Os cantos da Dança do Congo nos processos de identificação: o discurso encenando uma tradição


resumo resumo

Weverton Ortiz Fernandes
Eliana de Almeida



[...] parece-nos necessário procurar, na história religiosa e jurídica, os elementos que contribuíram para estruturar a subjetividade e definir a própria ideia de sujeito. (HAROCHE, C., Querer dizer, fazer dizer, 1992)

 

 

A dança do Congo em Vila Bela[1], Mato Grosso, sob a forma de uma dramaturgia festivo-popular, de modo estilizado, compõe-se de enredos, cantos, diálogos, personagens, cores, etc. que, articulados entre si, figuram uma das cenas discursivas definidoras da cidade. Das festas tradicionais comuns à cidade, selecionamos as canções da Dança do Congo, com o objetivo de compreender o modo pelo qual a língua significa o sujeito-festeiro, em formulações, versos que, conforme supomos, não tem entrada no sistema do português-brasileiro.

Pela Análise de Discurso, a partir de Pêcheux (1988; 2004) e Orlandi (2002, 2007, 2008, 2015, 2017), buscaremos compreender como essas canções se inscrevem na discursividade da língua; como esses termos estranhos ao português brasileiro, nos versos do canto, relacionam-se com outros termos; como a sintaxe dos cantos se articula à cena festiva. Esses pontos de nosso interesse, supomos sustentar os processos de identificação do sujeito-vilabelense, do sujeito-festeiro. Ou seja, essas questões colocam em jogo a relação entre a língua e o sujeito que a produz, o sujeito que a fala.

As pesquisas de Pêcheux (1981), Haroche (1992), Orlandi (2007) e Rodriguez-Alcalá (2004) apontam para o conceito de sujeito, construído conforme a ordem do Estado Moderno, instituição social de direitos e deveres, em oposição ao sujeito da Idade Média, determinado pela Igreja. No confronto entre língua/ideologia, pelo mecanismo de antecipação, o sujeito coloca-se no lugar do outro/Outro, conforme Orlandi (2015, p. 40), em processos imaginários de projeções resultantes das formações discursivas: “É bom lembrar: na análise de discurso, não menosprezamos a força que a imagem tem na constituição do dizer. O imaginário faz parte do funcionamento da linguagem”. (ORLANDI, 2015, Idem) Para a autora, a divisão de sentidos significada pela projeção imaginária, conforme salienta Orlandi, “não brota do nada”.

Ele não “brota” do nada: assenta-se no modo como as relações sociais se inscrevem na história e são regidas, em uma sociedade como a nossa, por relações de poder. Ela se constitui nesse confronto do simbólico com o político, em processos que ligam discursos e instituições. (ORLANDI, 2015, Ibidem)

A formação discursiva define-se como “[...] aquilo que numa formação ideológica dada – ou seja, a partir de uma posição dada em uma conjuntura sócio histórica dada – determina o que pode e deve ser dito”. (ORLANDI, 2015, p. 41) Assim, os efeitos de sentidos se sustentam em uma posição ideológica determinada, não sendo, portanto, colados às palavras e tampouco dados por si mesmos. Como salienta a autora, a noção de formação discursiva pode ser compreendida como uma regionalização dos dizeres da memória discursiva.

Tais considerações permitem problematizar, no material de leitura, a linearidade dos dizeres na estrutura dos versos e o modo como os dizeres se articulam metonímica e metaforicamente na linearidade linguística dos significantes. Essas considerações se aproximam do que, nós linguistas, denominamos de concatenação (linearidade dos significantes) e concorrência (termos concorrentes entre si), ou ainda, de constituição e organização, em termos discursivos.

Os cantos das festas tradicionais[2] de Vila Bela – MT apresentam uma recorrência de palavras não dicionarizadas, termos não reconhecidos no sistema do português-brasileiro, mas que, articulados no verso, entoados linearmente, produzem o efeito de pertencimento desse sistema. Trazemos abaixo a letra das canções da festa do Congo:

 

CANTO I

Sai, sai o ingome sai

Saia do caminho

Sai engomerê.

