O descobrimento (de uma língua) no cinema brasileiro


resumo resumo

Denise Machado Pinto



1.  Começo de conversa

No dia 5 de dezembro de 1937, o jornal Correio da Manhã, de circulação na então capital da República, Rio de Janeiro - RJ, apresenta, entre as publicidades do volume, um cartaz[1] anunciando a estreia de O descobrimento do Brasil, filme brasileiro de direção de Humberto Mauro com produção considerada “cívico-cultural” do Instituto de Cacau da Bahia, extinto em 1992. No cartaz, podemos ler a seguinte afirmação: “O espetáculo mais imponente e arrebatado que o Cinema Brasileiro já produziu!”. Exatos cinco meses depois de a referida publicidade convidar os espectadores a irem ao Cine Palácio, ou seja, em 5 de maio de 1938, o mesmo jornal publica uma nota sem autoria com o seguinte título: “PROGRAMMA DAS COMEMMORAÇÕES DO MEZ DO CINEMA BRASILEIRO”[2]. A nota descreve que por nove dias do mês de maio daquele ano houve a realização das atividades envolvendo a sétima arte e que, em cinco delas, o filme O descobrimento do Brasil aparece como atração principal, seja por ser lançado em Lisboa, Portugal, ou ainda por ser exibido[3] como “film educativo” ou ainda “film educativo brasileiro” em “sessão especial para escolares” em quatro diferentes cinemas do Rio de Janeiro.

A partir dos fatos trazidos, trago à baila a seguinte questão: como compreender a materialidade significante (LAGAZZI, 2009; 2019) do audiovisual designada como filme educativo a partir do funcionamento da memória discursiva? Esse questionamento conduz para uma reflexão sobre as condições de produção nas quais o filme está inscrito, que fazem com que tais formulações sejam trazidas à tona e outras não, que fazem ressoar uma dada memória, silenciando sentidos em detrimento de outros tantos ou seja, remete ao começo da institucionalização do cinema no Brasil, a partir da criação do Instituto Nacional de Cinema Educativo (doravante Ince), com a Lei nº 378 de 1937[4], sendo esse peça chave para compreender o Programa das comemorações do mês cinema brasileiro, em 1938, uma vez que, para o pleno desenvolvimento das atividades propostas, havia a participação de sujeitos ligados ao referido instituto.

Muitas são as questões que circundam esse tema[5], no entanto, ocupar-me-ei, neste artigo, em tangenciar pelas bordas, visando um recorte, ou ainda, em termos mais poéticos e inspirada por Manoel de Barros[6], buscando uma miudeza, um vestígio que produz memória, uma vez que um objeto de pesquisa nunca é dado, mas construído pelo olhar, pelo percurso trilhado pelo pesquisador. Para tal empreitada, assento-me teórico-metodologicamente na Análise de Discurso de linha francesa e, em especial, nos trabalhos de Orlandi (2011) e Lagazzi (2009; 2019), as quais me sustentam para afirmar que a imagem em movimento pode ser compreendida como um imbricamento de materialidades que funcionam a partir da noção de cadeia significante (LAGAZZI, 2009; 2019) sujeita à textualização.

 Cabe mencionar também que, a partir dessa perspectiva materialista, ao considerar a materialidade significante na (co)relação com a história, com suas condições de produção e o político em funcionamento,  compreende-se, então, “a linguagem como abarcando diferentes relações estruturas simbolicamente elaboradas: verbal, visual, gestual, corporal, sonora, musical, olfativa...” (LAGAZZI, 2010, p. 296). Assim sendo, o filme O descobrimento do Brasil (1937), o qual visa a cumprir o papel de “carta de Pero Vaz de Caminha roteirizada por Humberto Mauro”[7], não pode ser tomado fora de seu encadeamento de legendas características de filmes mudos (mesmo que o filme em questão não o seja), de mapas expostos como forma de rota a ser traçada pelos viajantes portugueses e de seu desenvolvimento marcado pela musicalidade proporcionada pela suíte orquestral de Heitor Villa-Lobos. Questões essas fundamentais para que se compreenda como O descobrimento do Brasil se constitui como discurso autorizado, um dito “filme educativo” que se alinha ao projeto institucional inaugurado com o Estado Novo em 1937, mesmo no ano de estreia do filme.

 

 

 

 

 

2. Traçando uma rota

Como impulso, a análise de discurso e o desejo de virar o Atlântico na direção inversa das descobertas.

(ORLANDI, 2008, p. 23)

 

Interessa-me questionar sobre o funcionamento do filme a ser analisado como: 1) objeto de arte e objeto memorial; 2) tecido audiovisual costurado a partir de um discurso que visa a reproduzir a chegada dos portugueses ao Brasil; 3) instrumento pedagógico mobilizador do discurso fundador[8], pensando este enquanto uma categoria analítica que trabalha nos limites da materialidade a partir do significante descobrimento.

