Cada um no seu quadrado: a pandemia, a cidade e suas bolhas


resumo resumo

Maini de Oliveira Perpétuo
Adriana Sansão Fontes



Nunca expressões como “cada um no seu quadrado” ou “cada um na sua bolha” foram tão atuais, ou melhor: tão literais.

À medida em que o isolamento social imposto pela pandemia da COVID-19 vem sendo gradualmente flexibilizado em diversas cidades pelo mundo, delimitações espaciais compostas por figuras geométricas planas e tridimensionais surgem nos espaços públicos urbanos, na tentativa de adaptá-los às necessidades de distanciamento físico recomendado pela Organização Mundial da Saúde. Como exemplo, podem ser citados os círculos brancos dispostos simetricamente no gramado do Domino Park no Brooklyn, Nova York (Fig.1), a malha de quadrados brancos pintada no piso da Piazza Giotto, na cidade de Vicchio, na Toscana (Fig.2) ou os polígonos de diferentes tamanhos que formam um kit de praia, com suportes e fitas coloridas para delimitar espaços e manter o distanciamento entre os banhistas (Fig.3).

Pessoas em gramado e brinquedo no ar

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Figura 1. Círculos dispostos no gramado do Domino Park, em Nova York.

Fonte: Marcella Winograd para Domino Park, 2020.

 

Prédio em frente a casa

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Figura 2. Malha geométrica na Piazza Giotto, na Toscana. Fonte: Francesco Noferini, 2020. 

Uma imagem contendo praia, ao ar livre, água, oceano

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Figura 3. Kit de praia para manutenção do distanciamento físico nas praias. Fonte: Coletivo Jajaxd, 2020.

 

Grandes cidades, como Paris, Londres, Barcelona e Bogotá, estão fechando ruas para o usufruto dos pedestres, estendendo calçadas e expandindo sua malha cicloviária, em um esforço para aumentar os espaços de lazer ao ar livre, ampliar as formas de mobilidade ativa e desafogar o sistema de transporte público. Tais iniciativas respondem a demandas urgentes dos centros urbanos, e que estão sendo intensificadas pelas questões sanitárias impostas pela pandemia.

Outras proposições, no entanto, parecem saídas de filmes surrealistas de Stanley Kubrick, ou de livros de ficção científica de George Orwell, confirmando profecias futurísticas, tais como as da capa do jornal italiano La Domenica del Corriere[1], que, em 1962, ilustrava uma solução para os problemas de mobilidade que seriam enfrentados pelas grandes cidades (Fig.4).

 

Uma imagem contendo itens, caminhão, bicicleta, cheio

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Figura 4. Capa de jornal italiano de 1962, que apresenta uma solução futurista para o tráfego das grandes cidades. Fonte: Walter Molino para La Domenica del Corriere, 1962

Dentre essas proposições, surgidas no contexto da pandemia da COVID-19, podem ser citadas a apresentação “encapsulada” da banda de rock The Flaming Lips[2], que em junho deste ano realizou um show para um programa da televisão americana no qual todos os integrantes e também a plateia foram envolvidos por bolhas plásticas (Fig.5); as aulas em grupo de um estúdio de yoga em Toronto, nas quais cada aluno realiza sua prática em um domo individual climatizado, que é esterilizado entre cada sessão (Fig.6) e também as estufas privativas de vidro em um restaurante na orla do rio Oosterdok, em Amsterdã [3], para garantir que os clientes façam suas refeições em segurança, respeitando as medidas de distanciamento físico (Fig.7).

Uma imagem contendo foto, comida, mesa, diferente

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Figura 5. Apresentação “encapsulada” da banda americana The Flaming Lips.

Fonte: https://youtu.be/YUCzn_eMFF4 Acesso em 24/06/2020.

 

Uma imagem contendo mesa, comida, cachorro, foto

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Figura 6. Prática de yoga em domos infláveis na cidade de Toronto, Canadá.

Fonte: Carlos Osorio/Reuters, 2020.

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Figura 7. Estufas de vidro privativas em restaurante na beira do rio, em Amsterdã.

Fonte: Willem Velthoven para Mediamatic Amsterdam, 2020.

 

Algumas dessas soluções nos remetem às propostas especulativas do Archigram[4], tais como o projeto Air-Hab (1967) – unidade habitacional inflável acoplada ao automóvel, ou o Suitaloon (1967), um traje inflável portátil que se torna uma câmera residencial. Ambas trazem à tona questões sobre a maneira de habitar e se relacionar com a cidade, sobre à diluição dos limites entre exterior e interior e até sobre uma espécie de isolamento seletivo, na medida em que o indivíduo define quando e onde inflar ou desinflar sua bolha (Fig.8).

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Figura 8. Propostas especulativas do Archigram – Air-Hab e Suitaloon.

Fonte:  http://archigram.westminster.ac.uk/ Acesso em 26 jun. 2020.