 

CANTO II

Chegou, chegou enganaiá

Chegou, chegou enganaiá

Pra fazer a nossa festa de São Benedito

Pra fazer a nossa festa de São Benedito.

         

CANTO III

O seu Manoel mandou me contar

Como é a cana do canavial

Canavial do sobre tenente

Cada pé de cana

Ô bumba auê

Bumba xerê

Passeia na praia

Mantingombê, mantingombê

(Grifos nossos – http://projetoparaleloquinze.blogspot.com.br )

 

As formulações em grifo, supostamente os termos estranhos ao sistema do português-brasileiro, produzem o efeito da relação entre o português-brasileiro e as línguas africanas, faladas pelos negros vilabelenses, pelo funcionamento discursivo da memória da língua brasileira mesma. Como se vê, os verbos transitivos indiretos, como saia / chegou / mandou / passeia, de uso predominante na relação sintática entre sujeito / verbo / objeto no português-brasileiro funcionam pela sintaxe da língua nacional e, ao mesmo tempo, da língua de Estado, conforme Orlandi (2012), Payer (2006) e Almeida (2012).

Considerando[3] essas formulações[4], tidas como sem entrada no léxico do português-brasileiro, perguntamos pelo modo como funcionam e se conjugam nas canções festivas do Congo, produzindo sentidos. Nos recortes abaixo, cuja sintaxe conjuga o verbo a outros termos, temos:

 

- sai sai o ingome sai

- sai engomerê

- Chegou, chegou enganaiá pra fazer a festa de São Benedito

 

Em sai o ingome , sai engomerê, chegou enganaiá percebermos um deslizamento metafórico na repetição/substituição paradigmática do termo ingom+e / engom+merê / engan+naiá, produzindo o efeito das derivações lexicais próprias de um sistema linguístico. Ou seja, esses termos apresentam-se como decorrência de um termo primitivo. Esses termos, sem reconhecimento no sistema do português-brasileiro, compõem o verso das canções festivas como que funcionando como uma língua outra, com suas articulações, flexões e tudo o mais.

Nos versos - engomerê sai; - João sai; - sai João; a sintaxe funciona igualmente na relação entre um nome e um verbo, como na língua portuguesa. Ao dar ao termo estranho ao sistema do português-brasileiro o mesmo estatuto dos termos em português, como nas sequências discursivas - engomerê sai; - João sai; - sai João; o canto dá visibilidade ao efeito de articulação entre diferentes sistemas de língua. O mesmo pode ser visto em outros versos do canto, como em Chegou, chegou enganaiá pra fazer a festa de São Benedito, parafraseando os versos abaixo:

 

- Chegou, chegou Maria pra fazer a festa de São Benedito

- Chegou, chegou Joaquim pra fazer a festa de São Benedito

- Joaquim chegou pra fazer a festa de São Benedito

- Alguém chegou pra fazer a festa de São Benedito

 

O termo enganaiá funciona como nome em relação ao verbo chegou, cuja sintaxe repete, enquanto refrão nas canções. Por esses deslizes que se repetem nas canções, perguntamos pela relação entre o agente do verbo e o sujeito que canta, o sujeito-vilabelense. Esses termos, supostamente de outra língua, funcionam na linearidade significante do português-brasileiro, inscrevendo, na memória do português, o imaginário de uma tradição outra que acaba por fundir-se à tradição brasileira. Os versos que articulam o português e essa língua outra apontam também para a memória africana no português.

Trata-se da captura do sujeito vilabelense pelo imaginário dessa língua outra, a língua africana, da qual ele não sabe o sistema, mas imagina saber, significando-se numa relação de contradição na ordem da língua nacional brasileira, na relação com termos supostamente africanos. A partir de Pêcheux, pode-se afirmar que as formulações das canções vilabelenses funcionam como um estranho familiar (PÊCHEUX, 1979), pelo fato de articularem a língua de Estado e formulações de uma língua outra.

O efeito de africanidade produzido pelas canções constitui os sentidos para a cidade de Vila Bela, pela festa do Congo, que vai construindo o imaginário de sua tradição.

