O imaginário do que seria a suposta cidade do futuro na maioria das vezes esteve envolto na ideia de um espaço ultra futurista, concebido pelas produções de sci-fi com a presença de veículos voadores e projeções hiper-realistas, por exemplo, algo que se aproxima da estética materializada na Los Angeles de 2019, idealizada por Ridley Scott no clássico do cinema Blade Runner, em 1982. Mas diferente do que previram alguns exemplos ilustrativos que seguem essa linha, a cidade do futuro tem se desenvolvido quase sempre fora do nosso alcance de visão, através das tecnologias da informação e comunicação (TIC’s), materializadas em sistemas e artefatos cada vez menores, como objetos e sensores inteligentes e softwares de digitalização e dataficação de informações.
Um fato unânime é que nesse caminho para o futuro, o contingente populacional no planeta tem crescido – já somos cerca 7,7 bilhões[1] –, as cidades têm, cada vez mais, habitantes e, proporcionalmente, despontam antigos e novos problemas urbanos, configurando também novos desafios para as administrações públicas. Nesse sentido, tem aumentando o número de localidades em âmbito nacional e internacional que tem recorrido a soluções e intervenções ligadas às TIC’s –sendo definidas ou se definindo enquanto cidades inteligentes –, com o intuito de otimizar sua gestão e as tomadas de decisão, e, consequentemente, melhorar o desenvolvimento da cidade e a experiência do cidadão em seus respectivos lugares de vivência. A cidade de Aracaju, inclusive, se insere nesse contexto, tendo algumas ações já postas em prática e utilizando como mote da administração municipal “cidade humana, inteligente e criativa”.
Talvez por ser um fenômeno ainda sem tantos consensos, assim como outros relacionados à cultura digital, a cidade inteligente ainda se vale de noções escorregadias, deixando impasses tanto sobre seu conceito quanto suas práticas.
Embora valha destacar, de antemão, que não é o simples fato de utilizar tecnologias digitais que torna uma localidade inteligente, notadamente, é possível afirmar que, assim como em outros momentos históricos, o processo de inteligência das cidades sempre esteve atrelado ao desenvolvimento da técnica e da tecnologia[2], já que “todo e qualquer período histórico se firma com um elenco correspondente de técnicas que o caracterizam e com uma família correspondente de objetos” (SANTOS, 2006, p. 61).
No contexto da cultura digital, a conexão contínua e a linguagem computacional em código binário 0/1 são a força motriz que alimentam os dispositivos e softwares que viabilizam usos e apropriações dos objetos inteligentes instalados no tecido das cidades, captando e processando dados e transformando-os em informação, o principal vetor das administrações das cidades inteligentes e a principal moeda de troca da sociedade contemporânea (SANTAELLA, 2003).
Entretanto, para além do discurso dos governos e conglomerados de tecnologia acerca das cidades inteligentes, reafirmando seu foco na eficácia de gestão, funcionalidade e sustentabilidade das cidades, vale ressaltar que há uma série de questões de ordem econômica, social e ética que são omitidas ou raramente evidenciadas no tocante ao tema, dentre elas a diluição entre as noções de público e privado ou o atentado a isso, uma vez que os dados captados pelos objetos inteligentes espalhados pelas cidades são compartilhados com/pelos governos e empresas privadas.
Assim, considerando as chamadas cidades inteligentes um fenômeno que ainda é relativamente recente, já que as discussões datam do início dos anos 2000 (KITCHIN, 2014), o presente estudo tem como objetivo discutir a noção acerca das smart cities, evidenciando algumas das suas principais problemáticas. Para tanto, de abordagem dedutiva e a partir de pesquisa exploratória e revisão de literatura, o trabalho se desenvolve e é apresentado em três partes: a primeira apresenta, brevemente, o desenvolvimento da cidade e a relação entre as técnicas e tecnologias, a segunda ressalta algumas ferramentas e soluções que se inserem nas cidades e, por fim, destacam-se alguns desdobramentos e problemáticas engendrados na lógica dessas cidades inteligentes.
