Considerações iniciais
Estamos diante de uma sociedade em que práticas de discriminação ainda são recorrentes, em pleno século XXI. Mesmo depois de tantos casos de extermínio ocorridos na história da humanidade, que destroçaram diversas comunidades, o ser humano é capaz de não se sensibilizar com os afetados. E pior: é capaz de dar continuidade a esse extermínio. A título de exemplo, temos os ocorridos com os indígenas brasileiros, que são detectados desde a chegada dos portugueses ao Brasil. É desumano o que propiciaram aos povos indígenas durante tantos anos de colonização. A convivência entre não indígena e indígena é marcada pela discriminação e exclusão desses povos. A luta por suas terras, tradicionalmente, ocupadas também faz parte dessas comunidades até hoje, uma vez que esses povos originários não conseguem permanecer em suas terras
As leis que os povos indígenas alcançaram no decorrer dos anos contribuíram para que seus direitos fossem autenticados, entretanto, não deveriam nem ter chegado ao ponto de precisar de legislações para conquistar o que já era deles por direito. E mais, essas regularizações foram feitas com o olhar voltado para a sociedade hegemônica e não para os indígenas, como forma de “controle” sobre eles (LUCIANO, 2006). Dessa forma, criaram documentações para incluir o indígena, mas que tentam incluir já excluindo, o que demonstra uma falsa proteção (SAWAIA, 2008).
Entendemos que sem a garantia desses povos originários para permanecerem em suas terras, não há sobrevivência para as etnias indígenas. Os movimentos indígenas (grupos indígenas e organizações da sociedade civil que apoiam e reforçam o compromisso de defender os direitos indígenas previstos na Constituição) têm atuado no bojo dos acontecimentos que geraram o movimento indigenista (doutrina, formulada inicialmente no México como parte do movimento intelectual nacionalista, caracterizada pela defesa e valorização das populações indígenas de um país, região); portanto, como legítimos herdeiros dessa consciência, eles têm produzido efeitos importantes como a defesa dos territórios indígenas, a atenção especial à saúde e à educação (GOMES, 2012, p. 273). No entanto, eles têm esbarrado em muitos problemas no tocante ao diálogo com a sociedade como um todo, sendo a diversidade cultural um importante fator para o isolamento.
De acordo com Foucault (2012), há uma constante tensão nos discursos em que os sujeitos são interpelados pela formação discursiva, a qual se define uma regularidade: uma ordem, correlações, posições, funcionamentos e transformações. É possível observar que os discursos indígenas abarcam formações discursivas de caráter colonial, são questões que apresentam marcas de exclusão em que se pode observar que o sujeito indígena é rechaçado desde os tempos coloniais.
No capítulo intitulado “Monstros e degenerados” de seu livro Os infames da história: pobres, escravos e deficientes no Brasil, Lobo (2008) aborda a visão que os europeus tiveram dos indígenas quando chegaram ao Brasil em 1500. Com o objetivo de desnaturalizar as marcas dos corpos “deficientes”, a autora apresenta um levantamento histórico que comprova o emprego do vocábulo “aberração”. Muitas foram as representações na literatura europeia, cujas visões eram recheadas de ficção, já que os indígenas eram retratados por aqueles que viajavam até o Brasil. Esses estrangeiros divulgavam a imagem indígena como monstros que apresentavam características animais e deformações absurdas, até mesmo ligados à prática do canibalismo. Essas representações contribuíram para a criação e expansão da exclusão sofrida por esses povos.
As condições de produção do discurso de exclusão, que os indígenas brasileiros vivenciaram desde o início da colonização do Brasil, são marcados por enunciados referentes a apropriações de grandes territórios e também de luta para recuperação das terras. Já se iniciava o processo excludente no período colonial, quando os indígenas, mesmo sendo os primeiros habitantes brasileiros, não possuíam (e ainda não possuem) reconhecimento do direito à terra.