Em Canavial do sobre tenente / Cada pé de cana / Ô bumba auê / Bumba xerê / Passeia na praia / Mantingombê, mantingombê temos formulações intransitivas, que se articulam com o todo da canção. A relação significante-a-significante se dá pelo jogo imaginário, produzindo os efeitos de africanidade (pelo imaginário) latentes nas canções, como a memória discursiva da língua dos antepassados vilabelenses. As formulações se articulam discursivamente pelo imaginário da língua africana no verso das canções em português.

As formulações O Bumba auê / Bumba xerê / Mantingombê funcionam na sintaxe do português-brasileiro como marca, etiqueta, pista, indício de uma memória de africanidade, construída pelo imaginário. Essas formulações se historicizam enquanto lugar de memória da tradição africana, pela/na língua, cujo funcionamento discursivo opera pelo imaginário[5] em relação à festa do Congo.

Em en-ga-nai-á / en-go-me / en-go-me-rê / O bum-ba au-ê  / Man-tin-gom-bê temos os traços[6] da tradição africana, funcionando pela memória da/na língua portuguesa, que não coincide necessariamente com português-brasileiro. As regularidades fonéticas dos termos acima, que se repetem nas canções, promovem a rima, sem significação alguma, apenas como acorde, acessório, do canto. No entanto, pelo imaginário das línguas africanas, esses termos funcionam como um coro, um refrão que marca o ritmo, reitera a memória de uma língua outra na língua nacional brasileira: engomerê, Pererê, enganaiá / aiá,  Bumba auê Bumba xerê, etc.

A dança do Congo é parte de um conjunto de festas que compõe a Festança Vilabelense, realizada anualmente na segunda quinzena do mês de julho. A dança do Congo é encenada desde o início do século XIX[7], como lugar de resistência dos negros que viviam sob o regime escravocrata[8]. Vindos da África Central e trazidos em viagens fluviais pelo Rio Madeira, os negros chegaram para trabalhar nessa recém Capitania de Mato Grosso.

A prática econômica de exploração da terra era o que sustentava o interesse da Coroa Portuguesa em expandir o território, objetivando a extração dos principais recursos minerais existentes nessa região, como o ouro. Desse imaginário que sustentava a corrida para o “oeste” nos tempos do Brasil colônia, os portugueses instalaram-se às margens do Rio Guaporé, divisa com a Bolívia e fundaram, em 1752, a primeira Capital da Capitania de Mato Grosso: Vila Bela[9], cidade planejada em Lisboa e que funcionou como ponto estratégico da Coroa portuguesa para impedir os avanços dos espanhóis pela Bolívia.

Como primeira capital[10] do Estado, ora é reconhecida como a primeira cidade com plano urbanístico de fundação, e ora como localidade mais ocidental das ações de Portugal[11]. Vila Bela (historiadores, antropólogos e linguísticas), durante certo período, entre o século XIX e XX, encontrou-se no esquecimento político-administrativo, após a transferência da capital para Cuiabá. Com um decreto de âmbito regional que libertava os negros da escravidão, por volta de 1832, os “festeiros” vilabelenses encontraram liberdade à prática das celebrações comunitárias que “rememorava” as cenas do período da escravidão.

Atualmente, através da encenação festiva, a cidade sustenta efeitos que evidenciam a tradição cultural. Esses sentidos de africanidade vão do turismo, práticas culinárias, bebidas, festas de cunho religioso, até às encenações de danças, como a dança do Chorado e a dança do Congo, por exemplo. A dança do Congo é definida por Andrade (1959, p. 17) como “[...] uma dança dramática, de origem africana, rememorando costumes e fatos da vida tribal”. Assim, ao ser reencenada, nos cantos e danças, a festa do Congo mobiliza, pela língua, a memória de uma tradição que insiste em se manter. No curso dessas considerações, observamos que é na língua do português-brasileiro que a memória da tradição africana retorna.

