Narrativas na cidade em álbuns fotográficos: A Fortaleza que se encontra em acervos fotográficos pessoais


resumo resumo

Cristina Maria da Silva
Francisco Felipe Pinto Braga



 Fisionomias Urbanas

 


 “Os bairros têm não só uma fisionomia como uma biografia. O bairro tem sua infância, juventude, velhice. Esta, como a das árvores, é a quadra mais bela, uma vez que sua memória se constituiu”.


Ecléa Bosi, 2003, p. 204.

 

Este artigo se refere ao projeto de extensão “Fotobiografias: a Fortaleza que se conta em acervos fotográficos pessoais” desenvolvido pelo Grupo Rastros Urbanos[1] no Poço da Draga situado na orla da cidade de Fortaleza-CE. O grupo desenvolve diversas atividades voltadas ao estudo das práticas urbanas buscando apresentar diferentes narrativas acerca da cidade através das experiências e trajetórias de seus habitantes.

Estudamos a cidade sob a perspectiva de lugar, que pode ser entendido também como “lar’, na perspectiva de Yi-Fu Tuan (1983). Esse ganha um novo significado por meio dos sentimentos das pessoas; um lugar que não é necessariamente físico podendo ser também uma outra pessoa. Muitas vezes quando perdemos uma ou muitas pessoas, às quais atribuímos um sentimento de pertencimento, o lugar perde seu significado. São lugares íntimos que existem por meio das relações entre os indivíduos que transcendem o local em si, são objetos de nossas memórias, nem sempre conscientes. “Os lugares íntimos são tantos quantos as ocasiões em que as pessoas verdadeiramente estabelecem contato.” (TUAN, 1983, p. 153).  Esses lugares são transitórios e pessoais, gravados no mais profundo da memória.

As pessoas que habitam o Poço falam sempre como muito carinho das suas casas e de suas lutas para as conseguirem. As casas são antes de tudo sonhos, e neles todos inscrevem o que desejam. Assim: Falamos de lugar segundo Yi-Fu Tuan (1983), como um espaço de afetos. O quintal da Dona Iolanda, quando seus amigos e vizinhos pedem que ela recite um poema, os quadros na parede na casa da Ivoneide, por exemplo, são esses lugares íntimos que suspendem o tempo dentro do lugar e nos levam aos territórios das recordações. As pessoas são lares umas para as outras. Dona Iolanda recitou no Sarau de natal no dia 13 de dezembro de 2018, um poema no qual ela afirma: “o melhor lugar do mundo é dentro de um abraço.” Os lugares, são na verdade, as pessoas. Elas estão atadas ao que narram. Suas lembranças adornam de afetos os laços que as unem.

 

O espaço transforma-se em lugar à medida que adquire definição e significado. (...) Os lugares íntimos são os lugares onde encontramos carinho, onde nossas necessidades fundamentais são consideradas e merecem atenção sem espalhafato. (TUAN, 1983, p. 152).

 

Todo esse trabalho desenvolvido e voltado ao estudo na cidade junto ao Poço da Draga nos levou a participar de reuniões, eventos e mesas em prol da reivindicação do direito à cidade – uma luta que acompanha essa comunidade há muitos anos e que é reflexo de um conjunto de ações municipais e estaduais que excluem, invisibilizam e segregam uma grande parcela da população fortalezense do seus locais de afeto e pertencimento em favor da especulação imobiliária, das grandes obras e de políticas de higienização da cidade.

Nossa introdução no Poço da Draga aconteceu em 29 de outubro de 2016, quando visitamos o lugar pela primeira vez e fomos recebidos pelo morador Sergio Rocha[2] que nos convidou a participar da visita guiada pelo local realizada por ele. Depois disso, conhecemos Ivoneide Gois, que se mostra a cada dia uma guardiã da memória local, pois preserva em sua casa, inúmeros álbuns fotográficos e muitas narrativas sobre as memórias e os trajetos das pessoas que habitam o Poço da Draga.

Abaixo, é a frente da casa da Ivoneide, as plantas, que se espalham pelas paredes da frente da casa nos transportam para outro lugar, um mundo lúdico, muito condizente com a narradora e guardadora de memórias que nela habita.

 

 


Imagem 1: Acervo do Grupo Rastros Urbanos, Foto Cristina Maria da Silva/visita noturna dia 30 de abril 2018.

 

Temos acesso a esse lugar como “um mundo narrado”, pessoas e coisas compondo narrativas das experiências vividas. Não são pontos fixos, mas caminhos, trajetos e histórias, que vieram e chegaram até nós e estão indo. Outra cidade se desvela para nós, entre álbuns fotográficos e relatos. Lugares que revelam e se abrem a outros lugares, espaços que por serem narrados são ocupados e neles se inscrevem pertencimentos e memórias. A partir de Ivoneide entramos nesse lugar, visitamos imagens e chegamos às pessoas e aos lugares íntimos do cotidiano do Poço, compartilhamos os conhecimentos de alguns de seus trajetos. Desse modo, percebemos como:


 


Cada habitante deixa uma trilha. Onde habitantes se encontram, trilhas são entrelaçadas, conforme a vida e de cada um vincula-se à de outro. Cada entrelaçamento é um nó, e, quanto mais essas linhas vitais estão entrelaçadas, maior é a densidade do nó. (INGOLD, 2015, p. 219).


 

As narrativas que se desvelam para nós a partir das visitas e dos contatos com as imagens fotográficas, fazem-nos perceber que são múltiplas as vidas e as relações que permeiam e que construíram o lugar no qual estamos.

A partir dessa paisagem fotográfica coletada em álbuns refletimos sobre a biografia da cidade e a formação de seus bairros, as tensões e os seus paradoxos em suas experiências urbanas. Refletimos sobre memória, história, lugar e testemunho: O que as imagens e as narrativas pessoais podem nos contar sobre as experiências coletivas? Assim captamos nas tensões individuais rastros das tensões coletivas. As imagens, as falas, as memórias resgatadas e alimentadas a cada encontro são como agulha e linha costurando vidas ao tecido, muitas vezes, esgarçado da cidade. É assim que se tece a vida. O tempo das fotografias é como agulha e linha cosendo o tecido dando-lhe forma e tornando-o visível nas suas estampas. Álbuns, fotos avulsas, impressas, digitais, que paisagens eles nos dão, de que tempos nos falam? Quem ou o que se dá para nós nessas imagens? Quais alteridades se fazem presentes nas imagens que se montam diante de nossos olhos? O que herdamos com as imagens que chegam até nós e se aconchegam aos nossos cuidados? Quanto de nós cuida delas o quanto delas cuida de nós? O que elas nos dão quando são dedicadas, enviadas ou compartilhadas? Que afetos nelas se abrigam, o que relampejam delas em nós? Fotografias unidas ou dispostas ao acaso em nossas mãos são uma tessitura onde nem sempre vemos quem segura a agulha e a linha, mas a existência se tece em nós.

