O corte urbano, as ambiências situadas e o “paradigma indiciário”: Ferramentas para a fabricação de um olhar compartilhado sobre a cidade


resumo resumo

Carolina Rodríguez-Alcalá



1. Apresentação: os instrumentos técnicos e a constituição das disciplinas científicas

A exploração das novas tecnologias de escrita como subsídio para as pesquisas sobre as ambiências urbanas nos remete a uma reflexão mais ampla, no campo da história das ciências, sobre o papel dos instrumentos técnicos na constituição das disciplinas científicas. Em sua discussão sobre a Análise do Discurso instituída por Michel Pêcheux na França, em finais dos anos 1960, Paul Henry nos diz que o estabelecimento de uma ciência necessita de instrumentos (“materiais” ou “abstratos”), que ela procura nas práticas científicas já estabelecidas ou nas práticas técnicas (cf. HENRY, 1997, p. 16-17). O autor traz o exemplo da balança, que teve uma primeira utilização técnica no comércio até tornar-se, a partir de Galileu, objeto da teoria das balanças, que integra a teoria física. Produziu-se assim, afirma Henry, uma “homogeneidade” ou adequação entre o objeto da disciplina e seus métodos. Esse “empréstimo” de instrumentos exige sempre, continua o autor, retomando Thomas Herbert (pseudônimo de Pêcheux) ([1966] 2011), um trabalho de apropriação, de reinvenção, de reelaboração:

 

[...] cada vez que um instrumento ou experimento é transferido de um ramo de ciência para outro, ou a fortiori de uma ciência para outra, este instrumento ou este experimento é de algum modo reinventado, tornando-se um instrumento ou um experimento desta ciência em particular, ou deste ramo particular de ciência. [...] o ajustamento de um discurso científico a si mesmo consiste, em última instância, na apropriação dos instrumentos pela teoria. É isto que faz da atividade científica uma prática. (ibid., p. 17)

 

As práticas científicas, por sua vez, não se exercem fora de uma prática filosófica (ibid.). A (re)elaboração dos instrumentos sobre os quais se apoia uma disciplina, portanto, pressupõe sempre uma reflexão, mais ou menos consciente, sobre a natureza de seu objeto, bem como uma postura frente ao conhecimento, de modo geral.

            É a partir dessas considerações que nos perguntamos: qual é o objeto das pesquisas sobre as ambiências urbanas e como esse objeto direciona a (re)elaboração de instrumentos para produzir uma “homogeneidade” com seu método?

Definida como “espaço-tempo qualificado do ponto de vista sensível” (cf. THIBAUD, 2004; 2011), a noção de ambiência convoca fenômenos perceptivos que põem em relação, sob uma forma mais complexa do que uma simples somatória, os sujeitos, o espaço sensível e a significação. Uma ambiência é uma unidade sensorial, na medida em que concebe o espaço de vida humano não como o espaço físico em si, já dado, mas como o espaço enquanto apreendido pelo sujeito, através da “concretude” de seu corpo e de sua faculdade sensorial. Essa concepção põe em causa o dualismo positivista clássico sujeito/objeto, junto com outros que lhe são correlatos, como corpo/espírito e objeto/qualidade (cf. THIBAUD, ibid.; DEWEY, 1980, p. 210). Uma ambiência é também uma unidade simbólica (RODRÍGUEZ-ALCALÁ, 2013a, 2013b, 2014), uma vez que, como afirma Dewey, a apreensão sensorial de objetos e acontecimentos em uma situação dada é indissociável das significações anteriores a eles atribuídas em um contexto social e histórico particular (cf. DEWEY apud THIBAUD, 2004, p. 242)[1].

É a complexidade desse novo objeto intrinsecamente heterogêneo aquilo que orienta a reapropriação de ferramentas tradicionais de notação do espaço disponíveis no campo da pesquisa arquitetônica e urbana, a partir da incorporação de novas tecnologias de registro (foto-, áudio-, vídeo-) gráfico e de narrativas sobre o lugar e o cotidiano urbano. Podemos mencionar diversos métodos exploratórios, tais como os relatos em primeira pessoa, os percursos comentados, a observação recorrente, a reativação sonora, a etnografia sensível e, mais recentemente, o corte urbano[2]. Sua elaboração resulta do esforço metodológico para dar conta dessa justaposição de elementos estáticos e dinâmicos, ao mesmo tempo técnicos e sensíveis, de diferentes dimensões e escalas que estão em jogo em uma ambiência (formas construídas, impressões sensoriais, movimento do corpo, afetos, discursos...).

O objetivo deste artigo é apresentar uma discussão teórica sobre a dimensão heurística desses dispositivos descritivos – entendidos como dispositivos de conhecimento –, a partir de uma reflexão sobre o corte urbano e o paradigma epistemológico que Carlo Ginzburg chamou de “indiciário” (cf. RODRÍGUEZ-ALCALÁ, 2011)[3]. Tal discussão foi realizada no âmbito de uma pesquisa de campo interdisciplinar sobre o problema da coleta de lixo doméstico na cidade de São Paulo, Brasil[4].

Buscaremos responder às seguintes perguntas: quais são as questões teóricas envolvidas na elaboração do corte, tendo em vista as implicações epistemológicas da noção de ambiência? Como se define a consistência – a “homogeneidade”, a adequação – do instrumento em relação a esse objeto?

Começaremos nossa exposição com uma breve apresentação do corte e da pesquisa de campo realizada, a fim de situar as questões propostas.

 

2. O “potencial sinóptico” do corte e as pesquisas sobre o espaço urbano

O corte, ou transecto, de acordo com a definição de Marie-Claire Robic, designa para os geógrafos:

 

...um dispositivo de observação de terreno ou a representação de um espaço, ao longo de um traçado linear e segundo a dimensão vertical, destinado a pôr em evidência uma superposição, uma sucessão espacial ou relações entre fenômenos: corte geológico, corte (ou transecto) biogeográfico (tradução nossa)[5].

 

Tal sistema de notação vem sendo desenvolvido desde o século XIX como um instrumento para o estudo de fenômenos naturais e sociais, tendo-se tornado recentemente um modo usual de descrição gráfica de geólogos, geógrafos e paisagistas. Entretanto, ele permanece ainda raramente utilizado para o estudo das cidades (TIXIER, 2016, p. 133)[6].

             Quando aplicado em escala urbana, o corte é tradicionalmente um modo de descrição estático e técnico dos dados construtivos, como indicado por Tixier (ibid.). Entretanto, de acordo com o mesmo autor, o instrumento ganha vida ao sugerir uma sincronia de gestos práticos, que oferecem uma abertura para a narrativa – para uma multiplicidade de narrativas possíveis (ibid., p. 132). Tal abertura permite a inscrição de textos, fotografias, desenhos e outras formas através das quais um lugar é enunciado, às quais temos acesso mais frequentemente in situ ou en parcours (ibid). A sensibilidade à narrativa do habitante, à sua maneira de enunciar o lugar, com suas ambiências e práticas, é uma questão central para a compreensão da “fábrica cotidiana da cidade”, na expressão do autor (ibid.).