Como primeiro ponto, trago a definição de objeto de arte e de objeto memorial a partir do texto Documentário: acontecimento discursivo, memória e interpretação (ORLANDI, 2011), em que a autora, ao analisar o filme São Carlos/68, de direção de João Massarolo, define documentário como um objeto que “faz movimentar a memória” (ORLANDI, 2011, p. 53). Para dizer da importância da relação da imagem com a memória, Eni Orlandi realiza uma reflexão a partir das apresentações feitas por Davallon e Pêcheux na Mesa Redonda intitulada Langage et Société, que ocorreu no evento Les resistances et les prisons de longue durée, na Escola Normal Superior de Paris, em maio de 1983. A partir disso, ela afirma que seria a imagem não um operador de memória, assim como propõe Davallon na época, mas, sim, parte de um funcionamento da memória discursiva, em uma perspectiva materialista da linguagem. E, dessa forma, Orlandi (2011, p. 60), inscrevendo-se na leitura de Pêcheux, ao retomar uma citação que diz que a memória seria “espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regulação” (PÊCHEUX, 2010, p. 56). Há de se marcar também que o avanço de Orlandi ao retornar um texto clássico para a Análise de Discurso[9] se dá na direção do que ela aponta para a relação entre o silêncio e a forma como este constitui a noção de memória: “não há como não considerar a memória como feita de esquecimentos, mas também de silêncios, de sentidos não ditos, de sentidos a não dizer, de silêncios e de silenciamentos” (ORLANDI, 2011, p. 61).

Uma vez inscrito na memória, o filme se constitui nos limites da memória institucional (de arquivo) e do interdiscurso, ou seja, significa a partir do esquecimento, da falta, da saturação, estabelecendo implícitos, pontos de contato que fazem ver um passado, projetando um consumo, uma apreciação futura. E, por ser também um objeto de arte, a problemática do restauro, por vezes, é imposta, produzindo sentidos outros, como é o caso do filme analisado. Com a comemoração do quinto centenário do dito “descobrimento do Brasil”, em 1997, quando a Funarte lançou uma versão restaurada de O descobrimento do Brasil. Isso de alguma forma desestabilizou os sentidos do arquivo e, com vistas a produzir um efeito de novidade, produziu efeitos outros no mesmo.

Conforme a afirmação trazida no encarte do DVD, em uma entrada intitulada “Um novo descobrimento”: “Uma nova trilha foi feita em som digital, tendo como base a gravação realizada pelo maestro Roberto Duarte em 1993, com o Coro e Orquestra da Rádio de Bratislava”. A restauração feita no filme com um novo áudio pareceu ser a opção mais assertiva, por mais que dividisse opiniões[10]. O filme aparentemente se tornoumais plácido e, portanto, mais apresentável a um público que já não é o mesmo de 1938. O que essa restauração evidencia guardar? A resposta está posta nas linhas seguintes: “A Funarte copiou em magnético de 17,5 cm os diálogos do filme e todos os ruídos foram acrescentados”. Os ruídos, enquanto marcas do histórico, não só dizem de uma política de guarda, de trabalho técnico com o arquivo de audiovisual, mas também jogam luz a uma narrativa sobre o cinema brasileiro, compondo sua espessura histórica. Essas são marcas do tempo que simbolicamente afirmam a importância cultural e educativa atribuídas ao filme trazido ao cenário cultural 60 anos depois de seu lançamento.

É interessante observar também que O descobrimento do Brasil é classificado de diferentes formas: na circulação primeira do filme, em 1937, foi considerado de ficção, histórico e/ou educativo; segundo a catalogação proposta pela Funarte, em 1997, seria um filme de “documentário/ficção”. Essas definições dizem tanto sobre sua constituição como sobre seus modos de circulação. Para que um filme circule, há sempre um gesto de interpretação frente ao arquivo, imposto por uma trajetória de leitura, que visa a estabelecer para quem se destina o filme, autorizando-lhe visualização. E, assim, vai-se formando um imaginário posto no que se classifica.

Isso tudo encaminha para o segundo ponto trazido no começo desta entrada: o tecido significante do audiovisual como costura que procura o alinhavamento de um discurso. Uma vez que, de uma perspectiva discursiva, a noção de materialidade significante, a partir de Lagazzi (2019), visa a compreensão do objeto fílmico em uma relação de não complementariedade; ela abre-se, a partir da noção de cadeia significante, para a incompletude. Entendo, então, que o filme em questão constrói um tecido marcado pelo tempo, ou melhor, uma colcha de retalhos discursivos. Um exemplo disso está nas inúmeras referências que estabelecem implícitos, assim como produzem paráfrases. No decorrer do filme, o espectador pode observar algumas referências pictóricas como A primeira missa no Brasil, do artista Victor Meirelles (1861), e Desembarque de Cabral em Porto Seguro em 1500, de Oscar Pereira da Silva (1922), que vão dando corpo a textura discursiva construída com uma sequência narrativa que vai desde a saída da frota de Cabral de Portugal rumo ao território desconhecido, com passagens pela costa da Ilha de Cabo Verde. Como já é conhecido e fato posto na memória cristalizada sobre o descobrimento, a chegada ao Brasil é marcada pelo vir a conhecer os indígenas por meio do (re)conhecimento da terra a ser explorada e da celebração da primeira missa.  Há, ainda, uma cena, após o retorno da frota para Portugal, em que se apresenta a leitura da carta de Caminha para o Rei D. Manuel, produzindo o efeito de que o que se contava anteriormente era uma narrativa fiel ao que a carta produz[11]. O desfecho dá-se com o retorno da frota a Portugal, sendo o espectador fisgado pela cena feita com a presença de três degredados[12] colocados em frente a uma grande cruz. Nas palavras de Morettin (2013, p. 172), o filme:

 

 

[...] apresenta-se como a representação cinematográfica do tema do descobrimento, tal como evocado pela Arte e pela História desde o século XIX, recebendo um tratamento imagético e diferenciado. Temos intelectuais, Villa-Lobos, o uso da carta de Caminha e o projeto de cinema educativo a conferir credibilidade à produção, atribuindo-lhe o caráter cívico-cultural. Civismo e cultura necessárias para a educação das massas a fim de integrá-las simbolicamente ao corpo da Nação [...].

