O espaço como potência das forças moleculares: O calçadão da Av. São João


resumo resumo

Hélio Hirao
Camila Komakome



Introdução - O singular no múltiplo

O rizoma como procedimento metodológico projetual se relaciona com processos e tessituras de forças e afetos entre corpos (arquitetura e humano), sem hierarquizar essas conexões.

Espaços projetados predefinidos buscam a domesticação de quem os usufrui, são espaços espetacularizados, que não levam em consideração o estudo da totalidade apreendida. Deleuze e Guattari (1995) descrevem o processo rizomático da construção do mundo através do movimento ao invés da estrutura estática e dual ao qual estamos acostumados. Os processos de construção da sociedade e, portanto, da cidade acontecem através de fluxos ao invés de fixos. A desordem do cotidiano, a construção do indivíduo, do corpo social e do inconsciente, ocorre através das lógicas desse pensamento. O processo arbóreo de pensamento deixa de fazer sentido quando passamos a analisar o todo, o múltiplo, as camadas e composições de tudo que nos rodeia.

 


 

O rizoma (Figura 1), na botânica é um tipo de caule que cresce horizontalmente, que se perde no processo de ramificação e acaba por não possuir um começo ou um fim, apenas vários entres, seu processo é difuso e descentralizado. É constituído por um conjunto de multiplicidades, e devido à necessidade de controle imposta, o que acontece é a codificação do mundo. A partir do momento que codificamos processos, nós os reduzimos, na tentativa de simplificar o meio existente e a nós mesmos. O código leva à mesmice, estereótipos, preconceitos e estratificações, estagnando potencialidades e dispersando multiplicidades, criam-se assim, padrões e dualidades reducionistas.

 

Resumamos os principais caracteres de um rizoma: diferentemente das árvores ou de suas raízes, o rizoma conecta um ponto qualquer com outro ponto qualquer e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços de mesma natureza; ele põe em jogo regimes de signos muito diferentes, inclusive estados de não signos. O rizoma não se deixa reconduzir nem ao uno que se torna dois, nem mesmo que se torna três, quatro, ou cinco etc. Ele não é um múltiplo que deriva do Uno, nem ao qual o Uno se acrescentaria (n+1). Ele não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes de direções movediças. Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda. Ele constitui multiplicidades lineares a n dimensões, sem sujeito nem objeto, exibíveis num plano de consciência e do qual o Uno é sempre subtraído (n-1). Uma tal multiplicidade não varia suas dimensões sem mudar de natureza nela mesma e se metamorfosear. (DELEUZE; GUATTARI; 1995, p. 31)

 

As críticas levantadas pela Internacional Situacionista através da teoria da deriva de autoria do pensador Guy Debord, sobre como a sociedade capitalista é constituída e atua no espaço, conduz para o entendimento pela prática da cartografia, da deriva e das psicogeografias, a partir da “construção de situações”. O comportamento humano sofre com um urbanismo funcionalista. Os Situacionistas veem o espaço urbano como uma forma de revolução contra as práticas do cotidiano comum, através da participação das pessoas e da investigação das microrresistências que atuam contra o processo de espetacularização das cidades mesmo que de forma involuntária.

 

Depois da visita dadá e da deambulação surrealista cunha-se um novo termo: a derive, uma atividade lúdica coletiva que não apenas visa definir as zonas inconscientes da cidade, mas que – apoiando-se no conceito de psicogeografia – pretende investigar os efeitos psíquicos que o contexto urbano produz no indivíduo. (CARERI, 2013, p. 83-85)

 

Os projetos urbanos, muitas vezes, são propostos sem levar em consideração as apropriações que legitimam as experiências das pessoas tanto na cidade formal quanto informal. E nesse contexto a psicogeografia, sendo um exercício prático experimental consegue traduzir de forma consciente ou não, talvez afetiva, o que ocorre no lugar.

 

Enquanto os modernos acreditaram, num determinado momento, que a arquitetura e o urbanismo poderiam mudar a sociedade, os situacionistas estavam convictos de que a própria sociedade deveria mudar a arquitetura e o urbanismo. (JACQUES, 2001, p.19)

 

 Um projeto deve compreender os territórios que habitam e suas complexidades, pois acontece no espaço exterior, no fora, no outro e para o outro, com seus diversos fatores. E como afirma Deleuze; Guattari (1995, p. 203), “Num livro, como em qualquer coisa, há linhas de articulação ou segmentaridade, estratos, territorialidades, mas também linhas de fuga, movimentos de desterritorialização e desestratificação”.

