A ignorância da Revolta, de Edgar Cézar Nolasco.



João Paulo F. Tinoco1
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1580-8726



Resumo: Esta resenha tem o objetivo de apresentar a obra A Ignorância da Revolta produzida por Edgar Cézar Nolasco. Os poemas que estão na obra relatam vivências e histórias da vida que desenham a fronteira Sul do poeta rebelde. Sob a navalha dos estudos descoloniais, Nolasco volta o seu olhar para a particularidade do processo biográfico, em especial o seu local enunciativo a partir da fronteira Brasil – Paraguai. Sua escrevivência povoa um espaço com imagens do campo, do canto do urutau, da solidão do boi no campo, de pés de guaviras e ninhos de galinhas nas moitas de capim de barba-de-bode, de fumaças feitas pelo fumo de rolo, de um Deus bugre e de pessoas.

Palavras-chaves: Poesia; Nolasco; Estudos Descoloniais; Fronteira.

 

Abstract: This review has the objective to present the novel The Ignorance of the Revolt written by Edgar Cézar Nolasco. The poems which are in the novel relate the life and histories that trace the South border of the rebel poet. Under the cut of the decolonial studies, Nolasco turns his sight to the biographic process, especially his enunciative place from the border of Brazil – Paraguay. His writings reach a space with field images, the urutau singing, the solitude of the ox, the guavira trees and chicken nests in the barba-de-bode bushes, the rope tobacco smokes, the mestizo God and the people.

Keywords: Poetry; Nolasco; Decolonial Studies; Border.

 

Para abrir esta resenha, eu faço uma alusão do texto Perto do coração Selvagem do pesquisador Edgar Cézar Nolasco que está no livro Oráculo da Fronteira publicado em 2018 pela editora Intermeios. Proponho essa alusão como um introito para sublinhar o princípio operatório que o poeta Nolasco traça ao longo de sua letra e escrit(ur)a1, qual seja, o autor fronteiriço posiciona e marca sua presença como um exercício de (auto)inscrição, o seu bios, no/do pensamento descolonial atravessado pela crítica fronteiriça.

Com isso, Nolasco (2018; 2019) procura imprimir uma perspectiva de crítica descolonial para delinear uma escrit(ur)a de memórias e vivências que conseguem desarticular a ignorância da rebeldia. Além do mais, por meio da sua escrit(ur)a e as paisagens epistêmicas que tecem uma teorização fronteiriça vão aos poucos se construindo até formar um tecido, restando o labor de se desbiografar a cada poema (NOLASCO, 2019).

Ao longo dos anos como pesquisador, encontro acolhimento nas discussões que apreendo com autoras e autores por meio de seus livros. Nolasco é um desses autores em que eu compartilho minhas elucubrações e busco saberes outros para (re)escrever os meus trabalhos.

Discuto, questiono, rastreio entre os fossos do discurso práticas discursivas enviesadas no campo político e social como parte de uma cena investigativa de efeitos do real e sentidos da convicção. Práticas específicas que estão conectadas a uma multiplicidade de discursos, construindo um pensamento argumentativo a partir de Histórias Locais/Projetos Globais.2 (MIGNOLO, 2012).

Numa manhã, silenciado por questões emergentes, ebuliu o saber mais bonito de todos da literatura fronteiriça, qual seja, “a fronteira simboliza os lugares por onde sangram meus versos. Sangram para vida. Não posso querer ser todos os lugares. Sou a partir de meu lugar biográfico, histórico e ancestral a mim” (NOLASCO, 2019, p. 15).

Quanto mais se pensava com Nolasco mais eu me encontrava cortado pela navalha descolonial da revolta a partir da ignorância do não-questionar. A escrit(ur)a de Nolasco (2019) estava predestinada a saber que a Revolta é um discurso insurgente que (des)vela um pântano abissal/colonial para o qual converge a fronteira descolonial epistêmica. Uma voz deserdada cantou abandonada de si perto da fronteira sul latino-americana que buscava ser ouvida.

Para apreender o pensamento descolonizante da escrit(ur)a de Nolasco (2019) deve-se primeiro remover os olhos, os pensamentos, ideias, crenças, certezas que nos fazem prisioneiros, e, com muita coragem, colocar em um saco de lixo e jogar fora no primeiro recipiente de resíduos disponível.

Essas minhas primeiras palavras fazem um convite, qual seja, pensar o sujeito (enunciado social) contemporâneo, na obra de Nolasco (2019) o sujeito da margem, da fronteira, enquanto corpo dissidente, corpo não-dócil que constrói estratégias discursivas que visam ir de encontro ao controle, limitação e singularização do sujeito andariego, uma vez que também o corpo é interpelado pelos mecanismos de dominação. “E a melhor dominação, sabemos, é aquela que, naturalizada, não aparece como tal” (PORTO-GONÇALVES, 2015, p. 9).

