A língua que “une” é a mesma que divide: discriminação e marginalização de catadores de materiais recicláveis a partir das suas relações com a Língua Portuguesa


resumo resumo

Rubiamara Pasinatto



  1. Ponto de partida

Não há identidade sem língua, pois é pela ordem do simbólico que o sujeito se reconhece. Essa afirmação não é uma constatação nossa, porém é basilar diante das discussões que nos propomos a fazer nesta escrita, a qual tem como objetivo observar como, ao se colocarem enquanto falantes da língua Portuguesa, um grupo de catadores de materiais recicláveis2 de Cruz Alta- RS se relaciona com a língua. Entendemos que, a partir disso, ao tratarem acerca das suas relações com a língua, eles também estarão discusivizando sobre sua identidade e, isso, permitirá refletirmos sobre suas formas de subjetivação.

Para efeito de localização teórica desta escrita, cabe pontuar que ela será conduzida diante da perspectiva da Análise de Discurso francesa (AD). Portanto, a base teórica será alicerçada em Michel Pêcheux, precursor dos estudos da AD na França, bem como pesquisadores brasileiros que têm trabalhado diante desta perspectiva teórico- analítica.

 

  1. Identidade e língua

Já dissemos que o presente artigo se desenvolve diante da perspectiva da Análise de Discurso. Entretanto, refletir acerca da relação entre identidade e língua requer que busquemos o aporte teórico em outros campos do conhecimento, como por exemplo a sociologia. Tal movimentação faz-se necessária principalmente para delinear o que é identidade.

É justamente do campo sociológico que trazemos Hall (2011), o qual afirma que tratar da identidade é também trazer aspectos ligados ao pertencimento dos indivíduos a culturas étnicas, linguísticas, religiosas, bem como nacionais. Segundo o autor, o sujeito possui múltiplas identidades, as quais são contraditórias e se cruzam e se deslocam mutuamente. Diante dessa perspectiva, a identidade muda a depender da forma como o sujeito é interpelado ou representado, “[...] a identificação não é automática, mas pode ser ganhada ou perdida.” (HALL, 2011, p.75).

Partindo para o campo linguístico-discursivo, Orlandi (2002) define identidade como um movimento na história, que não acontece sempre igual, está em constante deslocamento e transformação. Por conseguinte, pensar que a identidade é algo imóvel se

 

 
 
 

 

2 No item condições de produção explicitaremos mais sobre esses sujeitos.

 

trata de uma ilusão, entretanto, é uma ilusão necessária que parte do imaginário, assegurando a unidade imprescindível para os processos identitários. Por outro lado, é preciso pontuar que assim como garante os processos indentitários, a ideia de imobilidade da identidade se caracteriza como ponto de “ancoragem” para o preconceito e para a exclusão.

Essa relação, ao mesmo tempo, de unidade e dispersão, que se faz como um percurso na história, é algo indispensável para o campo discursivo e para as reflexões acerca de identidade, pois, embora haja unidade na língua, há dispersão pela diferença diante da forma que cada um fala. Nas palavras de Orlandi (2002, p. 204), “É preciso que haja uma unidade do sujeito, para que, no movimento de sua identidade, ele se desloque nas distintas posições: somos professores na universidade, somos pais e mães em casa, [...].”

A autora afirma ainda que os processos de identificação incidem conjuntamente na configuração dos sujeitos e dos sentidos. Isso porque ao significar o sujeito se significa, ou seja, os sentidos não existem distantes do sujeito. Logo, os processos de identificação estão relacionados com a produção simbólica e discursiva dos sujeitos. Parece-nos, então, que não há como pensar em identidade sem considerar a relação de sujeito e sentidos que se constituem ao mesmo tempo na e pela linguagem.

Na mesma perspectiva, ao refletir acerca dessas questões, Zandwais (2013) afirma que não há identidade sem língua, pois é pela ordem do simbólico que o sujeito se reconhece. Conforme a pesquisadora, os aspectos de etnia e de território contribuem de modos alternados para a construção de um imaginário social de povo e de nação, mas a língua nunca poderá ser deixada de lado, pois todo o Estado-nação necessita de uma unidade linguística e, é a partir desse objeto simbólico que os sujeitos identificam-se com a nação e entre si. Em outras palavras, a língua atribui “personalidade” a uma nação, constituindo-se em um elemento que desagua na identidade dos sujeitos e na identificação destes com os demais.

No entanto, há que se pontuar que quando pensamos em unidade estamos ignorando a língua enquanto um componente vivo, que além de variar conforme situações históricas, culturais e sociais, se mostra a partir de diferentes nuances ideológicas, refletindo, inclusive, as relações de desigualdade entre as classes e os sujeitos.

A questão levantada acima é essencial diante do grupo que estamos investigando, os catadores de materiais recicláveis, visto que temos neles um exemplo que converge

 

 

para a diversidade da “língua nacional”. Porém, ao mesmo tempo em que a língua usada por esses sujeitos permite que eles se identifiquem entre si, ela também serve como um elemento de estratificação social, haja vista que por serem desaparelhados linguisticamente, não correspondem ao ideal de língua que configura o imaginário de constituição da nação como unidade.