 

Lá na rua

A rua antigamente, tinha um papel fundamental na vida urbana pública, nas relações entre as pessoas, hoje a rua morreu como espaço público (Koolhaas, 1995), perdeu parte de sua função social, não proporciona mais encontros como antes. Se tornou um local hostil, de medo e insegurança, principalmente nas metrópoles, poucos param como observador, ou para o ócio ou descanso. Ela se tornou apenas uma rua na sua função primária, ou seja, um local de comércio, passagem e transporte. A praça também perdeu parte de sua função de multiplicidade, assim como a rua. O espaço de comunicação, a praça da atualidade se encontra no ciberespaço, nos aplicativos de celular, os encontros virtuais são mais cômodos e rápidos, e principalmente, não apresentam perigo, as formas de interação se transformaram. Para Koolhaas (1995), “A escrita da cidade pode resultar indecifrável e defeituosa, mas isso não significa que não haja escrita: pode ter acontecido simplesmente que tenhamos criado um novo analfabetismo, uma nova cegueira”.

                Michel de Certeau (1998) afirma que, a redistribuição do espaço através de dispositivos que reorganizam o poder clandestinamente transforma o lugar em um operador de vigilância generalizada. Quando o espaço público passa a ser perigoso, essa tal rede de “vigilância” se estende, funcionando como mecanismos de disciplina, e a própria população que alimenta esse sistema. É importante destacar que nem todos entram nesses procedimentos de ordenação sócio-política, há aqueles que não se conformam, ou que “não fazem parte”, os indisciplinados que vão de contrapartida. Os usuários que possuem sua “própria maneira de fazer e de estar” e que a partir de ações quase microbianas se proliferam dentro dessas estruturas, pelas brechas, aparentemente organizadas, e alteram o funcionamento através de diversas “táticas” de sobrevivência em conjunto com as particularidades das práticas cotidianas.

A rua, então, morreu como espaço público para uns (Figura 2), enquanto para outros é o principal local de ação e de resistência na sua forma mais viva e ativa. Nem todos possuem acesso ao ciberespaço, ao espaço da vigilância, ao espaço dos encontros virtuais, e são essas pessoas, desviantes, que se adaptam às novas formas de ocupação e se mantém na vivência tátil. Sem romantizar a realidade das cidades brasileiras que possuem cada vez índices mais altos de desigualdade social e pobreza, o que acaba estratificando os níveis de poder e definindo sem muita possibilidade de variação quem é o vigilante, quem é o vigiado e quem é insignificante dentro do contexto da cidade capitalista.

Figura 2 – colagem fotográfica: calçadão antes da reforma.
Fonte: composição elaborada pela autora, a partir de acervo próprio, 2019.

Assim sendo, para compreender o local de estudo, o calçadão da Avenida São João se localiza no centro da cidade de São Paulo (Figura 3) e segundo Somekh; Campos (2002), antigamente detinha o papel de ligação do tráfego de veículos e pedestres entre o Centro Velho e o Centro Novo e possuía grande fluxo de pessoas da elite paulistana. Com as reformas de alargamento durante o séc. XX e a construção do Calçadão Anhangabaú durante os anos 1990, acabou se tornando parte das vias de acesso exclusiva para pedestres.

Ao seu redor se encontram importantes edifícios históricos como o Palácio dos Correios e antigos hotéis de luxo, que hoje apresentam diversos outros usos, desde comerciais até ocupações de movimentos pró moradia. Além de edifícios históricos, há também construções recentes como a Praça das Artes, que faz parte da nova rota cultural do centro.

Figura 3 – mapa de localização e situação.
Fonte: composição elaborada pela autora, a partir de acervo próprio, 2019

 

Figura 4 – mapa psicogeográfico 1.
Fonte: composição elaborada pela autora, a partir de acervo próprio, 2019.

 

Figura 5 – mapa psicogeográfico 2.
Fonte: composição elaborada pela autora, a partir de acervo próprio, 2019.