Na dança do Congo em Vila Bela, os dançarinos protagonizam papéis e personagens numa relação hierárquica. A marcha do cortejo dita o ritmo em data específica do ano: segunda quinzena de julho. Nesse momento, um grupo de festeiros, com roupas coloridas, apropriadas, empolgado, sempre acompanhado por turistas e adeptos da festividade local, sai de madrugada para as ruas da cidade ao som de chocalhos e canções, anunciando o amanhecer e a festança local.  O ritmo, o compasso e as formulações ditadas pelos dançantes do Congo convidam e conduzem os festeiros de São Benedito à igreja do centro, em frente à praça central da cidade, sob os efeitos de reverência ao santo padroeiro da dança, o próprio São Benedito.

Após a missa, enfim, a tão esperada apresentação: a festa do Congo. Com a cena das batalhas entre os reinados e o Bamba, dentro de uma grande tenda levantada do lado de fora da igreja, centro da praça, os festeiros empolgam os expectadores, com um misto de euforia e curiosidade. A festa do Congo constrói cenários, tempo e espaço, pela memória, numa injunção entre o imaginário do que seja africano e/ou vilabelense. Inscrições distintas, mas que se cruzam, se misturam no desenvolvimento da dança, através dos personagens, da plateia, no canto. Vila Bela encena a relação entre Brasil e África na Dança do Congo.

O próprio festeiro desconhece os termos que canta, profere-os mnemonicamente sob a crença de reatualizar, na canção, a história de seus antepassados. Essa cena, a da Dança do Congo, conforme agendada no Calendário Festivo da Cidade enquanto uma intervenção do Estado, produz o efeito de produzir uma história de identificação e de luta para não deixar memória/língua morrer. Resistência é o nome disso, nos termos dos Titãs. Essa dança encena uma batalha que se inicia com o desafio do rei do Bamba a casar-se com a filha do rei do Congo e termina com uma pitada de crítica ao atual cenário político brasileiro. O rei do Congo, no caso, sempre ganha.

Turistas, pesquisadores e moradores locais disputam os espaços que dividem o salão de apresentações. Fotos, gravações, filmagens, imprensa de rádio e TVs regionais, nacionais registram o acontecimento da festa do Congo, que, conforme o Calendário da cidade, repete-se ano-a-ano. Ao final do dia, após o almoço comunitário, o retorno dos festeiros traça o trajeto de ida: os dançantes acompanham os festeiros de São Benedito até suas residências[12].

Compostas por 12 pares de soldados do reino do Bamba, o príncipe, o secretário e o rei do Congo, a festa do Congo estiliza-se  nas formulações da canção, com seus trajes coloridos, vestimentas, ritmos, compassos, instrumentos musicais, reatualizando os efeitos da cena fundadora[13] do continente africano (MAINGUENEAU, 1997), com suas batalhas, guerras, lutas, conquistas e, claro, os termos peculiares ao festejo. No momento em que saem para as ruas da cidade, os festeiros significam a dança do Congo como uma festa que remonta a origem africana no Brasil, como uma história que encena a tradição e a memória de um povo.

A dêixis atual e a fundadora, os termos desconhecidos constituem a cena da festa como forma de reatualizar, pelo simbólico, a memória africana, ao mesmo tempo articulando o tempo/espaço atual e fundador. O “estranho familiar” dos termos (PÊCHEUX, 2016, p. 24) apontam para efeitos que não se sustentam na literalidade, não se sustentam na transparência da linguagem. A significação é projetada[14] pela relação entre o presente e o passado produzido na dêixis, cuja projeção se sustenta na história.

As condições de produção implicam o que é material (a língua sujeito a equívoco e historicidade), o que é institucional (a formação social, em sua ordem) e o mecanismo imaginário. Esse mecanismo produz imagens dos sujeitos, assim como do objeto do discurso, dentro de uma conjuntura histórica. Temos assim a imagem [...] do objeto do discurso (do que estou lhe falando, do que ele me fala?). É, pois, um jogo imaginário que preside a troca de palavras. (ORLANDI, 2015, p. 38)

 

Tomando a relação língua/sujeito/memória, buscamos compreender a relação entre as formulações estranhas das canções e a cena da festa. Os termos estranhos das canções configuram-se como referência dêitica em relação ao espaço/tempo africano. A cenografia discursiva produz o efeito de naturalizar sentidos para o mundo ocidental europeu, razão pela qual a festa do Congo repete/conta/reconta para o/pelo sujeito vilabelense, a cada ano, a história da relação entre o negro africano e o Brasil.

