Considerações iniciais
Em um movimento artístico de resistência, a artista visual argentina Ailén Possamay criou a intervenção artística “Eso que llaman amor”. A referida intervenção é constituída por um conjunto de stencils pintados em muros de Buenos Aires, capital argentina, desde o início de 2018. Cada peça é composta por uma gravura, pintada à mão, que retrata mulheres desempenhando algum trabalho doméstico, acompanhada da frase “eso que llaman amor es trabajo no pago”. O enunciado que, junto com as gravuras, compõe as intervenções artísticas expostas nas ruas b de Buenos Aires é, originalmente, de autoria da intelectual e ativista italiana Silvia Federici.
Federici é mundialmente conhecida por sua produção de divulgação científica, voltada à discussão das relações de exploração e dominação de classe, especialmente no que diz respeito ao trabalho doméstico, e também por seu envolvimento com movimentos feministas e anticapitalistas. Para a autora, o que sustenta a estrutura capitalista é uma modalidade de trabalho, não remunerada, que é desempenhada majoritariamente por mulheres: o trabalho doméstico, reprodutivo e de cuidado. Nas palavras da autora, as mulheres “trabalham o tempo todo. Trabalham cuidando de todo mundo, da casa, ajudando as pessoas a viver e ajudando as pessoas a morrer” (FEDERICI, 2019, n.p).
Com sua intervenção urbana, Possamay faz a discussão proposta por Federici romper “os muros” da academia e chegar, literalmente, aos muros da cidade. Ao colocar lado a lado a frase da ativista feminista e imagens de mulheres trabalhando em atividades domésticas, a artista traz para o espaço urbano uma discussão política – as relações de gênero e de trabalho na nossa formação social – que, por efeito da ideologia dominante, vem sendo apagada sob a evidência de que é natural que as mulheres desempenhem atividades domésticas, e é natural que essas atividades não sejam remuneradas. A partir disso, chegamos à questão que norteará a discussão aqui proposta: como as intervenções urbanas de Possamay atuam na disputa pelos sentidos de trabalho?
Para que possamos pensar sobre o funcionamento discursivo das intervenções artísticas urbanas produzidas por Possamay, precisamos, primeiramente, situar a arte em relação à problemática dos discursos. Para esse recorte, nos interessa o ponto em que a arte é atravessada pelo político, ou seja, quando a arte se coloca na disputa pelos sentidos colocados em circulação na nossa formação social. Esse viés, mais do que uma escolha, é um imperativo para nosso gesto analítico. Esse imperativo se presentifica, incontornavelmente, por duas justificativas. Primeiro, pela demanda colocada pela própria materialidade em análise que, a partir de sua composição, reivindica lugar na disputa política pelos sentidos de trabalho e de trabalhador/a. Segundo, pelo lugar teórico de onde direcionamos nosso olhar analítico, pois entendemos que teorizar a partir do quadro conceitual da Análise Materialista de Discurso é constitutivamente um gesto político.
Para tanto, organizamos o presente artigo em duas seções, seguidas das considerações finais. Em um primeiro momento, traremos para discussão alguns sentidos sobre trabalho que circulam na formação social atual, enfocando a disputa política pelos sentidos sobre o trabalho feminino. A seguir, apresentaremos nosso gesto interpretativo, tendo como materialidade em análise duas imagens de intervenções urbanas realizadas por Ailén Possamay nas ruas de Buenos Aires.
O trabalho e o político
Para dar início à reflexão que trata sobre o político nas relações de trabalho generificadas, mais especificamente sobre o trabalho não remunerado de reprodução da força trabalhadora, retomamos a teorização da filósofa feminista-marxista Silvia Federici, uma vez que, como já foi dito, na obra que constitui nosso objeto de análise há a presença de uma frase da autora e essa presença produz efeitos na materialidade a ser interpretada. Adiantamos à leitora e ao leitor que, para esta seção, foram selecionadas, principalmente, teóricas feministas marxistas para que mantivéssemos a coerência com o quadro epistemológico da AD1, que tem o materialismo histórico como uma parte de seu tripé de constituição.