            O objetivo geral da pesquisa realizada em São Paulo foi elaborar um instrumento com as características acima descritas, através da incorporação de técnicas relacionadas ao transecto, ao percurso sensível e à narrativa de lugar. O corte foi pensado, de um lado, para operacionalizar metodologicamente uma aproximação entre os trabalhos relativos às ambiências arquitetônicas e urbanas e as pesquisas ambientalistas; de outro lado, para articular, em termos práticos e operacionais, os campos da pesquisa acadêmica e da gestão urbana e/ou territorial (cf. TIXIER et al., 2011). Tratou-se de explorar pontos de encontro possíveis entre perspectivas tradicionalmente distanciadas entre si na abordagem da cidade, nas quais estão em jogo:

 

  1. diferentes escalas do olhar sobre o urbano, uma vez que as pesquisas sobre as ambiências têm como foco questões locais – ligadas à experiência sensível in situ, habitualmente qualificadas de micro –, enquanto que os estudos ambientalistas tratam em geral de questões globais, ligadas ao meio-ambiente e a uma visão macro da gestão urbana;
  2. diferentes disciplinas dentro da academia (arquitetura e urbanismo, estudos ambientais, geografia, sociologia, psicologia, estudos da linguagem), cujos objetos se vinculam de modo mais direto ou indireto a uma ou outra escala (micro ou macro);
  3. diferentes instituições sociais, na tentativa de promover um diálogo entre a academia, o poder público e a sociedade civil, a fim de subsidiar políticas públicas relacionadas à gestão do lixo urbano.

 

É para interrogar esse gesto – ao mesmo tempo multifocal, multidisciplinar e multi-institucional – que se propôs explorar o “potencial sinóptico” do corte, característica assinalada pelo urbanista Patrick Geddes, em inícios do século XX. Como afirmam Tixier, Melemis e Brayer (2011, p. 247), o corte permite:

 

...inscrever em filigrana, em uma representação gráfica e estática, as narrativas de vida, bem como as percepções de ambiências. O corte não implica dominância disciplinar, nem exaustividade de dados para um lugar; muito pelo contrário, ele seleciona tudo o que se encontra em sua linha e autoriza, precisamente, os encontros entre as dimensões arquitetônicas, sensíveis e sociais, entre o que diz respeito ao privado e o que diz respeito ao público, entre o que é móvel e o que é construído, etc. (tradução e grifos nossos)

 

 

Gostaríamos de destacar alguns aspectos dessa proposta, que giram em torno das ideias centrais de heterogeneidade e, ao mesmo tempo, de relação na definição do que seja o espaço urbano, ou mesmo o espaço de vida social, de modo geral. Mais especificamente:

 

  1. A caracterização do espaço (urbano) enquanto conjunto de fatos heterogêneos, que se apresentam como separados, fragmentários, dispersos, mas que estabelecem relações entre si, das quais resulta uma unidade.
  2. O reconhecimento de que essas relações não são evidentes e de que o trabalho teórico deve consistir em um investimento para torná-las visíveis – daí o valor heurístico do gesto de pôr em relação.
  3. A necessidade de elaborar ferramentas metodológicas para operacionalizar em termos técnicos, analíticos, esse gesto de relacionar.

 

É precisamente em virtude desses aspectos que se define o potencial sinóptico do corte na utilização proposta por Geddes. Como nos dizem Tixier, Melemis e Brayer (ibid.), é a capacidade de co-apresentação e de co-concepção, em termos disciplinares, dessa ferramenta gráfica aquilo que contribui para tornar visíveis relações entre fenômenos heterogêneos relativos à sociedade e ao espaço. No caso específico do urbanista escocês, estão em jogo as relações entre as formas de vida coletiva humana e os quadros da geografia física:

 

No início do século XX, o urbanista escocês Patrick Geddes havia insistido no potencial ‘sinóptico’ do corte, isto é, a capacidade de tornar visíveis as relações, resultado de longos períodos históricos e observáveis no presente, que ligam as formas de vida coletiva humana aos quadros da geografia física. Sua utilização desta projeção gráfica visava produzir o encontro de perspectivas disciplinares diferentes em uma única representação visual. (ibid., p. 246, tradução e grifos nossos).

 

 

            Devemos perguntar-nos, em relação à nossa pesquisa: quais são os elementos relacionados pelo corte em uma metrópole como São Paulo, tendo em vista o problema da coleta de lixo na cidade?

 

 

3. A cidade de São Paulo: aspectos ambientais e sensíveis da gestão do lixo doméstico

            A pesquisa procurou reunir questões arquitetônicas, sociais, ambientais e sensíveis relacionadas ao problema do lixo doméstico em São Paulo. Focalizou-se o percurso diário da coleta do lixo, do centro da cidade até o aterro sanitário. Foram selecionados quatro bairros ao longo desse percurso, de aproximadamente 35 quilômetros de extensão (cf. OKAMURA, 2011).

O objetivo foi compreender o impacto da questão do lixo na ambiência e no meio-ambiente nos diversos e heterogêneos distritos atravessados pela coleta. Como lidam os habitantes com o lixo? Tem este um impacto negativo aos arredores (mau cheiro, atração de animais ou poluição do ar)? Como é o serviço público de coleta no lugar? Existe um trabalho de seleção e reciclagem para minimizar o impacto ambiental? (cf. OKAMURA, ibid.; MASSON e BRAYER, 2010).

 

LUGARES SELECIONADOS DA PESQUISA

 

Figura 1: Mapa da zona leste de São Paulo. A linha destacada em negrito representa o caminho seguido pelos caminhões de coleta, do transbordo (#2) até o aterro sanitário (espiral no final da linha à direita) (Figura extraída de MASSON e BRAYER, 2010).

 

 

Figura 2: Bairros selecionados, com destaque (em negrito) das linhas dos cortes realizados (Figura extraída de MASSON e BRAYER, 2010).

 

O trabalho esteve organizado em três etapas[7]:

 

  1. A coleta de dados

Foram coletados, de um lado, dados relativos ao ambiente e às formas construídas, levando em conta os documentos existentes (mapas, medidas oficiais, projetos técnicos e de pesquisa) e fotos feitas pela equipe. De outro lado, foram coletados dados relacionados às práticas e às narrativas dos moradores. A equipe entrevistou moradores, especialistas locais, administradores, funcionários; visitou as estações de tratamento de lixo e o aterro sanitário, e acompanhou os veículos de coleta de lixo (cf. OKAMURA, ibid.; MASSON e BRAYER, ibid.).

  1. A montagem dos cortes

O primeiro passo foi identificar as questões mais relevantes que emergiram desse conjunto heterogêneo de dados, relacionadas ao espaço, às práticas, à atmosfera, ao ambiente, às políticas. Foram em seguida selecionados os dados considerados mais representativos para cada uma dessas questões. A montagem desses dados resultou, assim, em um instrumento “híbrido”, que relacionou as características da morfologia física do lugar (das moradias e do espaço público da rua), a trechos das falas das entrevistas e às práticas sociais (cf. MASSON & BRAYER, ibid.).

 

ETAPAS DA MONTAGEM DOS CORTES

Figura 3: Etapas: 1) colagem de fotografias; 2) desenho de formas e contexto; 3) inserção de pessoas, práticas e falas (Figura extraída de MASSON e BRAYER, 2010).

 

CORTE #1 – VILA MARIANA

 

Figura 4: Corte #1 – Vila Mariana: corte completo e zoom. O comprimento dos cortes impressos foi superior a 2,5 metros (Figura extraída de MASSON e BRAYER, 2010).

