Introdução
Ao longo de todo o século XX, diversos campos do conhecimento se apropriaram do conceito de paisagem urbana para dar conta de abordagens e objetos diferentes. Notadamente podem ser citados os geógrafos, os arquitetos paisagistas e os urbanistas. A este grupo se juntaram, mais recentemente, os turismólogos, os patrimonialistas e os sociólogos.
A expressão “paisagem urbana” aparece na Inglaterra e na França, no final do século XIX, dentro do campo da literatura e da crítica de arte. De forma mais operativa, a expressão “townscape” aparece na Inglaterra como um campo a ser investigado na década de 40, do século passado, por nomes ligados à revista The Architectural Review, como Hugh de Cronin Hastings e Gordon Cullen. Esses autores colocam o foco da análise da paisagem urbana na dimensão visual, argumentando a possibilidade de uma investigação objetiva, física, se afastando das interpretações subjetivas, de análise de conteúdo, como as que marcaram a tradição alemã e norteamericana em torno do conceito de “paisagem cultural” (RODRIGUES, 2009).
O presente estudo parte dessa linha inglesa de ideias defendidas por Hastings e Cullen, na década 1960, e propõe a possibilidade de um estudo de impacto visual na paisagem urbana, considerando premissas objetivas da apreensão visual a partir de registros sequenciais feitos a partir de fotografias.
Como estudo de caso foi escolhido o projeto em curso da implantação de uma linha de monotrilho em estrutura elevada, em Salvador, num trecho que vai da Estação da Calçada ao bairro de Paripe, seguindo o percurso da atual linha férrea que corta o Subúrbio Ferroviário da cidade. A escolha do objeto deu-se pela crescente discussão e polêmicas em torno da implantação de modais de transporte em estruturas elevadas na cidade, bem como pela disponibilidade de dados e informações sobre o projeto em curso.
A estrutura a ser implantada para funcionamento do monotrilho se estende, no trecho citado, por cerca de 13,5km, com a quase totalidade do percurso em estrutura de concreto (pilares e vigas) que eleva o trilho a alturas variáveis do solo.
As análises foram feitas com bases nas informações de anteprojeto fornecidas pela concessionária do serviço a ser implantado, confrontando com levantamentos de dados feitos in loco e da legislação existente. Dessa forma, a investigação contempla as questões ligadas à visibilidade, na acepção direta do termo - o que os olhos podem captar num golpe de vista - e as confronta com as questões ligadas às restrições legais de proteção paisagística e do patrimônio construído, bem como à percepção coletiva das paisagens desse trecho e que abarcam aspectos da identidade dos lugares e imagem da cidade.
O trabalho se estrutura com uma breve caracterização do Subúrbio Ferroviário, do ponto de vista da constituição da sua paisagem construída. Numa parte teórica são definidos os conceitos de Paisagem Urbana e Imagem da Cidade utilizados nesse estudo, tomando como base autores clássicos e estudos recentes e, por fim, um estudo de caso do impacto na paisagem da implantação do monotrilho em Salvador.
O subúrbio ferroviário de Salvador
O percurso que a primeira etapa do monotrilho vai percorrer, indo da Calçada ao bairro de Paripe, seguindo no mesmo leito da antiga rede ferroviária, passa por inúmeros bairros do chamado Subúrbio Ferroviário de Salvador, como Lobato, São João do Cabrito, Plataforma, Itacaranha, Praia Grande, Periperi, Coutos e, finalmente, Paripe. Uma região onde vivem mais de 200 mil pessoas, cerca de 11% da população da cidade (IBGE).
O trecho, que já foi ocupado por aldeias indígenas, atravessou o período colonial basicamente como área de engenhos e tem na Capela de Nossa Senhora da Escada, em Itacaranha, um dos últimos registros dessa época. Mas o Subúrbio Ferroviário tem a sua história mais fortemente ligada à implantação da linha férrea, em junho de 1860, pela empresa inglesa Bahia and San Francisco Railway Company, interligando Salvador à cidade de Alagoinhas, bem como ao consequente período industrial da cidade, com as primeiras ocupações se dando, também, no final do Século XIX, no bairro de Plataforma (VASCONCELOS, 2016).
