legitimidade desse fato, que determina quem tem direito a esse espaço. Essa interpretação não é individual ou consciente, nem é a mesma para os sujeitos envolvidos (um advogado, um camelô ou um prostituto...), mas está inscrita numa memória comum de ocupação (divisão) do espaço, fundada na oposição público/privado, relacionada historicamente à questão da propriedade e a certas normas de civilidade, e impressa no próprio funcionamento da língua (do léxico, neste caso).
A questão da interferência do domínio privado nos espaços públicos, que incide na circulação, devido ao fato de fixar-se e/ou realizar neles atividades percebidas como impróprias, ilegais e/ou imorais, coloca-se, de diferentes formas, em relação aos vendedores ambulantes, aos homossexuais e aos moradores de rua. É esse sentido dado, por exemplo, à deterioração do bairro atribuída pelo advogado A, na fala citada, aos problemas relacionados aos vendedores ambulantes (“você mal pode transitar por aí”) e aos homossexuais (“ficam amontoados nas calçadas”). Esses sentidos, porém, divergem. Por exemplo, o que é percebido por esse advogado de classe média como um problema que dificulta a circulação, é para o vendedor ambulante uma solução que lhe permite a subsistência, como é dito por ele na seguinte passagem:
D – É, eu sou vendedor (...) ambulante há 2 anos... (...). E ela [a empresa em que trabalhava] faliu e eu... procurei outro meio de trabalhar... e foi onde que eu arrumei e está dando certo...
No caso desses vendedores ambulantes, existe contemporaneamente o problema econômico e jurídico da falta de licença específica para o exercício do comércio, o que cria o conflito com os proprietários das lojas e com o poder público:
D – Ah, mas o pessoal reclama do camelô... os lojistas, né?
E – A prefeitura já veio aqui pra...
D – Não, quando ela vem aqui a gente some... (...) debanda...
E – O senhor vai rápido?
D – Psi... (...) nós somos preparados, né? Tanto que eu emagreci 24 quilos pra poder correr... (risos)
Quanto aos homossexuais, o problema de praticar sexo nas ruas e nas praças (como indica o próprio A, entrevistado: rola tudo lá [na praça]... eu já transei na Praça da República... já transei bastante) suscita também questões de impropriedade, e mesmo de ilegalidade, da irrupção desse tipo de intimidade no espaço público, bem como questões de moralidade em que intervém a referida interdição cultural da homossexualidade nas sociedades contemporâneas. A quebra da norma “não se faz sexo em público”, nem (“muito menos”) “entre pessoas do mesmo sexo”, afeta a percepção