Convém pontuar que o lugar marginal que os catadores ocupam não somente em relação à língua, mas de modo geral na sociedade, é efeito das suas próprias construções imaginárias que acabam atendendo aos interesses de algumas classes em detrimento de outras. Segundo Pêcheux (1990), as formações imaginárias dizem respeito à imagem que A e B fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro, passando para posições representadas.

Em todo o processo discursivo supõe-se que o sujeito falante seja capaz de anteceder o ouvinte através do imaginário, experimentando seu lugar de significação. É o que chamamos de antecipação. Orlandi (2001) explica que para esse mecanismo discursivo não é o sujeito empírico que interessa, mas a posição discursiva, a qual é trabalhada por formações imaginárias significadas pela ideologia social. A autora adverte que, muitas vezes, a posição discursiva não corresponde ao sujeito empírico ou sua situação objetiva, mas “[...] a sua imagem discursivamente significada onde conta fundamentalmente a ideologia enquanto imaginário que se constitui do confronto do simbólico com o político [...].” Ajustando o foco para os sujeitos desta investigação, a posição discursiva do catador está relacionada à imagem que é feita de um catador de materiais recicláveis em determinada sociedade, tomada pela história.

 

    1. As formas de subjetivação e identificação do sujeito a partir na Análise de Discurso

O quadro epistemológico da Análise de Discurso é constituído a partir da articulação de regiões do conhecimento científico – do Materialismo Histórico, da Linguística e da Teoria do Discurso – as quais são atravessadas por uma teoria não- subjetiva da subjetividade de natureza psicanalítica.

Segundo Orlandi (2001), refletir acerca da subjetividade implica pensar não somente no campo linguístico, mas considerar as dimensões histórica e psicanalítica. Conforme a autora, mesmo que “[...] a subjetividade repouse na possibilidade de mecanismos linguísticos específicos, não se pode explicá-la estritamente por eles.” (ORLANDI, 2001, p. 50). Faz-se necessário, então, ultrapassar a concepção que reduz o

 

homem a um ser natural, e entendê-lo a partir da sua historicidade. É, portanto, uma noção de sujeito que é determinado pela exterioridade e atravessado pela ideologia.

O sujeito da AD, ao mesmo tempo em que tem a ilusão de que é fonte daquilo que diz, também acredita que é capaz de controlar os sentidos do que diz. É diante disso que está organizada a teoria não-subjetiva da subjetividade, mediante àquilo que Pêcheux (1995) nominou de esquecimento número 1 e esquecimento número 2. Pela perspectiva pecheutiana, o processo de esquecimento não designa a perda de alguma coisa que se saiba e que foi esquecida, como quando se fala de “perda de memória”, mas funciona para o sujeito como uma ilusão de que este é a origem do seu dizer, que pode controlar os sentidos daquilo que diz e que há uma relação “natural” entre as palavras e as coisas.

O esquecimento 1 é da ordem do ideológico e do inconsciente, e “[...] dá conta do fato de que o sujeito-falante não pode, por definição, se encontrar no exterior da formação discursiva que o domina.” (PÊCHEUX, 1995, p.173). A partir desse esquecimento, o sujeito tem a ilusão de ser o “dono” daquilo que diz, entretanto, pelo funcionamento da ideologia, não se dá conta de que na verdade seu discurso não é “novo”. Ele está apenas (re)dizendo algo já dito e, diante disso, as palavras não significam apenas aquilo que queremos, elas carregam redes de sentidos que são pré-existentes.

Por outro lado, o esquecimento 2 é constituído no momento da enunciação e nos dá a ilusão da certeza de que aquilo que queremos dizer tem apenas uma forma de ser dito. É o esquecimento pelo qual “[...] todo sujeito-falante “seleciona” no interior da formação discursiva que o domina [...] formas e sequências que nela se encontram em relação de paráfrase [...].” (PÊCHEUX, 1995, p.173).

No texto “A propósito da Análise Automática do Discurso: atualização e perspectivas [1975]”, Pêcheux e Fuchs (1990, p. 166) ressaltam que pela interpelação ideológica, o sujeito é conduzido, sem que se dê conta disso, e tomado pela impressão de que está agindo segundo sua vontade, “[...] a ocupar o seu lugar em uma ou outra das duas classes sociais antagonistas do modo de produção [...]. (grifos dos autores). Os autores trazem a questão da interpelação do sujeito pela ideologia de Louis Althusser3 (1992, p. 104), o qual ressalta que “[...] o indivíduo é interpelado como sujeito (livre) para livremente submeter-se às ordens do Sujeito, para aceitar, portanto (livremente) sua submissão, para que ele “realize por si mesmo” os gestos e atos de sua submissão.”

 

 
 
 

 

3 Referimo-nos à obra Aparelhos ideológicos de Estado.

 

 

(grifos do autor). Assim, segundo a perspectiva althusseriana, os sujeitos são constituídos por um processo de identificação plena com o Sujeito Universal, ou seja, trata-se daquilo que a AD denomina de assujeitamento, a partir do qual o sujeito não tem “controle” sobre o que diz ou pensa, justamente devido ao atravessamento da ideologia.

Mais tarde, já em “Semântica e Discurso”, Pêcheux (1995), retoma a discussão sobre a ideologia, ao abordar os fundamentos que permitem sustentar uma teoria materialista do discurso, ocasião em que remonta novamente a Althusser para aprofundar questões lacunares na teoria deste. Em sua discussão, Pêcheux esclarece que a ideologia não é o único elemento dentro do qual se efetiva a reprodução/transformação das relações de produção de uma formação social, haja vista que há também determinações econômicas que não podem ser ignoradas.