Para Guerra (2010), o governo do estado do Mato Grosso do Sul nem sempre se posiciona a favor da causa indígena na luta pela terra, nem luta em prol de seus direitos: o que presenciamos é um descaso para com os direitos indígenas, o que contribui para que esses povos sejam massacrados ainda mais. Assim, consideramos relevante problematizar os discursos sobre o indígena sul-mato-grossense. Assim, este artigo se vale de recortes discursivos[1] da Carta Aberta denominada Contra o genocídio da população indígena, retirada do site do NEABI (Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas) e destinada à população[2].
O NEABI é um projeto do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP). Teve seu lançamento oficial em 20 de agosto de 2015 e é um regulamento aprovado pela Portaria Nº 2.587 do Governo Federal. Sendo a discriminação uma prática atual, o Núcleo desenvolve pesquisas e ações com o propósito de expandir o conhecimento em questões étnico-raciais e minimizar a exclusão que essas práticas recorrentes produzem. As Cartas Abertas, que o NEABI divulga, demonstram e representam formas subjetivas que despertam seus leitores. Assim, as ideologias marcadas no discurso do seu próximo são influenciadoras na construção e reconstrução de novas subjetividades.
Vale dizer que o IFSP lançou o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (NEABI), em 20 de agosto de 2015, que teve seu regulamento aprovado pela Portaria Nº 2.587, de 28 de julho de 2015, do Governo Federal. O Núcleo atua nas ações de ensino, pesquisa e extensão desenvolvidas no IFSP, com propósito de conscientização da luta de afrodescendentes e indígenas para que as discriminações presentes na sociedade brasileira não fiquem à margem e medidas novas sejam tomadas com precisão (DOSSIÊ NEABI, 2016)[3].
A Carta denuncia o massacre que ocorreu na cidade Caarapó, no sul do Mato Grosso do Sul, no dia 14 de junho de 2016. Também se trata de imagens agonísticas sobre o ocorrido, além de relatos de sujeitos indígenas, que são recortados para o processo analítico. Diante disso, tenho algumas perguntas de pesquisa: Quais são as imagens que os povos indígenas possuem do seu próprio povo? Quais marcas linguísticas direcionam para o discurso de exclusão?
Temos por objetivo problematizar as representações sobre os povos indígenas sul-mato-grossenses que atravessam o discurso da Carta Aberta ‒ Contra o genocídio da população indígena; rastrear os efeitos de sentidos que perpassam o discurso do enunciador branco e do enunciador indígena e estudar, por meio da materialidade discursiva, as formações discursivas e os interdiscursos que nos levam a entender como se processa a história e a colonialidade do poder.
Para tanto, pautamos nosso olhar no arcabouço teórico da Análise do Discurso de origem francesa (ORLANDI, 2003; CORACINI, 2007), por meio do método arqueogenealógico (FOUCAULT, 2012; GREGOLIN, 2004) e da perspectiva discursivo-desconstrutiva (CORACINI, 2010; GUERRA, 2012).
Para Orlandi (2003, p.43), poderíamos, a rigor, falar em análise de discurso germânica, americana, inglesa, italiana, brasileira, francesa etc, se pensamos essa disciplina desenvolvida em diferentes regiões do mundo com suas diferentes tradições de estudos e pesquisas sobre o discurso. Nesse sentido, o que entra em consideração é que a história da ciência não é linear e não se produz sustentada só no eixo do tempo. A relação tempo/espaço faz parte do método de observação dessa história e, “segundo o que temos praticado, quando falamos dessa história não nos referimos [...]a uma história única, universal e linear” pois a consequência seria de pensar que há lugares e tempos em que não se passaria nada cientificamente, o que é um pensamento destruidor desta história.
