ Fechou, e olha onde a gente chegou/ Eu sou...País do Futebol Negô/ Até gringo sambou, tocou Neymar é gol! (Álbum País do Futebol; Gravadora Máximo Produtora. 2013. Artista MC Guimê).


 

Percebe-se, então, que mesmo entre os jovens da periferia, o discurso da igualdade democrática fez um eficiente tra­balho de convencimento, levando à ilusão de combater a maculada imagem da pobreza pela via do consumo. Talvez por isso a alta sensibilidade às marcas é exibida tão ostensivamente nos meios desfavorecidos. Assim, quando se torna portador de uma marca conhecida pelos seus pares, o jovem rompe com o isolamento, não com a intenção de demonstrar superioridade social, mas apenas para ter reconhecida sua participação no jogo da moda e do consumo. (LIPOVETSY, 2007, p. 50)


Contando os plaquê de 100, dentro de um Citroën


Ai nois convida, porque sabe que elas vêm


De transporte nois tá bem, de Homet ou 1100


Kawasaky tem Bandit RR tem também                                                 


A noite chegou, nóis partiu pro Baile funk
E como de costume toca a nave no rasante
De Sonata, de Azzera, as mais gata sempre pira
Com os brilho da jóias no corpo de longe elas mira
Da até piripaque do Chaves onde nóis por perto passa
Onde tem fervo tem nóis, onde tem fogo há fumaça


A noite chegou, nóis partiu pro Baile funk
E como de costume toca a nave no rasante
De Sonata, de Azzera, as mais gata sempre pira
Com os brilho da jóias no corpo de longe elas mira
Da até piripaque do Chaves onde nóis por perto passa
Onde tem fervo tem nóis, onde tem fogo há fumaça


É desse jeitinho que é, seleciona as mais top
Tem 3 porta, 3 lugares pra 3 minas no Veloster
Se quiser se envolver, chega junto, vamo além
Nóis é os pika de verdade, hoje não tem pra ninguém 

 

Foi ostentando o consumo que os jovens da periferia ganharam visibilidade; ocorre que eles queriam mais do que visibilidade. Assim, estrategicamente, utilizaram as ferramentas do próprio “sistema” e criaram grupos nas redes sociais, em especial no Facebook, e sem aviso prévio – condição indispensável para a realização de qualquer reunião pública nos limites do estado controlador – agendaram encontros em sho­ppings centers, para compartilhar experiências, paquerar e com alguma sorte “beijar muito”. O território da exclusividade, segurança e comportamento comedido da classe média havia inesperadamente sido invadido.

Pegos, então, de surpresa os “legítimos” frequentadores desses espaços ficam sem reação e com um misto de espanto e medo exigem que o poder público adote providências imediatas, a fim de impedir a expansão da “baderna”. A força policial foi, pois, mobilizada para impedir a propagação dessas reuniões. O argumento utilizado para a adoção de medidas tão extremas era o de que os “rolêzinhos” poderiam sair de controle e colocar em perigo a segurança pública. Os ânimos acirravam-se e os comerciantes em busca de mais proteção mobilizaram seguranças privados para defender o patrimônio.

A consequência imediata desse enfrentamento foi a criminalização dos “rolêzinhos”. Criminalizar, todavia, não resolvia os problemas dos comerciantes que não queriam carregar a pecha de segregacionistas sozinhos. A solução encontrada foi a judicialização dos encontros. Assim, por decisão judicial os “rolêzinhos” previstos para acontecer em datas futuras foram proibidos. Em 1° de janeiro de 2014 o juiz Alberto Gibin Villela, respondendo os questionamentos dos comerciantes e frequentadores dos shoppings centers, emite a seguinte sentença:

 


Na decisão o juiz Alberto Gibin Villela afirma que apesar do direito constitucional de livre manifestação, o espaço dos shoppings é ‘impróprio’ para a atividade. Segundo a liminar, ‘pequenos grupos se infiltram nestas reuniões com finalidades ilícitas e transformam movimento pacífico em ato de depredação. Oficiais de justiça e PMs ficaram de plantão na portaria do shopping [JK Iguatemi]. A segurança privada também foi reforçada. Um aviso e uma cópia da decisão foram afixados em uma das entradas, guardada por quatro seguranças. Na hora marcada, eles passaram a abordar alguns ‘suspeitos’ a maioria jovens. Funcionários tiveram que mostrar o RG ou o crachá” (Folha de S. Paulo, p. A13, 12/01/2014).