Cidades e tecnologias: complexas relações
Ao longo do tempo, a sociedade se desenvolve e se configura também a partir do meio técnico-científico no qual está inserida, tendo suas práticas intimamente conectadas aos processos tecnológicos desenvolvidos e vigentes naquele determinado período, corroborando com a afirmação de Castells (2012) quando diz que “sociedade e tecnologia se relacionam em um complexo padrão interativo”. Nesse processo, a técnica também se mostra indissociável no processo evolutivo das cidades, gerando novas formas de mobilidade, e, consequentemente, novas conformações urbanas, formas de se pensar e se apropriar delas. Como complemento, Lemos (2007) evidencia essa relação quando destaca que
A evolução das cidades ocorreu pela constituição de diversas formas de mobilidade por redes materiais e espirituais como definiu Saint Simon no século XIX (Musso, 1997, 2003). Trata-se de mobilidade por redes de transporte (de matéria e corpos em movimento), por redes de comunicação (difundindo para lá e para cá informações sobre os mais diversos formatos: cartas, telégrafo, telefone, televisão, rádio), mobilidade dos fluxos financeiros (vistos por Saint Simon como uma “seiva” que alimentaria o organismo-rede das cidades).
Da mesma forma que o carvão foi ponto-chave para a Revolução Industrial, se configurando como uma revolução cultural – já que foi ambiente de surgimento de diversos aparatos –, tal como a eletrônica deu vazão à cultura de massas (SANTAELLA, 2013), o uso comercial da internet – principalmente a conexão contínua – e a linguagem computacional se tornaram as fontes de energia que alimentam, progressivamente, a sociedade da informação, guiada pelas tecnologias digitais, que ressignificam as formas de produzir, acessar, manipular, armazenar e distribuir informação (MANOVICH, 2001, p. 43).
É sob essa perspectiva que se desenvolve a cidade contemporânea na era informacional, a qual assume o caráter da chamada “cidade inteligente”, imputando em seus processos sistemas e artefatos de gerenciamento e controle de informação pautados na digitalização e uso da internet, tendo como fim a melhoria da experiência do sujeito no contato com os diversos serviços oferecidos por cada localidade. Lemos (2007) completa afirmando que “(...) estamos imersos no que alguns autores identificam como uma nova relação com o tempo, com o espaço e com os diversos territórios. Trata-se de formas de compressão espaço-temporal (HARVEY, 1992) ”. Esse momento se configura como ponto de mudança que reverbera no modo de pensar e planejar a urbe, como foi dito, fazendo emergir um modelo de cidade e de gestão que tenta lidar de forma mais assertiva e eficiente com os problemas da cidade atual, a qual enfrenta questões, como superpopulação, má utilização dos recursos naturais, entre outros.
As cidades do futuro, como assim definem alguns – mas como fica evidente, seria mais apropriado chamar de cidades do presente – já é uma realidade cada vez mais difundida, pelo menos nos discursos e publicizações proferidos pelas administrações municipais e pelas grandes empresas que aplicam seu know-how técnico aos aparatos implantados nas localidades. Neste sentido, vale lembrar a afirmativa de Lemos (2004), quando diz que “o entendimento da relação entre cidades e telecomunicações deve superar o determinismo tecnológico e o futurismo utópico/distópico tão típicos das análises dos ‘impactos’ das tecnologias na sociedade e na cultura”. Por isso, se faz necessário caracterizar e esclarecer alguns pontos que envolvem esse modelo de cidade.
As cidades inteligentes e as TIC’s: soluções e aplicações
É preciso dizer que não há consenso no que diz respeito à noção de cidade inteligente, mas parece que o termo fluiu de acordo com o espírito do tempo. Desde o início do desenvolvimento do fenômeno, por volta do começo dos anos 2000, de certa forma tem sido um desafio caracterizar o fenômeno precisamente, muito pelo fato de que com o passar do tempo a técnica e as pesquisas de empresas de tecnologia de ponta culminaram com o surgimento das tecnologias digitais e seus aparatos (KITCHIN, 2014), fazendo com que vários autores lançassem seu olhar e definissem o tema a partir do contexto em que se localizam. Como exemplo, vale citar Giffinger et al. (2007) que define o termo a partir da ótica da qualidade de serviços oferecidos aos cidadãos; Hall (2010) que fala da perspectiva do monitoramento da cidade para oferecer serviços melhores; e Guan (2012) que define a cidade inteligente como aquela que enfrenta os desafios globais oferecendo melhores condições de vida aos cidadãos.