A passagem da citação de Federici do espaço acadêmico para as ruas de Buenos Aires, elemento primeiro a nos convocar para a construção de um gesto de análise, é bastante coerente com a prática política da filósofa que, em sua trajetória, articula sua teorização à prática militante, e vice-versa. A ativista, que até mesmo já participou de uma campanha pela remuneração do trabalho doméstico na década de 1970, defende a impossibilidade de construir uma revolução desconsiderando-se a exploração do trabalho doméstico e do trabalho de reprodução da vida. Em outras palavras, Federici entende a desvalorização do trabalho de cuidado e a naturalização de sua execução por parte das mulheres como condição para o funcionamento do sistema capitalista: desnaturalizar esses processos é, portanto, desestruturar o capitalismo.
A discussão sobre o trabalho de cuidado não remunerado emerge como pauta feminista quando a análise marxista do trabalho excede o espaço da fábrica, vertente impulsionada pelo movimento anticolonialista, dando visibilidade a outras formas de exploração do trabalho pelo capital, de modo que a casa e o trabalho doméstico passam a ser entendidos como a base do sistema fabril e a dona de casa proletária é ressignificada como trabalhadora da reprodução da força de trabalho (FEDERICI, 2019). Na nossa formação social capitalista e patriarcal, se o trabalhador chega ao seu local de emprego com roupas limpas, alimentado e descansado é porque alguém lavou suas roupas, o alimentou e ofertou uma casa com uma cama limpa para que pudesse descansar, além de afeto para acalmar as frustrações acumuladas durante o expediente, para que pudesse, no outro dia, vender sua força de trabalho novamente. Alguém também cuidou de seus filhos, desde as necessidades mais urgentes e práticas, como higiene e alimentação, até o cuidado com a educação e o estabelecimento de laços afetivos essenciais para a reprodução do futuro trabalhador. A todas essas tarefas executadas no lar e não remuneradas corresponde o trabalho não remunerado de reprodução da força trabalhadora, trabalho de cuidado não remunerado ou trabalho doméstico não remunerado. A ideologia dominante, no entanto, chama esse trabalho de amor2.
Existe um saber naturalizado, independentemente da nossa posição política, ideológica e de classe, que nos permite preencher o lugar do dêitico alguém. Esse pronome indefinido é preenchido histórica e ideologicamente pela evidência do sujeito mulher; quando nos referimos à evidência do sujeito mulher, nos referimos a uma série de comportamentos naturalizados para serem reproduzidos, a saberes que determinam o modo como esses sujeitos se subjetivarão e os espaços pelos quais circularão. Isto é, entendemos que as mulheres são interpeladas, desde antes de seu nascimento, para identificarem-se com a feminilidade que, na nossa formação social, está associada, principalmente, à cisheteronormatividade e à inclinação pela maternagem. Esse desejo por ser mãe e realizar toda a sua potência, essa instalação de um amor imediato e repentino pelo outro que foi parido, é, nas palavras de Homem e Calligaris (2019, p. 69), “uma construção radical e altamente ideológica”. A ideologia dominante interpela os sujeitos para identificarem-se à cisheteronormatividade e interpela as mulheres para que estas desejem a maternagem, tudo para manter a geração e preparação da força de trabalho.
É importante referir que a posição ocupada pelas mulheres na nossa formação social atual é parte de um processo que alia o patriarcalismo à transição ao capitalismo. A única forma de produzir força de trabalho para ser explorada pelo capitalismo é através de uma política de controle dos corpos das mulheres, para que a única função de suas vidas seja destinada à reprodução. Assim, surgiram as diferentes punições para as mulheres que abortavam, que não queriam ter filhos, que não tinham marido ou, ainda, para as mulheres que assassinavam os filhos recém paridos. Nesse processo de transição para o capitalismo houve o cerceamento das mulheres através de controle e vigilância constantes, com punições extremas para aquelas que não se coadunavam à nova ordem social imposta pelo político e pelo religioso da época. O trabalho de produção de vida é, portanto, acompanhado do imaginário de mulher há séculos, sendo que o funcionamento patriarcal não pode, portanto, ser descolado do capitalismo3.
A realização do trabalho de cuidado não remunerado pela mulher é tão óbvia em nossa formação social que aparece em nossas práticas como algo natural, não questionável. Quando Federici ressignifica essa exploração, que, pelo funcionamento da ideologia, recebe o rótulo de amor, é posta em jogo uma disputa de sentidos pela posição dominante. É nessa disputa que podemos observar mais claramente o político4. Na perspectiva materialista da Análise de Discurso, o político relaciona-se às relações de força, à disputa pelos sentidos colocados em circulação por posições antagônicas. Conforme Orlandi (2014, p. 27):
o político está no fato de que tanto os sentidos como os sujeitos – constituídos em determinadas condições de produção (circunstâncias da enunciação e contextos sócio-históricos) e inscritos em formações discursivas específicas – são divididos: divididos em si e entre si.