 

O Poço da Draga e a Praia de Iracema

 

O Poço da Draga, situado na orla de Fortaleza, possui uma longa história relacionada profundamente com mar. A movimentação do antigo Porto na Ponte Metálica (hoje conhecida também como Ponte Velha) e a infraestrutura em seu entorno atraiu muitos habitantes de outras localidades para o que hoje chamamos de Poço da Draga.

O porto foi importante na construção das relações da cidade e do Estado do Ceará com outros portos brasileiros e com a Europa, tendo sido extremamente importante para o desenvolvimento da economia no século XX. O Poço tem nas suas origens os pescadores, os retirantes, os embarcadiços, diversos trabalhadores que vinham do interior do Estado, e de outros Estados, buscando estabelecer residência mais próxima aos seus locais de trabalho. Seu nome refere-se às dragas, as embarcações que ajudavam no desassoreamento do mar, ou seja, a retirada de areia e entulhos para facilitar a navegação.

Em uma matéria jornalística temos uma explicação de uma das moradoras do Poço:


É porque a draga era ali atrás (onde hoje está instalado o Inace). Era como se fosse um braço do mar, a água empoçava ali (quando a maré subia). Lá, os meninos ficavam tomando banho. Era uma diversão”, afirma. (Segundo a pensionista Geraldina Pereira, 88). (MAIA, 2013, p.1).

 

Até hoje a localidade toma como referência a inauguração da ponte como seu marco inicial, dia 26 de maio de 1906, para a comemoração do seu aniversário. Nesta data os habitantes relembram, comemoram e mostram os diversos anos que ocupam e resistem no Poço contra uma visão muito generalizada de que eles invadiram o local. As celebrações do aniversário contam sempre com uma extensa programação, na qual habitantes do lugar, pesquisadores, artistas e colaboradores, integram-se desde a organização como na participação dos eventos.

O Poço conta com uma população de aproximadamente 1.600 pessoas das quais 77% admitem possuir alguma relação com a praia além de 89% reconhecerem que o local perderia a identidade sem a mesma. Tais dados são provenientes do censo “Um olhar sobre o Poço” realizado por Sergio Rocha com a ajuda de outros habitantes do local (ROCHA, 2018). Atualmente, esse número gira em torno de 2.000 pessoas. A praia é reconhecida como lugar de entretenimento, como também para o trabalho, seja a venda de bebidas, comida, a pesca e a fabricação de barcos.

Essa forte relação com mar se reflete nas fotografias encontradas nos álbuns de família e nas memórias relatadas por seus habitantes. São lembranças como a da Praia do Peixe, antigo nome da atual Praia de Iracema e do hábito muito comum de tomar banho na “piscininha”, área em que se acumulava água parada do mar entre as pedras, e que não existe mais por conta de obras de aterro realizadas pela Prefeitura nos anos 2000.

 

 


Imagem 02. Acervo do grupo Rastros Urbanos: antiga piscininha em meados dos anos 1980. Fotografia proveniente dos álbuns fotográficos de Ivoneide Gois.


Essa relação está presente também nas histórias de pescadores, sobre sereias avistadas no mar ou da lembrança dos quatro jangadeiros que, em 1941, partiram da Praia do Peixe em direção ao Rio de Janeiro para reivindicar ao então presidente Getúlio Vargas direitos sociais para os jangadeiros do Ceará. 

As memórias de quando a região era um importante porto comercial de Fortaleza (primeiro porto da cidade) está presente na relação destes com a antiga Ponte Metálica, hoje chamada de “Ponte Velha”. Era por ela que, entre 1906 e 1940, chegavam as mercadorias através dos navios que eram recebidas por guindastes, e depois disso eram transportadas por trilhos e passavam pela alfândega, atualmente a Caixa Cultural Fortaleza

 


Imagem 03. Acervo do grupo Rastros Urbanos: Crianças nos anos 1990 pulando da antiga Ponte Metálica. Fotografia proveniente dos álbuns fotográficos de Ivoneide Gois.

 

Apesar da forte relação com a Praia de Iracema, e situado geograficamente no bairro de mesmo nome, o Poço é reconhecido pela prefeitura de Fortaleza como parte do Bairro Centro. Entretanto é por meio das narrativas e fotografias que podemos perceber os limites dessas demarcações, pois as memórias de seus habitantes estão profundamente atracadas ao mar e à antiga ponte metálica, e no entorno do qual essa parte da cidade cresceu. O Poço da Draga está entre o mar e os muros da antiga Alfândega, esgueira-se próximo ao Centro de Arte e Cultura Dragão do Mar. Não é muito difícil saber quem mora e habita esse lugar, pois as pessoas circulam por toda a cidade, com seus trabalhos e talentos. Enfim, seus rostos se misturam com o lugar, são paisagens humanas revelando pertencimentos, que se não passam pelo reconhecimento administrativo da cidade, passam pelos laços de afeto instituídos pelas memórias e narrativas.

            Em uma discussão intitulada “O Poço da Draga de Perto: uma fotografia do lugar”, a pesquisadora Heloísa Oliveira aponta que:


 


Situado em frente ao mar, o Poço da Draga limita-se, também, com as avenidas Pessoa Anta, Almirante Tamandaré e Rua Boris. (...) A comunidade fica comprimida entre o prédio histórico da Caixa Econômica Federal, na Rua Pessoa Anta, e os galpões da Indústria Naval do Ceará (INACE) (...), que formam verdadeiros “paredões”, separando-a fisicamente das marcas do “progresso” à sua volta e impedindo-a de ser vista por quem passe por ali. (OLIVEIRA, 2006, p.26).

 

O bairro Praia de Iracema nasce da antiga Praia do Peixe, reconhece Bezerra (2016). Entendendo que a transformação desta ocorre por conta da ocupação dela e dos novos usos dados por parte da elite fortalezense. É fácil compreender que essa elite que transformou a praia em um local de lazer e fez com que o bairro ganhasse a alcunha de bucólico e boêmio não iria querer dividir espaço com os pescadores que ali viviam.

Atualmente a Praia de Iracema se constitui em um bairro nobre da cidade de Fortaleza com o 7ª maior Índice de Desenvolvimento humano - IDH da cidade, enquanto o bairro Centro se encontra na 23ª posição,[3] segundo dados do censo de 2010. (FORTALEZA, 2010). Ao caminhar pelas ruas do Poço entendemos a separação concreta e simbólica do local da Praia de Iracema: eles não possuem saneamento básico, as ruas são muito estreitas com diversos becos e ainda encontramos casas de madeira, que eram em maior número há pouco tempo.

A quem interessa esse isolamento? Apenas aos especuladores imobiliários da região? E a participação do poder público, quando não atende as necessidades básicas dessa parte da cidade? Quando a registra como centro não é para não reconhecer o valor do patrimônio territorial e a deixar vulnerável? Esse isolamento tem sido cotidianamente construído, o que faz com que haja um abismo entre o Poço e Iracema, mesmo que isso concretamente seja apenas atravessar uma rua. Grande parte dos turistas que visitam a cidade de Fortaleza tem a Praia de Iracema como destino certo, visitando com certeza o Centro de Arte e Cultura Dragão do Mar entre outros equipamentos culturais presentes na região e extremamente próximo ao Poço, entretanto a grande maioria nunca vai chegar a saber da existência desse local, igualmente com o que ocorre com a maioria dos habitantes da cidade.