Foram as fábricas de tecidos, calçados e sabão de Antonio F. Brandão, bem como a Fábrica São Braz (1891), de tecidos, da família Martins Catharino, que ainda tem as suas ruínas como parte constituinte da paisagem do bairro, que induziram a ocupação inicial da área. Registra-se ainda em 1837, a inauguração de uma olaria na região de Escada. As fábricas e as estruturas da linha férrea constituíram ao longo de quase todo o Século XX, a paisagem construída característica da região e fazem parte da constituição da sua imagem. O nome Subúrbio Ferroviário dá bem o tom dessa importância.
Os outros elementos que, historicamente, definem a paisagem e a imagem do Subúrbio Ferroviário são a costa marítima da Baía de Todos os Santos – por onde a linha férrea define o seu percurso, a margeando – e a falha geológica de Salvador, que divide a cidade em Alta e Baixa, estabelece suas encostas e é elemento fundador e definidor da cidade, se estendendo também por essa região, criando uma espécie de plano de fundo.
A primeira metade do Século XX passou sem grandes alterações nessa paisagem até que, a partir da década de 1950, grandes loteamentos populares como Jardim Lobato, Jardim Itacaranha, Jardim Meirelles (Paripe), Jardim Praia Grande e Coutos começassem a ser implantados na região. É nos interstícios de áreas livres desses empreendimentos que também começam a se instalar as invasões que avançam entre décadas de 1960 e 1980, contribuindo com o adensamento atual e uma paisagem marcada pela autoconstrução (VASCONCELOS, 2016).
A instalação do Centro Industrial de Aratu, em 1967, atraiu uma massa migratória, sobretudo para o bairro de Paripe e a abertura da Avenida Afrânio Peixoto, também conhecida como Avenida Suburbana, com seus 14km, em 1971, estabeleceu uma nova via de importância para essa área da cidade e impulsionou a ocupação e o adensamento que marca a paisagem atual, com ocupações irregulares em suas encostas.
Pode-se dizer, assim, que o chamado Subúrbio Ferroviário tem, então, dois momentos distintos que marcam mais fortemente a constituição das suas paisagens e da sua imagem. Um primeiro que começa no final do Século XIX e se estende até os anos de 1970, com a implantação da linha férrea e instalação de equipamentos industriais e, um segundo momento com a chegada dos grandes loteamentos populares – seguidos por invasões de terras – que tem seus processos acelerados pela nova avenida que estabelece uma lógica rodoviária.
No primeiro momento tem-se a predominância de uma paisagem voltada para a Baía de Todos os Santos. Seja pela linha do trem ou pela implantação dos equipamentos industriais onde, pela grande escala, alguns marcos visuais se destacam: a ponte São João, a Fábrica São Braz e a Companhia de Cimento Salvador (COCISA). Desse período também ficam marcados os trechos balneários de praias tranquilas, bem como as comunidades de pescadores. E, um segundo momento, onde se somam a essa paisagem do período Moderno, a grande massa amorfa e genérica (KOOLHAAS, 1995) das autoconstruções que ocupam tanto a borda marítima quanto as encostas da falha geológica da cidade, cortadas pela Avenida Afrânio Peixoto.
Paisagem urbana e imagem da cidade
As cidades são o lócus privilegiado da circulação. Dos corpos, dos objetos, das informações. Tem sido assim desde os primórdios dos assentamentos humanos. Um aspecto fundamental, então, para o entendimento das paisagens urbanas contemporâneas, como as que são encontradas no Subúrbio Ferroviário de Salvador, são as questões ligadas à circulação e à velocidade. Até o fim do século XVIII – uma época relativamente recente, perto da história da humanidade – pode-se considerar que os deslocamentos e a circulação de informações eram feitos num movimento lento. Sobre a parte terrestre do planeta esses movimentos eram baseados na força muscular de homens e animais. No mar, eram baseados na utilização do vento. As velocidades variavam da imobilidade ao deslocamento por cavalo a galope (13m/s), com as velocidades médias em torno de 3m/s. O que permitia o deslocamento máximo de 200 km/dia, o mesmo ao equivalente no mar. Esse desempenho era, no entanto, excepcional. O mais comum é que viajantes fizessem seus percursos a uma velocidade de 35 a 40 km/dia, o que significa uma média de 6 a 7 km/hora (VIRILIO, 1993).