Sob a égide de constituição da língua nacional brasileira, as políticas de Estado acabam por silenciar as línguas africanas faladas pelos negros. O léxico, as formulações, dessas canções resistem ao apagamento da história, visto que a ordem da língua de Estado está entrelaçada ao imaginário de uma língua outra. O esquecimento da língua materna pelos sujeitos festeiros é regido pelas políticas do Estado Moderno, na forma da língua nacional.

Como vemos, os sentidos entre Brasil e África inscritos no festejo da dança do Congo, materializam na sintaxe das canções, sob a forma da cenografia, a história da relação Brasil/África.

O Calendário festivo da cidade produz, enquanto política de Estado, o efeito de cultura. Em nossos estudos, percebemos que a festa do Congo reatualiza a história também oficializada, sobre a vinda dos negros ao Brasil. A festa do Congo, dentre outras, em Vila Bela, faz cristalizar para a cidade os sentidos de cultura[15]. Pensar os sentidos de cultura na relação entre a dança do Congo, pela língua, e o sujeito, desafia-nos à compreensão das condições de produção do século XXI. Logo, perguntamos pelo modo como as canções, da Dança do Congo, encenam o efeito de cultura?

Para Rodríguez-Alcalá (2004, p. 1), em seu artigo intitulado Da religião à Cultura na Constituição do Estado nacional, a autora trata discursivamente da relação entre cultura, legitimação e Estado, com vemos:

O que entendemos hoje por cultura deve muito aos sentidos cristalizados em finais do século XVIII, momento chave do processo pelo qual essa noção foi adquirindo um destaque crescente na visão dos fenômenos sociais, que se estenderia tanto ao senso-comum como às teorias científicas, notadamente a antropologia. Tal processo é contemporâneo da constituição e consolidação dos Estados nacionais, operado a partir do fim da Idade Média, e se explica em virtude do funcionamento central que o apelo à cultura tem enquanto mecanismo de legitimação do poder do Estado sobre os sujeitos e sobre seu território. (RODRÍGUEZ-ALCALÁ, 2004)

 

Como vemos, Rodriquez-Alcalá considera a noção de cultura como o possível às sociedades do Estado Moderno, fora do espectro da Idade Média, onde o religioso funciona como memória cultural dessa tradição: “A cultura veio nesse sentido a substituir o papel que a religião desempenhara no período anterior”. (RODRÍGUEZ-ALCALÁ, 2004, p. 2) Para Orlandi (1999, p. 14), em Reflexões sobre escrita, educação indígena e sociedade, os efeitos de cultura estão associados à noção de memória discursiva, como vemos: “Os aspectos da diferença cultural que tocam o que chamamos interdiscurso (o saber discursivo, a memória do dizer) e que são os que garantem os efeitos de sentidos [...]”.

Assim, os sentidos de cultura funcionam como filiações a partir das condições de produção, em sentido amplo (cultura / ideologia religiosa), como em sentido estrito, o saber discursivo, o trabalho da memória. No caso das canções da dança do Congo e demais festividades, a noção de cultura coloca-se como questão em relação à língua outra, nas canções, produzindo o efeito de articular o português-brasileiro a uma língua africana. Esses termos, que produzem o efeito de uma língua africana, regem a cena discursiva da Dança do Congo, numa relação com as políticas de Estado. A Dança do Congo é já uma cena que remete a outra cena, hoje, em condições históricas atuais, como re-encenação de uma história brasileira apartada do discurso religioso. Como se vê, o religioso comparece enquanto acessório das cenas festivas, não mais como o agente executor. É nesse sentido que a Dança do Congo vai se produzindo enquanto cultura vilabelense.