Em agosto de 2018 foi anunciado um acordo entre o Governo do Estado e o Grupo Moinho Dias Branco para a retomada do “Projeto Acquário do Ceará”. Um investimento que previa uma “requalificação” do Poço da Draga, estimado inicialmente em R$ 600 milhões de reais. Em debate no dia 13 de agosto junto com as lideranças do lugar e de outro bairro, o Serviluz, refletimos sobre o tema no Ocupa Orla[4]. Requalificar, supõe que estas pessoas não estão qualificadas. Qualificadas a fazer parte desse projeto paisagístico voltado ao turismo? Era com apreensão que as lideranças do Poço lidaram com essa informação, pois não são consultados e nem é de conhecimento público as etapas e o que de fato estava previsto para esse território. Em matéria do jornal local, por conta da assinatura do acordo, o vice-presidente de Investimentos e Controladoria do Grupo posiciona-se:

 


Os estudos, segundo ele, devem ser finalizados num prazo entre 60 e 90 dias. "Concluídos, da nossa parte, começaríamos as obras o mais rápido possível". As análises documentais também definirão se o valor do investimento será mantido ou alterado. Em contrapartida ao investimento de R$ 600 milhões, o ente privado será responsável pela exploração imobiliária da região que envolve o Poço da Draga. "Observamos oportunidades de investimentos e achamos que possui um potencial imobiliário muito bom", avaliou. (Geraldo Luciano apud GOMES, 2018).

 

            Recentemente, janeiro de 2019, foi noticiado que a parceria entre o Grupo Moinho Dias Branco e o Governo do Estado do Ceará não prosseguirá, abrindo mais uma vez o espaço para que o governo procure uma nova parceria privada para retomada das obras do Acquário. Novamente o vice-presidente de Investimentos e Controladoria do Grupo se posicionou deixando margem para a possibilidade de futuramente o projeto ser retomado, ele afirmou que "A decisão, hoje, é de não seguir adiante. Só podemos falar do momento atual. Ninguém vai falar de futuro ainda. Não sei (se podem retornar ao projeto)" (Samuel Pimentel apud GOMES, 2019). Isso reflete muito bem a inconstância que os habitantes do Poço vivem há muito tempo em relação a esse local onde eles habitam, permeado por anúncios de obras de revitalização, um verdadeiro jogo com a vida de milhares de pessoas que não sabem até quando poderão continuar onde vivem.

 

 

 

O Poço e a Cidade de Fortaleza

 

Por meio das fotografias e dos relatos podemos compreender a luta dos habitantes do Poço para pertencer a cidade de Fortaleza. Suas relações com o lugar transcendem os limites territoriais impostos por quem constrói e define as chamadas “narrativas oficiais”. Percebemos assim os aspectos políticos que envolvem essas narrativas: a busca por separar um grupo social, estigmatizando-o, não permitindo que ele tenha voz e poder de decisão sobre seu futuro. Os gestores e administradores da cidade ignoram as trajetórias e as narrativas das pessoas que habitam esse lugar. Não reconhecem que em suas memórias e nos objetos que guardam, bem como nas histórias que contam, estão um precioso arquivo do patrimônio material e imaterial da cidade.

Um álbum de família é composto de relatos, sendo ele não apenas visual, mas também auditivo, trazendo então uma tripla dimensão que é cultural, comunicativa e visual. As fotografias nos possibilitam captar diversos aspectos culturais e históricos presentes nos ritos e momentos familiares, as fotos ganham significados ao serem narradas por aquele que as guarda, os acontecimentos são em sua grande maioria relatados por meio de vozes femininas, as quais são fortemente presentes no Poço da Draga. (SILVA, 2008). Se um álbum permite narrar uma família visualmente, o que ele não pode dizer sobre uma cidade?  “A família é o sujeito coletivo que narra e tem à disposição o manejo e a construção de um espaço de ficção.” (SILVA, 2008, p. 24). Ela cria o arquivo e o manuseia, classifica-o e essa estruturação muda, de acordo, com o fluxo das relações familiares. Essas imagens são remontadas, cortadas, rasgadas, excluídas ou não apenas anunciadas, mas conservadas. Evocam a história que se quer contar de si e dos outros.

Entendemos que há um modo de contar a história, chamado “oficial” que encontramos nos livros de história, nas enciclopédias, na mídia, entre outros, e outro que integra as narrativas, as memórias e as experiências vividas em um lugar. Os álbuns fotográficos, especificamente, nos acervos pessoais, são tomados, nesse trabalho, como uma forma de pensar sobre as experiências e práticas urbanas. Eles nos permitem caminhar por uma outra cidade que não conhecemos, uma cidade metafórica, narrada por aqueles que cotidianamente habitam, nomeiam e recriam seus espaços a partir de seus passos. “Uma cidade transumante, ou metafórica, insinua-se assim no texto claro da cidade planejada e visível.” (CERTEAU, 2009, p.159).

Assim captamos nas tensões individuais rastros das tensões coletivas. Associamos as imagens às narrativas desses territórios subjetivos e objetivos ou estruturais para compreendermos as redes de afetos na constituição da cidade e de suas práticas urbanas. Tomamos os álbuns (palavra de origem latina, albus, que significa branco) como arquivos (do grego arkhé- começo) a partir dos quais é possível cartografar além dos mapas e traços da cidade, as experiências. Num espaço em branco é possível inscrever começos, instituir por onde se quer começar a contar uma história, seja a familiar e mesmo a da própria cidade onde se vive. Conhecer essas formas de habitar a cidade é percorrer esses rastros, pelas imagens, passos e narrativas.

O saber sobre a cidade precisa, a nosso ver, passar por outras epistemes, reconhecermos os saberes próprios dos locais em que estas pessoas estão em movimento, ressignificando o que lêem e mesmo as imposições que tentam cercear suas liberdades individuais e coletivas. Saberes periféricos, heterotópicos, que perfuram os paradigmas conhecidos e nos revelam alteridades que carregam outras narrativas, outras visualidades e poéticas para a cidade que as abriga, mesmo quando essa sendo-lhes hostil.