 

Seria cômico, se não fosse trágico, constatar que o Poder Judiciário, conhecido pela leniência de suas sentenças, tenha, neste caso, agido com tamanha eficiência e rapidez. Nos dias seguintes, a decisão judicial foi usada para fazer a triagem de quem entrava nos shoppings centers. Cópias dessa decisão foram afixadas na entrada desses estabelecimentos comerciais e novas regras de convívio foram anunciadas aos seus frequentadores: para os funcionários, impunha-se a necessidade de apresentar cédula de identidade e crachá de identificação; os frequentadores considerados suspeitos eram submetidos ao constrangimento de serem revistados pelos seguranças.     

Certamente, a ideia de que os encontros eram suscetíveis à infiltração de pequenos grupos com finalidades ilícitas ajudou a recrudescer os ânimos. Motivados, pois, pelo medo e pelo desprezo em relação aos “rolêzinhos”, os “cidadãos de bem” exigiram que se aplicasse o rigor da lei aos “baderneiros”. A força policial e os seguranças privados agiram com uma truculência digna de um regime militarizado.

Segundo Bauman (1999), a ideia de criminalizar o outro, empurrando-o para as fronteiras da ilegalidade, é um recurso praticado com desenvoltura e esmero, pelos mecanismos de ajuste e controle da sociedade moderna. Esse tratamento de intolerância diante da diferença é um traço comum da modernidade tardia, que acumula um ressentimento com os estranhos, daí porque a exigência de isolá-los precisa ser sempre renovada, a fim de garantir o privilegio da exclusividade. 

Essa situação narrada é resultado de uma profunda alteração do espaço público e do significado que a noção de público passou a ter nas sociedades contemporâneas. Para Sennett (1988), essa alteração sinaliza o “fim da cultura pública” levando, cada vez mais, “um grupo selecionado de pessoas” a rejeitar o “exterior” e o “diferente”, esvaziando desse modo o sentimento de “solidariedade” entre os indivíduos, em clara demonstração de intolerância que teve como consequência mais imediata a redefinição de ocupação de espaço público. (SENNETT, 1988, p. 32).

Essa redefinição do espaço público vem sendo questionada já há algum tempo pelas subculturas juvenis. Para os jovens da hipermodernidade, uma questão inegociável de sua agenda é o direito de ir e vir ocorre que esse direito vem sendo desgastado, corroído mesmo, pela síndrome do medo instaurada em uma população vitimada pela violência e pelo crime. Foi a paranoia do medo, aliás, que levou determinados setores da população a adotarem medidas extremadas de relacionamento com o universo público e de rejeição aos “diferentes”. Inicialmente, com o elevado grau de desconfiança na capacidade dos poderes públicos de zelar por sua segurança, os segmentos privilegiados da sociedade construíram os seus templos do consumo e os cercaram de seguranças privadas; em seguida, ao perceberem que essa medida era ainda insuficiente,  edificaram condomínios fechados numa clara e ostensiva tentativa de evitar encontros com aqueles que consideram “diferentes” e, por conta disso, “perigosos”.

Os “rolêzinhos”, como movimento subcultural, tornaram-se um importante meio de aglutinação para os jovens de periferia questionarem e debaterem as contradições contemporâneas que incidem diretamente em suas vidas. Portanto, mais do que estranhos, seus membros são  incômodos,  pois teimam em trazer à tona o avesso do país, implodindo, assim, a “rocha sobre a qual repousa a segurança da vida diária”. (BAUMAN, 1998, p. 19).

No mundo da hipermodernidade e da acumulação capitalista, quase tudo é questionado pelo poder antropofágico do consumo; dizemos quase, porque é nesse horizonte de incerteza e de imprevisibilidade que se torna possível o encontro das novas demandas juvenis, pois não há nada, absolutamente nada, que possa neutralizar de maneira definitiva a verve contestadora desse segmento social. Assim, todas as vezes que a cultura consensual o desdenhou, no pressuposto de ter conseguido neutralizar o potencial revolucionário dos jovens, estes misteriosamente reapareciam com novas demandas, novas causas e novas exigências para o conviver social.