Podemos considerar, a partir de Rodriguez-Alcalá, que os termos supostamente africanos das canções não remetem, necessariamente, a qualquer traço linguístico da língua africana, mas significam uma língua estilizada, sob a forma da cenografia discursiva.

Para Orlandi, as relações do texto (canções) se sustentam como discurso. Os termos sai sai o ingome / sai engomerê / chegou, chegou enganaiá articulam a estrutura da língua portuguesa ao imaginário de língua africana. Consideramos que essas articulações sustentam-se pelos saberes discursivos, pela memória discursiva, que determina o que pode e deve ser dito. Ou seja, a articulação linguística mobiliza o imaginário de sentidos da tradição africana, ao mesmo tempo em que se projeta na língua nacional brasileira.

A articulação entre os termos / sai / chegou com ingome / engomerê / enganaiá, respectivamente, atesta o modo como, ao cantar, o sujeito se inscreve na ordem da língua nacional, projetando nessa língua, os sentidos de cultura. Ou seja, a sintaxe e as formulações dessa língua outra, projetada pelo imaginário no verso das canções em português, funcionam como saberes sobre a língua, como cultura legitimada pelas políticas de Estado, como em O bumba auê / Bumba xerê / Mantingombê.

O imaginário linguístico das canções está sustentado no discurso da cultura, daí as políticas de Estado, como forma de mantê-lo. Os termos das canções da festa do Congo mobilizam os sentidos da noção de cultura, produzindo o efeito de resgate da tradição africana, como se fosse possível. Ou seja, essas expressões sem entrada no léxico do português brasileiro, presentes na dança do Congo, não são exclusivas dos cantos, pois repetem-se em canções outras em língua portuguesa, de modo a produzir ritmo, rima, etc.

A partir dessas considerações, os imaginários de resgate da tradição africana funcionam ao “[...] nível das representações, completude, não contradição [...]” (ORLANDI, 2015, p. 72), articulados, agora, com as políticas do Estado Moderno: “É por essa articulação necessária e sempre presente entre o real e o imaginário que o discurso funciona”. (ORLANDI, Idem) Pode-se afirmar que a noção de cultura funciona, em relação à festa do Congo, enquanto um saber que se mostra na sintaxe da língua nacional. O papel central da crença em Deus passa à crença no resgate da tradição, ou seja, em face de uma nova ordem social, o vilabelense se apega as questões culturais de resgate da tradição e a língua, através das canções, se dá enquanto espaço desse gesto, desse efeito de resgatar a cultura pela língua.

Assim, atestar essas formulações como dizeres de línguas africanas ou como uma sua variação, é falar de dentro desse imaginário legitimado sob a transparência da linguagem. É entrar no jogo dessas canções, cujos versos/termos significam o negro no Brasil ao serem cantadas/encenadas. É assim que as canções produzem o efeito de resgate cultural das tradições africanas, como lugar de implementação das políticas de Estado, pelo imaginário de uma suposta língua africana, propulsiona o discurso de cultura.

Em suma, as formulações ingome / engomerê / enganaiá / O bumba auê / Bumba xerê / Mantingombê materializam a identidade imaginária do vilabelense, pela tradição africana construída nas cenas da Dança do Congo, o qual funcionam como lugar de identificação/significação do sujeito vilabelense pelas políticas do Estado brasileiro. Isso nos impossibilita a pensar que os efeitos de africanidade produzidos pela encenação da dança sejam os próprios, apagados pela história.

 

Referências:

 

ALMEIDA. Eliana de. Cabeludinho: língua, sujeito e nação. In: Fronteiras de sentidos & sujeitos nacionais / Maria Inês Parolin, Eliana de Almeida (orgs.): Cáceres, Fapemat; Campinas, Editora RG, 2012.

HAROCHE, Claudine – Fazer Dizer, Querer Dizer. Tradução Eni Pulcinelli Orlandi com a colaboração de Freda Indursky e Marise Manoel. Editora Hucitec. São Paulo, 1992.