 

A partir de uma leitura discursiva, entendo que se trata de uma relação parafrástica de retomada não idêntica, mas que se inscreve em um mesmo discurso fundador. A colcha de retalhos constitui-se a partir das obras pictóricas disponíveis, para que sejam vistas e lidas por uma voz autorizada, ou melhor, a partir de uma “colaboração intelectual e verificação histórica por gentileza de Roquette Pinto, Affonso de Taunay, e Bernardino José de Souza”[13] – sendo o primeiro, antropólogo ligado ao Museu Nacional, nomeado para ser diretor do então criado Ince, em 1936. Os três sustentam a atribuição de ser um filme histórico e, portanto, a tarefa cívico-cultural, trazida por Morettin (2013), que, de alguma forma, remete também ao dito exposto no cartaz que trago na abertura do texto. A atribuição artística ficou por conta da participação de Humberto Mauro e de Heitor Villa-Lobos, ambos com prestígio no meio cultural da época.

Com esses sujeitos há também uma trajetória de leitura do filme demarcada. Diz Schvarzman (2004, p. 147) que: “Certamente, essa colaboração não foi pequena, na medida em que, pronto o filme, Tosta[14] autoriza o Ince a fazer uma cópia em 16 mm para a exibição em escolas e a compra de outra, em 35 mm, para exibições privadas”. Trata-se de um filme feito pelo Instituto de Cacau da Bahia que acaba por significar também pela apresentação do Instituto Nacional de Cinema Educativo. Sendo que, dessa forma, pode ser considerado como a “carta de intenções do instituto recém-criado” (SCHVARZMAN, 2004, p. 138). Essa trajetória de guarda física, posta nas cópias adquiridas pelo Ince, faz com que O descobrimento do Brasil (1937) funcione não somente como um discurso oficial de governo, mas também como um instrumento pedagógico no processo de formação do “sujeito urbano escolarizado” (PFEIFFER, 2016) na história educacional brasileira. Dentro desse projeto incluo também o gesto de restauração da Funarte ao remasterizar o filme pela comemoração dos 500 anos da “descoberta do Brasil”.

Nesse caso, a construção de um discurso autorizado permeia retomar e fazer funcionar o discurso sobre o descobrimento a partir de um desejo por mostrar um “curioso sacrifício da chamada verdade histórica em detrimento da composição fílmica” (MORETTIN, 1999, p. 03). Tal afirmação leva ao último ponto que trago aqui com vistas a encerrar minha rota de questões que reclamam interpretações pertinentes ao filme. Afirmo que O descobrimento do Brasil também se sustenta enquanto um filme que busca os efeitos de uma verdade, porque retoma uma visão da história brasileira e porque se inscreve na reprodução audiovisual de um discurso fundador de uma identidade nacional, marcado pela construção de heróis representados pelas figuras de Pero Vaz de Caminha, Pero Álvares Cabral, entre outros portugueses que protagonizam esse momento descrito na Carta de Caminha[15]. Para Orlandi (1993, p. 07), “os discursos fundadores são discursos que funcionam como referência básica no imaginário constitutivo desse país”. Afirma a autora, ainda, que o discurso fundador funciona como uma categoria analítica em que não há definições prévias, dependendo do objeto de análise. Assim sendo, em cada análise há uma forma de mobilizar a noção em questão, para observar tal discurso, neste trabalho, divido meu gesto analítico em duas entradas: uma que toma o descobrimento enquanto mobilizador de um discurso fundador do Brasil, algo que vai colocar o leitor imerso em um percurso analítico que retoma o descobrimento enquanto um significante marcado pela historicidade. Para tanto, farei um percurso por alguns teóricos, assim como pela forma como foi produzindo sentidos em alguns dicionários. Já na segunda entrada, viso a compreender como esse discurso sobre o descobrimento diz sobre a língua, ou melhor, como faz significar os sujeitos indígenas que são vistos ao longo do filme.

 

 

3. Descobrimento na e da língua(gem)

 

Primeira ancoragem:

Os recortes[16] que realizo nesta parte do trabalho são feitos a partir da cópia restaurada pela Funarte, já citada anteriormente. Opto por essa cópia com o objetivo de observar visualmente como o filme ainda circula, seja em canais de TV, seja em canais do youtube ou a partir do que ainda está disponível para venda em DVDs. Com uma nitidez mais favorável a uma leitura das legendas, além de uma possibilidade para ativação de legendas em línguas estrangeiras (inglês e francês), o filme começa com um aviso sobre a restauração (Recorte 1). Logo em seguida, o espectador é apresentado ao brasão do Ministério da Educação e Cultura, seguido de mais uma inscrição do título do filme feita com a apresentação do Instituto de Cinema Educativo. No fundo preto, uma caravela é colocada em frente ao nascer do sol e, sobre ela, há a inscrição de um nome: vão se instaurando sentidos que, aos poucos, pelo simbólico da representação, direcionam o espectador a uma leitura inscrita em redes de memória.