A partir de rastreamento de textos em que Foucault aborda esta questão, e seus desdobramentos, é possível entender em suas análises históricas que a noção de descontinuidade não é a simples oposição à linearidade progressiva da história tradicional, mas é a recusa ao primado do sujeito e à ideia de origem metafísica. É na recusa à ideia de origem, de que há uma verdade única e primeira antes da história, que a noção de descontinuidade se justifica. Ancoramo-nos no método arqueogenealógico de Michel Foucault (2012), o qual possibilita um modo de ler e interpretar o corpus escolhido, uma vez que se refere à formação discursiva dos enunciados, enfocando suas descontinuidades, suas regularidades, considerando a pluralidade de outros discursos que tratam do tema, nas relações entre poder e saber que permitem que os discursos apareçam. Também se refere à formação discursiva das condições de possibilidade do discurso, da singularidade dos acontecimentos, da historicidade (GREGOLIN, 2004).
Dessa maneira, tanto o sujeito-enunciador (narrador) quanto o sujeito-pesquisador estão fadados a interpretar, a atribuir sentidos, uma vez que a interpretação não é qualquer uma, nem o sentido é qualquer um, visto que os sentidos são sempre administrados pelo poder e pelos processos de filiação histórica dos sujeitos.
1. Aspectos teórico-metodológicos: subjetividade e discurso
A desconstrução, um dos pressupostos da pós-modernidade e de teorias pós-estruturalistas, visa desestabilizar discursos, de modo a provocar reflexões e irromper novos sentidos acerca da (discursos sobre) verdade construída, propiciando a compreensão de que todo discurso está perpassado por micropoderes, que, por sua vez, legitimam verdades e constituem relações de poder-saber para, como problematiza Guerra (2010, p. 76): “operar questionamentos no que parece inquestionável, complexificar o que parece simples e decidir o indecidível”.
Nessa mesma perspectiva, encontramos os estudos culturalistas que se coadunam com a disposição pós-moderna de olhar de maneira crítica para práticas culturais que eram consideradas marginais, integrantes da “baixa cultura” e, principalmente, não dignas de investigação da academia” (GUERRA, 2010, p. 09), corroborando um outro olhar acerca da complexidade e tensão das relações culturais com práticas sociais, além daquele reproduzido hegemonicamente.
Para a Análise do Discurso (AD), as condições de produção são imprescindíveis para a o processo analítico dos recortes discursivos. A noção de condições de produção do discurso é uma relação entre a materialidade discursiva e as condições históricas que constituem o corpus discursivo (COURTINE, 2016). O contexto sócio-histórico e o aspecto ideológico presentes na materialidade dos discursos são inclusos pelas condições de produção, uma vez que são eles que trazem elementos para compreendermos os efeitos de sentidos e a história do objeto de pesquisa (ORLANDI, 2003).
As condições de produção trazem a historicidade que, por sua vez, produz dizeres apresentados pelo interdiscurso. O interdiscurso é o já-dito, formulações que foram feitas por alguém, mas que também já foram (e é fundamental que sejam) esquecidas para ser significado como “nossas” palavras. Sendo assim, “as palavras não são só nossas. Elas significam pela história e pela língua” (ORLANDI, 2003, p. 32). É inscrever a língua na história para significá-la. Conforme Coracini (2007), o interdiscurso é o lugar do pré-construído, composto por diversas vozes da experiência do outro, vozes que provêm de múltiplos outros discursos que constituem a nossa memória discursiva, possibilitando inúmeros atravessamentos.
A AD é de uma perspectiva transdisciplinar que tem como objeto o discurso. Para AD, transdisciplinar é puxar os fios de outras teorias sem dizer que nenhuma é superior à outra. É por esse motivo que a AD do Brasil é diferente da AD da França, aqui pensamos que ela ganha força com a História, Filosofia, Sociologia e Psicanálise, dialogamos com diversos estudiosos dessas áreas. Puxamos esses fios teóricos para nossa perspectiva discursiva, com o intuito de construir nosso próprio aparato teórico. Essas áreas dão pistas de interpretação para o discurso, para isso a AD faz deslocamentos das noções originais de cada área para a perspectiva discursiva.