Edgar Cézar Nolasco é professor de Teoria da Literatura e Literatura Comparada na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).  A obra que estou a analisar foi publicada pela editora Intermeios (São Paulo) em 2019. A Ignorância da Revolta está dividia em quatro partes somando no total 106 páginas. Os poemas do livro procuram entrelaçar o poético e a teorização fronteiriça, a fim de mostrar para seu leitor que o que é da ordem da poesia e da teorização podem ser (des)construídas quando do processo da escrit(ur)a, sob a rubrica da descolonização em que as dicotomias são colocados à crítica, como o saber da margem x saber hegemônico, o conhecimento x a ignorância, o centro x fronteira, rebeldia x submissão, o colonial x descolonial. Sob a releitura de aspectos como o estranhamento de Clarice Lispector, o portunhol fronteiriço de Douglas Diegues e a ficção de Jorge Luís Borges, para citar alguns, Nolasco (2019) delineia os trinta e um poemas contidos na obra.

A poesia é geralmente uma composição intuitiva, sensível e, se for analisada, deve-se levar em consideração, antes de tudo, o seu lado deserdado. Não é apenas a arte, é sentir a arte. “Saber o belo não é sentir o belo” (NOLASCO, 2019, p. 63). A poesia é um outro tipo de organização de palavras e estrutura que carregam significados para despertar emoções e/ou reflexões.

Há uma poesia que tem emergido no Sul (MENESES; SANTOS, 2010), desvelando uma paisagem fronteiriça de onde sangramentos emanam de uma escrit(ur)a campesina. São histórias locais e singulares, e que correm nas veias de outras pessoas a partir de seus espaços enunciativos. A poesia de Nolasco (2018; 2019) serpenteia nessas rachaduras do solo fértil da fronteira, Brasil e Paraguai. É uma ação poética que recusa a possiblidade de que o centro trace sobre o papel hegemônico as vivências que são geridas a partir da margem e pelo povo da margem.

Vejo a poesia de Nolasco (2018; 2019) como versos livres/selvagens/fronteiriços. Desse modo, Nolasco constrói um estilo próprio dentro do gênero literário. Para quem tem interesse na obra, há momentos em que se pode perceber que Nolasco serpenteia como uma cobra nas folhas verdes e secas sobre um solo prenhe de vieses outros construídos por um Deus mestiço, um Deus bugre subalterno.

Como o veneno da serpente que corre pelo sangue quando injetado pela picada, bem como injetado pela medicina para combater os traumas do veneno, os poemas de Nolasco (2019) são vida e morte, sabor e dessabores ao mesmo tempo. Sua escrit(ur)a é mediada pela hemorragia; é o esquecimento e a lembrança da dor que o compele a escrever. A saudade do pai, o olhar enamorado de seu companheiro, o cheiro da fumaça do cigarro de corda, o urutau cantando, o capim barba-de-bode, o cheiro da laranja, as florezinhas do campo que constroem a (r)existência da Revolta na fronteira-sul. Assim, o leitor é convidado burlar “a rigidez imposta pela poética moderna que ainda grassa nos trópicos” (NOLASCO, 2018, p. 62).

Os objetivos que motivam ler a poesia de Nolasco (2019) seguem por dois caminhos: o primeiro porque sua poesia é atravessada por uma crítica latente da própria escrit(ur)a como transformação; e segundo, os poemas de Nolasco (2019) relatam histórias biográficas que alcançam o leitor através dum corte epistemológico erigido no saber fronteiriço-descolonial.

O livro de poesia A ignorância da revolta (NOLASCO, 2019), fecha a trilogia iniciada com o livro Pântano (2014) e Oráculo da fronteira (2018). Na obra A ignorância da revolta, o autor volta-se para uma inscrição de sua própria biografia (bio= vida; grafia= escrita) através da narrativa poética, e o faz a partir de seu Local Geoistórico, ou seja, suas histórias locais, suas escrevivências, uma escrevivência poética fronteiriça.

O título da obra, Ignorância da revolta, convida o leitor a repensar a revolta como práxis, o agir que orienta e direciona para a (r)existência (MIGNOLO; WALSH, 2018). A ignorância da revolta é um trabalho laborioso de reflexão e de interpretação sobre os limites que cercam o saber da margem. É sobre a contraditória dimensão epistemológica, isto é, a pluralidade infinita de saberes finitos sobre a experiência humana no mundo.