Recorte 1 (arranjo de frames)

Fundo preto com letras brancas

Descrição gerada automaticamente

Fundo preto com letras brancas

Descrição gerada automaticamenteTela preta com letras brancas

Descrição gerada automaticamente

Tela preta com letras brancas

Descrição gerada automaticamente

Fonte: O descobrimento do Brasil (1937)

 

Esse recorte realizado a partir de um arranjo de frames do começo do filme movimenta um imaginário de como o descobrimento é construído. Com desenho da letra, ao sabor da imponente da orquestra, há, nos créditos iniciais, a inscrição do Instituto do Cinema Educativo, ausente nos cartazes de divulgação da época. Durante o filme, há um processo, uma narrativa desenvolvida ao longo de 62 minutos de produção e, como parte fundante desse percurso fílmico, descobrimento está mais próximo do que é dado como senso comum: o Brasil foi descoberto e o que cabe ao brasileiro é ter conhecimento da história da descoberta. Aos poucos, tem-se acesso ao processo cristalizado em que o descobrimento se assenta – a primeira cena remonta à frota de Cabral, frota que é personificada ao longo do filme.

O enredo, como um todo, constrói o descobrimento enquanto uma designação que se funde na relação com o discurso fundador de Brasil, remontando ao dia da chegada dos portugueses, a partir de legendas que trazem à tona trechos da carta de Pero Vaz de Caminha. Nessa esteira, o processo do descobrimento do Brasil é representado, no batimento entre língua e imagem, na própria viagem, centrado no olhar sobre as caravelas com a inscrição da cruz em suas velas, marca cristã constitutiva da história de um país. Descobrimento do Brasilsignifica mais pelo sujeito “descobridor” do que pelo que se descobre. O lugar do colonizador, o simbólico posto na caravela, tudo isso retoma “a viagem como descoberta, a viagem como posse, a viagem como administração, a viagem como missão, a viagem como diário íntimo, a viagem como possível, a viagem como turismo” (ORLANDI, 2008, p. 12). A não completude e a equivocidade posta nas materialidades significantes trazidas nos recortes nos levam para uma viagem pelos sentidos.Indagam-nos sobre um saber e pelo que produz de sentidos acerca do que se formula como o “descobrimento do Brasil”: o já-sabido cristalizado pelo discurso fundador. No entanto, é preciso deslinearizar a imagem (LAGAZZI, 2019), buscando brechas na sua incompletude: o descobrimento na história.

Romain Descendre (2015) ao empreender uma história semântica da palavra descoberta que se alinhe a uma nova história ou, como o autor expõe, a “uma história conectada”, faz desestabilizar os sentidos cristalizados através do discurso das grandes navegações.Ele afirma que a noção de descoberta, como é conhecida na atualidade, foi tomada pelos historiadores desde o século XIX sem o devido questionamento. Portanto, ao longo dos últimos anos, os sentidos para “Grandes descobertas” funcionaram como um eufemismo para fatos político-militares, colonização e assentamento de um discurso eurocêntrico sobre os vencedores. Fatos que fizeram com que, por muitos anos, tenha se tentado excluir os povos asiáticos e ameríndios do empreendimento das grandes navegações. Observando os documentos históricos, Descendre (2008) debruçou-se em como eles significavam e, assim, conclui que o termo “a descobrir” era empregado não como tarefa árdua e incomum, mas como algo do ofício ligado aos termos militares de guerra.

Ao se deter mais especificamente a Carta de Pero Vaz de Caminha, por mais que se utilize do termo “achamento”, se encontra também a expressão “a descobrir”, como bem aponta o historiador. Ausente o descobrimento é feito, assim como a descoberta, sendo essa última: “substantivo formado com particípio passado só aparece mais tarde” (DESCENDRE, 2015, p. 20). E, também desse documento, tem-se o ato de descobrir não como uma tarefa dada ao acaso, mas como um empreendimento muito bem pensado e imposto pelos reis da época. Quando se tem “a descobrir”, não é tomado com o sentido novidadeiro atribuído na atualidade. Assim sendo, a descoberta descrita na Carta sugere é a exploração da terra, remetendo a aquilo que Descendre define como: “não serve para significar que se encontraram terras desconhecidas, e quando o verbo adquire esse sentido é de certo modo por acréscimo, enquanto efeito da exploração” (DESCENDRE, 2008, p. 22).

Morfologicamente, descobrimento é formado como um substantivo derivado de descobrir que, acrescentando por derivação o sufixo -ento, significa como processo estabelecido. Quanto à descoberta, sendo uma derivação de descoberto, acaba significando muito mais como um objeto encontrado, nesse caso, a terra brasileira. Para além das questões meramente morfológicas, atualmente, descoberta e descobrimento são tomados como sinônimos de um mesmo processo: inauguração do Brasil, começo de tudo, ou melhor, começo da civilização no “Novo Mundo”.

Ainda se pensando como o termo foi dicionarizado; isto é, como a tradição lexicográfica apropriou-se dessas formas de significar, tornando-as verbetes, tem-se que, no século XVIII, no dicionário bilíngue, nomeado Vocabulário Portuguez e Latino, do padre Rafael Bluteau, em sua primeira edição de 1712, não se encontrava o verbete descoberta, apenas descobrimento, denotando aquilo que Descendre já anunciara. É no Diccionario da LinguaPortugueza, de Antonio de Morais Silva (1789), publicado mais de duzentos anos após a escrita da Carta de Pero Vaz de Caminha, que se tem pela primeira vez a palavra descoberta enquanto um verbete dicionarizado na Língua Portuguesa. Não seria de se estranhar uma vez que esse é o primeiro dicionário monolíngue de nossa língua, classificado por Nunes (2010, p. 10) como “referência no século XIX e até no XX, marcando a consolidação da lexicografia de língua portuguesa”.