Entendemos esse projeto de extensão como uma necessidade de confrontar as imagens e narrativas ditas “oficiais” sobre a cidade de Fortaleza - produzidas pelos discursos e instituições legitimadas pela coletividade – com as narrativas “não oficiais” - como as dos indivíduos à margem da “história oficial” que compõem a biografia da cidade. Suas próprias biografias, através das memórias acionadas pelas imagens fotográficas, são reescritas, relidas e reposicionadas. (ASSMANN, 2011; BRUNO, 2013)

Tomamos os álbuns fotográficos como arquivos a partir dos quais é possível cartografar além dos mapas e traços da cidade, percorrer as experiências, as marcas subjetivas que compõem a vida em uma cidade. Desse modo, o modo cartográfico do qual aproximamo-nos é menos do mapa e mais do croqui. De acordo com Armando Silva:

 


Graficamente pode-se desenhar um mapa com uma linha contínua que assinale o simulacro visual que se deseja representar. O mapa da Colômbia, por exemplo, rodeado por países limítrofes, Venezuela, Panamá, Equador, Peru e Brasil. O croqui, ao contrário, eu o concebo “pontilhado”, já que o seu destino é representar tão somente limites evocativos ou metafóricos, aqueles de um território que não admite pontos precisos de corte, por sua expressão de sentimentos coletivos ou de profunda subjetividade social. O território portanto não é mapa, mas croqui. O croqui vive a contingência da sua própria história social. (SILVA, 2001, p. 24)


 

Durante o ano de 2017, encontramos pessoas que se dispuseram a compartilhar seus álbuns e suas histórias, abriram suas casas, depositaram em nós sua confiança e nos apresentaram as histórias de suas famílias, seus sofrimentos, suas lutas cotidianas para permanecer em suas casas e os conflitos diante da remoção ou não de sua comunidade diante dos interesses imobiliários da cidade. Ouvimos, algumas vezes: “Essa comunidade abraçou vocês”, isso, no Poço da Draga, e na realidade, ali parecia para nós o começo do projeto, e as implicações políticas do que estamos realizando, visto que não é apenas encontrar essas imagens, mas esse trabalho lida também com o resgate da autoestima dessas pessoas, como pudemos ver na exposição que fizemos no aniversário de 111 anos da localidade em questão. Ouvindo essas narrativas, trilhamos o caminho inverso da história oficial e adentramos os emaranhados caminhos da memória e das “metáforas da recordação” (ASSMANN, 2011), como a escrita, as imagens, o corpo e os lugares. Ou seja, serão marcantes e disparam memórias os lugares mais importantes, as fachadas das casas, os atalhos, as nomenclaturas próprias para os nomes das ruas, os antigos e novos habitantes, mortos e vivos que se fixam na memória e não são esquecidos.

O álbum é uma forma de ver as organizações familiares, as composições étnicas, as apropriações e trajetos pela cidade a partir das imagens construídas e registradas e das experiências relatadas. Como “escalas do mundo”, (SONTAG, 2004) as fotos são testemunhos, interpretações, desvelam experiências. As fotos podem contar biografias de uma pessoa, mas também de um grupo social, de uma cidade, até mesmo a biografia do orvalho, se as imaginarmos com Manoel de Barros, que ainda nos lembra que o dom de esculpir o orvalho ele só encontrou nas aranhas.[5] Seres que tecem a vida, que deixam rastros para serem lembrados, para que possamos rever e reler a história.

Como lembra Ecléa Bosi e tomamos esta sua percepção como referência metodológica: “Escutando depoimentos, nós percebemos que os bairros têm não só uma fisionomia como uma biografia.” (BOSI, 2003, p. 204). As fotografias nos indicaram as pessoas, evocaram as narrativas, nos dando não apenas uma outra fisionomia da cidade, mas outra dimensão biográfica para ela.

 


Nas histórias de vida podemos acompanhar as transformações do espaço urbano. A relva que cresce livre, a ponte lançada sobre o córrego, a divisão dos terrenos, a primeira venda. (...) as casas crescem do chão e vão mudando. (...) a fisionomia amadurece, as arestas se arredondam, as retas se abrandam e o bairro acompanha o ritmo da respiração e da vida dos seus moradores. Suas histórias se misturam e nós começamos a enxergar nas ruas o que nunca víramos, mas nos contaram. Quando a fisionomia do bairro se humaniza pode continuar se transformando e vivendo ou pode ser golpeada de morte. (BOSI, 2003, p.204).


 

            O Poço ocupa um lugar importante na história da cidade, próximo ao mar, ao porto antigo da cidade, próximo ao Centro da cidade, o que é por um lado, extremamente relevante, pois esses habitantes guardam lembranças da construção da cidade. Dona Zenir umas das habitantes do Poço, e uma importante líder comunitária, sempre ressalta que foi uma das primeiras costureiras da Monsenhor Tabosa, um centro comercial importante da cidade. E mais, que costuravam para os principais hotéis da cidade. Essas pessoas não só assistiram a orla de Fortaleza sendo ocupada por pessoas de poder aquisitivo. Tornando a orla não apenas um lugar de pescadores e trabalhadores, mas lugar de especulação imobiliária e de status social, embora as melhorias de condição de vida, tenha ficado praticamente apenas no entorno de sua cartografia.

Um bairro é um “pedaço da cidade”, um pedaço que simboliza um dentro e um fora, é uma construção entre o privado e o urbano. “É o que resulta de uma caminhada, da sucessão de passos numa calçada, pouco a pouco significada pelo seu vínculo orgânico com a residência.” (CERTEAU, 1996, p. 41). Contudo, do Poço da Draga foi retirado o direito de ser bairro, visto que se situa espacialmente em Iracema, e do ponto de vista da gestão urbana é caracterizado como Centro.

Por outro lado, os habitantes do Poço também não pensam que são uma comunidade, pois nas palavras de Sérgio Rocha, ele questiona, por que não chamamos comunidade Aldeota, ou comunidade Meirelles? Mas utilizamos esse termo, com tom pejorativo para os grupos que se situam de maneira segregada na cidade? Fica o questionamento sobre as palavras e seus usos e mesmo como nem sempre os territórios carecem de nossas nomeações. As pessoas nesse território de memórias, falam, agem, constroem realidade, talvez o que falte a cidade, aos seus gestores e demais habitantes, seja parar tantos ruídos das obras turísticas e de embelezamento da cidade e ouvir essas vozes, acompanhar essas pessoas em suas vidas e artes de fazer a cidade, e seu direito de nela permanecerem, no território que habitam. Ao visitarmos o Poço da Draga, olharmos seus álbuns fotográficos, defendemos um posicionamento de um “Lembrar-ativo”, ou seja, revisitar memórias para a compreensão e o esclarecimento do passado, mas também do presente, lembrando dos mortos, mas também ativando esses laços em respeito à luta e por atenção aos vivos, como lembra Jeanne Marie Gagnebin (2006).

O Pavilhão é a entrada do Poço da Draga, geralmente o seu ponto mais conhecido, nem todos adentram as casas e as ruas, mas esse ponto é referência na cidade, pois é o caminho de passagem para a Ponte Velha. O Pavilhão foi lugar religioso e escolar: com a escola das freiras: “as irmanzinhas"; posto de saúde e hoje é conhecido por ser lugar das apresentações e intervenções culturais, mas também serve como lugar de abrigo para os andarilhos e pessoas em situação de rua que vivem pela região.

 


Imagem 04: Acervo do Grupo Rastros Urbanos: Intervenção @PretaMar no Pavilhão do Poço da Draga – Foto Cristina Maria da Silva/ 25 de maio 2018.