Segundo afirma Pêcheux (1995), todo o modo de produção capitalista se baseia em uma divisão em classes, a partir do princípio da luta de classes. Pensar nessa questão, tomando a ideologia, conforme proposto por Althusser (1992), significa entender que a luta de classes passa pelos aparelhos ideológicos de Estado (AIE) e, do mesmo modo, que a ideologia se presentifica no seio desses AIE por práticas que ganham existência material concreta. Assim, a instância ideológica existe sob forma de formações ideológicas na teoria althusseriana.

É importante observar, diante dessa conjuntura, que cada AIE contribui de maneira diferente para a reprodução e transformação das relações de produção, pois as propriedades “regionais”, isto é, as especializações na religião, na política, no direito, entre outras áreas, condicionam a importância dos Aparelhos, considerando o estado da luta de classes em cada formação social no interior dos aparelhos.

Feitas essas considerações, para que possamos tratar das modalidades de tomada de posição do sujeito, é preciso abordar ainda os conceitos de formação ideológica e formação discursiva4, os quais pressupõem o engendramento com a ideologia e permitem compreender o processo de produção de sentidos no discurso.

Pêcheux e Fuchs (1990), retomando Althusser, ressaltam que a formação ideológica (FId) se trata de um conjunto (complexo) de atitudes e representações que não seriam nem ‘individuais’ e nem ‘universais’, mas que se relacionam com as posições de classes que estão em conflito umas com as outras. Nas palavras dos autores, a FId é definida como “[...] um elemento [...] suscetível de intervir como uma força em confronto

 
 
 

 

4 Em Semântica e Discurso, Pêcheux (1995) relaciona a noção de formação discursiva diretamente com a categoria de formação ideológica.

 

com outras forças na conjuntura ideológica característica de uma formação social em dado momento [...].” (PÊCHEUX; FUCHS, 1990, p. 166).

Já as formações discursivas (FDs), que intervêm enquanto componentes nas formações ideológicas (FIds), são definidas por Pêcheux e Fuchs (1995, p. 160, grifos do autores) como “[...] aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito [...].”

A inscrição do sujeito em uma determinada Formação Discursiva (FD) se dá a partir do preenchimento do sujeito por aquilo que Pêcheux (1995) chama de forma- sujeito, ou seja, trata-se do sujeito do saber de uma formação discursiva na terminologia de Courtine (2014). É, portanto, a partir da forma-sujeito do discurso que se reconhece, dentro da FD, as práticas e saberes que identificam os modos de subjetivação do sujeito. Na prática discursiva, a interpelação do sujeito em sujeito do discurso, supõe, segundo Pêcheux (1995), um desdobramento do sujeito em locutor (sujeito da enunciação)            e                       forma-sujeito         (sujeito    universal).    Ressalta-se    que    a    partir    do desdobramento entre “sujeito da enunciação” e “sujeito universal”, o sujeito pode relacionar-se com os saberes da FD de modos distintos. É o que Pêcheux chamou de

modalidades de subjetivação do sujeito.

A primeira modalidade, a qual Pêcheux (1995) nominou de “bom sujeito”, é a tomada de posição em que o sujeito se identifica plenamente com o sujeito do saber da formação discursiva. Na segunda modalidade de desdobramento, chamada por Pêcheux (1995) de “mau sujeito”, o sujeito do discurso se contrapõe ao sujeito universal da FD, assinalando a heterogeneidade de saberes que circulam dentro de uma formação discursiva. Já a última forma de subjetivação do sujeito é aquela que funciona sob a designação de “desidentificação”, isto é, há um deslocamento da forma-sujeito que passa a se desidentificar com o sujeito universal, podendo se filiar a outra FD.

Assim como as relações do sujeito com as formações discursivas em que se reconhece podem ser de dúvida, de questionamento e contestação dos saberes de uma FD, os sentidos também não são estáveis. Conforme Pêcheux (1995), as palavras não carregam sentidos que são próprios, é a partir das determinações sócio-históricas e ideológicas que elas passam a “significar” no discurso dos sujeitos. Dessa forma, como cada momento de enunciação é único, ou seja, as condições de produção de uma

 

 

palavra/enunciado não são as mesmas, o que existe é apenas um efeito de evidência de sentido único, de transparência, como se não houvesse outro possível.

 

    1. A instabilidade de sentidos dentro de uma mesma FD: um gesto analítico preliminar

Para ilustrar a instabilidade dos sentidos dentro de uma mesma FD podemos tomar a palavra “lixo”, nos recortes (R1 e R2) abaixo, que se reportam a entrevistas realizadas com catadores de materiais recicláveis5:

R1: “[...] credo como que tu pode trabalha com lixo [...]?” (Catador A, maio de 2018, grifo nosso)

 

R2: “[...] porque aquilo pro pessoal lá fora é lixo pra nóis é material, gera renda né.” (Catador B, maio de 2018, grifo nosso)

 

Em R1, a palavra “lixo” aciona uma rede de sentidos que remetem a algo que é “resto de algo”, detrito, retomando àquilo que não tem mais condições de ser aproveitado e, portanto, no sentido pejorativo que a palavra pode ter e que é asseverado pelo uso da expressão “credo”, a qual remete ao preconceito que as pessoas têm em relação ao lixo. Já em R2, a palavra “lixo” assume mais de um sentido: a) remonta ao dejeto; b) remonta ao material reciclável, a algo que serve como alternativa para que muitas pessoas obtenham renda.