Vale a pena discorrer um pouco mais sobre isso, pensando em como o Diccionario da Lingua Portugueza (1789) toma o verbete descoberta se comparado ao verbete descobrimento, definido nele como “ação de descobrir”, “terras descobertas” e “achado nas fciencias”[17], mas que também significa pelo emblemático exemplo “Descobrimento dos Portugueses” (MORAES, 1789, p. 398). Ainda na primeira edição, é possível encontrar uma pequena definição de descoberta como: “f. A terra achada de novo. Algum novo achado nas sciencias naturais, etc. Ord. Collecçao L. 4. T. 34. 1.”. Até então descobrimento e descoberta parecem significar de forma parecida. No entanto, na sétima edição, datada de 1877, há uma inclusão de definição que afirma o seguinte: “alguns puristas não recomendam que se diga descoberta, que soa a francezismo, mas sim descobrimento” (MORAES, 1877, p. 535). Esse dizer sobre descoberta ser um termo etimologicamente derivado da Língua Francesa, como Moraes aponta, advém de um pensamento purista de língua, o qual o autor não rechaça, estando, inclusive, presente em todas as edições desse dicionário até o final do século XIX, já em sua oitava edição.

Tal pensamento inaugura uma rede de produção de sentidos, pois no Novo Diccionário da Língua Portuguesa, de Cândido de Figueiredo, com primeira edição em 1899, é trazida a seguinte definição para o verbete descoberta, em sua primeira entrada: “Coisa, que se descobriu. Invento. Terra, que se descobriu de novo ou pela primeira vez.– Por acto de descobrir, e termo afrancesado; os asseados no escrever, disse Castilho numas notas inéditas ao diccionário de Moraes, só escrevem descobrimento. (De descoberto)”. Para dar legitimidade à afirmação o que há é uma vaga referência a um certo gosto por escrever de uma forma e não de outra, fazendo com que haja os seguintes questionamentos: quem são os assentados no dizer? Escritores? Quais são os autorizados? Isso faz com que se produza uma história em que descobrimento diz mais de nosso processo de colonização? Fato é que a citação ao dicionário de Moraes resiste enquanto definição desse verbete até a edição publicada já no século XX, em 1913.

Dando um salto na história, observo o que está posto no trabalho realizado por Maluf-Souza, Silveira e Salles (2019), em que analisam descoberta enquanto um vocábulo em comparação com “conquistar” e “barbárie”, “como vestígios de ancoragem da constituição dos primeiros sentidos sobre a língua brasileira e do processo de colonização científica e territorial, pelo europeu, no Brasil.” (MALUF-SOUZA; SILVEIRA; SALLES, 2019, p. 191). Nesse artigo, a interessante relação entre descobrir e conquistar é analisada em dicionários atuais. Afirmam as autoras:

 

Falar em “descobrimento” e não em “conquista” do Brasil é perfeitamente aceitável se considerarmos a possibilidade de intervenção do real da história como recorte do simbólico que permite o funcionamento das diferentes versões sobre um determinado acontecimento, fato histórico. Desse modo, convocam-se distintas memórias, a partir de diferentes filiações ideológicas (MALUF-SOUZA; SILVEIRA; SALLES, 2019, p. 195).

 

Indo além da querela entre fazer significar descoberta e descobrimento, observa-se uma forma de designar descobrimento no Brasil a partir da visão historiográfica de Sérgio Buarque de Holanda em Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil, obra publicada pela primeira vez em 1958. Seguindo o caminho de questionamento sobre a constituição do discurso acerca do descobrimento do Brasil construído por Sérgio Buarque, a antropóloga brasileira Manuela Carneiro da Cunha (2012) toma os sentidos de descobrimento enquanto utópicos, ou melhor, como se fossem uma espécie de crônica. A autora compara metaforicamente os portugueses (descobridores) a uma espécie de adões da nossa história: “a cada lugar conferiam um nome - atividade propriamente adâmica - e a sucessão de nomes era também a crônica de uma gênese que se confundia com a mesma viagem” E, ainda, continua: “a cada lugar, o nome do santo do dia: Todos os santos, São Sebastião, Monte Pascal.” Tem-se aí a fundação do Brasil, ou seja, o processo de descobrimento realizado a partir da nomeação. O acesso a uma história acontece através dos que nomearam primeiro. A História, a grande, ou ainda, a canônica, como diz a autora citada, é construída pela posição de sujeitos que, ao discursivizarem sobre empreender grandes navegações para colonizar, produzem sentidos a partir da forma de nomear e designar. É fato que os discursos sobre um possível descobrimento circulam como um discurso dado, como algo jogado ao acaso da história do país. Desde a época escolar, o brasileiro tem o contato com um “discurso sobre” os índios que, sob a égide de descoberta, apaga os sentidos de colonização e exploração realizadas ao longo de todo o território brasileiro.

Como analisou Indursky (2011), a Primeira missa no Brasil, de Victor Meirelles (1861), trata-se de uma obra que povoa o imaginário do brasileiro a partir daquilo que é reproduzido em livros didáticos. Isso vem a colaborar com a leitura que faço de O descobrimento do Brasil, que, conforme já afirmado, está no limiar do discurso pedagógico imerso em condições de circulação específicas: no ambiente educacional, para sujeitos urbanos e escolarizados. Esse descobrimento, que ora se significa através do significante descoberta, ou ainda adjetivado como grandes descobertas, diz de nosso processo: processo de formação de um ideário de nação. Esse ideário que, tomado no período varguista, quase 500 anos após a colonização, ainda reproduz o mesmo discurso, a partir de outras materialidades tomadas pelo deslumbre das novas tecnologias da época.