 

A intervenção acima foi feita por Preta Mar, uma jovem de 19 anos que descobriu que não sabia dançar, escrever ou fazer teatro, mas sabia fazer crochê e hoje faz de sua arte a forma de demarcar e lutar por seu espaço como mulher, negra e periférica dentro da cidade. Imagens como essa mostra-nos outra cidade, agulhas e linhas que fazem e desfazem nós, refazendo a trama que a compõe, mas agora não por mãos de outros.  

Temos participado em 2017 e 2018 das visitas guiadas, dos saraus na Dona Iolanda, temos compartilhado momentos festivos e os momentos de dificuldade. A visita guiada organizada pelo geógrafo Sérgio Rocha é uma forma de manter a memória do lugar viva e conhecida por estudantes, pesquisadores e visitantes da cidade. As ruas no entorno são percorridas a pé e depois entramos nas ruas e becos do Poço, ouvindo narrativas do Sérgio Rocha, mas também dos habitantes que participam de maneira ativa, sobretudo, o que estão a mais tempo no lugar.

 

 

 


Imagem 05: Acervo do Grupo Rastros Urbanos: Primeira visita dia 29 de outubro 2016

 

Seus laços de afetos, suas relações com o mar e com a cidade, que podem se expressar no lema dos 112 anos, em 2018: “E o sol ainda brilha entre o Poço, a Ponte e o Mar”, idealizado por Sérgio Rocha.  

Refletindo sobre as narrativas que compõem a cidade de Fortaleza-CE e a formação de seus bairros, partindo das imagens fotográficas e das narrativas que as pessoas guardam, imaginamos ampliar o conhecimento sobre os territórios objetivos da cidade delineando-o com territórios subjetivos. Assim, as redes de afetos são elementos imprescindíveis para compreendermos a constituição da cidade e das suas práticas urbanas, visando também preencher lacunas na história local, na compreensão da heterogeneidade e das heterotopias (FOUCAULT, 2013) das vivências.

Tomamos os álbuns fotográficos como arquivos a partir dos quais é possível cartografar além dos mapas e traços da cidade, ajudam-nos a percorrer as experiências, as marcas subjetivas que compõem a vida em uma cidade. Podemos montá-la e remontá-la, percebendo suas engrenagens, seus focos de opressão e resistências.

As fotografias nos contam sobre as redes de afetos de seus habitantes, compõem uma paisagem subjetiva da cidade, narram a maneira como os habitantes do Poço da Draga, experimentam a cidade em seus trajetos e como constituem a topofilia (topos do grego tópos: lugar; filia  do grego philia: afeto, amor), ou seja, o afeto que os ligam ao lugar que habitam. Ampliamos as perspectivas de olhares para além dos considerados “oficiais”, agregando através de imagens domésticas, percepções, intuições e experiências que traçam fabulações sobre a vida urbana nem sempre visíveis ou possíveis de gerir. Repensamos assim tanto do modo de vista teórico como metodológico uma sociologia ou antropologia urbana, e pensamos numa antropologia nas cidades, onde é preciso entender que habitar “é deixar rastros” (BENJAMIN, 2009). Conhecer essas formas de habitar é percorrer esses rastros, através das imagens, dos passos deixados, das narrativas que nos permitem ou nos desafiamos a conhecer, para montarmos outros olhares sobre a cidade e sobre as experiências dos que nela vivem.

 

A biografia de uma cidade

 

 


Imagem 06: Acervo do Grupo Rastros Urbanos: Foto Cristina Maria da Silva; Visita dia 29 de outubro 2016

 

Ruas, fachadas, trilhos, mulheres, homens, passos, passantes, sombras, uma cidade que se refaz. Cada ida ao Poço parece nos mostrar outras configurações. Em 29 de Outubro de 2016, em nossa primeira visita ao Poço da Draga, com o grupo Rastros Urbanos, vimos colada na estrutura que separa o Pavilhão no Poço da Draga da construção do Aquário do Ceará, os resquícios de uma exposição realizada provavelmente no ano de 2016. A sensação é como se as imagens estivessem desaparecendo diante do nosso olhar. As paisagens humanas, constantemente ameaçada pelos projetos paisagísticos em prol do turismo e da especulação imobiliária. Uma cidade constantemente se refazendo, as dobras das fotografias se deslocando para dar lugar à outras imagens e acontecimentos. Pessoas, ruas, fachadas, em risco sempre iminente de desaparecer diante dos nossos olhos. Em trecho de sua dissertação de mestrado, Heloisa Oliveira explica, as marcas dos trilhos dentro do Poço e suas origens:


 


Os trilhos que ainda hoje atravessam o Poço da Draga resultam de 1879, quando foi instalado um ramal ferroviário com a  função  de  fazer  a  ligação  com  o porto. A ferrovia servia como principal meio de transporte de mercadorias do interior para o litoral fortalezense. Em 1903, a Praia de Iracema contaria também com bondes de tração animal, a chamada “linha da praia”, que partia do antigo mercado e findava na  Alfândega Velha.  Os trilhos desativados no início da década de 1980 percorriam toda a rua Gerson Gradvol e terminavam na Cidal 20 (Antigo depósito de óleo de mamona. Foi desativado juntamente com a linha ferroviária). As lembranças da época em que o trem passava ainda são  bem vivas na memória dos moradores do Poço da Draga, conforme disse uma moradora:  “...Minha  casa  foi  construída  à  beira  dos  trilhos, uma  vez  aconteceu  do trem carregar um pedaço do meu telhado, que tinha acabado de ser feito, a gente   era   tão   acostumado   que   conhecia   até   os   maquinistas.   Eles começavam a apitar desde ali da Sefaz (Secretaria da Fazenda do Estado de Ceará) para a gente tirar os meninos da rua...” (Entrevista realizada em 20/10/05). (OLIVEIRA, 2006, p. 24).


 

Nosso olhar andarilho segue pelo Poço, a cada caminhada como o apanhador de Manoel de Barros[6]: “Sou um apanhador de desperdícios. Amo os restos como as boas moscas”. Ou mesmo o “narrador catador” que encontra vestígios para a compreensão da vida em tudo o que encontra. Nas palavras de Gagnebin:


 


O narrador também seria a figura do trapeiro, do Lumpensammler ou do chiffonier, do catador de sucata e de lixo, esta personagem das grandes cidades modernas que recolhe cacos, os restos, os detritos, movido pela pobreza, certamente, mas também pelo desejo de não deixar nada se perder. GAGNEBIN, 2006, p.53-54.


 

Gagnebin numa nota de rodapé faz a ressalva de como o chiffonier, essa figura do catador já aparece nos poemas de Charles Baudelaire em as Flores do Mal. A seu ver: “Para Benjamin, Baudelaire é o primeiro poeta verdadeiramente moderno, aquele que trata dos reais habitantes das grandes cidades.” (GAGNEBIN, 2006, p. 53).

O que pensamos e dizemos sobre uma cidade tem muito a ver com o lugar que nela ocupamos. Nosso desafio nesse texto é refletir sobre uma das ações que estão sendo realizadas no projeto de extensão Fotobiografias urbanas. Como conhecer uma cidade? uma cidade tem uma biografia? Se sim, como podemos conhecê-la?