Os leitores interessados pela obra serão convidados a refletir sobre os meios e caminhos de resistência que grupos sociais que estão à margem encontram para (sobre)viver, bem como reflexões teóricas da descolonialidade que o autor consegue diluir ao longo dos poemas sob o viés do conceito de Fronteira.

Vale dizer que a noção de Fronteira aparece no rol de tipografias das ciências sociais. E ao longo dos estudos outros sentidos vão se (des)construindo, alcançando, assim, outros campos de estudo como os estudos linguísticos, nas artes e literaturas. Sabemos que a fronteira é muito mais que uma (de)marcação.

Faço uma alusão do pensamento do filósofo alemão Martin Heidegger (2002) para quem a fronteira não é o ponto onde algo termina, mas é o ponto a partir do qual algo começa a se fazer presente. Seguindo nessa mesma esteira, a fronteira pode ser pensada não só como uma linha mapeada cartograficamente e descrita em seus marcos geodésicos, mas também como uma linha de fronteira simbólica que acampa relações de poder e saber que sustentam a presença da exclusão, do preconceito, da violência, etc., tornando mais complexa a ideia de fronteira.

Nolasco (2019) se ancora nos estudos do discurso da crítica descolonial, erigindo sua discussão a partir de seu bio e lócus (biolócus): o Local Geoistórico. O autor esclarece que quando poetas optam escreviver a partir do lugar de onde o sujeito pensa e fala, por exemplo, no seu caso a fronteira-sul (Paraguai/Brasil), alarga a possibilidade de exumar histórias locais e memórias-de-sobrevidas. Visto que essas histórias fronteiriças emergem deixando rastros para que o poeta opte em ouvi-las e, a posteriori, lhes dê privilégio, movimento que provoca, por conseguinte, uma ruptura epistemológica.

Sob um olhar liminar, cujo princípio é abrir possibilidades de se pensar a partir das margens, essas vozes desvelam e de(a)nunciam a herida aberta poética que sangra, dói e escorre campo a fora. O poeta pode não conseguir se movimentar, pensar ou morrer, então, ele balbucia sua voz gutural que ninguém escutaria (NOLASCO, 2019). A escrit(ur)a é a sua sobrevivência e existência.

Nolasco propõe uma proposta indubitavelmente significativa, ao se inscrever num método erigido fora do sistema colonial moderno e ocidental, a saber, O Método do Discurso Fronteiriço, que visa o desprendimento do discurso moderno com o desejo de habitar a fronteira e empreender reflexões a partir de, isto é, a partir das margens e não sobre. O professor discute a opção que o poeta tem de apreender uma consciência fronteiriça para contrapor as teorias cristalizadas que vêm dos grandes centros hegemônicos, de tal forma que essa opção possa fazer com que o poeta engendre a prática de aprender a desaprender, para poder assim (re)aprender, ou seja, atentar-se à ignorância da revolta.

Pela abordagem que a escrit(ur)a de Nolasco apresenta, A ignorância da Revolta é um livro que merece ser conhecido por todos aqueles que querem compreender e compreendem o entre-lugar da fronteira, mais do que um lugar de contradição e questionamento, uma prática ligada à valorização dos saberes marginalizados, no sentido de ver e pensar a partir das margens.

 

Referências Bibliográficas

SANTOS, Boaventura de S.; MENESES, Maria Paula. (Orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: G.C., 2010.

MIGNOLO, Walter. Local histories/Global designs: coloniality, subaltern knowledges, and border thinking. Princeton: Princeton University Press, 2012.

MIGNOLO, Water; WALSH, Catherine. (Orgs). On decoloniality: concepts, analytics, práxis. Durham: Duke University Press, 2018.

NOLASCO, Edgar Cézar. Pântano. São Paulo: Intermeios. 2014.

NOLASCO, Edgar Cézar. Oráculo da fronteira. São Paulo: Intermeios, 2018.

NOLASCO, Edgar Cézar. A ignorância da Revolta. São Paulo: Intermeios, 2019.

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo, parte I. Trad. de Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Editora Vozes, 2002.

PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. Apresentação da edição em português. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do poder: eurocentrismo e ciências sociais. Buenos Aires: CLACSO, 2015, p. 09-15.

 

Data de Recebimento: 02/03/2021
Data de Aprovação: 12/05/2021


1  Uso escrit(ur)a porque tomo a escrita como escritura, um documento legal e lavrado; como um palimpsesto de vivências que sobrepõem outras vivências e biografias.

2  Os usos dos / e ( ) que dividem e ao mesmo tempo unem os termos remetem ao espaço do pensamento fronterizo. A partir duma perspectiva histórica universal, a barra e os parênteses são invisíveis, sendo somente visíveis quando habita e pensa a partir da fronteira. (MIGNOLO, 2012).