Esse percurso que recupera sentidos de descoberta e de descobrimento me encaminha para a minha segunda ancoragem. Seja pelos sentidos do próprio descobrimento enquanto um processo que diz mais, como já afirmado de quem descobre (as caravelas) e menos sobre a terra ou os sujeitos. A colonização silenciada; os efeitos que historicamente estão presentes na constituição do país: a então novidade da tecnologia do audiovisual sendo colocada na produção discursiva que parafraseia sentidos já postos historicamente.

 

Segunda ancoragem:

No processo de descobrimento, por mais que o empreendimento português representado com o deslocamento das caravelas ao mar seja mais evidenciado ao longo do filme, há também o contato com o sujeito indígena e a sua forma de produzir sentidos pela linguagem. Para observar melhor essas questões, escolho trabalhar com um recorte composto de nove frames com as respectivas legendas.

 

Recorte 2 (arranjo de frames e transcrições)[18]

Foto em preto e branco

Descrição gerada automaticamente

Fonte: O descobrimento do Brasil (1937)

 

 

No interior dessa relação entre materialidades, há uma língua: a língua do outro enquanto barreira que imputa a falta de comunicação verbal, visto que ao longo do filme, assim como também se expressa na Carta, indígenas participam de rituais do homem branco sem grande resistência. Seja ao se colocarem presentes na elaboração de uma cruz para a realização da primeira missa que marcou simbolicamente a fundação da terra até então não batizada, inaugurada, ou ainda participarem da celebração, realizando atos simbólicos e performativos.

 O Recorte 2 constrói uma referência indireta a uma outra parte descrita na Carta: primeiro contato estabelecido por Nicolau Coelho que, no filme, é de menor destaque que a cena do contato do degredado Afonso Lopes:

 

Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos, e suas setas. Vinham todos rijamente em direção ao batel. E Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os depuseram. Mas não pôde deles haver fala nem entendimento que aproveitasse, por o mar quebrar na costa. Somente arremessou-lhe um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça, e um sombreiro preto. E um deles lhe arremessou um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas, como de papagaio. E outro lhe deu um ramal grande de continhas brancas, miúdas que querem parecer de aljôfar, as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa Alteza. E com isto se volveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais fala, por causa do mar (grifos meus).

 

A subjetividade da língua é reduzida ao que, no momento, se tornou uma barreira. O mar também funciona como metáfora do sistema linguístico, a fronteira do mar, de um oceano que separa… Uma vez que em nenhum outro momento da Carta se inscreveque esse não entendimento de fala não se impõe apenas por uma dificuldade de ambientação, mas de língua distinta, essa relação entre interlocutores está mais diretamente ligada à noção de usuário, o que implica que enunciar está no plano pragmático. Observando a verticalidade do dizer, de acordo com o recorte 2, na relação parafrástica das formulações a seguir, buscoo que parece “evidente” pelo deslize da reformulação de um discurso fundador:


Formulação 1 - Carta de Pero Vaz de Caminha (1500):


 “Mas não pôde deles haver fala nem entendimento que aproveitasse, por o mar quebrar na costa.”


 


Formulação 2 - Filme O Descobrimento do Brasil (1937):


“A língua nos é desconhecida, senhor capitão. Tivemos dificuldade de compreendê-los mesmo com gestos.”

 

Como já afirmado, essas duas formulações não representam um mesmo momento da narrativa, no entanto, apresentam um deslize que se dá na forma de nomear a existência de língua desconhecida no interior de um discurso. Uma língua desconhecida, no entanto, continua não funcionando como constitutiva do sujeito, que como paráfrase do desentendimento linguístico presente na Carta, “será significado como algo necessariamente a ser superado em nome da fé e dos interesses da coroa portuguesa” (MARIANI, 2018, p. 34). Ou seja, só é possível que se diga “língua desconhecida” por haver uma historicidade constitutiva, algo que faz com que, de fato, os atores não indígenas sejam capazes de reproduzir palavras em tupi que, de acordo com o roteiro, poderiam ser traduzidas “como são belas estas pessoas que vem de terra distante”. Infantilizados, os indígenas são representados a partir de falas sem articulação, por exemplo, ao afirmarem que não estão gostando do vinho e da comida que lhes são oferecidos. Os dois personagens indígenas que participam da cena afirmam “ruim, ruim, ruim”, mesmo que esse “ruim”, dito em tupi, pudesse ser compreendido com a expressão facial e gestual dos atores. Fatos esses que, de alguma forma, culminam na ausência de legendas para o que se diz em tupi, uma vez que a língua está presente apenas como uma sonoridade distinta, podendo não haver necessidade de legendagem para que o filme, na sua unidade, seja compreendido. É interessante notar que até mesmo a versão remasterizada em 1997 – que traz, como já afirmamos, uma legendagem do português para línguas estrangeiras (inglês e francês) – não faz tradução das (tão poucas) palavras trazidas em tupi.

Em outras palavras, pode-se afirmar que ao acreditar que o homem se constitui enquanto sujeito a partir de suas práticas discursivas, tem-se na (con)versão do índio presente no filme uma problemática discursiva imposta pela forma como a língua é compreendida nesse processo de significar. O índio não aprende a língua do europeu, mas incorpora os seus costumes de forma rápida, assim como se dá no texto da carta de Caminha. A língua, dessa forma, é uma barreira de comunicação e, vista a partir de uma função de instrumento de comunicação, consegue ser substituída por gestos, troca de olhares, mesmo que com dificuldade. A língua do outro funciona, a partir dessa lógica, por meio de um imaginário que se constrói sobre a forma de constituição da língua.