 

  1. A realização da “mesa longa”

            A última etapa do projeto consistiu na realização de um ateliê público, que convocou os sujeitos concernidos na pesquisa (cientistas, administradores, técnicos, moradores) para tomarem conhecimento dos cortes realizados e dispostos sobre uma mesa longa[8]. Em um contraponto com o ritual da mesa redonda, observa Amphoux (2011), a mesa longa é uma experiência mais informal, que incentiva as pessoas a falarem de maneira mais espontânea que nas situações de entrevista ordinárias. Ela permite, também, exercer um olhar panorâmico sobre os lugares recortados e, ao mesmo tempo, fazer um zoom sobre detalhes específicos (ibid.). A experiência possibilita, assim: a) discutir coletivamente os resultados da pesquisa; b) intervir na própria (re)escrita dos cortes, acrescentando ou riscando elementos, em um gesto próximo daquele do grafiteiro (ibid.); c) identificar as questões polêmicas, e d) inventariar ações possíveis (cf. ibid.; TIXIER, 2016).

 

 

Figura 5: “Mesa longa” sobre os cortes realizados. São Paulo, Julho de 2009 (Imagem extraída de AMPHOUX, 2011, p. 155).

 

 Não é nosso interesse neste artigo deter-nos nos desafios metodológicos e técnicos envolvidos na construção do corte, nem nas discussões durante a “mesa longa” ou em seu impacto no desenho de potenciais projetos urbanos[9]. Nosso objetivo é abordar uma questão mais geral, já enunciada: qual é o gesto teórico que orienta a elaboração de um instrumento como o corte, tendo em vista as implicações epistemológicas da noção de ambiência? Isto é:

 

  • Como conceitualizar essa operação que consiste em reunir, em um único instrumento gráfico, elementos heterogêneos, de dimensões e escalas diferentes?
  • Em que medida essa montagem permite visualizar a unidade do espaço, seja em sua dimensão sensível ou ambiental?
  • Como definir a exaustividade do instrumento em relação a essa unidade, considerando sua natureza necessariamente fragmentária e a simplificação que toda técnica de escrita representa?
  • Como conceber a articulação entre os diferentes registros de conhecimento do território convocados, relacionados a práticas científicas, técnicas, administrativas ou cotidianas?
  • Como caracterizar a potencial relevância do corte para o desenho de políticas públicas?

 

4. O dispositivo do corte e o “método policial”

Tendo presentes as observações que havíamos feito sobre o “potencial sinóptico” do corte, propomos aqui fazer um desvio e caracterizar a elaboração desse instrumento a partir de uma imagem: a do método policial. Isto é, a imagem do detetive que coloca em um mesmo quadro — um mesmo campo visual —, umas ao lado das outras, pistas dispersas e aparentemente desconexas, para visualizar relações entre elas e chegar ao autor do crime. Podemos pensar, ainda, na imagem do médico que, em um procedimento similar, registra os sintomas do paciente em um quadro para encontrar a doença (à maneira do Dr. House do seriado televisivo). O que está em jogo em ambas as posturas, cabe notar, é a questão do método e do olhar, que permite ir além das evidências para estabelecer, entre indícios dispersos e aparentemente desconexos, regularidades (pensamos aqui nas noções de dispersão e de regularidade do método arqueológico de Michel Foucault). De maneira análoga, podemos considerar os diferentes fatos heterogêneos que conformam o espaço urbano como “pistas”, como “sintomas” de nossas formas de habitar, que estão dispersos em escalas e instâncias institucionais diferentes e que o corte permite juntar, na tentativa de visualizar relações entre eles e poder interpretar — dado que seu sentido não é evidente.

Dentre as diversas e complexas questões envolvidas na (re)elaboração dessa ferramenta metodológica, um ponto central, em nosso entender, é determinar o estatuto desses fatos que ela permite relacionar, bem como a natureza da unidade que resulta dessas relações. Isso nos remete às observações sobre a questão do olhar na análise da experiência cotidiana que apresentamos a seguir.

 

5. A opacidade do espaço: entre a evidência da imagem e o descentramento do olhar

Não é uma atividade usual dizer: ‘Bom, hoje à noite, eu vou examinar aquele canto do teto’[10]. É a partir dessas palavras de Harvey Sacks que Jean-Paul Thibaud e Nicolas Tixier discutem, no artigo “L’ordinaire du regard” (1998), uma questão central na análise da experiência ordinária, objeto dos estudos sobre as ambiências. Trata-se da dificuldade da descrição da banalidade do espaço urbano, dos lugares comuns da vida de todos os dias – isto é, detalhes que se apresentam como insignificantes e anódinos, mas que são indícios reveladores de formas de sociabilidade que caracterizam a cidade.

De acordo com os autores, essa dificuldade não decorre do fato de esses detalhes não serem concretos ou não estarem expostos à visão, mas do fato de serem, precisamente, visíveis demais, familiares demais (como o “canto do teto” da epígrafe de Sacks), não sendo em virtude disso notados. A questão que se coloca para essa descrição é, portanto, afetar as condições do olhar, de forma a questionar esse efeito de evidência e de naturalidade. Isso leva a uma reflexão sobre o próprio lugar do observador e sobre o papel da memória na prática da observação.

É esse o ponto central que os referidos autores propõem abordar no artigo a partir de uma análise da obra do escritor Georges Perec. Mais do que a imagem, afirmam, é a questão do olhar aquilo que está em jogo nas descrições “perecquianas” do espaço público urbano. Elas produzem um descentramento do eixo do olhar que coloca à prova a evidência do olhar do habitante – desestabilizando, assim, os hábitos perceptivos e o efeito de familiaridade com o mundo.

            Nesse debate sobre a obra de Perec podemos identificar uma postura frente ao registro cotidiano da experiência que propomos neste artigo estender às outras instâncias do urbano e associar ao modelo epistemológico que Carlo Ginzburg chamou de “indiciário”.

 

6. Ginzburg e o “paradigma indiciário”

6.1. A emergência do paradigma

Ginzburg começa seu conhecido ensaio “Sinais. Raízes de um paradigma indiciário” ([1979] 1999) também com uma epígrafe, extraída do Atlas Mnemosyne do historiador da arte Aby Warburg, a saber, God is in the detail. Nela encontramos certa ressonância da citação de Sacks, relacionada à reflexão de Ginzburg sobre um modo de fazer pesquisas caracterizado pelo gosto pelo detalhe revelador, pelo pormenor, pela minúcia. Esse modelo, emergido em finais do século XIX, afetaria diferentes campos disciplinares, desde a historiografia e a história da arte, até a paleontologia ou a psicanálise.

            Um dos acontecimentos que marcaram a emergência desse modelo epistemológico – ou paradigma –, tal como apontado pelo autor, foi a publicação de uma série de artigos sobre a pintura italiana, ocorrida entre 1874 e 1876, na revista Zeitschrift für bildende Kunst [Revista de Artes Visuais]. Os artigos estavam assinados por Ivan Lermolieff e Johannes Schwarze, ambos pseudônimos do italiano Giovanni Morelli, que propôs um novo método de atribuição de quadros antigos.

Para distinguir cópias de originais, dizia Morelli, é preciso não se basear, como normalmente se faz, nas características mais vistosas, portanto mais facilmente imitáveis, dos quadros (como o famoso sorriso de Leonardo, por exemplo). É preciso examinar, pelo contrário, os pormenores mais negligenciáveis e menos influenciados pelas características da escola a que o pintor pertencia, tais como os lóbulos das orelhas, as unhas, as formas dos dedos das mãos e dos pés (cf. GINZBURG, ibid., p. 144).