Nas grandes cidades europeias, a primeira metade do século XIX é marcada pelos bondes com tração a cavalo. Transportando uma dezena de pessoas esses veículos atingiam uma velocidade de 8 a 9 km/h. A velocidade humana só conheceu outro patamar com a invenção do telégrafo ótico de Claude Chappe, em 1794 e, sobretudo a partir da segunda metade do século XIX com o desenvolvimento da máquina a vapor e o seu uso em locomotivas e navios. Em1879 aparecem os primeiros bondes elétricos em Berlim e logo depois os trens metropolitanos e transformam de vez a paisagem das cidades (Paris em 1900, Berlim em 1902, Nova Iorque em 1904 e Londres em 1905) . A cidade passa a ser entendida como de duas naturezas: àquela herdeira da idade média, de percursos pedestres (walking city) e a cidade ferroviária, descrita como um polvo (octopus). Uma terceira forma de cidade, difusa, foi engendrada a partir do aparecimento do automóvel. O Subúrbio Ferroviário de Salvador é uma síntese desses três processos.
A aceleração da velocidade dos transportes ampliou os deslocamentos humanos. Até o começo do período moderno os habitantes das cidades não representavam mais do que uma porcentagem muita limitada da população do mundo. O fenômeno urbano era basicamente constituído de pequenas cidades com menos de 20 mil habitantes, estabelecidos num território pouco hierarquizado. Com o aumento da mobilidade e dos conseqüentes processos migratórios, no entanto, uma cidade central como Paris já possuía, em 1851, um milhão de habitantes. No mesmo ano, Londres registrava 2,5 milhões de habitantes. Em 1881 as cidades já contavam com 1,9 milhões e 3,9 milhões, respectivamente. Foi a estrada de ferro, ou sua ausência, que permitiu, ou não, o crescimento das cidades (RODRIGUES, 2009).
A velocidade ampliou também os territórios. Entre 1800 e 1999 a população de Paris se multiplicou por vinte, enquanto que a superfície ocupada pela cidade se multiplicou por sessenta e cinco. Em Salvador, no início da década de 1970, a abertura da Avenida Paralela, na direção norte da cidade, cria as condições para que dois terços das terras do município, até então intocadas, possam ser incorporadas à lógica de mercado e permitam uma expansão da cidade sem precedentes. A imagem da cidade se dilui entre a paisagem do velho centro colonial e as novas paisagens da arquitetura moderna tardia nos espaços desenhados para a mobilidade motorizada. O papel do automóvel passa a ser decisivo no espraiamento de Salvador em direção às periferias.
No espaço de um século as velocidades das redes de infraestrutura se multiplicaram por dez e as distâncias foram “divididas” por dez em termos de tempo-distância. A distância de Paris a Strasbourg, cerca de 500 km, é feita hoje pelo TGV (train à grande vitesse) no tempo de 2h. E, com as telecomunicações, a circulação de informações se faz hoje na velocidade da luz. A explosão dos modos e das velocidades de deslocamento não eliminou a lentidão, no entanto. O padrão atual da circulação humana é basicamente heterogêneo, onde grandes velocidades coexistem com os andamentos pré-modernos. Seja nas escalas horizontais, das distâncias planas pelo globo terrestre; seja nas escalas verticais, das possibilidades diferenciadas de consumo.