COSTA, Emílio Viotti da. Da senzala a colônia / Emília Viotti da Costa – 4. Ed. – São Paulo. Fundação Editora da UNESP, 1998. – (Biblioteca básica).

Diário de Cuiabá: Festa do Congo anima Vila Bela hoje http://www.diariodecuiaba.com.br. Publicado em 24/07/2000. Acesso em: 09 out. 2015.

FERNANDES, Weverton Ortiz. Efeitos e Memória: A Festa de Narrativas Vilabelenses. / Weverton Ortiz Fernandes. Cáceres/MT: UNEMAT, 2014.

LOUREIRO, Roberto. Cultura Mato-grossense: Festas de Santos e outras tradições / Roberto Loureiro. - - Cuiabá, MT : Entrelinhas, 2006.

MATTOS, Hamilton Gonçalves. Vivenciando a História: o Brasil e a exploração colonial / Hamilton Gonçalves Mattos. - - São Paulo: Editora do Brasil, 1990.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso : princípios e procedimentos / Eni P. Orlandi. – Campinas, SP : Pontes, 12ª edição, 2015.

ORLANDI, Eni Puccinelli. 1942. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico / Eni P. Orlandi. – 6ª Edição, Campinas, SP : Editora da Unicamp, 2007.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Língua e conhecimento linguístico : para uma história das idéias no Brasil / Eni P. Orlandi – São Paulo : Cortez. 2002.

PAYER, Maria Onice. Discurso, Memória e Oralidade. In: Horizontes: Linguagem, Discurso e Práticas Educativas. Vol. 23 No. 1 p. 47 – 56. Janeiro / Junho 2005.  Editora Universitária São Francisco.

PAYER, Maria Onice. Memória da língua: imigração e nacionalidade / Maria Onice Payer. – São Paulo: Escuta, 2006.

PÊCHEUX, Michel, 1938 – 1983. O discurso : estrutura ou acontecimento / Michel Pêcheux; tradução Eni Pulcinelli Orlandi. – Campinas, SP : Pontes, 1990.

PÓVOAS, Lenine Campos. Do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso e da Academia Matogrossense de letras. Síntese de História de Mato Grosso. Cuiabá – MT – 1992. Editora Resenha Ltda. 2ª Edição.

RODRÍGUEZ-ALCALÁ, Carolina. Da religião à Cultura na Constituição do Estado nacional. In: XIX Encontro Nacional da ANPOLL – Associação Nacional de Pós-Graduação em Letras e Linguística: ANPOLL, 2004.

SILVA. Renata Nogueira. A Festa da Congada: A Tradição Ressignificada. In: 26ª Reunião Brasileira de Antropologia: Porto Seguro, Bahia, Brasil. Junho de 2008.

Vila Bela da Santíssima Trindade começa as comemorações da Festa do Congo: Portal Secretaria de Estado de Cultura Mato Grosso. http://www3.cultura.mt.gov.br. Acesso em: 09 out. 2015.

 

Data de Recebimento: 02/04/2020
Data de Aprovação: 06/07/2020

 

[1] Cidade localizada a extremo oeste do Estado de Mato Grosso, divisa com a Bolívia. Justificamos o estudo da dança do Congo na cidade de Vila Bela devido a presença de uma peculiaridade que a diferencia das demais festividades dessa cidade: excessivas terminologias sem entrada no léxico da língua portuguesa.

[2] Festa do Congo - realizada anualmente na segunda quinzena do mês de Julho, na cidade de Vila Bela – MT, como parte integrante do calendário turístico da cidade.

[3] No sentido mesmo em que considera Orlandi (2007, p. 67), a sintaxe aqui nos interessa para dela compreendermos a ordem da língua “Na linguística, as teorias da sintaxe são um modo de dar conta da organização da língua, mas se pode reconhecer, na sintaxe, um lugar de acesso à “ordem” da língua. É nesse sentido que a sintaxe pode interessar ao analista de discurso. Para ele, ela é um efeito da ordem significante”.

[4] Conforme Payer (2006) em Memória da língua: imigração e nacionalidade.