Esse método, observa Ginzburg, foi por algum tempo muito criticado, julgado mecânico, grosseiramente positivista e caiu em desuso, até ter sido revalorizado pelo historiador da arte Edgar Wind. Wind viu em Morelli um exemplo típico da atitude moderna em relação à obra de arte, que leva a apreciar os pormenores, de preferência à obra em seu conjunto (ibid.). O autor estabeleceu um paralelo entre o gesto de Morelli, o método policial e o da “psicologia moderna”, em referência à psicanálise freudiana. Em relação ao método policial, comenta Wind:

 

Os livros de Morelli ... têm um aspecto bastante insólito se comparados aos de outros historiadores da arte. Eles estão salpicados de ilustrações de dedos e orelhas, cuidadosos registros das minúcias características que traem a presença de um determinado artista, como um criminoso é traído pelas suas impressões digitais... qualquer museu de arte estudado por Morelli adquire imediatamente o aspecto de um museu criminal... (WIND[11] apud GINZBURG, ibid., p. 144)

 

Essa analogia, continua Ginzburg, foi desenvolvida por outros autores, como Enrico Castelnuovo, que aproximou o método indiciário de Morelli daquele atribuído, quase nos mesmos anos, a Sherlock Holmes pelo seu criador, Arthur Conan Doyle: o conhecedor da arte é comparável ao detetive que descobre o autor do crime (do quadro) baseado em indícios imperceptíveis para a maioria (ibid.).

            Quanto ao paralelo com a psicanálise, Wind observa:

 

A alguns dos críticos de Morelli parecia estranho o ditame de que ‘a personalidade deve ser procurada onde o esforço pessoal é menos intenso’. Mas sobre este ponto a psicologia moderna estaria certamente do lado de Morelli: os nossos pequenos gestos inconscientes revelam nosso caráter mais do que qualquer atitude formal, cuidadosamente preparada por nós. (WIND apud GINZBURG, ibid., p. 146)

 

É interessante notar que o próprio Freud era admirador das histórias de Sherlock Holmes e leitor de Morelli (ao que tudo indica na mesma época em que estava estudando os lapsos)[12]. Morelli é citado no ensaio intitulado O Moisés de Michelangelo (1914), em que Freud estabelece uma associação entre o método morelliano e o método psicanalítico:

 

Muito tempo antes que eu pudesse ouvir falar de psicanálise, vim a saber que um especialista de arte russo, Ivan Lermolieff [...], havia provocado uma revolução nas galerias da Europa recolocando em discussão a atribuição de muitos quadros a cada pintor, ensinando a distinguir com segurança entre as imitações e os originais, e construindo novas individualidades artísticas a partir daquelas obras que haviam sido liberadas das suas atribuições anteriores. Ele chegou a esse resultado prescindindo da impressão geral e dos traços fundamentais da pintura, ressaltando, pelo contrário, a importância característica dos detalhes secundários, das particularidades insignificantes, como a conformação das unhas, dos lobos auriculares, da auréola e outros elementos que normalmente passavam desapercebidos e que o copista deixa de imitar, ao passo, porém, que cada artista os executa de um modo que o diferencia. Foi depois muito interessante para mim saber que sob o pseudônimo russo escondia-se /sic./ um médico italiano de nome Morelli [...]. Creio que o seu método está estreitamente aparentado à técnica da psicanálise médica. Esta também tem por hábito penetrar em coisas concretas e ocultas através de elementos pouco notados ou desapercebidos, dos detritos ou ‘refugos’ de nossa observação [...]. (FREUD [1914] apud GINZBURG, ibid., p. 147, grifos nossos)

 

 

A importância da leitura dos ensaios de Morelli para o jovem Freud, ainda longe da psicanálise, é indicada pelo próprio Freud:

 

[...] a proposta de um método interpretativo centrado sobre os resíduos, sobre os dados marginais, considerados reveladores. Desse modo, pormenores normalmente considerados sem importância, ou até triviais, ‘baixos’, forneciam a chave para aceder aos produtos mais elevados do espírito humano... (ibid., p. 149-150, grifos nossos)

 

            Aquilo que une os respectivos métodos de Morelli, Holmes e Freud é o reconhecimento de que pistas às vezes infinitesimais permitem captar uma realidade mais geral e de outra forma inatingível: pistas ou, mais precisamente, sintomas (no caso de Freud), indícios (no caso de Holmes), signos pictóricos (no caso de Morelli) (cf. ibid., p. 150).

A partir do que foi apresentado, formulemos três questões relevantes para nossa discussão.

Primeiramente, é importante destacar que se esse método se caracteriza pelo foco nas minúcias, nos pormenores, nos detalhes, a relevância destes não se define em si, mas na medida em que nos falam de um conjunto, isto é, de uma realidade mais geral – nos referidos exemplos, do autor de um quadro ou de um crime ou, ainda, da estrutura psíquica dos sujeitos. Não existe, portanto, oposição ou dicotomia entre particular e geral, entre os níveis micro e macro de análise.

            Uma segunda questão diz respeito à natureza dessas pistas e ao trabalho de interpretação envolvido. Voltamos às observações feitas sobre o olhar e o método e a questão da evidência: essas pistas são pouco notadas ou imperceptíveis, fogem à observação, passam desapercebidas, apesar de serem “concretas” (materiais, diremos nós) e de estarem à vista. O problema da visão reside no olhar do leigo. Isto é, é necessário um dispositivo de observação — um método — que permita afetar esse olhar para ver e, desse modo, interpretar.

            Em terceiro lugar, esse método interpretativo está fundamentado na possibilidade de estabelecer relações – analogias, paralelos, oposições... – entre pistas aparentemente desconexas. É esse o ponto central nos exemplos da perspicácia de Sherlock Holmes, como vemos nas seguintes passagens do conto “A Caixa de Papelão”[13]. O relato começa com a história de uma moça que recebe duas orelhas cortadas através do correio, em uma cena observada atentamente por Holmes, como comenta Watson:

 

Holmes se interrompeu e eu [Watson] fiquei surpreso, olhando-o, ao ver que ele fixava com singular atenção o perfil da senhorita. Por um segundo foi possível ler no seu rosto ansioso surpresa e satisfação ao mesmo tempo, ainda que, quando ela se virou para descobrir o motivo do seu silêncio, Holmes tivesse se tornado impassível como sempre. (CONAN DOYLE apud GINZBURG, ibidem, p. 146, grifos nossos).

 

Notemos que o que forneceu a Holmes a chave para resolver o caso foi não apenas a observação minuciosa das características anatômicas em si das orelhas recebidas pelo correio, mas sua capacidade de estabelecer uma analogia com as orelhas da moça que as recebera. Holmes conclui, graças a essa analogia, que a vítima era uma parente próxima desta:

 

Na sua qualidade de médico o senhor não ignorará, Watson, que não existe parte do corpo humano que ofereça maiores variações do que uma orelha. Cada orelha possui características propriamente suas e difere de todas as outras. Na Revista Antropológica do ano passado o senhor encontrará sobre este assunto duas breves monografias de minha lavra. Portanto, examinei as orelhas contidas na caixa com olhos de especialista e observei acuradamente as suas características anatômicas. Imagine então a minha surpresa quando, pousando os olhos sobre a senhorita Cushing, notei que a sua orelha correspondia exatamente à orelha feminina que havia examinado pouco antes. Não era possível pensar numa coincidência. Nas duas existia o mesmo encurtamento da aba, a mesma ampla curvatura do lóbulo superior, a mesma circunvolução da cartilagem interna. Em todos os pontos essenciais tratava-se da mesma orelha. Naturalmente percebi de imediato a enorme importância de uma tal observação. Era evidente que a vítima devia ser uma parente consangüínea, provavelmente muito próxima, da senhorita... (CONAN DOYLE, ibid. p. 937-938, apud GINZBURG, ibid., grifos nossos)

 

6.2. As raízes históricas do paradigma

Ginzburg remete o modelo indiciário àquele da semiótica médica, enquanto disciplina que permite diagnosticar doenças inacessíveis à observação direta com base em sintomas superficiais, às vezes irrelevantes aos olhos do leigo. O autor destaca a coincidência biográfica de que tanto Morelli, como Conan Doyle e Freud eram médicos de formação. Mas as raízes desse modelo eram muito antigas, diz o autor, que o remete à imagem do caçador neolítico, caracterizando-o como o gesto talvez mais antigo da história intelectual do gênero humano.