Como é possível perceber neste simples gesto analítico, uma palavra pode, mesmo dentro da mesma FD, retomar sentidos diferentes, “[...]segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido[...] em referência às formações ideológicas [...] nas quais essas posições se inscrevem.” (PÊCHEUX, 1995, p. 160, grifos do autor).

Portanto, as palavras não carregam um sentido que lhes seja próprio, ao contrário, o sentido se constitui nas relações (históricas) que elas mantêm com outra palavra ou expressões dentro da FD, haja vista que cada momento de enunciação é único, ou seja, as condições de produção de cada palavra/enunciado não são as mesmas, e o que existe é apenas um efeito de evidência de sentido único, de transparência, como se não houvesse outro possível. Dito de outro modo, as palavras assumem sentidos no discurso e, em cada

 

 

 

 

5 O questionamento que gerou as repostas da qual foram retirados esses dois recortes foi o seguinte: “O que as pessoas dizem quando sabem que você é catador de materiais recicláveis?”

 

nova enunciação, os sujeitos atualizam esses sentidos, pois as palavras são ditas em novas condições e contextos.

É importante dizer que, assim como as palavras e expressões podem mudar de sentido, também pode ocorrer o inverso, ou seja, palavras e expressões diferentes no interior de uma mesma FD podem ter sentidos aproximados.

 

  1. Língua: “união” e divisão dos sujeitos

De acordo com Zandwais, “[...] as línguas nacionais, tomadas como o objeto da unidade de um Estado-nação são línguas idealizadas [...].” (ZANDWAIS, 2013, p. 272). Isso porque quando nos referimos à unidade, estamos deixando de olhar a língua enquanto um elemento vivo, que carrega acentos ideológicos e que varia de acordo com as situações históricas, culturais e sociais, refletindo as diferenças e desigualdades entre as classes e sujeitos.

Diante disso, nos parece pertinente trazer a perspectiva de Gnerre (1998), o qual assinala que a linguagem não é somente usada para efeitos de comunicação ou para veicular informações, ela também tem o papel de “comunicar” ao ouvinte o lugar social que o falante ocupa ou acredita que ocupa na sociedade em que está inserido. Podemos dizer que os indivíduos não falam apenas para serem ouvidos, mas, também, para alcançarem respeito e influenciarem, a partir de atos linguísticos, o ambiente em que estão. Dessa forma, não é precipitado dizermos que, assim como a linguagem é poder, ao mesmo tempo, também é símbolo de discriminação.

A língua é, portanto, um elemento que representa divisão. Essa constatação é feita por Guimarães (2002), o qual ressalta que a separação se dá a partir da relação que cada falante tem com a língua, que é regulada pela língua do Estado, enquanto um elemento “uno”, ou seja, como um conjunto homogêneo e marcado por uma hierarquia de identidades. Ou melhor, “[...] esta divisão distribui desigualmente os falantes segundos os valores próprios dessa hierarquia.” e, segundo o autor, “[...] a Escola é fundamental no modo de dividir os falantes e sua relação com a língua.” (GUIMARÃES, 2002, p. 21). Convém ressaltar que o trabalho da Escola é amparado por instrumentos linguísticos como as gramáticas, os dicionários e os livros didáticos, os quais, junto com a ação pedagógica, atuam incessantemente na divisão da língua entre o “certo” e o “errado”.

Para ilustrar a questão da hierarquia no contexto da língua, Guimarães (2002) toma como exemplo os usos [muito] e [mutio] na oralidade. De acordo com o autor, não

 

 

existe o mesmo direito de dizer para aquele que fala [muito] e para o que diz [mutio], isto é, o direito à palavra é um para aquele que usa a primeira forma, que representa uma língua normatizada, gramatizada, e outro, para o que usa a segunda, que aponta para uma variação linguística característica de Cuiabá (MT). Esse exemplo nos parece bastante esclarecedor no que tange a como o Aparelho ideológico Escolar, nos termos de Althusser (1992), atua no sentido de cristalizar um imaginário de língua homogênea, que não varia, e, por isso, constitui-se em um elemento idealizado, pois não reflete as situações reais de comunicação em diferentes contextos sociais, culturais e históricos.

 

  1. As condições de produção

As sequências discursivas (Sds) que analisaremos na próxima seção foram recortadas a partir do seguinte questionamento feito aos catadores de materiais recicláveis: “Você é um bom falante da língua Portuguesa? Sim/Não? Por qual motivo?”. A partir dessa interpelação, como dito em nossas palavras iniciais, nosso objetivo é que os catadores se coloquem como falantes da língua Portuguesa (LP), dizendo como se veem enquanto usuários da LP e por quais motivos se consideram ou não bons falantes. Ao tratarem acerca das suas relações com língua, eles também estarão discusivizando sobre sua identidade e, isso, permitirá refletirmos sobre suas formas de subjetivação.