[5] Diferente do que Orlandi concebe de língua imaginária e língua fluída: em que a primeira se relaciona com a norma, a língua de Estado e a segunda se distancia dos dizeres legitimados pelo Estado.

[6] Nos moldes como Payer (2006) considera como traços linguísticos: saberes discursivos materializados no dizer do sujeito em uma dada conjuntura histórica.

[7] “[...] as danças do Chorado e do Congo, manifestações que são difundidas em Vila Bela desde o início do século 19” (Secretaria de Estado e Cultura de Mato Grosso, out. 2015).

[8] “Do Congo, país localizado na região central da África, para Mato Grosso, distâncias e culturas em comum. De lá vieram para a América do Sul milhares de escravos no tempo do Brasil Colônia, século XVII. Trouxeram consigo suas tradições: muitas delas desapareçam com o tempo e com a condição escravagista. Outras, se misturaram à cultura portuguesa” (http://www.diariodecuiaba.com.br).

[9] Fundada pelo então primeiro governador D. Rolim de Moura, erigida às ordens do Rei de Portugal D. João V.

[10] “[...] a 19 de Março de 1752 [...] deu o nome de Vila Bela da Santíssima Trindade, alí erigindo a Capital da Capitania de Mato Grosso; Treze anos após a Independência (1835) Cuiabá, que vinha sendo a Capital de fato, tornou-se oficialmente a Capital da Província”. (PÓVOAS, 1992, p. 20-38).

[11] “É por isto que Vila Bela é citada como a primeira cidade planejada de Mato Grosso” (Diário de Cuiabá: www.diariodecuiaba.com.br, acesso em 15 de out. 2015) / “Pode ser considerada uma das primeiras cidades planejadas do país” (www.cultura.mt.gov.br, acesso em agosto de 2017) / “Vila Bela foi a primeira capital do estado e a primeira cidade planejada do Brasil e tinha uma posição estratégica na disputa de território entre portugueses e espanhóis” (Por Leonardo Roberto em www.cidadaocultura.com.br/vila-bela, acesso em agosto de 2017).

[12] Relato esse referente a festança do ano de 2018 [grifos nossos].

[13] A dêixis discursiva compreende a dêixis atual e sua cena fundadora: “A deixis discursiva consiste apenas em um primeiro acesso à cenografia de uma formação discursiva; esta última possui ainda um segundo ponto do qual é possível alcançá-la; trata-se da deixis fundadora” (MAINGUENEAU, 1997, p. 42). Mais adiante, Maingueneau considera que “No discurso escolar III República, por exemplo, trata-se de um universo onde o mesmo termo satura os três lugares: “a República” é, a um só tempo, o locutor discursivo (é ela que se dirige às crianças), a topografia (a República delimita o território da pátria) e a cronografia (a República é a última fase da história da França, por onde este discurso é enunciado) (MAINGUENEAU, 1997, p. 41). Sobre os lugares de que trata Maingueneau: o locutor, a topografia e a cronografia, estes se legitimam na cena do discurso escolar da III República na França. Ou seja, o termo III República institui três lugares na cena, estando esses três lugares indissociáveis: aquele que diz consonante com o espaço e o tempo de dizer. Relacionado ao material de estudo observaremos, pela relação do sujeito com a festa do Congo, os lugares discursivos de significação do vilabelense na relação com expressões incomuns e a sintaxe das canções.

[14] “Mas, pelo mecanismo de antecipação, também temos, por exemplo: a imagem que o dirigente sindical tem da imagem que os funcionários têm daquilo que ele vai dizer” (ORLANDI, 2015, p. 39). Em nossa reflexão, é a imagem que o vilabelense tem daquilo que é dito nas canções do Congo.

[15] “Temos afirmado que um tipo de discurso resulta do funcionamento discursivo, sendo este último definido como a atividade estruturante de um discurso determinado [no caso da dança do Congo, os termos estranhos pelo discurso da cultura], para um interlocutor determinado, por um falante determinado, com finalidades específicas” (Orlandi em A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso, 2011, p. 153).