O homem, diz Ginzburg, aprendeu a farejar, a interpretar, a classificar pistas infinitesimais como fios de barba, pegadas na lama, ramos quebrados, tufos de pelo ou odores, para reconstruir formas e movimentos das presas invisíveis, fazendo um relato, uma narrativa, a partir desses dados:

 

O caçador teria sido o primeiro a ‘narrar uma história’ porque era o único capaz de ler, nas pistas mudas (se não imperceptíveis) deixadas pela presa, uma série coerente de eventos. (ibid., p. 152, grifos nossos)

 

 

Cabe observar que o que está em jogo nessa observação é um trabalho de interpretação – de leitura – baseado na possibilidade de relacionar pistas para estabelecer uma série coerente de eventos que não são diretamente experimentáveis pelo observador. Em outras palavras, trata-se da capacidade de passar do conhecido ao desconhecido, na base de indícios: “quando as causas não são reproduzíveis”, observa Ginzburg, “só resta inferi-las a partir dos efeitos” (ibid., p. 153).

            O autor faz um longo percorrido histórico para apontar exemplos dessa forma de saber indiciário presente nos âmbitos mais heterogêneos. Ele menciona desde as práticas dos adivinhos babilônicos (empenhados em ler as mensagens escritas pelos deuses nas pedras e nos céus), os tratados de grafologia do Renascimento (que postularam o paralelo entre os “caracteres” da letra e os “caracteres” da personalidade de um escritor), até algumas formas ligadas à prática cotidiana (como o reconhecimento da vinda de um temporal pela repentina mudança de vento) (ibid., p. 167).

Dentre os exemplos abordados, gostaríamos de deter-nos em uma antiga fábula oriental que, em nosso entender, constitui uma alegoria muito ilustrativa desse modelo de conhecimento.

Trata-se da história de três irmãos que se encontram com um homem que perdeu um camelo (em algumas versões, um cavalo) e que são capazes de descrever o animal, mesmo sem tê-lo visto (“é branco, cego de um olho, tem dois odres nas costas, um cheio de vinho, outro cheio de óleo”). Os irmãos são então acusados de furto e submetidos a julgamento, ocasião que lhes serve para demonstrar como, a partir de indícios mínimos, puderam reconstruir o aspecto desse animal que nunca viram (ibid., 151-152).

Essa fábula, comenta Ginzburg, teve muito sucesso em Ocidente, tendo sido reeditada e retraduzida várias vezes nas principais línguas europeias. A fábula inspirou a versão reelaborada por Voltaire, no terceiro livro de Zadig (1747), com base em uma versão do século XVI. O camelo é transformado por Voltaire em uma cadela e um cavalo. Acusado de furto, Zadig justificava-se perante os juízes reconstituindo em voz alta o trabalho mental que lhe permitira traçar o retrato dos animais que nunca tinha visto:

 

[...] vi na areia as pegadas de um animal. Descobri fàcilmente que eram as de um pequeno cão. Sulcos leves e longos, impressos nos montículos de areia, por entre os traços das patas, revelaram-me que se tratava de uma cadela cujas têtas estavam pendentes, e que portanto não fazia muito que dera cria.[14]

 

Nessas linhas, e nas que se seguiam, aponta Ginzburg, estava o embrião do romance policial do século XIX; nelas se inspiraram Edgar Allan Poe, Émile Gaboriau (para criar seu personagem “Monsieur Lecoq”[15]) e Arthur Conan Doyle. O autor ressalta, entretanto, que Zadig se tornou uma referência também nas discussões sobre o método científico, não apenas para a ficção literária. Georges Cuvier, o naturalista que em inícios do século XIX formulara as leis da anatomia comparada que possibilitaram as reconstruções paleontológicas, fazia um paralelo entre o método da paleontologia e aquele do personagem de Voltaire:

 

...hoje, quem quer que veja unicamente a pista de um pé bifurcado pode concluir que o animal que deixou tal pegada ruminava, e essa conclusão é tão certeira como qualquer outra em física e moral. Essa única pista dá, então, àquele que a observa, informações sobre a forma dos dentes, a forma das mandíbulas, a forma das vértebras e a forma de todos os ossos das patas, das coxas, dos ombros e da pelve do animal que acabou de passar: é uma marca mais certa que todas as de Zadig. (CUVIER[16] apud GINZBURG, ibid., p. 169, tradução e grifos nossos).

 

O nome de Zadig tornara-se tão emblemático, comenta Ginzburg, que Thomas Huxley, em 1881, definiu o procedimento que levara às descobertas de Darwin como “método de Zadig” – isto é, como a capacidade de fazer “profecias retrospectivas” enquanto uma função da ciência. O ponto central nesse modelo de ciência é a capacidade de “apreender aquilo que escapa à esfera do conhecimento imediato”, de “ver aquilo que é invisível ao sentido natural da visão”:

 

[...] mesmo no sentido restrito de ‘adivinhação’, é óbvio que a essência da operação profética não reside em sua relação retrospectiva ou prospectiva no curso do tempo, mas no fato de que é a apreensão daquilo que se encontra fora da esfera do conhecimento imediato: a visão daquilo que é invisível ao sentido natural da visão. (HUXLEY[17] apud GINZBURG, ibid., p. 271, grifos e tradução nossos).

 

 

6.3. O paradigma indiciário e a “crise da razão clássica”

            Crisi della ragione é o título do livro no qual o ensaio de Ginzburg foi publicado pela primeira vez, em 1979. O trabalho reuniu especialistas oriundos de diversas disciplinas para delinear o quadro de novos movimentos do pensamento que colocaram em questão a racionalidade clássica e que, nas palavras de Anna Maramotti, fizeram “as mais audazes conexões entre as formas do saber e as práticas da vida” (MARAMOTTI, 1981, p. 743, tradução nossa). É em meio a tal debate que Ginzburg recupera o processo cognoscitivo indiciário. No vasto repertório de exemplos e autores que sua grande erudição nos oferece, o autor identifica a existência de uma matriz comum de pensamento, de um mesmo modelo de inteligibilidade do mundo comum às mais heterogêneas práticas científicas, artísticas, técnicas e cotidianas que ele descreve (cf. ibid.).

            O que sustentamos neste artigo é que as pesquisas sobre as ambiências urbanas se inscrevem nessa mesma matriz de pensamento descrita por Ginzburg – isto é, elas estabelecem um modelo de inteligibilidade do espaço que podemos caracterizar como “indiciário”.