A título de contextualização, é importante registrar que os catadores entrevistados participam de um projeto denominado “Profissão Catador: entre o viver e o sobreviver do lixo”, na cidade de Cruz Alta/RS. A iniciativa é mantida pelo Programa “Petrobras Socioambiental” e pela Administração Municipal, sendo coordenado pela Incubadora e Aceleradora Tecnológica de Negócios Sociais da Universidade de Cruz Alta (Inatecsocial).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  1. Gestos analíticos

 

Para efeito das análises deste artigo, chamaremos a Formação Discursiva de Referência (FDr)6 como Formação Discursiva do Catador (FDC)7. Na FDC há circulação de saberes tanto relacionados à historicidade do ofício da catação, os quais remetem a um sujeito discriminado, marginalizado, analfabeto ou que teve pouco contato com os saberes escolarizados, constituindo, em nosso delineamento, a forma-sujeito da FD, quanto saberes relativos a um sujeito que, ao integrar o Projeto “Profissão Catador”, passa a ter contato, mesmo que de forma superficial, com saberes do associativismo e formação política. Portanto, a proposta é de que essa formação discursiva articula saberes de classe, profissionais, sindicais, políticos e linguísticos e dizeres de sujeitos que têm como fonte de sobrevivência o fato de catar materiais recicláveis, mas que têm relações diferentes tanto com o trabalho de catação quanto com a língua. Essas diferentes relações permitem compreender a própria condição de heterogeneidade da FD.

Passamos ao primeiro recorte para análise:

 

Sd1: “Não, porque às veiz eu erro tudo. Vou dizê uma coisa e troco tudo, né. Por isso, que eu vo fala pra ti, assim, eu nem sei como começa a fala. Aqui, outro dia na reunião, eu não falo, todo mundo dizendo todos tem que fala, e eu fico quieta. Eu não falo, porque eu sô muito, comé que eu vo te de dizer. Na hora que vo fala eu gaguejo, né. Daí as palavra não sai. Fica aqui e não sai. Não adianta.”

(Catador A8, maio de 2018, grifos nossos)

 

 

Na Sd1, ao ser questionado “Você é um bom falante da língua Portuguesa? Sim/Não? Por qual motivo?”, o Catador A sentencia: “não”. Para justificar o porquê não se reconhece como um bom falante da língua materna ele explica: “porque às veiz eu erro tudo. Vou dizê uma coisa e troco tudo”. A afirmação de que não se considera um bom usuário da língua porque fala errado repercute um sentimento de insucesso deste sujeito em relação ao uso da língua Portuguesa. Desse modo, diante de um imaginário de Nação que pressupõe unidade linguística, o modo como esse catador fala não corresponde à língua legitimada pelo Estado, e segundo Gadet e Pêcheux (2010, p.37), para que sejam reconhecidos como cidadãos “[...] os sujeitos devem [...] se liberar dos particularismos

 
 
 

 

6 Tomamos o termo Formação Discursiva de Referência (FDr) de Courtine (2014), na obra “Análise do discurso político: o discurso endereçado aos cristãos”. Conforme o autor, a relação dos discursos e dos dizeres são regradas a partir das posições em que os sujeitos se inscrevem, nas quais estabelecem-se os jogos de repetição, aliança, confronto, reformulação, etc, norteados pelas formações discursivas de referência (FDr).

7 Conforme delineamento de Pasinatto (2019, p. 107).

8 É uma mulher de 69 anos, mãe de três filhos e que frequentou até a 3ª ano do Ensino Fundamental.

 

 

históricos que os entravam: seus costumes locais, suas concepções ancestrais, seus “preconceitos”... e sua língua materna.”

A seguir passamos análise do fragmento “Aqui, outro dia na reunião, eu não falo, todo mundo dizendo todos tem que fala, e eu fico quieta. Eu não falo”, no qual há o silenciamento do sujeito. Para que possamos refletir acerca desse excerto é importante contextualizar que, normalmente, além dos catadores, a equipe da Inatecsocial/Profissão Catador também participa das reuniões, com o objetivo de organizar os trabalhos e acompanhar as discussões nas associações. Diante disso, em nossa ótica, a decisão por não usar o espaço de fala durante a reunião e silenciar, não está somente ligada ao fato do sujeito não se considerar um bom usuário da língua Portuguesa, mas, também, porque o sujeito não se sente autorizado a ocupar o lugar de fala que lhe é concedido, haja vista que os seus interlocutores não são apenas os colegas de trabalho com os quais se identifica, há também a equipe do Projeto. Isso ocorre pelo mecanismo de antecipação das formações imaginárias, a partir do qual, além da imagem que o catador faz dos seus colegas e da equipe do Profissão Catador, também funciona a imagem que o catador faz da imagem que os interlocutores fazem dele.

A situação de silenciamento relatada nesta sequência discursiva nos remete à Orlandi (2007), a qual afirma que é possível caracterizar o silêncio de duas formas. Aqui, nos interessa aquela que está relacionada à política do silêncio9, ou seja, quando dizeres são interditados, censurados, como aconteceu com o catador quando teve oportunidade de falar durante a reunião da associação e preferiu calar-se. Ou seja, ele mesmo é o seu algoz, interditando sua fala. Embora estivesse no grupo de trabalho, local em que deveria sentir-se à vontade para falar, prefere permanecer em silêncio. Tal escolha, não significa que não tinha nada a dizer, mas que deixou de dizer pelo imaginário constituído em relação aos seus interlocutores e em consequência de seu desaparelhamento linguístico.