Esta sucessão de modos de transporte conduziu às formas híbridas da cidade. As diversas velocidades em coexistência são hoje fatores decisivos para entender a organização dos espaços urbanos e as transformações de suas paisagens. Os deslocamentos em grande velocidade (TGV, aviões), por exemplo, estão em oposição direta à quantidade de paradas: não se pode “descer” em qualquer lugar. Faz parte do desenvolvimento das infraestruturas de transporte que a aceleração das velocidades esteja ligada a um alongamento dos percursos e de uma redução do número de nós, traduzidos em portos, aeroportos e estações de transbordo diversas. As redes técnicas de transporte e informação estenderam os limites dos territórios, alteraram as tramas urbanas e criaram uma espacialização diferenciada, selecionando os pontos de conexão e os lugares de passagem. Do ponto de vista econômico, a estruturação dessas redes; processo necessariamente seletivo, valoriza e potencializa alguns lugares em detrimento de outros.
De certa forma, o início da velocidade na circulação de pessoas, informações e objetos, já coincide com a ampliação da concorrência e da seleção entre os lugares. Já foi visto que a velocidade fabrica territórios heterogêneos e desiguais. Fabrica, até mesmo, uma certa invisibilidade dos lugares intersticiais. Essa “invisibilidade” se repete em muitos pontos do Subúrbio Ferroviário e acaba por definir as regiões que são identificadas nesse estudo. A vastidão dos territórios fica “apagada”, como se só existissem pontos de partida e chegada. Virilio (1984) observa que o Concorde, com sua travessia entre Paris em Nova Iorque realizada no intervalo de duas horas e meia, “apagava”, de certa forma, o Oceano Atlântico.
Os efeitos da grande velocidade nos lugares de passagem podem ser resumidos na palavra ruptura: territorial, visual, ambiental, social. À abertura das grandes avenidas de vale em Salvador se seguiram valorizações e especializações de trechos da cidade: alterações nas centralidades e segregação de consumo de lugares a partir do acesso, ou não, aos meios de transporte motorizados. O aumento da velocidade dispersou a paisagem construída da cidade; afastou sua imagem física da sua imagem pública. Transformou muitas paisagens em “genéricas”. As periferias das grandes cidades brasileiras se tornam assustadoramente parecidas, vistas através das lentes que as varrem por helicópteros nos programas policiais televisivos.
A velocidade midiática compõe e recompõe a cada momento a imagem da cidade. As várias Rio de Janeiro: de Ipanema; do Morro do Alemão e da Lapa. As diversas São Paulo: da Avenida Paulista; da COHAB e a do Pátio do Colégio. As muitas Salvador: do Porto da Barra; do Subúrbio Ferroviário; do Centro Histórico e da Avenida Paralela.
Do “controle” dessa imagem, no entanto, dependem economias como a do turismo e a dos seus mediadores publicitários. Bem como muitas das ações dos governos locais, em larga escala, comprometidos com as políticas de promoção da cidade para atração de capitais. Reforçar uma identidade municipal que possa ser comungada pelo maior número de pessoas passa a ser requisito básico da existência dos lugares em um mundo povoado por redes de cidades genéricas, cada dia mais parecidas, o que leva a questão urbana para o domínio das estratégias de marketing, sobretudo em domínios turísticos como Salvador. Última fronteira da identificação visual, as técnicas publicitárias tornam obscenas as particularidades de uma cidade e potencializam os fragmentos que se quer tomar pelo todo. O sucesso da empreitada é levar essa identificação ao ponto em que uma cidade possa virar uma marca, uma grife. Caso relativamente recente de Barcelona, a partir da década de 1990.