Os mapas psicogeográficos resultantes da metodologia investigativa da Teoria da Deriva de Debord (1957) citado por Jacques (2003) (Figuras 4 e 5) de apreensão do espaço a ser explorado, são composições afetivas das identificações e reconhecimentos dos bairros Sé, Anhangabaú e República, principalmente. A cidade pode ser diluída em unidades de ambiência, expressos com maior ou menor concentração de elementos espaciais e de acontecimentos, e outros através das linhas, em que se relacionam a questão da mobilidade urbana e das barreiras físicas, psicológicas, sensoriais e sociais. A área de estudo se encontra nessa conjuntura como uma incógnita a ser diluída.

 

Forças moleculares

As cartografias do local de estudo (Figuras 6 a 14) reconhecem um plano de forças, conceito explicado por Escóssia e Tedesco (2015), que faz parte dos efeitos de subjetivação da realidade. As cartografias visam à amplificação de nossa concepção de mundo para incluir o plano movente da realidade apreendida, dessa forma ela funciona ao mesmo tempo como pesquisa e intervenção, uma vez que ao acessar o plano das forças é consequentemente habitá-lo.

O coletivo de forças não deve ser explicado através das lógicas dicotômicas de compreensão da sociedade, mas através da visão de reciprocidade, pois o plano das formas e o plano das forças constroem relações e cruzamentos que produzem a realidade. Segundo Deleuze e Parnet (1998) citados por Escóssia e Tedesco (2015, p.93) o plano das formas corresponde ao plano de organização da realidade, dos objetos, dos contornos e do que é reconhecível. No entanto, esse mesmo plano se abre à variações quando se compõe juntamente ao coletivo de forças, resultando em realidades atemporais, que podem ser explicadas pelas coagulações entre os diversos vetores.

A delimitação formal dos objetos do mundo resulta na lentificação das forças em um dado momento, o que promove a falsa sensação de estabilidade. Assim,

                                                   

Graças à provisória estabilização dos jogos de força somos convencidos da universalidade do mundo a nossa volta.

(....) O plano de forças pode ser explicado por ser relações de movimento e de repouso, de velocidade e de lentidão, entre elementos não formados, relativamente não formados, moléculas ou partículas levadas por fluxos. Se ele desconhece figuras conceituais ou empíricas, tampouco conhece sujeitos, os grupos sociais, as coletividades, a sociedade. (DELEUZE E PARNET, 1998, p.8 apud. ESCÓSSIA E TEDESCO, 2015, p.95)

 

A metaestabilidade, de acordo com Escóssia e Tedesco (2015), é um estado que foge ao equilíbrio, mas não se encontra em desequilíbrio, são partículas de materialidade energética descontínuas que estão em constante movimento e não podem ser delimitáveis em contornos precisos, portanto podem ser descritas como fluxo energético, com variações constantes, resultantes do equilíbrio das dinâmicas das forças.

No plano coletivo de forças, não existem regras universais ou modos privilegiados de relações, as diferenças multiplicam-se nas diversas composições efêmeras das camadas de forças, e essas pluralidades geram dinâmicas e novas formas de assimilação do espaço.

Desse modo, a individuação é definida como processo através do qual ocorre a constituição das formas individuadas, dos indivíduos físicos, orgânicos, psíquicos e sociais.

Portanto, a tomada de forma pode se dar em duas dimensões, a individuada que seria a repetição de si, com regularidades delimitáveis. E a pré-individual ou transindividual que seria constituída por pontos singulares e distinguidas através de diferenças potenciais, alheias a ordenação, que faz parte do sistema metaestável, rico em potenciais, intensidades e singularidades segundo Escóssia e Tedesco (2015).

A sobreposição dos planos dessimétricos na dimensão transindividual faz com que haja a necessidade de diferentes funcionamentos, pois ocorre a criação de estados críticos e situações problemáticas, e com isso surgem novos princípios capazes de lidar com a incompatibilidade. Segundo Escóssia e Tedesco,

 

Todo ser individuado (um indivíduo, um grupo social, uma instituição) permanece, após a individuação, com uma carga pré-individual que pode ser ativada a qualquer momento, o que os torna seres sempre inacabados e em permanente processo de individuação. (2015, p.98)

 

Ainda segundo as autoras, novas formas surgem a partir de novos estados críticos, gerados através da comunicação entre as dimensões. Desse modo, o pesquisador que estuda o espaço público sem levar em consideração as forças subjetivas, espaciais e empíricas, que não fazem parte das realidades fixas, mas efeitos e agregados de processos contínuos de movimento, entende a realidade de forma superficial e estática. A cartografia busca a provocação do olhar para atingir outras dimensões de compreensão dos processos que marcam os acontecimentos do mundo.