Portanto, tomando as modalidades de subjetivação do sujeito a partir de Pêcheux (1995), diremos que o Catador A se inscreve na modalidade de bom sujeito. Isso porque se identifica com o sujeito do saber da formação discursiva, correspondendo aos saberes que delineiam a forma-sujeito da FDC, os quais remontam a um sujeito discriminado, marginalizado, analfabeto ou semiletrado, que teve pouco ou nenhum contato com os saberes escolarizados sobre a língua.

 

 
 
 

 

9 O outro tipo de silêncio nominado por Orlandi (2007b) é o silêncio fundador, ou seja, aquele que está nas palavras.

 

Ajustando o foco para Sd2, temos:

 

 

Sd2: Não, so burra. Desde que eu era mais pequena eu já não falava as coisa direito. Era as única matéria Português e Matemática que ia mal. E daí, às vezes, ainda eu falo errado, mas alguns dizem que é porque a mãe criou a gente não vindo pra cidade, a gente fico retirado, só pra fora. Não saia. Eu nasci e me criei lá na Abegay10, nasci e me criei lá. A mãe não deixava a gente vim pro centro. E daí fiquemo lá. Daí tem muita coisa que eu não falo direito. So burra mesmo. Eu posso até tenta fala, mais não sai direitinho. Não sai.”

(Catador B11, maio de 2018, grifos nossos)

 

 

Na Sd2, o sujeito também afirma não ser um bom usuário da língua Portuguesa. Inclusive, tenta menosprezar-se usando uma referência pejorativa, “Não, so burra” e “So burra mesmo”. Esses enunciados nos permitem observar que o imaginário manifestado pela catadora acerca da sua relação com a língua, incide não apenas no aspecto do código linguístico, mas acaba influenciando no modo como ela se enxerga na vida de maneira geral. A referência pejorativa “burra” é sedimentada na sociedade para nominar àqueles que têm dificuldades de aprender algo, e os sujeitos acabam reproduzindo isso em seus discursos.

Da mesma forma que na Sd1, nesta sequência discursiva também existe a repetição de estruturas que indicam negação, como “Não, so burra”, “Eu já não falava mais as coisa direito”, “eu não falo direito”, “não sai direitinho, não sai”. Essas construções nos apontam para um sujeito que teme os julgamentos porque imagina que não sabe falar, ou, ainda, que sente-se impotente por não dominar a língua escolarizada, em consequência do pouco contato que teve com a escola formal. De acordo com Dorneles (2011, p. 38), o imaginário de língua constituído pelo catador “[...] faz a separação dos corpos no espaço social, dando voz a alguns e tirando de outros.” Assim, segundo a autora, o discurso escolar acerca da língua atua no sentido de aumentar o contingente daqueles que constituem a parcela dos “sem voz” na sociedade, dificultando, portanto, nos termos de Rancière (1996), o ato revolucionário que funciona a partir da quebra de uma ordem pré-estabelecida. No caso desse sujeito e dos demais que compõem

 

 
 
 

 

10 Bairro da cidade de Cruz Alta que fica mais distante do centro. Concentra, em sua maioria, famílias de baixa renda.

11 É uma mulher de 31 anos. A entrevistada é casada, mãe de três filhos e frequentou apenas até a 3ª ano do Ensino Fundamental, mas não concluiu.

 

 

o grupo de catadores, o litígio se dará a partir do momento em que eles se sentirem aptos a usar os espaços de fala, independente das circunstâncias e da relação que têm com os saberes escolarizados sobre a língua.

A seguir, para explicar o porquê não se considera uma boa usuária da língua Portuguesa, ela retoma sua história e justifica “Desde que eu era mais pequena eu já não falava as coisa direito”. Segundo ela, “alguns dizem que é porque a mãe criou a gente não vindo pra cidade, a gente fico retirado, só pra fora. Não saia. Eu nasci e me criei lá na Abegay12, nasci e me criei lá”. Aqui, observa-se que o sujeito atrela o desempenho em relação à língua Portuguesa ao fato de ter residido, durante boa parte de sua vida, na Abegay”, um dos bairros que fica mais distante do centro de Cruz Alta e, para se chegar até lá, é preciso atravessar a Rodovia RS-342. Embora faça parte do perímetro urbano da cidade, o bairro guarda “ares de interior”, mas padece por falta de infraestrutura básica, como saneamento, atendimento de saúde, poucas oportunidades de ensino, cultura e trabalho. Devido a isso, a referência que a catadora faz ao local em que nasceu e cresceu, resulta em enunciados como “a mãe criou a gente não vindo pra cidade”, “a gente fico retirado” e “só pra fora”.

Essas passagens nos remetem a uma espécie de linha imaginária criada pelo sujeito que divide o Bairro Abegay e o Centro da cidade. Nosso entendimento pode ser comprovado pelo excerto “A mãe não deixava a gente vim pro centro. E daí fiquemo lá. Daí tem muita coisa que eu não falo direito”. Ao dizer isso, pela ordem do inconsciente, esta catadora reconhece a existência de dois códigos linguísticos, um que é usado no bairro em que vive, o qual ela diz que influenciou a não falar corretamente, e, outro, que é falado no centro de Cruz Alta, relacionado às formas cultas do idioma. E, muito mais do que isso, a catadora reconhece a divisão de classes, na qual há aqueles que dominam as relações econômicas e sociais, por isso, se sobrepõem aos outros. Conforme Gnerre (1998), uma variedade linguística “vale” aquilo que “valem” na sociedade os seus falantes, isto é, reflete o poder e a autoridade que os indivíduos têm nas relações econômicas e sociais.