Escolhemos os álbuns fotográficos dos acervos pessoais das pessoas que habitam a cidade como uma das formas de conhecer as faces dessa biografia. Tomamos os habitantes de uma cidade, e por sua vez, de um bairro, como peregrinos (INGOLD, 2015) que prosseguem um caminho e deixam trilhas por onde passam. Desse modo, os vestígios deixados nas fotografias revelam seus movimentos pela cidade, suas caminhadas e entrelaçamentos com os outros e seus vínculos de afeto com os que vivem no seu entorno ou mesmo distantes. Assim, é importante para nós reconhecer que:


 


Os lugares, em suma, são delineados pelo movimento, e não pelos limites exteriores ao movimento. Na verdade, é a apenas por esse motivo que escolhi me referir a pessoas que frequentam lugares como “habitantes” ao invés de “moradores”. Porque seria muito errado supor que tais pessoas estejam confinadas em um determinado lugar, ou que sua experiência seja circunscrita pelos horizontes restritos de uma vida vivida apenas aí. (INGOLD, 2005, p. 220).


 

As construções das casas, as dificuldades para ter água, a luta, ainda existente, pelo direito ao saneamento básico, todas essas lutas são atravessadas por lágrimas e sorrisos, por encontros como o sarau, que acontece na casa da Dona Iolanda, maneiras de se unirem para falar, rir, cantar, mas sobretudo, para lembrarem-se de quem são, de quando chegaram ao Poço e o que as unem ali. “Não há, provavelmente, nenhuma sociedade que não constitua sua heterotopia ou suas heterotopias. Esta é, sem dúvida, uma constante de todo grupo humano.” (FOUCAULT, 2013, p.21). Foucault explica que as heterotopias não têm uma única forma e nem permanecem de um modo constante. Por exemplo, as sociedades primitivas teriam lugares para o sagrado ou lugares proibidos, existem casas especiais para os jovens na puberdade, casas especiais para as mulheres em trabalho de parto. No Poço, existem esses lugares, que se metamorfoseiam: O pavilhão, o quintal da Dona Iolanda, a Ponte Velha do antigo porto, o lugar do chafariz, os vestígios do trilho do trem, que hora somem e reaparecem com as obras de manutenção do asfalto da rua. Todos esses lugares, mudaram e mudam, como as narrativas também mudam ao folhear as mesmas imagens de um álbum, reagregando sentidos e abrindo clarões de reencontro como o passado e com os que ali vivem e viveram.

Ivoneide, uma das principais interlocutoras, nesse projeto, guarda em sua casa um enorme acervo fotográfico onde podemos encontrar fotos de sua família, dos habitantes em suas ações e encontros coletivos e até mesmo do Brasil e do mundo, é o que Silva (2008) chama de “Família-mundo”. O autor imagina uma integração mundial entre as fotografias proveniente da era digital, entretanto dona Ivoneide, com suas fotografias físicas e recortes de jornais, nos possibilita compreender essa “família-mundo” para além e antes da internet.

Ao nos apresentar as suas fotografias, Ivoneide nos permite adentrar na sua versão da história do Poço. É na sua trajetória ligada as fotos que observamos e escutamos um Poço da Draga permeado pelos afetos, no qual encontramos pessoas que possuem uma relação de muita proximidade e que se consideram uma grande família. Percebemos isso nos momentos de celebrações que ocorrem muitas vezes nos quintais para comemorar datas importantes, como, por exemplo, o Dia das Mães. Através de suas fotos é que vamos conhecendo essa cartografia do lugar. As pessoas, os lugares, os eventos, por onde caminhar, por onde ter mais cuidado. Seus passos guiam os nossos no conhecimento sobre esse espaço da cidade.

Vimos a próxima imagem na parede da cozinha na casa da mãe de Ivoneide, Dona Zenir. Foi uma intervenção do Coletivo Vós[7], durante a 2ª edição da Feira Massa no Poço da Draga. Essa e outras imagens foram fixadas na Avenida Almirante Tamandaré em 2015, durante as comemorações dos 107 anos, um modo de ressaltar a importância das pessoas que vivem no lugar. Nessa foto, está a família da Ivoneide, seu pai, já falecido e sua mãe. A foto com a passagem do tempo estava com falhas no rosto de seu pai. Anderson Lemos, um dos membros do Rastros Urbanos, restaurou e no Natal de 2018, devolvemos para Dona Zenir.

 

 


Imagem 07: Acervo Grupo Rastros Urbanos:  Fotografia da Dona Zenir com a família. Fotografia proveniente dos álbuns fotográficos de Dona Zenir.

 

Quando conhecemos Ivoneide, não imaginávamos o tamanho do seu acervo fotográfico, composto por dezenas de álbuns e centenas de fotografias. Ela é uma das “guardiãs da memória”, termo utilizado no bairro para classificar as pessoas que estão a mais tempo no lugar e que exercem um papel fundamental propagação da memória do Poço. Essa memória é valorizada por ser entendida como uma forma de luta e é por meio dela que as pessoas, do Poço ou não, tomam consciência da importância do lugar onde eles vivem e associam a sua existência, seus afetos e o seu significado como pessoa a esse lugar. No acervo de Ivoneide encontramos uma curiosa coleção, ela possui centenas de santinhos de falecimento de pessoas que viveram no Poço ou de pessoas próximas a ela, uma coleção obtida ao longo de muitos anos de dedicação. Durante horas de conversas regadas a café e bolo a moradora nos contou um pouco de suas memórias em relação a cada pessoa presente nos santinhos guardados, tivemos acesso a diversas biografias que constatam as experiências de vida das pessoas nessa parte da cidade, suas diversas gerações, trazendo à tona a vida e transformações de um lugar que muda e que é construído cotidianamente pelas práticas e as relações dos seus habitantes.

Por isso entendemos essas fotos como desencadeadoras de “fotobiografias”, são imagens que nos convidam a interpretá-las para além de uma simples descrição do que é visto, nelas encontramos narrativas humanas que possibilitam o exercício ilimitado de descoberta e imaginação trazendo à tona “histórias visuais” e memórias. (BRUNO, 2014). Tomamos essas imagens como fotobiografias urbanas, pois nelas encontramos as “geografias humanas” que traçam histórias de vida, mas elas também desvelam contextos sociais e processos históricos.


 


As fotografias que produzimos circulam, viajam, entre parentes, amigos e amantes. Terão, no entanto, uma curta vida visível. (....) muitas fotografias, uma vez vistas - não necessariamente olhadas -, voltam a silêncio de álbuns, caixas de lembranças, bolsos, arquivos - espécies de relicários- onde serão guardadas, antes de ser engavetadas com respeito. Sim, um respeito crescente, à medida que crescerá o esquecimento de suas presenças. Como as grandes árvores as fotografias precisam envelhecer. (BRUNO, 2013, p. 130).