A transindividualidade deve ser construída fora do ato especulativo, trata-se de modos de fazer específicos (ASPE E COMBES, 2004 apud. ESCÓSSIA E TEDESCO, 2015, p.100) que através da cartografia podem operar entre pesquisa e intervenção, e a representação de qualidades, diferenças e forças livres de organização do pensamento representacional e das ações cotidianas. É do encontro, do contágio recíproco ali operado entre essas diferenças, constituintes do plano coletivo de forças que as novas formas ganham realidade.

Nesse contexto, a cartografia base (Figura 6) constitui o mapa afetivo do local de intervenção. A partir das apreensões e cognições feitas através de inúmeras derivas com idas ao local, foi possível identificar e reconhecer territórios específicos nos espaços dos edifícios e da rua, forças, afetos e sobreposições da dinâmica do lugar.

Apesar do Anhangabaú estar em obras, o fluxo de pedestres se manteve denso, a cartografia de fluxos (Figura 7) é o reconhecimento de como se deu o trânsito de pessoas e ambulantes durante as derivas no período citado. O tracejado não se fecha pois o fluxo é contínuo, embora existissem barreiras visuais e físicas. É possível notar rastros que se concentraram nas laterais dos obstáculos, formando núcleos com dinâmicas únicas.

 

 

Figura 7 – Cartografia de fluxos. Fonte: composição elaborada pela autora, 2019.

 

Durante o estudo foi possível identificar e reconhecer os territórios do habitar nos espaços (Figura 8) dos edifícios do entorno e como suas dinâmicas se expandiram para o calçadão, principalmente demonstrando e diferenciando o que se encontrava dentro e fora do plano de formas.

As linhas fechadas permitem pouco extravasamento, por sua vez, as linhas tracejadas são mais permeáveis, viabilizando trocas. As apropriações desse espaço não são fixas, a cor escoa e se sobrepõe, as setas são representações das forças atuantes captadas.

Figura 8 – Cartografia de usos. Fonte: composição elaborada pela autora, 2019.

As relações espaciais (Figura 9) se conectam com os usos e com a relação público/privado dos edifícios. Nesse momento é possível identificar que mesmo espaços abertos fisicamente possuem barreiras psicossociais e socioeconômicas. Existem conflitos de relações, territórios e necessidades.

 

Figura 9 – Cartografia relações espaciais. Fonte: composição elaborada pela autora, 2019.

Reconhece-se, o desvio (Figura 10) nos espaços abertos da rua, pois é o local onde o informal é permitido mesmo que vigiado. A presença de corpos desviantes demonstra certa tolerância e incapacidade de esconder o que não é socialmente aceito. As bordas e microespaços residuais são preenchidos, a apropriação acontece de forma orgânica, passiva e microbiana, e faz disso uma tática de sobrevivência.

 

Figura 10 – Cartografia desviante. Fonte: composição elaborada pela autora, 2019.

 

A cartografia sobre a luz (Figura 11) demonstra a incidência solar sobre os edifícios. A existência ou a ausência de iluminação ditam modos de apropriação e dinâmicas no espaço: o caminhar pelas bordas das edificações ou dos tapumes, trocar barracas de camping de lugar e pendurar roupas para secar.

 

 

A dinâmica dos espaços preenchidos demonstrados na cartografia de cheios e vazios (Figura 12) varia muito com as necessidades dos usuários na época e no dia. Os vazios altos, locais que não possuem toldos, sacadas ou copas de árvores, são menos maleáveis. Porém, no nível do chão, os espaços residuais do dia anterior podem ser os preenchidos do dia seguinte, por isso a diferença na expressão da cartografia, através de manchas fluídas.

Figura 12 – Cartografia cheios e vazios. Fonte: composição elaborada pela autora, 2019.