 

Por um lado, as intervenções projetuais procedentes da crise sanitária buscam responder de forma investigativa e ágil às novas formas de ocupar e vivenciar os espaços coletivos da cidade. Por outro lado, surgem alguns questionamentos: algumas dessas iniciativas não teriam como efeito colateral reforçar a espacialização das desigualdades sociais das cidades? Certas propostas não evidenciam a mercantilização dos espaços públicos? Quantos de nós teremos condições de adquirir nossas próprias “bolhas portáteis climatizadas”?

Nesse ponto, vale recordar os ensaios seminais de Rem Koolhaas (2010), autor que, no início do século XXI, anunciava o esvaziamento do âmbito público da cidade, “em vez de vida pública, Espaço Públicoâ” (p.96), com sua paisagem urbana genérica na qual “a densidade isolada é a ideal” (p.43, grifo nosso). Em Junkspace, o autor descreve de forma não linear as características desses espaços, que não são vivenciados, e sim consumidos, unidos por membranas leves como bolhas, em que “a transparência apenas revela tudo aquilo que não se pode compartilhar” (p.76, grifo nosso):

 

O Junkspace pretende unificar, mas na realidade divide. Cria comunidades não a partir de interesses comuns ou da livre associação, mas sim de uma estatística idêntica e de uma demografia inevitável, uma teia oportunista de interesses instalados. Cada homem, cada mulher e cada criança torna-se num alvo individual, espionado, separado do resto (p.93).

 

Nessa lógica, as soluções individualizadas criadas para promover o distanciamento interpessoal, agregadas a outras similares, podem trazer consequências não necessariamente intencionadas, mas que afetam a cidade como um todo e implicam em repercussões sobre outros sistemas, como o ambiental e o social (NETTO, 2019). A solução individual que resolve a parte que está “dentro” pode produzir uma externalidade negativa no espaço que está “fora”. Assim, no contexto da pandemia, quando alguma organização opta por construir uma estufa ou uma bolha privativa para minimizar a propagação do vírus, acaba indiretamente gerando “um padrão de áreas segregadas na cidade ou prejuízos à urbanidade de seus espaços públicos” (p.102) (Fig.9).

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Figura 9. Fotomontagem representando a segregação socioespacial gerada por algumas iniciativas de distanciamento físico. Fonte: Perpétuo, 2020, a partir da foto original de Carlos Osorio/Reuters, 2020.

 

Segundo David Harvey, no artigo “Política anticapitalista em tempos de coronavírus” (2020), a pandemia escancarou as desigualdades estruturais e as “discriminações ‘costumeiras’ que estão evidentes em todos os lugares” (s/p.). Como exemplo, o autor aponta a divisão entre aqueles que podem praticar o isolamento físico com algum conforto e segurança, e aqueles que são obrigados a continuar trabalhando e se expondo ao risco para viabilizar o isolamento dos demais, sendo que normalmente essa força de trabalho “é altamente seccionada por gênero, raça e etnia na maior parte do mundo” (s/p.). Essa realidade discrepante pode ser observada no caso das cidades brasileiras, nas quais

 

fazer quarentena em seu condomínio, com um sistema de delivery batendo à sua porta para lhe trazer alimentos prontos ou por preparar, em ambiente propício para a assepsia das mercadorias e das mãos com sabão e álcool 70º, é uma realidade intangível para grande parte da população. Desde quem divide os poucos cômodos da casa com um número muito grande de parentes, até para quem desempenha atividades informais cujo ganho diário é necessário para levar o “pão nosso de cada dia” para os familiares, chegando, por fim, naqueles que sequer têm casa onde quarentenar (MARQUES, 2020, s/p.). 

 

Para Harvey (2020) “existe um mito conveniente de que as doenças infecciosas não reconhecem classe social ou outras barreiras e fronteiras sociais”, contudo cabe reforçar que a distribuição e o acesso às infraestruturas e aos equipamentos públicos de diversos segmentos, especialmente nos países em desenvolvimento, são bastante assimétricos. Desse modo, as camadas mais vulneráveis da população vivem em regiões onde normalmente há uma extrema carência de equipamentos e espaços livres para o lazer e recreação (Fig.10), fazendo com que a crise sanitária “exiba todas as características de uma pandemia de classe, de gênero e de raça”. 

 

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Figura 10. Fotomontagem representando a desigualdade de acesso e distribuição dos espaços livres públicos nas cidades. Fonte: Perpétuo, 2020, a partir da foto original de Marcella Winograd, 2020.

 

 

Laura Belik (2020), em seu artigo sobre novas formas de projetar em tempos de pandemia, alerta para que o planejamento dos espaços urbanos extrapole as medidas emergenciais de distanciamento físico que, apesar de importantes no momento atual, podem contribuir para ocultar problemas mais urgentes que as cidades enfrentam há tempos.

Em entrevista ao Rio Capital Mundial da Arquitetura (2020), Isabela Ono, sócia do escritório de paisagismo Burle Marx, coloca que os projetos dos espaços públicos pós-pandemia não devem tensionar ou reforçar o isolamento social, e sim prezar por soluções espaciais que busquem atender à coletividade e à diversidade, “onde seja possível o respeito às eventuais regras de distanciamento e onde o indivíduo se sinta pertencente a uma coletividade”.