 

 

 

4. Aportando em um fechamento… 


 

Si el mundo está tan al revés, parado sobre lacabeza y no sobre sus pies; para enderezarlo, ¿no sería conveniente darlovuelta?

 (GALEANO, 2012)

 

Falar em descoberta ou descobrimento já é parte de uma imersão inevitável do sujeito na interpretação, parte de um trabalho com a língua e da imagem. Logo, a lógica posta no descobrimento enquanto invenção, dominação, missão religiosa, já apresenta o equívoco/contraditório que é afirmar haver um descobrimento de uma língua, como proponho no título do trabalho. O descobrimento no filme, enquanto uma designação, produz sentidos na formação do Brasil, dá corpo à narrativa em questão. É no decorrer do filme que o descobrimento se constrói enquanto processo e, no interior dele, se tem acesso ao ponto nevrálgico da língua do outro como desconhecida: colonizada, posta na falta, talhada na madeira usada para fazer a cruz para a primeira missa de fundação do Brasil. Língua significada pelo cerceamento dos sentidos postos do estrangeiro que não se compreende e não se pode compreender; no ideário de unidade da nação (re)afirmando o discurso de colonização linguística tão bem teorizado por Mariani (2018).

Cabe retomar a questão que dá sustentação à reflexão empreendida ao longo dos dois recortes, quando me indaguei inicialmente acerca da materialidade significante do audiovisual como um filme educativo se inscreve nos limites do funcionamento da memória discursiva. Enquanto um discurso, o audiovisual trabalha fazendo evidenciar alguns sentidos e silenciando outros, em sua materialidade própria, questão essa que não se esgota. Enquanto instrumento pedagógico, O descobrimento do Brasil significa como uma narrativa que materializa o discurso institucional de um período, como já foi aqui afirmado. O descobrimento, com todo o seu simulacro de questões que envolvem sentidos de exploração, também inscreve no silenciamento uma língua enquanto constitutiva do sujeito, sendo renegada ao nível da pragmática sob o qual se pode atuar e construir sentidos através de um determinado uso. O esvaziamento desse sujeito tido como uma tábua rasa, ou seja, em que não habita o “Minotauro a la Borges” pensado por Scherer (2019), sendo aquele que se constitui por pura subjetividade do eu e do outro, isto é, um grande labirinto. Estando a língua imersa em um discurso sobre, ela já não é mais uma casa da palavra, sendo essas abruptamente constituídas pela negação, por aquilo que não se diz, por aquilo que se quer que signifique. Penso também a metáfora posta no “Minotauro a la Borges”, trazido por Scherer (2019), possibilita pensá-la a partir do lugar do indígena como aquele que habita o imaginário do horror. No discurso do selvagem, posto em tantos séculos como uma língua pobre, simples e incivilizada, ou seja, a construção de Minotauro discursivo que produz um imaginário “a la sombra de otrossueñosaún más horribles” (BORGES, 1984).

O horror do Minotauro Linguístico estabelece aqui um transbordamento de sentidos, observados pelas entrelinhas do filme, fazendo significar o domínio de memória que se tem sobre a língua descrita por viajantes no primeiro século de exploração colonial no Brasil, mas que também transborda e reverbera até hoje nos mais variados discursos, nas mais variadas materialidades. Entendo aqui que não nomear uma língua, reconhecê-la como desconhecida, impõe uma barreira do significar, visto que, da minha perspectiva teórica, “o nome é uma das primeiras formas de tentar estabilizar, de tentar fixar, de tentar individualizar um acontecimento histórico e por que não, enunciativo e discursivo” (SCHERER, 2019, p. 17). Não nomear, assim como não legendar, neste caso, é reafirmar a redução à pragmática, ao ruído, ao caricatural e jocoso, algo que funciona até os dias de hoje[19]. No momento em que se tem uma língua e ela não é pega por sua relação com o sujeito, não é nomeada, ou nem mesmo é considerada enquanto língua, efetiva-se um processo de interrupção de inscrição dos sujeitos na história.

 

Referências

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Data de Recebimento:10/12/2019
Data de Aprovação: 02/03/2020

 

[1] Imagem de abertura do presente artigo.

[2] Correio da Manhã, 5 de março de 1938, p. 08. A grafia e a fonte aqui utilizadas respeitam às formas originais publicadas no referido jornal.

[3] Foi feita a escolha pela escrita original com citações diretas feitas a partir da nota jornalística. 

[4] O Ince funcionava desde 1936, mas o seu decreto de fundação é de 1937.

[5] Há alguns trabalhos que abordam questões referentes ao cinema educativo no Brasil e ao Ince em diferentes áreas como a Educação, a História, a Comunicação e o Cinema. Darei destaque aos de Eduardo Morettin (1999; 2013) e Sheila Schvarzman (2004), os quais compõem minha referência bibliográfica.

[6]  Poema Miudezas (BARROS, 2010).

[7] Apresentação exposta na contracapa do arquivo em DVD remasterizado pela Funarte em 1997, pela comemoração do quinto centenário do dito “descobrimento” do Brasil.