Independente da definição, vale ressaltar que todo esse movimento tem seu início na esfera econômica, já que o start se deu quando, em 2005, a empresa do ramo de tecnologia Cisco, a pedido da Fundação Clinton[3], começa a desenvolver pesquisas e tecnologias específicas para ajudar as cidades enfrentarem desafios futuros (GONZÁLEZ, 2015), revelando como o fenômeno, antes de tudo, tem uma identidade estruturalmente econômica.
Em meio a esse impasse, Hollands (2008 apud GONZÁLEZ, 2015) abre caminho para situar melhor o fenômeno quando diz que apesar de ser difícil chegar a um denominador comum sobre sua definição, é possível enxergar traços que definem a cidade inteligente, tais como “a aplicação de tecnologias eletrônicas e digitais, o uso de tecnologias da informação e sua territorialização para a inovação, a aprendizagem, a gestão do conhecimento e a resolução de problemas da cidade” (tradução nossa).
Para fins práticos, vale citar uma definição de Lemos (2004), quando diz que essa cidade é “preenchida e complementada por novas redes telemáticas – e as tecnologias daí derivadas, internet fixa, wireless, celular, satélites etc –, que se somam às redes de transporte, de energia, de saneamento, de iluminação e de comunicação”, tornando mais eficientes tanto a tomada de decisão da gestão municipal quanto o desenvolvimento das cidades. Mas é preciso deixar claro que o simples fato de utilizar TIC’s em seu planejamento não define uma cidade como inteligente.
Nesse sentido, talvez a melhor definição, que consegue fugir do determinismo tecnológico, mostrando a tecnologia como uma facilitadora/um meio para se alcançar um fim, seja a de Komninos (2008) quando diz que a cidade inteligente é aquela que conflui “três formas de inteligência: a dos seres humanos, que constituem a população das cidades, a inteligência coletiva das instituições de inovação e a inteligência artificial das redes e aplicações digitais”. Essa fala aponta que, na prática, a cidade inteligente se revela como um sistema complexo que necessita da interação e operacionalização efetiva dos vários “braços” que constroem o sistema, desde a infraestrutura urbana até a governança.
Até aqui, nos dedicamos às cidades inteligentes que já existem, as quais, como já citado, incorporam programas de soluções e intervenções de melhoramento urbano que envolvem as TIC’s. Porém, neste cenário, é preciso destacar os modelos de cidades construídas do zero e com o DNA de “inteligência” a si acoplado, tendo toda sua infraestrutura pré-concebida a partir de artefatos inteligentes e/ou conectados – a infraestrutura ubíqua (GONZÁLEZ, 2015) –, contando com sistemas desde o material de construção dos edifícios pensados para reaproveitar energia, o serviço automático de coleta de lixo até a conexão entre os cidadãos, entre outras possibilidades.
Um dos exemplos mais emblemáticos que ilustra esse tipo de abordagem é Songdo[4], na Coreia do Sul (Figura 1). Localizada a 45 minutos de carro de Seul, a cidade, que começou a ser desenhada no final dos anos 1970 e ocupa uma faixa aterrada do mar, nasceu como uma iniciativa do governo sul-coreano em parceria com várias empresas de tecnologia, dentre elas Cisco e 3M, para potencializar a economia local a partir de uma zona de livre comércio (GOMES; AGUIAR; CAMPOS, 2017). Hoje, os cerca de 80 mil habitantes contam com um sofisticado sistema tecnológico integrado que se estende desde o funcionamento do espaço público até o descarte do lixo, permitindo, por exemplo, que todas as casas tenham sistema automatizado de coleta de resíduos.
Outro exemplo ilustrativo de cidade inteligente construída do zero é Masdar City[5] (Figura 2), que emerge como um oásis no meio do deserto dos Emirados Árabes Unidos, despontando como mais um projeto audacioso do país. Ainda em fase de construção, a cidade é idealizada, planejada e executada pela empresa homônima, que na prática se configura como a Companhia de Energia do Futuro de Abu Dhabi, que atua no setor de desenvolvimento urbano sustentável e energias renováveis.
