Maldonado


Vinícius Brito[1]

 

O corpo de Salvador Maldonado ficou desaparecido por dois meses, depois de o jovem de 28 anos ter participado de um protesto em defesa da comunidade mapuche Pu Lof em Resistência, na comuna rural de Cushamen, a 1º de agosto de 2017. No dia 17 de outubro daquele ano, porém, o ativista foi encontrado sem vida no rio Chubut, próximo ao local onde a polícia nacional (“gendarmería”) havia repreendido, de forma truculenta, o ato mapuche, em agosto. A partir daí, o debate público, as organizações sociais e a família de Maldonado cobraram investigação do governo nesse caso, que mostra luzes/sombras do poder, frente aos direitos humanos (BARBUTO, 2017). Sustentada por peritos, a versão oficial para a morte do ativista é de afogamento, negando, portanto, a repressão violenta dos policiais e a responsabilidade do Estado.

O desaparecimento e a morte de Maldonado ressoaram em diversas mobilizações sociais no segundo semestre de 2017 na Argentina, viabilizando, entre outros, o ativismo artístico (CAPASSO, BUGNONE, 2019). Ao mesmo tempo, a “inscrição” do militante em fotografias/cartazes de  movimentos sociais no espaço urbano marca, segundo Catela (2019), o cenário violento da relação entre Estado e povos originários, como os mapuches, e, também, remete aos regimes autoritários, na história recente da América Latina e, em especial, a da Argentina.

Há três anos da desaparição/morte de Maldonado, inicio esta série de foto-colagens com a Imagem 1, sobre cartazes afixados nas paredes de Buenos Aires, capital argentina. Nela, vemos fragmentos de dois anúncios, parcialmente rasgados, nos quais lemos “aparición con vida ya de Santiago Maldonado” e “el gobierno y el Estado son responsables”. Em ambos, reproduz-se, em desdobramento, uma fotografia de um cartaz de manifestação pela vida do mapuche (no canto superior, à direita) e uma imagem contrastada dele (no canto inferior, à esquerda). A esta foto-colagem chamo, a princípio, de “abstrata”, porque mostra esse funcionamento de desdobramento do cartaz, que remete a outros cartazes/dizeres, dentro de certa memória do ativismo latino-americano.

Nas Imagens 2, 3, 4 e 5 seguintes — que nomeio de foto-colagem “empíricas”, ou seja, fotografias que sofreram processo de colagem digital, para além do recorte técnico, e imprescindível, do clique no espaço urbano —, observamos outras partes de cartazes, cujo plano se centra em Maldonado (e na cobrança por sua aparição, pelo seu corpo em vida), em um processo contínuo de verbal e não verbal (ORLANDI, 1995). Nessas imagens, podemos ler desde o anúncio para o “Festival Donde Está Santiago Maldonado” até pedidos de “fuera Bullrich” (Patricia Bullrich, ministra de Segurança do governo Mauricio Macri naquele momento), passando por um adesivo “contra toda autoridad” e um chamado à manifestação na Plaza de Mayo, na principal região político-administrativa do país e onde há “11 años marchamos de Congreso a Pza de Mayo”.

Na passagem da imagem inaugural (foto-colagem “abstrata”) desta série às imagens seguintes (“empíricas”, edição digital), que, juntas, compõem o trabalho Maldonado, penso o processo de colagem (virtual) na cidade, pelo funcionamento discursivo do cartaz no urbano, no digital, no urbano-digital. A colagem, enquanto arte política na cidade, consegue fixar sentidos (nem sempre os “oficiais”, os “bem-ditos”) na cidade e, ao mesmo tempo, consegue transpor esses sentidos, requerendo o corpo de um desaparecido (corpo inscrito de violência, conforme Catela, 2019) pela corporificação (materialização) do/no urbano. Espaço urbano, sítio de significação (ORLANDI, 2001, 2004).

Em afiches publicitários (a foto que serviu de base para a Imagem 3, por exemplo, registra um afiche publicitário, dos muitos que estão espalhados nas ruas de Buenos Aires), em janelas, em portas, em viadutos, os cartazes sobre Maldonado ganharam vida, em determinada situação. Nesta série, que reconstruo depois de deixar o arquivo (fotografias de espaços e cartazes-em-espaços em setembro de 2017, em Buenos Aires) armazenado em tecnologia de “nuvem”, jogo luz à ausência-presença da cidade (e cidadãos), lugar atravessado pela potência e deterioração do tempo e, concomitantemente, pela de interpret-ação do sujeito, a romper o discurso oficial/oficioso e a manifestar outros sentidos/colagens possíveis.

Categoria: Foto-colagem

Técnicas: Fotografia Digital e Foto-colagem digital

Foto-colagens

Imagem 1

Imagem 2

Imagem 3

Imagem 4

 

Imagem 5

Referências

BARBUTO, Valeria. Derechos humanos y democracia en Argentina: desafíos de una agenda de futuro. Salud Colect, outubro-dezembro de 2017.

CAPASSO, Verónica Cecilia; BUGNONE, Ana Liza. Activismo artístico y memoria: el caso de la desaparición de Santiago Maldonado. Cuadernos de Música, Artes Visuales y Artes Escénicas, v. 14, n. 2, 2019.

CATELA, Ludmila Da Silva. Mirar, desaparecer, morir. Reflexiones en torno al uso de la fotografía y los cuerpos como espacios de inscripción de la violencia. Clepsidra. Revista Interdisciplinaria de Estudios sobre Memoria, v. 6, n. 11, março de 2019, pp 36-51.

ORLANDI, Eni Puccinelli (Org.). Cidade atravessada: os sentidos públicos no espaço urbano. Campinas: Pontes, 2001.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Cidade dos sentidos. Campinas: Pontes Editores, 2004.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Efeitos do verbal sobre o não-verbal. RUA, v. 1, n. 1, p. 35-47, 10 jun. 2005.

 

[1] Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Mestre em Divulgação Científica e Cultural pela Unicamp. Jornalista pela Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: viniciusdebrito94@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5567-6284.




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