            Restaria ainda perguntar: qual é a relevância desse modelo para compreender o objeto das pesquisas sobre as ambiências? Quais são suas consequências para conceber a natureza interdisciplinar de tais pesquisas? Até que ponto o método destas corresponde ao “método de Zadig”? Em que medida uma tecnologia linguística, como o corte, representa um suporte metodológico para as mesmas?

 

7. Unidade e dispersão do espaço urbano: a dimensão simbólica, histórica e política da experiência sensível

A constituição de um modelo de conhecimento centrado nos detalhes, como afirmáramos, não leva a perder de vista o conjunto, isto é, a realidade mais geral que esses detalhes revelam. Esse modelo se fundamenta no reconhecimento de que a realidade é opaca, inacessível diretamente e de que só temos “pistas” que nos permitem “decifrá-la”. Isso nos leva a definir a relação dos sujeitos com o mundo como uma relação simbólica, de interpretação.

Podemos identificar nesse gesto uma postura comum a diversas disciplinas científicas instituídas ao longo do século XX sob o signo do anti-positivismo. Tal postura pode ser entendida como um “antinaturalismo”. Isto é, como o questionamento, em relação a seus respectivos objetos (o sujeito, a sociedade, o espaço, a linguagem...), das evidências da realidade humana como sendo estritamente biossocial, pelo reconhecimento do papel ativo que o simbólico tem em sua constituição. Reconhecer que os princípios que regem os fenômenos humanos não são naturais é o primeiro passo para instituir uma abordagem histórica de tais fenômenos. As leis naturais são necessárias e imutáveis, independentes da vontade e das ações dos sujeitos, enquanto que a história é contingente, é precisamente aquilo que muda, ou que pode mudar (cf. RODRÍGUEZ, 1998; RODRÍGUEZ-ALCALÁ, 2005).

Dessa perspectiva, assumir uma concepção histórica do espaço urbano significa, portanto, reconhecer que o espaço de vida humano não é dado naturalmente, mas produzido simbolicamente pelos sujeitos através de suas práticas, inscritas em condições econômicas, políticas e culturais particulares.

Entretanto, se os sujeitos produzem o espaço, o processo não lhes é transparente – parafraseamos aqui a conhecida afirmação de Marx sobre a história. A história, por sua vez, não se desenvolve no vazio, mas sim em um espaço, que é material – o que confere ao espaço, à sua própria configuração física, construída, um estatuto específico para a compreensão dos processos históricos, sociais, subjetivos.

Em outras palavras, os processos históricos de espacialização são opacos e não temos um acesso direto a eles, mas apenas a indícios que estão dispersos nas diferentes instâncias da produção da vida social – da experiência ordinária às práticas políticas, administrativas, científicas, etc. A cidade pode ser vista, nesse sentido, como uma dispersão de objetos, sujeitos e acontecimentos que, através das relações que estabelecem entre si, produzem uma unidade (heterogênea, contraditória). A compreensão dessa unidade reside na possibilidade de tornar visíveis essas relações, o que nos faz retornar à necessidade da construção de dispositivos de observação, de leitura, de interpretação.

            Nesse trabalho de interpretação é fundamental levar em conta a relação constitutiva entre o espaço e o social, concebida em termos políticos. Isto é, considerar que as formas de espacialidade são indissociáveis das formas de sociabilidade, que espaço e sociedade se con-formam em/por um mesmo processo histórico. Uma vez que as sociedades estão caracterizadas por relações de poder, hierarquizadas, antagônicas, contraditórias, os diferentes e heterogêneos fatos espaciais/sociais devem ser compreendidos como indícios de processos políticos, marcados pela tensão e pela disputa por um espaço comum, mas dividido desigualmente.

Podemos lembrar, nesse ponto, o “pedaço de teto” da citação de Sacks, como metáfora de elementos espaciais cuja observação é relevante na medida em que são indícios de nossos modos de viver-juntos, na medida em que revelam “a existência de uma base comum ligando-nos uns aos outros” (THIBAUD, 2002, p. 7, tradução nossa). Podemos pensar também nos sentidos da construção de uma calçada ou uma praça, por um lado, ou de um muro, por outro. Essa é uma questão ao mesmo tempo técnica/tecnológica (construtiva), administrativa (de regulação da circulação na cidade) e política, que afeta as (e é afetada pelas) formas de sociabilidade na cidade (uma praça ou uma calçada reúnem, permitem o encontro; um muro divide, separa).

Esse caráter indissociável dos fenômenos técnicos e sociais, dos dados “quantitativos” e “qualitativos” — pelo reconhecimento do político que os une — permite pensar em uma articulação entre as abordagens dos mesmos, em termos de escalas, disciplinas e instituições.

No que diz respeito ao objeto de nossa pesquisa, podemos caracterizar a coleta de lixo na cidade de São Paulo como um problema, ao mesmo tempo e indissociavelmente: a) técnico/tecnológico, dos recursos e estratégias para a coleta e processamento dos detritos; b) estético e sensível (sensorial), que afeta as práticas cotidianas, em escala “micro”, dos moradores; c) econômico, que envolve os custos administrativos do processo de coleta, por sua vez fonte de ingressos para as pessoas que se dedicam ao trabalho de reciclagem; d) ecológico “macro”, de preservação do meio ambiente... e assim por diante.

Compreender como esses diferentes aspectos nos falam de formas políticas de sociabilidade, para subsidiar políticas públicas participativas, democráticas, é uma tarefa complexa para a qual é preciso criar um espaço de escuta das diferentes instituições e dos diferentes sujeitos envolvidos – sejam cientistas, administradores, técnicos ou moradores. O corte, associado ao dispositivo da “mesa longa”, pode contribuir para criar esse espaço de escuta. Este deve ser concebido, entretanto, não como um espaço homogêneo de consenso, mas como um espaço de diferença, de desentendimento, de condução do litígio e das contradições que definem a natureza política das relações sociais na cidade (cf. ORLANDI e RODRÍGUEZ-ALCALÁ, 2004; RANCIÈRE, 1995).

 

8. O corte como instrumento de escrita do espaço: da representação da imagem ao registro de um olhar

Quando o sábio aponta para a lua, o tolo olha para o dedo

Provérbio chinês

 

            No percurso feito até aqui nos debruçamos sobre o valor heurístico do gesto teórico da observação de detalhes, para a apreensão da unidade do espaço, e sobre a adequação metodológica do corte, como instrumento que permite reuni-los. Pelo seu caráter esquemático, nos diz Frédéric Pousin (2011), o corte reduz uma grande quantidade de informações para revelar suas articulações e nos fazer ver uma estrutura.

Devemos perguntar-nos aqui: de que natureza é essa estrutura?

O próprio Pousin nos dá uma pista nessa direção quando se refere ao valor teórico do corte como dispositivo de visualização. De acordo com o autor, o corte propõe a imagem de uma estrutura que somente é visível graças ao esquema que ele desenha; ele revela dimensões que somente são visíveis através de uma forma de interpretação (cf. ibid., p. 160).

            Esse valor teórico do dispositivo toca uma questão fundamental, que limita o alcance das metáforas trazidas por Ginzburg. À diferença do autor de um quadro, de um crime ou do animal de Zadig, que existem além e aos quais se pode chegar através das pistas deixadas por eles, a realidade – a estrutura – que o corte permite visualizar não é um objeto real, uma “essência” que estaria “escondida” por trás da empiria à espera de ser “desvendada”, mas um objeto teórico, construído por um olhar, por um ponto de vista.