O foco da cidade, com estrutura para abrigar 50 mil habitantes e 450 empresas de 6 continentes (MASDAR, 2008[?]), além do grande apelo turístico – assim como outras grandes construções megalomaníacas da península –, pretende funcionar como uma espécie de laboratório de grandes proporções para o desenvolvimento de pesquisas e tecnologias relacionadas principalmente ao âmbito energético e recursos naturais. Dentre os feitos anunciados estão o uso de materiais de baixa emissão de carbono nas construções e sistemas de captação de vento, entre outras ações que fazem da cidade uma das mais autossustentáveis do mundo (MASDAR, 2008[?]).
Seguindo para um terceiro e último exemplo, nos voltamos aqui para o Brasil, citando a Smart City Laguna (Figura 3). O empreendimento – como assim se configura este modelo de cidade –, partiu da iniciativa da empresa italiana Planet Smart City e fica localizado na região metropolitana de Fortaleza, mais especificamente na cidade de São Gonçalo do Amarante, a 55km da capital cearense. Quando estiver finalizada, em 2021, vai abrigar 25 mil habitantes, residindo em casas a preços populares a partir de R$45 mil reais[6], sendo considerada a primeira smart city social do mundo, segundo a própria empresa responsável pelo projeto. Aqui, a disseminação das tecnologias digitais ampara funções como a cobertura de wifi grátis em todo o perímetro da cidade distribuído através de fibra ótica, automação residencial e sistema de recolhimento de água pluvial[7], por exemplo.
Figura 3 - Plano da Smart City Laguna, Brasil
Fonte: https://smartcitylaguna.com.br/
O futuro parece reservar ações ainda mais promissoras para as cidades, principalmente quando pensamos que a internet 5G, que possibilita conexão cerca de oito vezes mais rápida que a atual[8], começou a ser implantada em alguns países e, em breve, começará a ser integrada aos aparatos que compõem as cidades. Por enquanto, vale tomar nota de algumas iniciativas já conhecidas e postas em prática em alguns programas de cidades inteligentes.
Uma das soluções mais comuns de uso das TIC’s nas cidades é a semaforização inteligente, que funciona a partir da instalação de sinais equipados com sensores nos postes e debaixo da camada asfáltica que se comunicam, detectando o fluxo de carros e pedestres através da vibração no solo. Caso haja muitos carros e poucos pedestres, o sinal permanece aberto; do contrário, o semáforo se fecha para o tráfego de veículos.
Outro recurso bastante utilizado e que materializa o mote vendido das cidades inteligentes, que é melhorar a experiência do cidadão em diversos serviços, é a utilização de ferramentas que permitem o monitoramento em tempo real e 24 horas das cidades ou parte delas. Uma referência importante no Brasil – e que se tornou referência no mundo – é o Centro de Operações do Rio de Janeiro (COR). O órgão, inaugurado em 2010 pela prefeitura do Rio em parceria com gigante de tecnologia IBM (Figura 4), se configura como um complexo composto por secretarias e órgãos municipais que acompanham, através de telões, boa parte dos acontecimentos do município captados através de câmeras, sendo possível se preparar em caso de catástrofes, por exemplo[9].
Figura 4 - Sala principal do Centro de Operações do Rio (COR)
Fonte: http://cor.rio/institucional/
A cidade de Aracaju também se insere nesse cenário e prevê algumas ações de cidade inteligentes no planejamento estratégico da atual gestão. Uma delas é o projeto que objetiva digitalizar 100% dos documentos de todas secretarias municipais até 2020[10], projeto esse que já começou a ser posto em prática. A iniciativa se encaixa no âmbito de governança eletrônica, presente na tabela citada acima sobre as categorias de ações de cidades inteligentes, sendo um dos exemplos de como a digitalização informacional e a linguagem computacional exercem um papel imprescindível atualmente. Porém, o fato é que por trás de todo bônus, há um ônus, e nesse contexto de cidades inteligentes, há várias implicações a serem observadas com atenção, algumas delas dispostas a seguir.