Partimos do pressuposto de que o sujeito se constitui pela dispersão e pela multiplicidade de discursos e, ao enunciar, o faz ocupando várias posições. Essas posições marcam a heterogeneidade que é constituída de redes de filiações históricas e ideológicas. O discurso produz sentido em relação às posições-sujeito, e em relação às formações discursivas em que essas se inscrevem (PÊCHEUX, 1988; ORLANDI, 2003). Entendemos que o discurso (FOUCAULT, 1969/1995:136) se realiza numa relação necessária entre duas materialidades: a linguística e a social (as condições de produção) e refere-se a um conjunto de enunciados que, por sua vez, integram uma mesma formação discursiva.
Segundo Foucault (1969), os diversos discursos estão fundamentados em uma mesma estrutura e, por isso, compartilham as mesmas características gerais, chegando a quase anular suas diferenças específicas. Foucault (1969, p. 123) traz a noção de episteme como um conjunto de enunciados ou de discursos baseados numa determinada ferramenta conceitual que organiza a linguagem e o pensamento e lhes fornece o sentido de que as palavras correspondem às coisas. A formação discursiva apresenta-se como um conjunto de enunciados que não se reduzem a objetos linguísticos, tal como as proposições, atos de fala ou frases, mas submetidos a uma mesma regularidade e dispersão na forma de uma ideologia, ciência, teoria, etc.
A desconstrução, outro referencial teórico por nós utilizado, refere-se à economia de um texto, isto é, ao fato de os conceitos serem determinados pelos lugares que ocupam em relação aos outros conceitos dentro de um sistema de diferenças que consiste na trama de hierarquias conceituais (CORACINI, 2009). É a manobra de desconstrução. Pretende-se, nesse sentido, desconstruir, na análise, as oposições, levantando as máscaras de subordinação ou de dependência dos termos.
A noção de discurso para a AD é diferente da noção de texto. Basicamente, a AD não usa a palavra texto, chama de estrutura, então o discurso é a estrutura mais o funcionamento (PÊCHEUX, 2009). O discurso é heterogêneo, é a partir dessa concepção que temos a noção de interdiscurso, o já-dito, algo que alguém já falou, mas que agora me constitui, passou a ser minha própria fala. São vozes outras que constituem, determinando deslocamentos e re-significando o sujeito.
O sujeito da AD não é formado pelo discurso, mas é um efeito provocado por ele, visto que o sujeito se constrói só no discurso. “Assujeitar-se é condição indispensável para ser sujeito. Ser assujeitado significa antes de tudo ser alçado à condição de sujeito, capaz de compreender, produzir e interpretar sentidos” (FERREIRA, 2007, p. 43).
O item lexical é que nos autoriza a dizer se é esta ou aquela interpretação, que é a materialidade linguística, a palavra. Segundo Jean-Jacques Courtine (2016), a materialidade discursiva é a ordem do discurso numa relação entre língua e ideologia. Essa materialização de discursos, a partir de um atravessamento teórico, traz noções basilares de outras áreas para a AD.
Por meio da perspectiva foucaultiana do sujeito, Coracini (2007) traz questões voltadas para a construção da identidade dos sujeitos, uma vez que é constituída segundo o discurso de si e do outro, em que constroem uma imagem e são também por ela construídos. Dessa forma, o sujeito constrói sua identidade conforme seu imaginário em relação à imagem que faz de si e a que acredita que o outro vê, confiando que possui uma identidade fixa. Fundamentado na psicanálise lacaniana, o olhar da autora se volta para o imaginário do sujeito como um efeito de ilusão de que ele seja origem do dizer.