A partir da Sd2, é possível verificar que o lugar marginal que a catadora ocupa não é somente em relação à língua, mas, de maneira geral, é consequência das próprias

 

 
 
 

 

12 Bairro da cidade de Cruz Alta que distante do centro. Concentra, em sua maioria, famílias de baixa renda. No passado, o local era conhecido como Charqueada. Tal denominação tem relação com o fato de que a área, durante muito tempo, abrigou colonizadores que destinavam aos escravos a cultura de abater bovinos e salgar a carne para evitar o perecimento.

 

construções imaginárias que resultam das experiências vividas. Segundo Pêcheux (1990), o imaginário constituído pelos sujeitos a respeito do seu próprio lugar e do lugar do outro, numa dada formação social, acaba atendendo aos interesses da classe dominante. Em outras palavras, ao tratar sobre sua relação com a língua Portuguesa, classificando-se, pejorativamente, como “burra”, ela fala do lugar-social de desaparelhada linguisticamente, no qual imaginariamente se inscreve. E, ao fazer isso, acaba produzindo um discurso que corrobora para a reprodução da estratificação social.

Observa-se que quando este sujeito justifica seu “insucesso” enquanto falante da língua Portuguesa devido ao fato de ter nascido em um bairro distante do centro da cidade, não existe apenas uma distância física entre dois pontos, ou seja, entre o bairro Abegay e o “centro”, há muito mais do que isso, existem sentidos que circulam e que apontam para um paradoxo de diferenças sociais e culturais arraigadas na geografia das cidades.

Desse modo, assim como em Sd1, o discurso do sujeito da Sd2 é, nos termos de Pêcheux (1995), o do “bom sujeito”, aquele que não questiona os saberes da formação discursiva na qual se reconhece, pois os sujeito reproduz fielmente a ideologia que domina a FD na qual está filiado. Nas palavras de Orlandi (2005, p. 104), “[...] quanto mais centrado o sujeito, mais cegamente ele está preso à sua ilusão de autonomia ideologicamente constituída.”. Ao se descrever como “burra” e “alguém que não fala direito as coisas”, identifica-se com saberes relacionados à forma-sujeito da FDC, os quais remetem a um sujeito discriminado, marginalizado, analfabeto ou que teve pouco contato com os saberes escolarizados e, por isso, reproduz no seu dizer esse processo de exclusão e segregação.

Passemos à Sd3:

 

 

Sd3: É, mais ou menos. Tenho a língua meio enrolada. É porque eu falo muito ligeiro. Começo enrola a língua. Às vezes eu erro, uma letra, alguma coisa. Ai a gente fala uma coisa, as pessoa dá risada, daí a gente sabe que erro.”

(Catador C13, maio de 2018, grifos nossos)

 

 

Na Sd3, ao ser questionado se é um bom usuário da língua Portuguesa, o catador prefere relativizar a sua condição enquanto falante, pois enuncia “É, mais ou menos”. O sujeito justifica a hesitação em sua resposta com as seguintes enunciações: “Tenho a

 
 
 

 

13 Trata-se de uma catadora casada, tem 50 anos, é mãe de três filhos. Ela frequentou até o 5º ano do Ensino Fundamental.

 

 

língua meio enrolada” e, além do mais, “falo muito ligeiro”. Isso, segundo ele, faz com que às vezes, erre “uma letra, alguma coisa”.

Nos chama atenção nesta Sd a passagem em que catador explica como percebe que transgrediu a norma enquanto está falando: “Ai a gente fala uma coisa, as pessoa dá risada, daí a gente sabe que erro.” Verifica-se, a partir desse fragmento, que o sujeito não relata ter medo de falar por não dominar a norma culta, mas pelo constrangimento causado pela reação das outras pessoas. O que queremos dizer é que o imaginário de si como bom ou mau falante está relacionado a como os interlocutores reagirão após o seu dizer. Obviamente, que quando relata “as pessoa dá risada”, aqui, o riso, não se dá por algo que é engraçado, mas aciona uma rede de sentidos que conduzem para a discriminação, para alguém que tornou-se motivo de deboche pelo modo como se comunica. É uma situação que ilustra o preconceito linguístico, isto é, que caracteriza, srgundo Bourdieu (1989), a violência simbólica, a qual não é exercida pela força física, mas por sistemas de dominação que se dão pela violência psicológica ou moral, cujo poder reside no fato de que a classe dominante impõe, invisivelmente, sua cultura aos dominados a partir de símbolos, a exemplo da língua.