Dizer que os sujeitos e os sentidos são divididos em si e entre si pressupõe reconhecer o sujeito como ser assujeitado à ideologia e constituído pelo inconsciente, ou seja, pressupõe reconhecer que o sentido é produzido a partir de diferentes formações discursivas presentes no todo complexo com dominante (PÊCHEUX, 1997); desse modo, o sentido nunca pode ser único, e, se o sentido não é único, há disputa pela hegemonia. Da posição de analistas de discurso, entendemos que aquilo que é da ordem do simbólico e do imaginário é político. Assim, ainda que não falemos explicitamente sobre o político em todos os textos produzidos no campo da AD, ele está sempre presente em nossa escrita, uma vez que pensar a partir de uma teoria materialista do discurso significa estudar os processos de produção de sentidos (divididos), calcado nas condições reais de existência dos sujeitos (também divididos). Por esse motivo, a AD se posiciona como uma ciência política, interpretativa e não neutra.
Sabemos que, majoritariamente, as mulheres conciliam o trabalho remunerado com o trabalho não remunerado, pois dependem do dinheiro do salário para garantir a sua subsistência e a subsistência de seus filhos. Ao encontro de Silvia Federici, Cecília Toledo entende o trabalho remunerado executado por mulheres pelo viés da dupla exploração. Segundo a autora, o que mudou com a inserção em massa das mulheres no mercado de trabalho remunerado após a Revolução Industrial foi o fato de elas passarem a ser duplamente exploradas: em casa, pela família, e no local de emprego, pelo patrão, nos dois lugares pelo capital. Em outras palavras, a mulher sempre foi explorada pelo capital5, pois cuidava de seu trabalhador e lhe fornecia renovada força de trabalho por meio da geração de filhos; quando incorporada ao trabalho remunerado, passa a vender sua força de trabalho, geralmente por um valor abaixo daquele pago ao homem.
Sobre a desvalorização do trabalho executado por mulheres, Toledo (2003) diz que, às mulheres, geralmente são imputadas tarefas de cuidado ou tarefas executadas por repetição mecânica, nas quais o pensamento crítico e a tomada de decisões não sejam necessárias, de modo que sua função é servir ao capital como trabalhadora não qualificada. Segundo a autora, isso acontece pelos seguintes motivos: para que as mulheres continuem executando as “tarefas de reprodução da mão-de-obra no lar, de onde o capital extrai uma parte de mais-valia; continue se ocupando das tarefas domésticas, com as quais supre as deficiências do Estado em relação aos serviços públicos, receba salários precários e sirva de mão-de-obra barata e descartável”6 (TOLEDO, 2003, p. 47).
A autora aponta que, nas relações capitalistas de produção, o trabalhador vende tempo de vida para o empregador em troca de um salário que, na maioria das vezes, mal garante sua subsistência. No que diz respeito ao trabalho doméstico executado pelas mulheres em seus lares, trabalho essencial para reprodução social, o capitalismo dispõe do tempo de vida da mulher sem que haja qualquer tipo de remuneração e, ao se apropriar do tempo e da força da mulher, o capital, sempre articulado ao patriarcado, reproduz subempregos e sub-salários para as mulheres. O capitalismo alimenta a desigualdade de gênero, porque esta é vital para a reprodução do modo de produção dominante, no qual as mulheres conciliam a jornada de reprodutora de mercadorias à de força de trabalho (TOLEDO, 2003). Com essas considerações, é possível compreender como opressão e exploração estão intimamente ligadas.
Em nossa sociedade, regulada pelo sistema capitalista e patriarcal, a produção social ocupa uma posição de privilégio em relação à reprodução social, isto é, o trabalho realizado para produzir mercadorias é mais valorizado do que o trabalho empreendido na geração de força de produção. Toledo (2003) aborda essa desvalorização do trabalho de reprodução social executado de forma não remunerada nos lares como resultado da dupla alienação do trabalho da mulher. Conforme a autora, o valor da força trabalhadora é medido com base no produto resultante de seu trabalho; como o trabalho doméstico não produz mercadorias, não é considerado efetivamente trabalho.