A relação entre as cidades e a produção das suas imagens baseadas nas paisagens move-se em consonância com o estatuto do próprio homem urbano contemporâneo (SIMMEL, 1973). Não é incomum que as paisagens mais recorrentes das cidades sejam antes os frutos de uma “distração” coletiva consensual, que consagra uma comunhão dos seus habitantes e visitantes com as imagens que lhe são confortáveis, do que processos baseados na legibilidade visual direta. O conforto vem justamente da possibilidade da redução das paisagens urbanas ao mínimo denominador comum e que implica na sua circulação em suportes diversos: desenhos, pinturas, fotografias, vídeos. E que, claro, ganha em intensidade com as cidades turísticas e os seus cartões postais, de caráter histórico ou não, como o caso de Salvador. Esse processo só é possível porque desejado, um pacto entre os que fazem e os que consomem as cidades. A publicidade funciona como mediadora dessa relação e as políticas de marketing, ligadas ao urbano, tentam estabelecer o que é conhecido nos estudos da comunicação como agenda-setting; um tipo de efeito social do campo midiático que seleciona os temas que o público discute num determinado momento. Quando essas políticas são bem-sucedidas as maiorias silenciosas movem-se ao seu encontro.
É por isso que as investigações que buscam mapear a legibilidade das grandes cidades do mundo capitalista contemporâneo, baseadas na recepção das suas paisagens, ainda que lancem mão de metodologias diversas, encontrarão resultados parecidos. Lá onde estão as paisagens mais bem cotadas na grande bolsa de imagens, hoje majoritariamente conduzida pelas mídias, estará a tradução hegemônica da cidade.
Muitos autores se dedicaram a estudar a cidade das paisagens mediadas, seja focando na sua visibilidade ou nas invisibilidades que provoca e que também lhes é inerente. Muitos outros ainda se dedicam. Em verdade, boa parte dos atuais estudos sobre a imagem da cidade ainda se situa, justamente, no ponto de observação em que enxerga as cidades contemporâneas como o reino das paisagens mediadas. Em última escala, a cidade se transforma no reino das aparências, onde “a realidade” estaria camuflada por estratégias do campo do poder: o capital transnacional, o Estado e a grande mídia.
Aqui nesse estudo, essa construção coletiva da imagem da cidade, a partir das diversas representações, é considerada, mas procura-se avançar para além das construções dos discursos: seja o turístico; seja o jornalístico, para se ancorar em fatores físicos mais perenes como os próprios elementos físicos (naturais e artificiais) da paisagem que podem ser captados com a visão.
Boa parte dos trabalhos sobre o tema se reportam aos estudos clássicos, notadamente aos livros A Imagem da Cidade (1960), de Kevin Lynch, e Paisagem Urbana (1971), de Gordon Cullen. Aqui se amplia esse conceito com as contribuições de François Ascher (1995) e também na atualização feita por Marcos Rodrigue (2009).
Um primeiro ponto que é consensual entre todos os autores é o de que a paisagem não é um conceito absoluto. É relativo. Sobretudo ao que comumente se entende, literalmente, por ponto de vista. O Elevador Lacerda, por exemplo, também em Salvador, que é um equipamento de grande escala e um dos principais cartões postais da cidade, não é uma “paisagem”, como definição a priori. Ele é um edifício de importância histórica. Mas só se torna uma paisagem e um marco visual importante a partir da visão em certos pontos geográficos. Seguramente ele não é um marco visual visto da Rua Chile, na Cidade Alta. Mas a sua constituição como paisagem muda radicalmente com a sua visão a partir da Praça Cayru, na Cidade Baixa, onde ele se impõe em relação a todos os demais elementos do entorno, pela sua marcante verticalidade de 72m.
Outro condicionante que altera o conceito que se tem de paisagem é a velocidade de apreensão visual. Detalhes da pequena escala e texturas dos materiais que são possíveis de se visualizar numa caminhada pelas calçadas, na velocidade média de 5 a 6km/h, podem passar completamente despercebidos num deslocamento de 60km/h numa via motorizada. O arquiteto baiano Fernando Peixoto, muito criticado em determinado momento pelo caráter gráfico das suas fachadas coloridas com materiais de baixo custo, como azulejos, costumava dizer que desenhava seus edifícios, construídos na Avenida Antônio Carlos Magalhães, para quem passava de carro. De fato, as escalas das chamadas avenidas de vale em Salvador, basicamente desenhadas para automóveis, privilegiam os deslocamentos e as vistas a partir de veículos motorizados.