Cidades inteligentes: para além da eficácia e funcionalidade
Inerente à publicização acerca da lógica de cidades inteligentes sempre há o discurso proferido pelas administrações públicas, especialistas e conglomerados de tecnologia acerca da eficácia, funcionalidade e sustentabilidade financeira e ambiental proporcionadas aos espaços, garantindo o bem-estar e a melhoria da experiência do cidadão na urbe. Mas o fato é que é preciso ir além da superfície projetada por quem desenvolve e implanta as soluções e refletir acerca das ações adotadas nas localidades, principalmente pelo fato de serem intervenções que se utilizam de tecnologias digitais que envolvem captura de dados e monitoramento contínuo, por exemplo, fenômenos que estão no centro do vórtice das discussões sobre cultura digital na contemporaneidade e que constantemente mexem com noções de proteção de dados, privacidade e liberdade.
Abdala et al. (2014 apud CURY; MARQUES, 2017) mostra que 26,7% das publicações sobre cidades inteligentes na plataforma Scopus foram da área das Ciências Sociais. Entretanto, vale destacar que ainda existe uma lacuna considerável no que diz respeito ao volume de produções e autores que versam sobre cidades inteligentes para além do entusiasmo e que se dedicam a problematizar o uso das TIC’s no gerenciamento das cidades, lacuna atestada por Kitchin (2014). E quando adentramos no campo da comunicação – em escala nacional e internacional – esse fato é ainda menor, o que, inclusive, endossa a razão de existir deste artigo.
A questão é que grande parte dos estudos se volta a questões meramente técnicas, discorrendo, por exemplo, sobre a criação de métodos mais assertivos para implantação do aparato técnico necessário para a operacionalização das intervenções ou sobre a descrição de objetos inteligentes que compõem esse cenário, o que de forma nenhuma mitiga ou atenua a importância desse modelo de estudo, até porque este não é o foco da presente discussão.
Mas é preciso questionar esse processo, ainda mais quando pensamos ser uma dinâmica que mexe em bases macrossociais, como o capital, sendo que, na maioria das vezes, os programas de cidades inteligentes se desenvolvem a partir da injeção de capital privado. Portanto, como bem coloca Rennó (2016), “o conceito de gestão dos fluxos da cidade também não pode ser compreendido como neutro”, ainda mais quando se tem a interação entre o poder público e grandes conglomerados comunicacionais e empresas de tecnologia de ponta, como Cisco, IBM, Siemens, entre outras, que dominam o cenário mundial da tecnologia e do setor de cidades inteligentes.
Se no campo científico ainda se faz ver a necessidade de discussões mais acaloradas e que caminhem para questões mais estruturais acerca do tema problematizando, na prática, a lógica das cidades inteligentes segue suscitando uma série de inquietações, especialmente quando nos deparamos com o fato de que, com o passar do tempo, as TIC’s se configuram em artefatos cada vez mais sofisticados, aumentando a capacidade de penetrabilidade desses sistemas, com a instalação de mecanismos de controle e vigilância, por exemplo, e permitindo novas formas de atuação das cidades no âmbito da governança.
Esse monitoramento contínuo dos espaços – uma das soluções mais comuns nas smart cities – é justamente um dos elementos que mais abre brecha para desconfianças e discussões, fazendo pensar até que ponto o bem-estar coletivo e a segurança justificam um sistema que funciona a partir de máquinas programadas e, por vezes, atenta contra o limite da liberdade individual, a exemplo das câmeras equipadas com sistemas de reconhecimento facial.
Esse processo se acentua mais ainda quando pensamos nas cidades que começam do zero, a exemplo de Songdo e Masdar, que não abrem brecha para imprevisibilidade natural cotidiana e que já nascem monitoradas e controladas 24h por dia, variando entre uma distopia, nos moldes de 1984, de George Orwell, e uma utopia de uma cidade controlada como um organismo monitorado em experiência laboratorial com requisitos e padrões bem definidos que precisam ser atendidos para garantir seu pleno funcionamento e o bem-estar coletivo. Essas duas cidades ainda nos fazem pensar como esse modelo de concepção, gestão e organização urbanas se parecem com produtos, programados por empresas e com seus slogans, que injetam seu capital e fazem parte das decisões da cidade com o discurso de melhorar a eficácia local, como se fossem máquinas de morar/transitar.