 

A fotografia, é na sua etimologia, de origem grega, photographein, a grafia de uma luz, marcar a luz, registrar a luz. A biografia é a grafia de uma vida. Ao associarmos esses dois termos à análise da vida urbana, nós estamos pensando na possibilidade de através desses registros de luz, preservados nesses acervos comuns e cotidianos, podemos pensar em biografias de pessoas, das pessoas que habitam o Poço da Draga, mas também, podemos pensar nas relações e interações entre esse lugar e a cidade, e nas memórias, esquecimentos e ausências que latejam nessas narrativas e nesse território.

 

Considerações Finais

 


Meu próprio tempo em lascas: um pedaço de memória, essa coisa não escrita que tento ler; um pedaço de presente, aqui, sob meus olhos, sobre a branca página; um pedaço de desejo, carta a ser escrita, mas para quem? (Didi-Huberman, 2017, p. 10).


 

As nossas idas ao Poço para além de projeto se constituem verdadeiramente no que consideramos a extensão universitária, pois saímos da universidade com objetivo não apenas de realizar um trabalho com prazo de validade, mas estabelecer vínculos, amizades e contatos com pessoas permitindo que nossos trabalhos cheguem a elas. É nesses encontros, nessas conversas e nas trocas de experiências que fazemos e exercitamos o nosso conhecimento antropológico e sociológico. Essa proximidade com local tem nos possibilitado criar as nossas próprias narrativas sobre o poço por meio por exemplo das fotografias que tiramos do lugar. Ao caminhar pelo Poço é fácil observar uma outra Fortaleza escondida entre muros de grandes construções, um ambiente com clima de cidade de interior onde encontramos habitantes tanto durante o dia como a noite sentados nas calçadas. Nas ruas observamos mulheres lavando e estendendo roupas, crianças correndo e música tocando, se tivermos sorte poderemos ainda encontrar algumas pessoas dançando em suas portas. É uma Fortaleza que não conhecemos. O Poço guarda aspectos de socialização que não encontramos mais em outros bairros da cidade, são sem dúvidas aspectos únicos que não podem ser simplesmente transferidos para outro local. Existe um pertencimento ao local muito forte, seja pelas memórias de seus mortos, pelos trajetos cotidianos dos vivos e a proximidade com áreas estratégicas da cidade, bem como a relação forte de seus habitantes com o mar.

Ao entendermos então esses habitantes e suas reinvindicações, somamos esforços nessa luta pelo direito dos habitantes de permanecerem no local e que essa permanência seja viabilizada com mais políticas que possibilitem uma melhor qualidade de vida para eles. Seguimos atentos aos projetos da Fortaleza 2040 e a retomada das obras do Aquário da cidade. Diante do cenário político que devemos enfrentar nos próximos anos o Poço resiste e resistimos juntos, as Organizações Não-Governamentais - ONGs, projetos e pesquisadores que diariamente buscam apresentar para cidade esse lugar ainda desconhecido por grandes partes dos habitantes de Fortaleza. A dimensão ética do que fazemos está na compreensão de ouvir o outro, ser testemunha de suas alegrias e suas dores, de suas conquistas e agruras, fazer parte de suas agonística de vida. Levar adiante sua narração, não por culpa ou compaixão, mas:


 


Porque somente a transmissão simbólica (...) somente essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra história, a inventar o presente.


(Gagnebin, 2006, p. 57).

 

Esse trabalho com as fotografias tem nos indicado o outro modo de fazer antropologia; entrelaçando narrativas, simultaneamente convivendo com as pessoas e revendo os pressupostos de uma possível antropologia urbana. Refletindo muito mais, em uma antropologia na cidade, acontecendo com ela e com seus habitantes.

Ao morarmos numa cidade, ela também habita em nós. Ao ouvirmos as reflexões de Ingold (2005) sobre a noção de habitantes e não moradores, porque estes não estão confinados à um lugar, compreendemos que os lugares habitados são muitos, são os lugares físicos, localizados geograficamente, mas são também os “espaços da recordação.” Casas, quintais, calçadas, jardins e seus usos, ganham uma força simbólica que fazem com que as memórias individuais também transcendam e encontrem as memórias coletivas. Como lembra Assmann, nesses lugares se exerce um tipo de memória profundamente ligada à histórias das famílias, são “locais de gerações”, desse modo: “Amplia-se a memória do indivíduo na direção da memória da família; e aqui se cruza a esfera de vida do indivíduo com a dos que a integram, porém, não estão mais ali. Em ambos os locais, uma recordação individual dilui-se em uma recordação geral.” (Assmann, 2011, p. 319).

Quando pensamos nas narrativas na cidade que se dão em álbuns fotográficos, pensamos que tem uma Fortaleza que se desenha nessas montagens fotográficas. Desenham-se cartografias narradas das trajetórias e vivências; Fragmentos de memórias se exprimem para além da cidade que exclui, oprime e expulsa por força da especulação imobiliária e projetos urbanísticos. Há uma força que se origina nos territórios da recordação: A força do lembrar e as diversas maneiras de exprimir isso em fotografias, contação de histórias e convivência, revelam outras cidades, outros modos de habitá-la.

A cidade por si só revela um nome violento: Fortaleza. Do latim fortis, exprime a ideia de lugar protegido e fortificado. “O que significa estar numa cidade chamada Fortaleza?” indaga o historiador Silva Filho (2001, p. 12). Uma cidade que se monta no entorno de uma edificação militar iniciada pelos holandeses no século XVII. Com a expansão e crescimento a cidade criou suas fortalezas, sobretudo, as que são regidas pelos esquemas de vigilância eletrônica e fortificações privadas. Nas palavras do autor:


 


Explorando o caráter violento sugerido no próprio nome de nossa cidade, percorre-se uma série de temáticas, tais como: O Forte de Nossa Senhora da Assunção, conflitos entre indígenas e colonizadores europeus, plantas da cidade, nomes das ruas, sistemas de iluminação, formas e instrumentos de marcar o tempo, delimitação dos espaços públicos, equipamentos de orientação dos fluxos urbanos. (Silva Filho, 2011, p. 11-12).


 

 Contudo, olhando a maneira de experimentar a cidade que o Poço da Draga tem construído, observamos que eles têm construído uma Fortaleza de memórias e afetos. Se não podem ter garantias de defesa do território físico, eles se abrigam em seus territórios de recordação para garantir suas existências e desse exercício de cavar essas lembranças eles encontram força para lutar e resistir.  Elaborar o passado e criar o presente lendo algo, não necessariamente escrito (Didi- Huberman, 2017).

Além disso, as possibilidades de montagens das fotografias, sejam a de seus habitantes, bem como as diversas recomposições de nosso olhar e dos próprios álbuns que montamos durante esses três anos de projeto, apontam para um campo vivo e potente para a extensão universitária; Campo este extremamente vinculado com o compromisso do ensino e da pesquisa, mas também com o conhecimento da vida cotidiana, com as paisagens humanas e suas narrativas e memórias e, por sua vez, do patrimônio material e imaterial que perpassa os fazeres urbanos.