Por fim, outra condicionante que determina o conceito de paisagem está na sua apreensão visual em tempo real ou não. Em geral, a vista em tempo real, seja numa apreensão in loco ou através de uma mediação técnica, como um drone ou transmissões ao vivo, ainda deixam a recepção dessa paisagem num campo mais aberto para interpretações.
Já as imagens vistas a posteriori, em fotografias, pinturas, desenhos ou vídeos, estão muito mais condicionadas à seleção e à narrativa de quem faz o seu “recorte”. É uma paisagem de “autor”. É nesse tipo de paisagem, selecionada, que se monta os diversos discursos (FOUCAULT, 1971) que acabam por configurar mais facilmente uma imagem de cidade. A quantidade e/ou intensidade dessas visualizações são muitas vezes determinantes na construção da imagem de uma cidade, que é a percepção que cria o imaginário coletivo.
Tem-se, assim, que os diversos tipos de paisagem dependem principalmente de três condições: o posicionamento (placement), que implica numa posição do corpo de quem vê e isso implica no uso ou não de objetos técnicos; a velocidade de apreensão visual do corpo físico (o olho) ou do objeto técnico que o amplia e, por fim, a questão do tempo real dessa apreensão. Entende-se que a paisagem urbana atual é, na verdade, um complexo de paisagens que coexistem, estruturada por esses condicionantes, podendo-se qualificar melhor em que consiste essa rede para transformá-la num conceito que auxilie na leitura das paisagens urbanas contemporâneas.
A coexistência desses níveis também pressupõe uma relação dinâmica, de alternância e de intensidade, que constroem e reconstroem a paisagem urbana e a imagem da cidade continuamente, produzindo o visível e o invisível.
O monotrilho e seu impacto na paisagem do subúrbio ferroviário
O modal de transporte que vai ser implantado no subúrbio ferroviário de Salvador é do tipo monotrilho (monorail), onde as composições correm por um único trilho com características específicas para essa tecnologia. Como a maioria desses sistemas implantados pelo mundo, o monotrilho que está sendo apresentado pelo Governo do Estado da Bahia, ainda em modo de anteprojeto, vai se deslocar sobre uma estrutura de pilares e vigas de concreto em alturas variáveis. Os pilares distanciam-se uns dos outros em intervalos de cerca de 23m. As alturas dessa estrutura variam, segundo o anteprojeto, de 4m a 14m de altura, com média em torno de 8m a 9m. O único trecho em que a estrutura se desloca em altura próxima do padrão atual dos trens é sobre a ponte São João, que liga São João do Cabrito ao bairro de Plataforma.
Além da estrutura de pilares e vigas que se repetem ao longo dos 13,5km, soma-se à essa infraestrutura, 15 estações padrão, também elevadas, chamadas de “parada típica” e a estação da Calçada, que tem características próprias. Trata-se, portanto, de um elemento novo na paisagem e que vai ter impactos variáveis dado a sua natureza de extensão linear. Para esse estudo a proposta é identificar e fazer essa análise por “regiões de identidade visual”, seguindo a proposta de Kevin Lynch (1960) no que ele chama de “bairros”.
Aqui o entendimento dessas regiões não se limita às definições legais dessas fronteiras, mas, sim, às características físicas que criam similaridades visuais ou “continuidades temáticas” que permitem a um observador se situar e saber que está em determinado lugar. São características físicas como os tipos de vias, os padrões construtivos dos imóveis, o tipo de ocupação dos lotes, a visibilidade ou não do mar, a presença ou não de marcos visuais, o papel da encosta na leitura dessas paisagens etc. Essas regiões são definidas, sobretudo, a partir da visibilidade pedestre para o monotrilho implantado. Isso implica na consideração de pontos de vistas e elementos visuais que sejam significativos para toda a região do Subúrbio Ferroviário e para a cidade de Salvador como um todo.