            Essa é uma distinção indispensável para evitar uma concepção substancialista de estrutura que prevalece em algumas disciplinas no campo das ciências humanas, como resultado da transferência de métodos da linguística estrutural elaborados a partir da obra fundadora de Ferdinand de Saussure[18] (cf. SÉRIOT, 2016). De acordo com Patrick Sériot:

 

A lenta ruptura, a passagem difícil e não pensada como tal do pensamento platônico dos arquétipos, dos eidos, escondido, revelado em seus avatares terrestres e sensíveis à ideia não substancialista de estrutura, é um dos momentos mais apaixonantes da história intelectual do século XX. No entanto, para levá-lo em consideração, é necessário fazer uma distinção radical entre objeto real e objeto de conhecimento. (ibid., p. 430-1, grifos do autor)

 

Um objeto de conhecimento não existe empiricamente antes de sua apropriação por uma teoria, “como o mineral existe no subsolo, devendo ser extraído e isolado da ganga de terra que o rodeia” (ibid., 431). É o ponto de vista que cria o objeto, diz Saussure. Os elementos de uma estrutura não estão já lá, no real, como “elementos de substância”, do mesmo modo que “o senhor Durand tem um chapéu e um par de luvas”, diz Sériot, citando Tullio de Mauro (cf. SÉRIOT, ibid., 437). Esses elementos só existem no interior de suas relações (ibid., 441).

Com essa definição determinadamente teórica do objeto da ciência, nos diz Sériot, o fundador da linguística moderna opera uma grande revolução epistemológica, que foi mal compreendida por muitos de seus seguidores. Sériot analisa em particular os linguistas russos do Círculo de Praga (como Roman Jakobson e Nicolai Trubetzkoy). Mas suas observações são válidas para compreender os desenvolvimentos da noção de estrutura nos diversos domínios das ciências humanas que receberam o impacto da obra de Saussure (como a antropologia, o materialismo histórico, a psicanálise, a geografia ou os estudos urbanos, por mencionar alguns).

A crítica de Sériot reside no frequente equívoco de identificar estrutura e totalidade[19]. De acordo com o autor, a teoria saussuriana do ponto de vista nos faz abandonar toda pesquisa ontológica, de busca de uma estrutura imanente à ordem das coisas, de uma “totalidade” que espera ser descoberta: uma estrutura pertence somente ao objeto construído (ibid., p. 438). Essa concepção parte do reconhecimento de que a realidade empírica é muito complexa e multiforme e não pode ser conhecida diretamente e em sua totalidade (ibid.). Como observa Émile Benveniste a respeito do objeto da linguística:

 

Acreditamos poder chegar diretamente ao fato da língua como uma realidade objetiva. Na verdade, nós o compreendemos somente segundo um certo ponto de vista, que é preciso primeiramente definir. Paremos de acreditar que se apreende, da língua, um objeto simples, existente por si mesmo e suscetível de uma apreensão total. (BENVENISTE, 1966, p. 38; SÉRIOT, ibid., p. 438).

 

Fazemos nossas as palavras do autor em relação à língua para afirmar que ao abordar o espaço, uma ambiência, não estamos chegando diretamente a uma realidade empírica, a um objeto simples, suscetível de uma apreensão total; estamos construindo um objeto teórico, a partir de uma apreensão sempre indireta e fragmentária do objeto real, em si mesmo inatingível.

            A partir dessas considerações, sustentamos a necessidade de introduzir uma distinção radical, a saber: a distinção entre todo e totalidade. Se uma ambiência é um “todo contextual”, unificado e indivisível, que não se reduz à soma dos elementos discretos que a compõem (cf. THIBAUD, 2004), esse “todo” (unidade construída) não deve ser confundido com uma “totalidade” (unidade imanente). Tal distinção, em nosso entender, representa um divisor de águas na definição do estatuto teórico de uma ambiência enquanto unidade e marca uma postura frente à nossa possibilidade (às nossas limitações) de conhecimento do mundo, de maneira geral.

            Abandonar uma visão totalizante do objeto leva-nos a questionar toda ideia de “completude” em relação à teoria, ao método e aos instrumentos técnicos nas pesquisas sobre as ambiências.

O caráter interdisciplinar dessas pesquisas, por um lado, não deve ser pensado através de uma ideia cumulativa, de complementaridade ou de síntese possíveis entre diferentes perspectivas teóricas, que permitiria uma abordagem “mais exaustiva” ou “completa” do objeto.

Quanto à exaustividade de uma ferramenta técnica como o corte urbano, por outro lado, a operação necessariamente seletiva que subjaz à sua construção não corresponde a uma limitação do método, mas à própria natureza do objeto. Isto é, à sua “incompletude” (conforme caracterização clássica que Eni Orlandi propõe do objeto da linguística), ao caráter necessariamente fragmentário do olhar que o constrói. É em relação a esse olhar, a esse ponto de vista – a ser previamente definido – que a exaustividade do corte deve ser concebida.

Afirmamos, assim, que o corte não representa um espaço (um objeto real), nem mesmo um fragmento desse espaço (real): ele registra um olhar sobre ele (um objeto teórico). Reivindicamos com isso a postura do tolo do provérbio chinês de nossa epígrafe (citado por Pêcheux [1975] 1988). Sustentamos que se o espaço é a lua, o corte é o dedo (o registro do dedo) – e que tudo o que nos resta é agir como o tolo (olhar para o dedo), pois a lua (o real do objeto) está inextricavelmente fora de nosso alcance.

 

9. Considerações finais: as tecnologias linguísticas e a fabricação de um olhar compartilhado sobre a cidade

            Jean-Paul Thibaud propõe considerar as ambiências como terreno comum da experiência ordinária. O autor aponta dois sentidos dessa expressão, que considera duas faces de uma mesma moeda. O primeiro remete à possibilidade da partilha de uma ambiência enquanto fenômeno experimentado através dos sentidos (ambiências experimentadas); o segundo relaciona-se à possibilidade de compartilhar concepções sobre a ideia de ambiência e testar em que medida é possível estar de acordo a respeito dessa noção (ambiências refletidas) (cf. THIBAUD, 2013, p. 7; 2014, p. 282-283).

            Tal possibilidade de passagem do campo da partilha da experiência para o campo da partilha de saberes requer a elaboração de ferramentas conceituais e metodológicas para apreender esse objeto heterodoxo que é uma ambiência. Essa elaboração exige, por sua vez, uma definição clara daquilo que está em jogo nessa noção, em termos teóricos e epistemológicos. Caso contrário, a noção de ambiência pode vir a diluir-se na grande diversidade de perspectivas que partilham esse campo de pesquisa e perder, assim, sua especificidade e sua força enquanto observatório particular do espaço sensível.

Uma ambiência é, como afirmáramos, uma unidade caracterizada por uma relação particular entre “as partes” e “o todo” – ou, nas palavras de Thibaud, “uma unidade que dá sentido ao todo e às suas partes” (THIBAUD, 2013, p. 205, tradução e grifos nossos). Consequentemente, podemos dizer que se o método das pesquisas sobre as ambiências está fundado sobre a observação das “partes” (as minúcias da experiência do dia-a-dia, os microfenômenos do cotidiano), seu objeto é “o todo” (a unidade dos sentidos) – entendido como construto teórico, fabricado por um olhar.

É esse o modelo cognoscitivo que podemos identificar no amplo e heterogêneo leque de exemplos apresentados por Ginzburg, no raciocínio arqueológico de Foucault, na abordagem psicanalítica de Freud ou no método estrutural de Saussure. Ele repousa sobre uma operação intelectual “associativa” que consiste em descrever relações (de analogia, oposição, simultaneidade, determinações recíprocas...), entre uma dispersão de elementos visíveis, para compreender um funcionamento e identificar uma ordem (do discurso, da língua, do sujeito, da sociedade, do espaço...), que não é diretamente apreensível.