O método arqueogenealógico de Foucault é um caminho metodológico que a AD busca para entender o contexto dos dados de análise. Esse método é a junção da arqueologia e da genealogia propostas por Foucault (2005, p. 172), “a arqueologia é o método próprio à análise da discursividade local, a genealogia é a tática que, a partir da discursividade local assim descrita, ativa os saberes libertos da sujeição que emergem desta discursividade”.
O arquivo é o local específico da memória, dos registros do passado, da história. São discursos construídos em uma determinada época, mas que sobrevivem ao tempo existindo através da história. Então, a arqueogenealogia foucaultiana se organiza no tempo pela historicidade, em contraposição ao conceito de arquivo fora da AD, que é o acúmulo de documentos. Escavar é buscar as condições históricas que nos ajudam a compreender o contexto do discurso. Dessa forma, o método arqueogenealógico possibilita a investigação dos procedimentos históricos do discurso para problematizar os efeitos de sentidos que emergem desse discurso.
Conforme Grigoletto (2003), para a perspectiva desconstrutiva “não há realidade que não seja aquela criada no interior da linguagem e que, consequentemente, não há um significado único, anterior à interpretação, a ser alcançado caso se conseguisse ultrapassar a barreira da linguagem” (2003, p. 93). Diante disso, importa para essa proposta os efeitos de sentidos que emergem ali naquele discurso com relação à sua exterioridade.
A representação é empregada para tornar o abstrato em concreto, aquilo que não nos é familiar. Na esteira de Coracini (2015, p. 137), “uma dada sociedade ou um grupo social impõe aos sujeitos modos de pensar, de ver o mundo, de lidar com ele e nele, de considerar o outro, imprimindo, através da linguagem verbal ou visual, formas de representar o que está a sua volta”. Assim, as representações são próprias de uma dada conjuntura social, têm seu valor naquele momento histórico-social, podendo ocorrer mudanças em outro período.
Segundo Coracini (2003, p. 203), o “eu” formado a partir do olhar do “outro” cria, de forma inconsciente, uma relação do bebê com os sistemas de representação simbólica, “dentre as quais a língua, a cultura e a diferença sexual”. Ainda com base nos estudos de Coracini (2003, p. 203), somos efeitos de muitas “identificações – imaginárias e/ou simbólicas” que nos constituem. Assim como Pêcheux (2009) discorre, que as formulações imaginárias estão sempre supostas no discurso, são imagens de si e do outro.
Desse modo, trazemos o contexto da Carta Aberta ‒ Contra o genocídio da população indígena ‒ para, posteriormente, problematizar o processo discursivo das representações do outro presente no texto da carta. As representações/formulações imaginárias são vozes que ecoam na Carta Aberta sobre imagens do indígena. O enunciador não indígena, integrante de uma sociedade hegemônica de estruturas injustas, deixa emergir no discurso representações imaginárias do sujeito indígena, são lugares de si (indígena, representado pelo outro) e do outro.
É pelo outro que construímos a nossa própria imagem, nos constituímos enquanto sujeito e inserimos esse imaginário como nossa verdade, a partir do outro construímos as representações de nós mesmos. Dessa forma, os indígenas se constituem pelo olhar do outro, pela representação que o branco faz dele em um determinado discurso.
O uso da narrativa testemunhal, como é o caso da Carta Aberta, abre espaço para dar voz e vez para os sujeitos periféricos que, em muitos casos, são marginalizados ao serem retratados como inferiores nos discursos naturalizados, reiterando as representações de exclusão.
Atualmente, no Brasil, as representações que se tem dos povos indígenas se dá, na maior parte das vezes, como consequência da representação que a escola tem dos indígenas. A história contada do presente dos indígenas não corresponde com a realidade, uma vez que são representados, ainda, como os nativos que habitavam o país no ano de 1500. Essa representação ecoa sobre o imaginário da população e é necessário que seja desconstruída. Aliada a essa questão, temos discursos cristalizados e estereotipados que constroem imagens e visões periféricas dos povos indígenas, como sujeitos marginalizados, representados como sujeitos descartáveis.