 

 

Alguns territórios das necessidades foram identificados ao longo da pesquisa (Figura 13), como por exemplo: o desejo sobre o ato de estar, pessoas improvisando locais para sentar, observar, se alimentar; além do desejo por mais lugares de sombra.

A última cartografia (Figura 14) é, literalmente, a sobreposição de todas as camadas de forças e diferenças identificadas ao longo do estudo. Apesar do recorte do lugar ser uma área relativamente pequena para o centro de São Paulo, o exercício complexo de identificar e reconhecer as camadas e encadeamentos dos territórios habitados despertou questionamentos e permitiu análises menos superficiais da realidade apreendida.

Figura 14 – Cartografia geral das camadas. Fonte: composição elaborada pela autora, 2019.

Devir e alteridade

A maioria dos planos urbanísticos que foram implantados na cidade de São Paulo desde o fim do séc. XIX, buscaram a cidade utópica, limpa e bonita, livre dos problemas urbanos e sociais, e como tudo que é utópico não conseguiu ser implantado, fundamentalmente, quando trazido para a realidade.

A heterotopia, conceito utilizado por Michel Foucault (1967), ou o espaço outro, que diferentemente da utopia, é um entre espaços, pois se encontra entre o mundo real e o mundo sem lugar ou o mundo ideal, imaginário, constrói novas representações de mundo, permitindo abri-lo e pensá-lo como multiplicidades, ao contrário das noções dicotômicas, possibilita a justaposição nas relações de espaço-tempo (RAGO,2015, p.14). É a mistura análoga à realidade do espelho. Essa realidade virtual, que devolve-nos a nós mesmos e permite a sobreposição de existências e assim a possibilidade de enxergar o que não poderia ser visto, o outro de nós mesmos, e levando para outra dimensão o outro da sociedade, os lugares que estão fora do contexto aceitável, mas permite também esconder aquilo que não queremos enxergar. Para Foucault, “A heterotopia consegue sobrepor, num só espaço real, vários espaços, vários sítios que por si só seriam incompatíveis.” (1967, p.6)

No contexto ideal de sociedade, a razão sempre tenta afastar o outro, a diferença. Deste modo, o espaço do outro é suprimido enquanto é imposto o espaço do mesmo. E nessa mistura e sobreposição que se encontram os conflitos e tensões, evidenciando as relações de poder entre as partes.

Foucault (1967) explica que o navio da heterotopia como sociedade se expõe à diversos fatores, é um lugar que antes era um não lugar, existe por si só e é fechado sobre si mesmo, mas ao mesmo tempo se abre e se joga no mundo, no oceano de possibilidades e conexões, navega. E de acordo com Rago (2015) permite nos reinventarmos e darmos novos sentidos aos espaços físicos, geográficos, políticos, afetivos ou subjetivos, que aprendemos a ver de maneira empobrecida na Modernidade. As civilizações crescem cada vez mais e se espalham, cada uma no seu país, mas em todos os lugares, a globalização permitiu isso, mas o início se deu a partir das grandes navegações exploratórias do século XVI. Hoje, a integração se expande através do avanço tecnológico, a comunicação, as transações acontecem de forma instantânea, até o turismo é possibilitado sem nunca a pessoa ter saído de casa.

A contradição ocorre quando esse navio da heterotopia, o grande escape da imaginação, segundo Foucault (1967), perde o controle sobre si e afunda, esgotando-se os sonhos e as aventuras, substituindo o que antes era expansão por retração e controle. O local das ações humanas muda, passa de um espaço para outro, em que ao mesmo tempo que é difícil de controlar, é mais fácil de ser controlado.

 

O navio é a heterotopia por excelência. Em civilizações sem barcos, esgotam-se os sonhos, e a aventura é substituída pela espionagem, os piratas pela polícia. (FOUCAULT, 1967, p.9)

 

Conclusão

Durante o processo de estudo realizado em 2019, foi iniciado a reforma no Vale do Anhangabaú, Projeto da Prefeitura que faz parte do processo intitulado “Centro Diálogo Aberto” e que propôs a volta do projeto de transformar o vale em um parque, a justificativa para a reforma, segundo a Prefeitura, é do projeto de reurbanização permitir a transformação da região em uma área animada, segura e atraente, redefinindo os significados de uso e qualificando os espaços urbanos. Como o início da avenida São João faz ligação direta com o local da reforma e no plano de requalificação faz parte de um dos principais fluxos para pedestres, foi influenciada diretamente e se encontrava em mutação, assim como o restante do Vale. Desse modo, a Avenida São João na época da reforma, perdeu parte das conexões visuais, como foi possível observar nas cartografias (figuras 6 a 14) e de deslocamentos e concentrou o fluxo de pedestres nas laterais próximas aos edifícios.