Essa tradição de luta e resistência contrarregras e normas sociais repetiu-se ciclicamente na trajetória dos jovens ocidentais ao longo do século XX. Em determinados momentos, essa insubordinação aos códigos sociais foi entendida como uma atitude excêntrica, sem propósito, não oferecendo, portanto, perigo à ordem constituída. No entanto, todas as vezes que essa insubordinação rompeu as fronteiras do entretenimento para, mais firme e ousadamente, questionar o stablishment, seus porta-vozes foram identificados como os principais representantes da desordem, do perigo e do medo que assombra o cotidiano do homem contemporâneo. Isso ocorreu com os punks que, nas décadas de 1970 e 1980, tiveram seus gestos, palavras, atos e ações coletivas associadas a uma subversiva e violenta transgressão, comparáveis apenas à realidade das gangues. Repetiu-se com os rappers, que ao se recusarem maquiar o cotidiano da periferia em suas crônicas musicais, são responsabilizados por incentivar a desordem, a violência e, por conta disso, recebem a pecha de apologistas do crime. Renova-se agora com os jovens dos “rolêzinhos”, que ao questionarem os espaços de exclusividade construídos para o consumo e para o lazer, obrigam a sociedade a repensar as suas práticas de convívio social.

 

Considerações Finais

 

No espaço deste artigo levantamos algumas reflexões sobre práticas de consumo e de lazer que ocupam na hipermodernidade um lugar central na vida dos jovens. Levantamos também algumas hipóteses que tem pautado as discussões sobre mobilidade urbana e a democratização do espaço público. Essas discussões foram novamente suscitadas com as inquietações juvenis, sobretudo dos jovens pobres e negros da periferia que, ao decidirem ocupar os shoppings centers, locais segregados para consumo e lazer, inscreveram nesses espaços práticas culturais específicas da periferia.

O funk, a dança, as reuniões coletivas, são atividades que passaram a ser vistas como ameaça trazida do exterior, de um mundo distante e desconhecido por um grupo de mal-intencionados – forasteiros – que não respeitam os hábitos, costumes, e as tradições da comunidade alheia. O artigo buscou compreender o uso seletivo que se faz do espaço público, onde situações de privilegio são oferecidas para os jovens da elite econômica, que podem fazer da cidade seu espaço de lazer, sem que o poder policial os incomode. Tratamento bem diferente costuma ser oferecido aos jovens da periferia (especialmente os negros) que ousam sair de suas “quebradas” vestindo “marcas famosas” – ainda que genéricas, são elas que oferecem a aceitação social e o pertencimento grupal – para entrar em território alheio e afirmarem-se como expressão de uma cultura insurgente e “perigosa”, mas inexplicavelmente cativante e sedutora, a ponto de ser acolhida, ter o seu potencial revolucionário esvaziado e virar mercadoria de desejo entre os jovens de classe média.    

O “rolêzinhos” e sua trilha sonora são forças culturais expressivas da nossa realidade social. Daí porque ganharam visibilidade e tornaram-se recorrentes em vários veículos de informação e influente nos mais variados segmentos sociais. Foi, aliás, com a força de sua representatividade cênica que ele saiu do gueto para afrontar a ideologia oficial; saiu da boca desdentada e negra da periferia para ecoar preocupação na boca de jornalistas seletivos e comprometidos com a ideologia oficial.

Tamanha preocupação deve-se ao fato de esse fenômeno ser herdeiro direto das tradições de luta e resistência que atravessou a vida dos jovens no século XX e se fez redivivo no século XXI. Depois que os estreitos limites do “choque de gerações” foram superados, depois que os “rebeldes sem causa” foram pacificados pela sociedade de consumo, o capital parecia finalmente desfrutar de seu momento de paz e harmonia no convívio social. Em uma sentença: a humanidade havia chegado ao fim da história. Quando os conflitos e diferenças pareciam resolvidos; quando um silêncio constrangedor tomava conta da sociedade e fazia acreditar que tudo estava controlado, contudo, eis que eles, novamente eles, levantam-se dos escombros da história e apresentam para a sociedade uma nova pauta de exigências que agora querem ver materializada, imediatamente, ou seja, não mais projetada para o incerto e distante futuro. 