2. O processo analítico: exclusão e preconceito
Para realizamos o processo discursivo-analítico, o objetivo deste item é promover um deslocamento dos possíveis efeitos de sentidos que emergem na Carta Aberta ‒ Contra o genocídio da população indígena ‒ disponibilizada pelo site do NEABI. Por meio do método arqueogenealógico de Foucault (2005), selecionamos alguns recortes discursivos para apresentarmos a representação de si (indígena) pelo olhar do outro e a representação de si, imagens que ecoam do discurso do indígena.
O bem-estar das relações de convivência de uma sociedade é buscado a partir do respeito mútuo, sobretudo do respeito à diversidade, no entanto, a discriminação ainda está presente nas relações sociais brasileiras. No que tange à população indígena, a discriminação não é recente e não está perto de acabar. Com esse pensar, se faz necessário problematizar essas relações, para isso as sequências discursivas desta pesquisa reúne recortes de uma das Cartas Abertas do NEABI, intitulada Contra o genocídio da população indígena, que repudia as diferentes formas de massacre e exclusão que esses povos vêm sofrendo ao longo dos anos, manifestando inicialmente um caso atual no Mato Grosso do Sul, estado em que residem diversas etnias.
A Carta Aberta adere tanto às características da carta quanto da epístola, é uma variante das formas de realização do gênero epistolar, ainda assim, não é um gênero epistolar estabilizado, uma vez que é uma denúncia, o que desestabiliza o gênero carta. Ela geralmente é veiculada por rádio, internet, televisão e jornal impresso. É um gênero que deixa de forma explícita o papel social que o interlocutor está expondo para mobilizar a opinião pública. Tentando manter uma relação de emissor/receptor, o destinatário também cria formas de diálogo, a título de exemplo, perguntas diretas. Outro recurso utilizado é o uso de dados estatísticos e exemplos para fundamentar sua fala.
O discurso do gênero Carta Aberta é escrito na primeira pessoa do plural (nós), com o intuito de demonstrar sua relação com o tema desenvolvido e se inserir na coletividade. Dessa forma, com a responsabilidade de detentor da fala, o enunciador da Carta Aberta ‒ Contra o genocídio da população indígena ‒ faz a ecoar a voz do indígena em seu discurso, possibilitando a representação de si. Quanto à extensão da carta e à exposição do conteúdo, se dá de forma sucinta e clara para não ser um trabalho exaustivo. A linguagem utilizada é a norma culta, visto que se trata de uma exposição pública.
A Carta Aberta não tem forma rígida, essa representação estrutural apresenta um modelo com traços em comum, regularmente, utilizado e recomendado. A finalidade e o campo de atuação é que vão determinar a melhor maneira de escrever uma Carta Aberta. Na esteira de Leite (2014), a Carta Aberta é classificada, predominantemente, como argumentativa e também como expositiva. É natural que o locutor traga suas considerações e apresente questões pertinentes para o que está discorrendo, entretanto, fragmentos de sua subjetividade são marcados na carta. Esse gênero busca dialogar e interagir com o destinatário, que pode ser uma pessoa ou uma instituição. O interlocutor tem direito a uma contra-resposta em nova Carta Aberta, apesar de não ser frequente.
Endereçadas ao Estado-nação e a sua população, as Cartas Abertas dos povos indígenas buscam a garantia de seus direitos e valorização da história e cultura indígena, são mais do que um mero tipo de escrita, mais do que um gênero discursivo, já que esses textos tocam nas relações sociais como manifestos, denúncias e evidências, expandindo o gênero carta.
Cabem, neste subitem, a apresentação e problematização das sequências discursivas, que são dispostos em ordem descontínua. Optamos por R para identificar os recortes[4] da Carta Aberta e acrescido do algarismo 1 para identificar o excerto.
R1:
2.1 Representação de si pelo olhar do outro