[8] Eni Orlandi teorizou sobre a noção de discurso fundador pela primeira vez em 1990, na obra “Terra à Vista – Discurso do confronto: Velho e Novo Mundo” (ORLANDI, 2008). Cabe mencionar também que a discussão foi ampliada, três anos depois, com a publicação de “Discurso fundador”. Na apresentação dessa obra escrita a muitas mãos, Orlandi retoma a questão posta na primeira obra citada, afirmando que seria o discurso fundador uma forma que “transfigura o sem-sentido em sentido” (ORLANDI, 1993, p. 08), ou seja, ao fazer sentido, o enunciado passa a instaurar o “novo”, que não se trata de um discursivo de origem, mas de um trabalho de constituição de sentidos: o efeito do já-dado, já-lido, assim como do já-visto (no caso da imagem) cristalizados na memória de um povo.

[9] “Papel da memória” (PÊCHEUX, 2010).

[10] Morettin (2013), por exemplo, tece duras críticas a essa forma de restauração que desconsidera o áudio original.

[11] Morettin (2013) adverte-nos para o debate feito na época em torno da “teoria da casualidade” ou da não chegada dos portugueses ao território brasileiro. A produção do filme não se assenta historicamente na hipótese dessa teoria. Há, portanto, uma forma particular de inscrição na rede de memória que o discurso sobre o descobrimento produz no imaginário dos brasileiros.

[12] Mariani, em Colonização Linguística e outros escritos, afirma, fazendo menção à Carta de Caminha, que no gesto de deixar os degredados em terra firme “efetua-se uma forma de política linguística, ainda não formalizada através de ordens régias” (MARIANI, 2018, p. 34). E a autora ainda continua dizendo que: “Os dois degredados, os primeiros línguas ou intérpretes, darão início ao processo em que os portugueses tomam uma iniciativa linguística baseada, inclusive, em experiências anteriores de colonização” (MARIANI, 2018, p. 34).No filme, um dos homens que aparece em cena é Afonso Lopes, português que, após um primeiro contato com indígenas feito por Nicolau Coelho, foi quem de fato levou dois indígenas para o interior da nau capitania. Retornarei a essa passagem na primeira ancoragem de análise, na próxima seção do artigo.

[13] Citação retirada da apresentação dos créditos iniciais do filme.

[14] Agnacio Tosta Filho era o Presidente do Instituto de Cacau da Bahia, produtora do filme O descobrimento do Brasil.

[15] No ano de 2019, com a posse do presidente Jair Messias Bolsonaro, voltam a circular, no palco de debates culturais no Brasil, opiniões sobre o papel do cinema enquanto um discurso de exaltação de personalidades nacionais, de “cunho acentuadamente cultural” (termo utilizado no Decreto n. 21.240 de 1932, que nacionalizou o serviço de censura dos filmes cinematográficos no país). Em 19 de julho de 2019, Bolsonaro fez a seguinte declaração, a qual gerou grande comoção na classe artística em geral: "Se não puder ter filtro, nós extinguiremos a Ancine. […] Temos tantos heróis no Brasil, e a gente não fala dos heróis do Brasil, não toca no assunto. Temos que perpetuar, fazer valer, dar valor a essas pessoas no passado deram sua vida, se empenharam para que o Brasil fosse independente lá atrás, fosse democrático e sonha-se com um futuro que pertence a todos nós" (G1, 2019, grifos meus). Alinhado ao discurso do presidente, Osmar Terra, então Ministro da Cidadania, responsável pela Secretaria Especial da Cultura, em agosto do mesmo ano, ao ser questionado sobre o cancelamento de um edital da Agência Nacional de Cinema (Ancine), que se referia à “Diversidade de gênero” para documentário televisivo, afirmou: “Acho que o filme para passar em TV Pública tem que ser educativo, contar histórias, "ver" os heróis de um país, para crianças.” (GAÚCHA ZH, 2019). Afirmações como essas colocam na ordem do dia uma discussão sobre a construção da memória do que se diz educativo em termos cinematográficos no Brasil. Censura, filtro, culto aos heróis nacionais… o fio da memória funciona pelo que se silencia, pelo que não se pode dizer e mostrar em tela. Um ir e vir na história institucional do cinema que fazem com que a década de 30 no Brasil fique tão próxima de 2019.

[16]  “O recorte é naco, pedaço, fragmento. Não é segmento mensurável em sua linearidade.” Desta maneira contrastiva de estabelecer relações entre o pode e o que não pode ser, Orlandi (1984, p. 16), em Segmentar ou recortar?, define pela primeira vez a noção de recorte discursivo: uma definição que compreende o gesto não linear do analista de discurso frente à incompletude da linguagem.Sendo de origem fragmentária, os recortes estão relacionados à noção de materialidade, na qual há o encontro da linguística com o materialismo. Nesse sentido, Orlandi (1996) encaminha-nos a articular, de forma dialética, a imbricação da sistematicidade da língua à história que, mais tarde, foi explorada por Lagazzi (2009; 2019), ao compreender que em se tratando de análise discursiva da imagem a relação da língua com a história pode ser deslocada para a (co)relação da materialidade significante e da história, como já abordei brevemente ao longo do artigo.

 

[17] Grafia da época.

[18] Opto por uma escolha que joga com os sentidos entre as falas e suas respectivas cenas numeradas. Em meu recorte, quando não há numeração de fala para a cena, significa que há apenas a musicalidade acompanhando a sequência filmada.

[19] De acordo com o Censo 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há 274 línguas indígenas faladas no Brasil, no entanto, é bastante comum que não se saiba nem mesmo falar uma saudação em uma dessas língua, assim como não se sabe nomeá-las. Outra questão interessante se dá no fato de o léxico da Língua Portuguesa brasileira ser repleto de expressões de origem indígena, que, muitas vezes, nem ao menos sabemos reconhecê-las.






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