A disseminação das novas tec­nologias de informação e comunicação fez seu papel de ampliação do consumo, mas não eliminou as contradições sociais. Contrariamente a isso, impôs o consumo como uma condição existencial do indivíduo. Talvez por isso, o jovem excluído e alijado da vida cidadã buscou, ao menos em alguns momentos, sentir-se parte integrante dos consumidores ativos e convocar os encontros dos “rolêzinhos” para os shoppings centers, templos sagrados da exclusividade consumista. Essa atitude incomodou muitos, mas ao mesmo tempo, instigou outros a repensar a postura e a relação a ser estabelecida com a sociedade e com os seus semelhantes. Esse talvez seja o maior legado dos “rolezinhos”.

 

Referências Bibliografia

ABRAMO, Helena W. Cenas Juvenis, Punks e Darks no Espetáculo Urbano. São Paulo: Scrita/ Anpocs. 1994

ARCE, José  M. V. “O funk carioca”. In: HERSCHMANN, M. (org) Abalando os anos 90: funk e hip-hop. Globalização, violência e estilo cultural. Rio de Janeiro: Rocco. 1997

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1988.

BAUMAN, Zygmunt.  Globalização: as consequências humanas. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1999.

CALDEIRA, Tereza Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Ed. 34/ Edusp. 2001

GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Cia. das Letras. 1987.

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JUNQUEIRA, Lílian. Desigualdades sociais em telenovelas. São Paulo: Annablume. 2009.

LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Com­panhia das Letras. 2007.

MORIN, Edgard. Cultura de Massas no Século XX: o espírito do tempo. (vol. I) Neurose. Rio de Janeiro: Forense. 1969.

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TROTTA, Felipe. Entre o Borralho e o Divino: a emergência musical da periferia. Revista Galáxia. 2013.

SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. Trad. Lygia Araújo Watanabe. São Paulo: Companhia das Letras. 1988.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 5. ed. São Paulo: Record. 2003.

SOUSA, Rafael Lopes de. Punk: cultura e protesto, as mutações ideológicas de uma comunidade juvenil subversiva. São Paulo: Edições Pulsar. 2002.

VATTIMO, Gianni. A sociedade transparente. Lisboa: Relógio D’Água. 2002.

 

Discografia

Álbum: Funk Paulista. MC’c Guimê. Faixa: Pais do futebol. Gravadora: Máximo Produtora. 2012.

Álbum: MC’c Guimê. Faixa: Plaquê de 100. Gravadora: Independente. 2012.

Álbum: Mamonas Assassinas. Faixa: Chópis Centis. Gravadora: EMI. 1995.

Álbum: Raio X do Brasil. Racionais MC’s. Faixa: Um homem na estrada. Gravadora: Zimbabwe Records. 1993.

 

Fontes

Revista Época. Ribeiro, Aline e Ciscati, Rafael.  (2014). Como começou a onda do rolezinho. 25/12/2014.

Folha de S. Paulo. MONTEIRO, André. André Monteiro. Seguranças cobram identidade para evitar ‘rolezinho’ no JK Iguatemi.  Cotidiano, p. A13. 2014

 


Data de Recebimento: 02/10/2018
Data de Aprovação: 15/12/2018

 

 

[1] Mais informações a esse respeito conferir: GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Cia. das Letras, 1987.  Nesta obra o autor explica que existiu na Europa pré-industrial um relacionamento constante entre a cultura das classes dominantes e a das classes subalternas, do qual prosperou um relacionamento circular feito de influências recíprocas, que se movia de baixo para cima, bem como de cima para baixo. Temos nessa elaboração o resumo do que foi proposto por Mikhail Bakhtin. A circularidade, ou seja, o “[...] influxo recíproco entre cultura subalterna e cultura hegemônica, particularmente intensa na primeira metade do século XVI” (GINZBURG, 1987, p. 13).

[2] Empregamos o termo hipermodernidade seguindo as orientações de Lipovetsky (2007), para quem a hipermodernidade representa a radicalização, exacerbação e a materialização dos anseios da modernidade vivenciados numa cultura de excesso e privação. O excesso está na busca da felici­dade pela via do consumo e a privação aparece na anulação do ócio como experiência subjetiva do ser antropológico.

[3] Mais informações sobre a importância dessa palavra de ordem para os jovens periféricos conferir: Revista Época (18/09/2007). Edição nº 487. Os novos antropófagos: Artistas da periferia de São Paulo lançam sua própria Semana de Arte Moderna.