Essa padronização é outro grande problema. Geralmente as soluções partem de modelos são criados em cidades globais por grandes empresas e replicados ao redor do mundo, geralmente sem considerar a realidade de cada região. E esse processo nos faz questionar mais ainda quando restringimos o ângulo de visão para localidades menores, como a própria cidade de Aracaju.
Se por um lado a cidade inteligente se apresenta como a cidade do futuro, por outro esse modelo de intervenção carrega um antigo fardo que já emergia no antigo formato de planejamento urbano de cidades modernas, em meados do século XX, onde várias soluções implantadas em certas localidades passavam a ser replicadas em outras, com escalas, culturas e realidades totalmente diferentes, fato lembrado e duramente criticado pela ativista urbana Jane Jacobs, no clássico Morte e Vida das Grandes Cidades (2011). Neste sentido, Kitchin (2015) reforça que “há uma necessidade urgente de questionar a visão e implementação de cidades inteligentes em diferentes localidades” (tradução nossa).
Isso nos leva a pensar se talvez não há uma espécie de fetiche em torno do tema, que incita nos governantes um senso de pressa no sentido de inserir suas respectivas cidades no circuito informacional de localidades que recorrem a este tipo de intervenção. Mais além, frente a isso, parece que muitas localidades ainda estão aquém no que diz respeito à garantia de direitos básicos, como saneamento - apenas 85 dos 5.570 municípios brasileiros desfrutam desse direito de forma plena[11] - e educação de qualidade, o que faz refletir acerca dos discursos de esferas governamentais, algumas delas, assentadas em um projeto de cidade inteligente.
Vale ir mais além e citar um exemplo mais concreto a fim de refletir sobre a lógica das smart cities, ou pelo menos o discurso mercadológico que é proferido pelas grandes empresas e pelos governos. Como dito, um dos focos do Centro de Operações do Rio (COR) é justamente funcionar como um antecipador de crises, permitindo que as autoridades possam emitir alertas sobre possíveis catástrofes ambientais e atuar mais rapidamente na prestação de socorro, por exemplo. Mas isso esteve longe de acontecer quando o município foi acometido pelas chuvas do começo do 2019[12], deixando um estado de caos, diferente do que se poderia imaginar, já que o programa da cidade, que foi considerada uma das 50 cidades mais inteligentes do mundo entre 2018 e 2019[13], conta justamente com sensores pluviométricos e sirenes de alerta espalhados pelo município.
Além disso, esse modelo de intervenção termina por estabelecer e reforçar governos tecnocráticos, os quais “presumem que todos os aspectos da cidade podem ser mensurados, monitorados e tratados como problemas técnicos que podem ser guiados através de soluções técnicas” (KITCHIN, 2013, tradução nossa), como se a cidade a todo instante fosse associada a um sistema falho que precisasse ser corrigido e atingir o estado de perfeito funcionamento.
Por fim, já que o foco dos programas é sempre melhorar a experiência dos indivíduos e potencializar o senso cidadão em todas as instâncias de serviços básicos, trazendo essa discussão para a esfera a quem mais interessa – o sujeito – talvez o maior questionamento seja em que posição fica e como é pensado o cidadão nesse contexto. Para além de celebrar como as TIC’s assumem um papel de tornar a cidade mais eficiente e melhor de se viver, é preciso pensar, por exemplo, que pouco se sabe sobre o que é feito com os dados captados pelos softwares utilizados. O discurso de bem-estar é proferido, mas uma gestão open source de dados e o interesse em aumentar a literacia digital dos cidadãos, por exemplo, permitindo que esses tenham o discernimento sobre as ações implantadas, ainda está longe de ser perpetrada.
Conclusões
Com o passar do tempo, as cidades foram ganhando novas conformações. Parte desse processo se evidencia no fato de que mais pessoas passaram a residir nos centros urbanos – o que tende a aumentar nos próximos anos –, o que significa mais pessoas habitando, circulando, trafegando, comercializando, e, consequentemente, tornando o desafio de gerenciamento e tomada de decisão cada vez mais complexos para as administrações municipais. Neste sentido, de fato, as tecnologias da informação e comunicação têm oferecido múltiplas formas de fazer as cidades evoluírem de maneira mais eficiente, sustentável e organizada, segundo os discursos dos entusiastas.