            É como ferramenta para auxiliar nessa operação que podemos conceber o corte e definir sua consistência metodológica para a apreensão das ambiências urbanas. Enquanto tecnologia de escrita, o corte registra um olhar sobre a cidade, que relaciona elementos dispersos e permite uma narrativa. Ao registrar esse olhar, ele permite retornar sobre ele e compartilhá-lo, permitindo visualizar novas relações, formular novas narrativas. O corte, reforçado pela experiência da “mesa longa”, torna-se, assim, um instrumento aberto de co-notação (cf. AMPHOUX, 2011) – uma característica que evoca o Atlas Mnemosyne de Warburg, mencionado por Ginzburg (cf. TIXIER, 2016). Com isso, ele pode ser um instrumento para desestabilizar a evidência de nosso olhar sobre o espaço, reconhecer seu caráter coletivo e, assim, fabricar um olhar compartilhado sobre nossa experiência sensível na cidade.

 

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Data de Recebimento: 22/04/2020
Data de Aprovação: 13/10/2020

 

 

 

 

[1] A definição da relação entre a significação e a forma linguística definirá o estatuto da linguagem na dinâmica das ambiências. Esse é um ponto em que a fenomenologia e a Análise do Discurso divergem. Conforme discutimos em outros trabalhos, a fenomenologia assume uma concepção dualista frente a essa relação, ao considerar que a significação – indissociável da percepção – é anterior, portanto, separada da linguagem; consequentemente, esta não interviria na constituição dos processos perceptivos. A Análise do Discurso, de filiação materialista, não separa forma e significação, uma vez que concebe a forma linguística como a matéria sensível, como o suporte, como o corpo da significação. Se não há percepção sem significação, portanto, tampouco há significação sem linguagem, o que faz da linguagem uma condição de possibilidade da percepção sensível – e do universo da experiência humana, de modo geral (cf. RODRÍGUEZ-ALCALÁ, 2013a; 2013b; 2014).

[2] Tais métodos vêm sendo desenvolvidos desde os anos 1970 por pesquisadores vinculados ao Centro de Pesquisas sobre o Espaço Sonoro e o Ambiente Urbano (CRESSON), da Escola Nacional Superior de Arquitetura de Grenoble (ENSAG), França. Para uma descrição desses métodos, cf. AUGOYARD, 1979; GROSJEAN e THIBAUD, 2001; THIBAUD, 2003; THIBAUD e SIRET, 2012; TIXIER, 2016; TIXIER e DOUSSON, 2016; AMPHOUX, 2011; AMPHOUX e TIXIER, 2017; POUSIN, 2011, 2012, 2014; POUSIN et al. 2016, entre outros.

[3] Outros trabalhos inscritos, como o nosso, no domínio da Análise do Discurso vêm explorando nos últimos anos as reflexões de Ginzburg sobre o “paradigma indiciário”. Cf. SOUZA, GARCIA e FARIA, 2014; TFOUNI, DOS SANTOS, BARIJOTTO e SILVA, 2016; TFOUNI, PEREIRA e MILANEZ (orgs.), 2018, entre outros.

[4] Projeto PIR Ville et Environnement – CNRS – PUCA “L’ambiance est dans l’air: la dimension atmosphérique des ambiances architecturales et urbaines dans les approches environnementalistes.” (2009-2010), coordenado por Nicolas Tixier (ver TIXIER et al., 2011). Participaram do projeto instituições brasileiras e europeias: o Laboratório de Estudos Urbanos (LABEURB/NUDECRI), da UNICAMP; a Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental do Estado de São Paulo (CETESB); o Laboratório CRESSON/ENSAG; o Serviço Ambiental e Serviço Prospectivo Urbano do município de Grenoble, França; o Laboratório de Ciências Sociais (PACTE), da Universidade Joseph Fourier, Grenoble, França; o Laboratório de Dinâmicas Sociais e Recomposição dos Espaços (LADYSS), da Universidade Paris I, França, e a Universidade G. d’Annunzio de Pescara, Itália.

[5] http://www.hypergeo.eu/spip.php?article60

[6] Para uma apresentação detalhada da história desse instrumento metodológico, suas origens, primeiras aplicações, transformações ao longo do tempo e usos atuais, cf. TIXIER, 2016, 2017; TIXIER et al. 2011, 2016; POUSIN, 2011, 2012, 2014; POUSIN et al. 2016.

[7] Para uma descrição mais detalhada da pesquisa de campo e do processo de elaboração dos cortes, cf. OKAMURA, 2011; TIXIER, MELEMIS e BRAYER, 2011; MASSON e BRAYER, 2010; TIXIER, 2016.

[8] Para uma descrição detalhada do dispositivo da “mesa longa”, cf. AMPHOUX, 2011; POUSIN, 2014; TIXIER, 2016; TIXIER e DOUSSON, 2016.

[9] Essas são questões já discutidas por outros autores, como OKAMURA, 2011; TIXIER, MELEMIS e BRAYER, 2011; MASSON e BRAYER, 2010; AMPHOUX, 2011; TIXIER, 2016.

[10] No original: It’s not a usual thing to do, to say “Well, this evening I’m going to examine that corner of the ceiling”. Extraído de: SACKS, Harvey, “Lecture 1. Doing ‘being ordinary’”, In: Lectures on conversation, Vol. II, Blackwell Publishers, Oxford, 1995, p. 217). Disponível em:

https://archive.org/details/HarveySacksLecturesOnConversationVolumesIIITheEstateOfHarveySacks1995/page/n3. Acesso em 04/02/2019.

[11] Edgar Wind: “Some points of contact between history and natural science”. In: SAXL, Fritz; PANOFSKY, Erwin; WIND, Edgar et al. Philosophy and History. Essays Presented to Ernst Cassirer. London Oxford University Press, 1936, p. 255-264.

[12] Ginzburg lembra que o próprio Freud confessou a um paciente (o homem dos lobos) seu interesse pelas histórias de Sherlock Holmes.

[13] Tradução de: The Cardboard Box. In: CONAN DOYLE, Arthur. 1892. The complete Sherlock Holmes short stories. London, 1976, p. 932.

[14] “Zadig ou o Destino. Uma História Oriental”. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000072.pdf. Acesso em 12 de junho de 2020. Tradução de: Voltaire, “Zadig ou la destinée”. In: Romans et contes, a cargo de R. Pomeau, Paris, 1966, p. 36.

[15] GABORIAU, Émile, Monsieur Lecoq, I, L’enquête, Paris, 1877.

[16] CUVIER, Georges. Recherches sur les ossements fossiles, vol. I, Paris, 1834, p. 185.

[17] HUXLEY, Thomas, “On the Method of Zadig: retrospective prophecy as a function of science”. In: Science and Culture, London, 1881, p. 128-148.

[18] Com seu Curso de linguística geral, obra póstuma escrita a partir das anotações de seus alunos e publicada em 1916, Saussure desenhou os contornos da linguística moderna, que passaria a ser considerada a “ciência piloto das ciências humanas”.

[19] Podemos mencionar, como exemplo, o trabalho do geógrafo brasileiro Milton Santos (cf. seu livro Da Totalidade ao Lugar [2005] 2008. São Paulo: Edusp).