Por fim, como nos lembra David Harvey (2013 e 2014), todos nós, individual ou coletivamente, construímos nossas cidades por meio de nossas práticas diárias, quer estejamos cientes disso ou não. O direito à cidade vai muito além do direito individual ou de determinados grupos aos espaços e recursos urbanos: trata-se do direito ativo de mudar e reinventar a cidade de forma coletiva.

Assim, a busca por soluções arquitetônicas e urbanísticas para enfrentar a nova realidade da pandemia precisa lidar com as questões sanitárias impostas pela propagação do vírus, sem, contudo, apartar-se das complexas relações socioespaciais de nossas cidades, como coloca Marques (2020, s/p.): “o verdadeiro antídoto para as pandemias hoje é o isolamento, mas jamais poderá ser a segregação social”. Nesse sentido, precisamos tanto da iniciativa rápida quanto da reflexão longa (BRECHT, 1996, apud: HARVEY, 2013), e, ao que parece, carecemos romper nossas bolhas em busca de ares mais inclusivos e plurais.

Referências

BELIK, Laura. Arquitetxs: um novo Neufert está por vir? Sobre como projetar em tempos de pandemias. Drops, São Paulo, ano 20, n. 153.03, Vitruvius, jun. 2020 Disponível em: <https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/20.153/7772> Acesso em: 24 jun. 2020.

BRECHT, Bertolt. Erkentniss. In: HARVEY, David. Justice, Nature and the Geography of Differece. Oxford: Blackwell, 1996, p.439.

CONSELHO RIO CAPITAL MUNDIAL DA ARQUITETURA UNESCO/UIA. Valorização de espaços públicos contra novas doenças e para evitar a disseminação do novo coronavírus. Disponível em: <https://capitalmundialdaarquitetura.rio/rio-capital-mundial-da-arquitetura/valorizacao-de-espacos-publicos-contra-novas-doencas-e-para-evitar-a-disseminacao-do-novo-coronavirus/> Acesso em: 29 jun. 2020.

HARVEY, David. A Liberdade da cidade. In: MARICATO, E. et al. Cidades Rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

HARVEY, David. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Boitempo: Carta Maior, 2013, p.47-61.

HARVEY, David. Política anticapitalista em tempos de coronavírus. Instituto Humanitas Unisinos. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/597468-a-politica-anticapitalista-na-epoca-da-covid-19-artigo-de-david-harvey> Acesso em 26 jun. 2020.

MARQUES, Leila e BORGES, Andrea (Org.). Coronavírus e as cidades no Brasil: reflexões durante a pandemia. Rio de Janeiro: Outras Letras, 2020.

KOOLHAAS, Rem. Três textos sobre a cidade. Barcelona: Gustavo Gili, 2010.

NETTO, Vinícius. A cidade como resultado: consequências de escolhas arquitetônicas. In: NETTO, V.; SABOYA, R.; VARGAS, J. e CARVALHO, T. (orgs.). Efeitos da Arquitetura: os impactos da urbanização contemporânea no Brasil. Brasília: FRBH, 2019, p.25-49.

 

Data de Recebimento: 01/08/2020
Data de Aprovação: 29/10/2020

 

 

 

 

[1] A ilustração "Na cidade iremos assim?", de Walter Molino, publicada na capa de La Domenica del Corriere em 16/12/1962, apresenta uma solução futurista na qual foram propostos pequenos carros individuais que ocupariam uma superfície mínima e que foram apelidados de “singlets”. Disponível em: <https://www.corriere.it/cronache/20_maggio_18/citta-gireremo-cosi-copertina-domenica-corriere-1962-che-anticipa-mobilita-oggi-03d0c9be-98f1-11ea-8e5b-51a0b6bd4de9.shtml> Acesso em: 24 jun. 2020

 

[2] A performance da banda ocorreu no dia 10/06/2020 no programa The Late Show With Stephen Colbert, do canal americano CBS. Disponível em: <https://youtu.be/YUCzn_eMFF4> Acesso em: 24 jun. 2020.

[3] O restaurante Mediamatic ETEN, localizado no Art Center Mediamatic, em Amsterdã, passou a oferecer uma nova experiência de jantar segura chamada Serres Séparées, que leva em consideração as medidas de distanciamento físico. Disponível em: <https://www.archdaily.com.br/br/940080/> Acesso em: 24 jun. 2020

[4] Archigram foi um grupo de arquitetos e designers ingleses (1960-1975) que promoveu suas ideias arquitetônicas por meio de projetos, exposições e uma revista homônima. Embora grande parte dos projetos não tenha sido implementada, suas propostas futurísticas e utópicas foram fortemente influentes no mundo todo.  Disponível em:  <http://hiddenarchitecture.net/cushicle-and-suitaloon/> Acesso em: 26 jun. 2020.