Entretanto, assim como outros fenômenos e temas que emergem da cultura digital, as smart cities, apesar de se apresentarem como uma dinâmica que oferece soluções e intervenções que permitem ações mais assertivas das gestões públicas diante dos problemas urbanos, também se configuram como um tema que oferece mais perguntas que respostas. Muito disso se dá principalmente porque, na maioria das vezes, se valem da utilização de dados dos cidadãos e dialogam com questões sociais, como questões relacionadas à privacidade, quando se pensa, por exemplo, que esses dados são compartilhados entre os governos e as empresas que injetam capital financeiro nas cidades já existentes e, principalmente, naquelas que são construídas do zero, como Songdo e Masdar.
Diante disso, à medida que cresce esse tipo de intervenção e o interesse em torno das cidades inteligentes, proporcionalmente, vale ressaltar que é preciso continuar investigando, questionando e problematizando o conceito e a prática dessa lógica tão complexa, atravessada por diversas áreas, como arquitetura, engenharia, computação, sociologia, direito e a comunicação – sendo que este último se conecta com todas as outras –, e visto que os agentes envolvidos e as medidas tomadas alteram processos sociais.
Nesse sentido, o papel da academia se mostra fundamental enquanto lugar de discussão e amparo de inquietações que emergem diante da realidade. Porém, como mencionado no item 4, discussões mais provocadoras no Brasil acerca do tema ainda são um tanto tímidas – e carecem de uma urgência –, necessitando sair do senso comum de abordar questões meramente técnicas e avançar no caminho de regiões mais abissais sobre esse fenômeno e problematizar, por exemplo, seus impactos, desdobramentos e interferências na sociedade e em cada lugar onde se instala, uma vez que esses processos ocorrem de maneiras diferentes de acordo com a realidade de cada localidade. Talvez esse cenário seja sintomático, revelando como estamos mergulhados numa sociedade estritamente tecnicista. Assim, este artigo tem a intenção de também contribuir com essas discussões para além da técnica.
Vale dizer ainda que o digital normalmente é vendido através de um discurso que democratiza o acesso e a produção de informação/conteúdo, o que de fato acontece, porém não de forma igualitária, principalmente quando se pensa na exclusão digital que se agrava no instante em que lançamos ótica sobre a realidade brasileira. Assim, vale pensar também que as cidades inteligentes, que possuem um DNA emaranhado às TIC’s, talvez não sejam diferentes e dificilmente tenham um processo uníssono de capilarização, isso é, se o tiverem. Por isso, para concluir esta discussão que certamente está longe de ser um consenso, sempre que nos referirmos e pensarmos nesse tema, vale colocar a sentença que dá título ao livro de Santaella “Cidades Inteligentes: Por quê? Para quem? ”. Como dito, esse é mais um fenômeno da cultura digital que suscita mais perguntas que respostas.
Referências
CASTELLS, M. A sociedade em rede. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2012.
CURY, M. J. F.; MARQUES, J. A. L. F. A cidade inteligente: uma territorialização. Redes - Santa Cruz do Sul. Universidade de Santa Cruz do Sul, v. 22, n. 1, jan.-abr./2017.
GOMES, F. M.; AGUIAR, A. O.; CAMPOS, V. N. O. Songdo: inteligente e sustentável? críticas e perspectivas. in: i simpósio brasileiro online. Gestão urbana, 2017. Disponível em: <https://www.amigosdanatureza.org.br/eventos/data/inscricoes/1793/form9776406.pdf>
GONZÁLEZ, M. F. La smart city como imaginario socio-tecnológico la construción de la utopía urbana digital, 2015. Tese (Doutorado) - Departamento de Sociología y Trabajo Social, Universidad del País Vasco, 2015. Disponível em: <https://addi.ehu.es/bitstream/handle/10810/19301/Tesis%20La%20smart%20city%20como%20imaginario%20Manu%20Fernandez.pdf?sequence=1&isAllowed=y>.
HOLLANDS, R. G. Will the real smart city please stand up?, City, v. 12, n. 3, pp 303-320, 2008. Disponível em:
JACOBS, J. Morte e vidas das grandes cidades. Tradução: Carlos S. Mendes Rosa. 3ª Ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.