As requalificações dos espaços públicos buscam a melhoria dos lugares para pessoas especificas, sempre perpetuando o modelo urbanístico nos moldes capitalistas. O centro de São Paulo está voltando a se valorizar, principalmente através da rota cultural e de turismo, a busca pela melhoria visa claramente a gentrificação, medida recorrente nas cidades, projetos sendo propostos pela “minoria para a minoria” com disse Raquel Rolnik (2019).

O aumento do número da população de rua nesses últimos meses é nítido nos calçadões, inúmeras famílias, idosos e pessoas de todas as idades e gêneros passaram a ocupar os vãos dos edifícios e a parte de baixo de viadutos, há barracas de camping em diversos pontos do vale, inclusive nas laterais da Avenida São João.

A ausência de políticas públicas que possibilitem a inserção dessas pessoas na dinâmica formal da cidade através de moradias dignas e empregos fixos, fez com que o centro de São Paulo se transformasse em um grande campo de refúgio.

Há sempre a necessidade de melhorias no espaço público, obviamente, principalmente em relação às dinâmicas de circulação de pessoas e veículos, escoamento pluvial, canalização de rios, insuficiência de equipamento urbanos etc., pois o espaço está em constante transformação e sempre agrega novas necessidades e fatores.

Como resultado do urbanismo contemporâneo que estamos vivenciando, fazendo uma analogia ao termo “arquitetura da visibilidade” usado pela Rago (2015, p.52), o urbanismo da visibilidade e da vigilância potencializado recentemente pela pandemia, não levará a uma eliminação das barreiras sociais, físicas, psicológicas e de afeto, pelo contrário, talvez reforce as distâncias que já existem.

Portanto, a compreensão, fundamentada na experiência, enriquece as possibilidades do lugar e nos faz questionar o papel do arquiteto urbanista, a construção da cidade contemporânea para um futuro possível, as necessidades reais das pessoas e, principalmente, o que pode ser feito. O ser humano interfere no espaço e vice-versa, sempre na tentativa de se evitar o choque e neutralizar o inesperado, mas o que ocorre é o desdobramento de relações rizomáticas e sobreposições que resultam em lugares e indivíduos com particularidades únicas, mas que sempre vão influenciar o todo.

 

Bibliografia

CARERI, Francesco. Walkscapes: o caminhar como prática estética. São Paulo: ed. GG, 2013.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: Artes de fazer. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1998.

DELEUZE, G. e GUATTARI, F.Rizoma. Mil Platôs. Volume 1. Rio de Janeiro: ed. 34, 1995.

FOUCAULT, Michel. De outros espaços. In: conferência proferida por Michel Foucault no Cercle d’Études Architecturales, 1967.

GUATTARI, Félix. A restauração da paisagem urbana. Revista Patrimônio HAN (24). São Paulo, 1996, p. 293-300.

JACQUES, Paola B. Apologia da deriva. Escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003, p.13-39.

KOOLHAAS, Rem. A cidade genérica. Três textos sobre a cidade. Barcelona: ed. Gustavo Gili, 2010, p.29-66.

PASSOS, E; KASTRUP V. e da ESCÓSSIA L. Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, ed. Meridional, 2015.

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ROLNIK, Raquel. Leituras Brasileiras. Cidades: Ação e Reflexão. Direção: Rodolfo Pelegrin. São Paulo: Panama Filmes, 2019. Português. 22 min. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=CJGw3f91LEc >. Acesso em: 26 out. 2019.

SOMEKH, Nadia; CAMPOS FILHO, Cândido Malta. A cidade não pode parar: planos urbanísticos de São Paulo no século XX. São Paulo: Mackpesquisa. Ed. Mackenzie, 2002.

Data de Recebimento: 31/03/2021
Data de Aprovação: 27/07/2021