Considerando a perspectiva linguístico-discursiva, Orlandi (2013) explica que o preconceito tem uma natureza histórico-social e, é regido por relações de poder. A autora ressalta que os preconceitos e processos de exclusão de toda ordem são criados pela forma com que as diferenças são significadas em um imaginário social discricionário. No caso do preconceito em relação à língua, “[...] aquilo que é norma passa a ser um divisor que qualifica ou desqualifica os cidadãos, dando-lhes lugar ou excluindo-os da convivência social qualificada.” (ORLANDI, 2013, p. 225). Dito de outro modo, do ponto de vista superestrutural, a norma passa a ser um instrumento que “divide os corpos” em relação ao código linguístico. De um lado, estão aqueles que falam uma variedade mais prestigiada, ou seja, que dominam a língua escolarizada, os quais fazem parte de uma elite que detém tanto o capital cultural quanto econômico. Do outro, está a grande massa, desqualificada pelo modo como usa a língua Portuguesa, com formas de comunicação consideradas “erradas” ou “inferiores”, já que esses sujeitos são desaparelhados linguisticamente porque tiveram pouco ou nenhum contato com a educação formal.

Trazendo essa discussão para a situação em que se encontram os catadores de materiais recicláveis, observa-se que a língua falada por eles ou qualquer outro grupo desfavorecido econômico, social e culturalmente, os coloca em uma condição em que não têm representatividade em relação à língua falada pelos grupos hegemônicos. Além disso,

 

também não ocupam um lugar social de destaque, ou seja, o lugar de onde falam não tem expressão nem econômica, nem social e nem cultural.

Dessa forma, a Sd3 nos mostra um sujeito que prefere relativizar a sua condição enquanto falante da língua Portuguesa, já que ao ser perguntando se é ou não um bom usuário, responde “É, mais ou menos.”. Entretanto, no decorrer do recorte, percebe-se que ao falar acerca das suas experiências com a língua, relata uma situação em que é vítima de preconceito linguístico, embora, conscientemente, talvez não se dê conta que, por não dominar a norma culta, está sofrendo violência simbólica. O comportamento do interlocutor que ri quando o catador fala é responsável por dividir os corpos no espaço linguístico, haja vista que o riso funciona como um símbolo de desqualificação, mostra certa indiferença que resulta na ridicularização do falante.

O relato do catador, nesta sequência discursiva, também nos permite observar que a reação do interlocutor não configura uma situação esporádica, mas é algo vivenciado corriqueiramente por este sujeito em situações de comunicação fora da associação ou do grupo familiar. Dizemos isso porque ele não relata um momento específico em que a sua forma de falar foi motivo de riso, mas, parece narrar algo que faz parte do seu dia a dia. Uma humilhação que, por se repetir tantas vezes, acaba sendo naturalizada por este sujeito. Tais constatações sustentam o pressuposto de que o preconceito linguístico traduz-se em um discurso que circula na sociedade e faz parte dos mecanismos que produzem uma separação entre os sujeitos, servindo aos interesses das hegemonias e atuando no sentido de reforçar as diferenças sociais que permitem que um grupo se sobressaia em relação a outros.

O discurso do sujeito na Sd3 também revela uma identificação plena do sujeito da enunciação com o saber da forma-sujeito da FDC, configurando, desse modo, a primeira modalidade de subjetivação do sujeito nos termos de Pêcheux (1995). Embora o sujeito relativize sua condição enquanto usuário da língua ao ser interpelado, o que poderia nos fazer pensar que há um índice de questionamento aos saberes da forma-sujeito da FD, não podemos afirmar isso se tomarmos a continuidade da sequência discursiva. Ademais, é preciso refletir que o fato de responder “mais ou menos” ao ser perguntado se é um bom falante da língua Portuguesa, ainda nos mostra um sujeito fragilizado, que não tem certeza de sua condição enquanto falante e, portanto, que remete àquele que teve pouca oportunidade de escolarização.

 

 

Considerações finais

De maneira geral, precisamos dizer que, independente da relação que os sujeitos explicitam ter com a língua Portuguesa, os seus discursos são marcados pela força simbólica do Aparelho ideológico Escolar, que mesmo não sendo referenciado por esses catadores, está implicitamente presente e funcionando nos seus dizeres. Cumpre ressaltar que, na sociedade capitalista em que estamos inseridos, a escola irradia poder e tem uma função imprescindível no sentido de refletir a cultura dominante e de reproduzir a estrutura de classes. Logo, quanto mais o imaginário da língua escolarizada intervir, mais distanciados esses sujeitos estarão de ocupar os lugares de fala que lhe forem concedidos.

Por outro lado, também queremos pontuar que independente de dominarem a língua escolarizada ou não, as formas linguísticas que esses sujeitos usam, permitem que eles se subjetivem, se reconheçam entre si e enquanto grupo. A situação de desaparelhados linguisticamente não quer dizer que não tenham uma identidade, nem tampouco representa que o repertório de formas que utilizam para comunicação seja menos significativo do que o daqueles dominam o idioma culto. Do mesmo modo, embora a língua que falam não corresponda àquele artefato idealizado que confere unidade linguística a uma Nação, isso não representa que sejam “menos” cidadãos do que aqueles que dominam o vernáculo padrão.

Assim, mesmo que saibamos que, por força das instituições, os catadores sejam pouco respeitados e ocupem um lugar marginal em relação à língua, é importante que reconheçam que o distanciamento em relação ao domínio da norma culta não deve impedir que usem as oportunidades de fala, que muito mais do que comunicar, têm como função garantir espaços para que esses sujeitos signifiquem e deixem de ser um contingente de pessoas invisíveis na sociedade.

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Data de Recebimento: 12/08/2019 Data de Aprovação: 16/04/2020