KITCHIN, R. The promise and peril of smart cities. Journal of the UK Society of Computers and Law, 2015. Disponível em: <http://www.scl.org/site.aspx?i=ed42789>.
KITCHIN, R. Making sense of smart cities: addressing present shortcomings. Cambridge Journal of Regions, Economy and Society, pp. 131-136, 2014.
KITCHIN, R. The real-time city? Big data and smart urbanism. In: Smart urbanism: utopian vision of false dawn, University of Durham, Irlanda, jun./2013.
MANOVICH, L. The Language of New Media. Cambridge: MIT Press, 2001.
MASDAR. Masdar City Facts Sheet, [2008]?.
MUMFORD, L. A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas. Tradução: Neil R. da Silva. 4ª Edição - São Paulo: Martins Fontes, 1998.
RENNÓ, R. Smart cities e big data: o cidadão produtor de dados. URBS Revista de Estudios Urbanos y Ciencias Sociales, v.6, n.2, pp. 13-24, 2016. Disponível em: <http://www2.ual.es/urbs/index.php/urbs/article/view/renno/307>.
SANTAELLA, L. Comunicação Ubíqua: Repercussões na cultura e na educação. São Paulo: Paulus, 2013.
SANTAELLA, L. Da cultura das mídias à cibercultura: o advento do póshumano. Revista FAMECOS, Porto Alegre, dez./2003.
SANTOS, M. A Natureza do Espaço. Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 4ª ed. 2 reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.
Data de Recebimento: 06/02/2020
Data de Aprovação: 14/04/2020
[1] População mundial deve chegar a 9,7 bilhões de pessoas em 2050, dia relatório da ONU. Nações Unidas do Brasil, 2019. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/populacao-mundial-deve-chegar-a-97-bilhoes-de-pessoas-em-2050-diz-relatorio-da-onu/>. Acesso em: 09 ago. 2019.
[2] Como bem coloca Santos (2006, p. 16), “As técnicas são um conjunto de meios instrumentais e sociais, com os quais o homem realiza sua vida, produz e, ao mesmo tempo, cria espaço”. Assim, a tecnologia se configura como o sistema que engloba essas relações.
[3] Criada pelo ex-presidente Bill Clinton com o intuito de pensar em soluções para desafios globais emergentes.
[4] Site oficial da cidade de Songdo. Disponível em: <http://songdoibd.com/>. Acesso em: 10 ago. 2019.
[5] Site oficial da cidade de Masdar City. Disponível em: https://masdar.ae/en/masdar-city>. Acesso em: 10 ago. 2019.
[6] O que é viver smart. Smart City Laguna. Disponível em: https://smartcitylaguna.com.br/viver-smart/>. Acesso em: 16 ago. 2019.
[8] Samantha Murphy Kelly. I tried 5G. It will change your life – if you can find it. CNN Business, 2019. Disponível em: <https://edition.cnn.com/2019/08/09/tech/5g-review/index.html>. Acesso em: 19 ago. 2019.
[9] Centro de Operações do Rio. Disponível em: <http://cor.rio/institucional/>. Acesso em: 19 ago. 2019.
[10] Prefeitura de Aracaju é a primeira capital brasileira a tornar processos públicos 100% digitais. Olhar digital, 2019. Disponível em: <https://olhardigital.com.br/noticia/aracaju-e-primeira-capital-brasileira-a-tornar-processos-publicos-100-digitais/85777>. Acesso em: 15 ago. 2019.
[11] Mariana Tokarnia. No Brasil, 85 municípios cumprem requisitos de saneamento básico. Agência Brasil, 2019. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2019-06/no-brasil-85-municipios-cumprem-todos-requisitos-de-saneamento-basico>. Acesso em: 18 ago. 2019.
[12] Chuva forte causa deslizamentos, mortes, e deixa o Rio em estágio de crise. G1 Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: <https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/04/08/tempo-muda-no-rio-com-previsao-de-chuva-raios-e-ventos.ghtml>. Acesso em: 16 ago. 2019.
[13] Quintino Gomes Freire. Rio entre as 50 cidades mais inteligentes do mundo. Diário do Rio, 2019. Disponível em: <https://diariodorio.com/rio-entre-as-50-cidades-mais-inteligentes-do-mundo/>. Acesso em: 16 ago. 2019.