 

Referências

 

ARTIÈRES, Philipe. “Arquivar a própria Vida”. Estudos históricos, n. 21. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, p. 9-34, 1998.

ASSMANN, Aleida. Espaços da Recordação: formas e transformações da memória cultural. Campinas-SP: Editora da Unicamp, 2011.

BARROS, Manoel. O Apanhador de Desperdícios. Manoel de Barros. Poesia Completa. Disponível em:<https://www.revistabula.com/2680-os-10-melhores-poemas-de-manoel-de-barros/>. Acesso: 15. Jun. 2018.

BARROS, Manoel. Do livro Retrato do artista quando coisa. Disponível em: <https://casadamericalatina.wordpress.com/2012/04/20/excertos-da-poesia-completa-de-manoel-de-barros-3/>. Acesso: 15. Jun. 2018.

BENJAMIN, Walter. As passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Impressa Oficial do Estado de São Paulo, 2009

BEZERRA, Roselane Gomes. Praia de Iracema. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2016. 84p.

BOSI, Ecléa. “Memória da cidade: lembranças paulistanas”, Estudos Avançados, v.17, n. 47, p. 198-211, 2003.

BRUNO, Fabiana. Fotobiografias: uma proposta antropológica e estética. Revista Espaço Acadêmico. Paraná. v.14, n.163. p.09-20. dez. 2014. Disponível em: < http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/26003>. Acesso em: 30 de outubro 2018.

BRUNO, Fabiana. Imagem-escrita nas fotobiografias. In: Família em imagens. Bárbara Copque, Clarice Ehlers Peixoto e Gleice Mattos Luz (Orgs). – Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013

CERTEAU, Michel. Práticas de Espaço. Caminhadas pela Cidade. In: A Invenção do Cotidiano 1. Artes de Fazer. 16ª ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

CERTEAU, Michel. I. O Bairro; VII. Os Fantasmas da Cidade. A Invenção do Cotidiano 2. Morar, Cozinhar. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. São Paulo: Editora 34, 2017.

ESTÉS, Clarissa Pinkola. O Dom da História. Uma fábula sobre o que é suficiente. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

FORTALEZA. Desenvolvimento Humano, por Bairro, em Fortaleza. Fortaleza, CE, 2010. Disponível em: <https://pt.calameo.com/read/0032553521353dc27b3d9>. Acesso em: 30 de outubro 2018.

FOUCAULT, Michel. O Corpo Utópico; As Heterotopias. -São Paulo: n.1 Edições, 2013.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar Escrever Esquecer. – São Paulo: Ed. 34, 2006.

GOMES, Alex. M. Dias Branco decide tocar as obras do Acquário e pode mudar projeto. O Povo.  Disponível em: <https://www.opovo.com.br/jornal/economia/2018/08/m-dias-branco-decide-tocar-obras-do-acquario-e-pode-mudar-projeto.html>.Acesso em: 11 de Ago. 2018.

INGOLD, Tim. Parte IV.  Um Mundo Narrado. Capítulo 12 Contra o Espaço: lugar, movimento, conhecimento. In: Estar Vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. – Petrópolis- RJ: Vozes, 2015. – (Coleção Antropologia).

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<https://www20.opovo.com.br/app/colunas/opovonosbairros/2013/04/04/noticiasopovonosbairros,3033206/comunidade-esta-prestes-a-comemorar-107-anos-de-historia.shtml>. Acesso em: 11. Jan.2019.

OLIVEIRA, Heloísa Maria Alves. O Poço da Draga e a Praia de Iracema: Convivência, Conflitos e Sociabilidades. Dissertação de Mestrado em Sociologia, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2006. Disponível em:

<https://docplayer.com.br/6622184-O-poco-da-draga-e-a-praia-de-iracema-convivencia-conflitos-e-sociabilidades.html> . Acesso em: 11. Jan. 2019.

PIMENTEL, Samuel. Grupo Dias Branco desiste do Acquario Ceara. O Povo. Disponível em:  https://www.opovo.com.br/jornal/economia/2019/01/grupo-dias-branco-desiste-do-acquario-ceara.html. Acesso em: 18 jan. 2018.

ROCHA, Sérgio. Um Olhar Sobre o Poço. Revista Dragão do Mar, Fortaleza, v.01, p.58-61, jan,/fev./mar. 2018.

SILVA, Armando. Álbuns de Família: a imagem de nós mesmos. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2008.

SILVA, Armando. Imaginários Urbanos. Editora Perspectiva, São Paulo, 2001.

SILVA FILHO, Antônio Luiz Macedo. Fortaleza: Imagens da Cidade. Fortaleza: Museu do Ceará/ Secretária da Cultura e Desporto do Estado do Ceará, 2011.

SONTAG, Susan. Sobre a Fotografia. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004

TUAN, Yi Fu; OLIVEIRA, Livia de. Experiências Íntimas com Lugar. In: Espaço e lugar: a perspectiva da experiencia. São Paulo, SP: Difel, 1983. 250p.


 

Data de Recebimento: 10/07/2019
Data de Aprovação: 16/10/2019

 

[1] O Grupo de Estudo e Pesquisas Rastros Urbanos da Universidade Federal do Ceará é registrado no diretório do CNPq desde 2011. O projeto de extensão “Fotobiografias: a Fortaleza que se conta em acervos fotográficos pessoais” está ativo desde 2016. É composto por uma equipe de professores e pesquisadores de várias instituições e na sua equipe local, com estudantes e pesquisadores das ciências sociais, da geografia e colaboradores da arquitetura. Atualmente o grupo é coordenador pela professora Cristina Maria, que faz parte do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará (Av. da Universidade, 2995 - Benfica, Fortaleza - CE, 60020-181), com a colaboração do professor Tiago Vieira Cavalcante, do departamento de Geografia da mesma instituição.

[2] Sérgio Rocha, ou “Serginho” como é comumente chamado, é morador do Poço da Draga e geógrafo. Atua fortemente no local sendo por exemplo professor na ONG Velaumar (ONG que desenvolve diversas atividades voltadas a integração entre os habitantes, afirmação da identidade e memória do local tendo em vista a especulação imobiliária que há muitos anos ameaça a permanência deles no local), propagando conhecimento acerca do Poço em palestras além de realizar uma visita guiada pelo local.

[3] Os 7 maiores IDHs de Fortaleza são na sequência: Meireles (0,953), Aldeota (0,866), Dionísio Torres (0,859), Mucuripe (0,793), Guararapes (0,767), Cocó (0,762) e Praia de Iracema (0,720). O Centro fica na 23° posição (0,553).

[4]http://rastrosurbanosufc.blogspot.com/2018/08/debate-ocupa-orla.html

[5] Do livro Retrato do artista quando coisa.

[6] O Apanhador de Desperdícios.

[7] http://feiramassa.com.br/.  O Coletivo Vós “é uma plataforma de histórias. Histórias sobre a rotina do povo do Ceará, dos cearenses, de quem escolheu viver aqui.” http://www.somosvos.com.br/o-projeto/. >