Ela [a mulher] trabalha para que ele [o homem] produza mercadorias, ou seja, para que o trabalho de outrem se efetive, se fixe em um objeto. Como diz Marx, a realização efetiva do trabalho é sua objetificação, sua coisificação. O trabalho da mulher em casa, então, não se objetiva em nada, portanto, nem mesmo se realiza efetivamente enquanto trabalho. Entretanto, não existe um trabalho que não se efetive em nada. Sendo assim o trabalho da mulher só pode se efetivar no trabalho do homem, no produto que ele cria; por isso ela é duplamente alienada. Se no caso dele, o objeto que o seu trabalho produz “se lhe defronta como um ser alheio, um poder independente”, no caso dela, esse ser é mais alheio ainda: alheio a ele, em primeiro lugar, e só depois, alheio a ela. Entre ela e o produto de seu trabalho (aquele que o homem produz) há, portanto, um intermediário, o homem. É, assim, duplamente exterior a ela. Uma vez exterior a ele, e duas vezes exterior a ela (TOLEDO, 2003, p. 55).
Para além dessa alienação do trabalho da mulher executado de forma não remunerada em suas residências, é possível também perceber a circulação de um discurso que vincula essas atividades domésticas ao amor construído pela família, pelo lar7. Na próxima seção, dentre outros aspectos, discutiremos essa disputa de sentidos para essas atividades não gratificadas financeiramente como amor ou trabalho não pago, bem como aprofundaremos a questão do deslocamento do enunciado “Eso que lhaman amor es trabajo no pago” para o contexto da arte urbana.
Antes de passarmos para a próxima seção, também é importante referirmos, de forma breve, a pesquisa de Saffioti (2013), autora brasileira dedicada aos estudos feministas marxistas. Saffioti (2013, p. 96-97) diz que
Para a mulher, ter um emprego significa, embora isso nem sempre se eleve em nível de consciência, muito mais do que perceber um salário. Ter um emprego significa participar da vida comum, ser capaz de construí-la, sair da natureza para fazer a cultura, sentir-se menos insegura na vida. Uma atividade ocupacional constitui, portanto, uma fonte de equilíbrio. Todavia, o equilíbrio da mulher não pode ser pensado exclusivamente como o resultado do exercício de uma atividade ocupacional. Seu papel na família é a contrapartida necessária de suas funções profissionais, nas sociedades capitalistas. Sua força de trabalho ora se põe no mercado como mercadoria a ser trocada, ora se põe no lar enquanto mero valor de uso que, no entanto, guarda uma conexão com a determinação enquanto mercadoria da força de trabalho do chefe da família. Por tudo isso e ainda pelos arquétipos femininos que a sociedade constrói e alimenta, a adaptação da mulher às duas ordens de papéis que lhe cabe executar (se simultaneamente, de modo intermitente em grande parte dos casos) é tarefa complexa. Qualquer que seja o quadro de referência tomado, a família ou a situação de trabalho, suas funções assumem aspectos mais ou menos incompatíveis. A sociedade de classes não oferece à mulher um quadro de referência através do qual suas funções possam ser avaliadas e integradas.
Desse modo, além de ser, ainda hoje, um desafio para as mulheres a execução formal de trabalho remunerado em condições de equivalência àquelas desempenhadas pelos homens no que diz respeito à remuneração e à ascensão profissional, há as dificuldades impostas por uma posição contraditória na qual a mulher se encontra na sociedade de classes, que impede a presença exclusiva nos espaços de exploração da sua força de trabalho, necessitando, também, colocar sua força de trabalho no lar através do trabalho não-remunerado da reprodução da força de trabalho. Sua colocação no mercado como mercadoria a ser trocada depende do cuidado de si, que somente ela desempenha; além disso, precisa garantir que sua rede de cuidados também possa se colocar no mercado como mercadoria a ser trocada, e, em função disso, também executa o trabalho de reprodução da força de trabalho cujo salário não compreende a tarefa que desempenha. É um trabalho gratuito, feito “por amor”, o que sobrecarrega as mulheres e as coloca em uma condição inferior na divisão social do trabalho na sociedade capitalista.
Gesto de análise
Para que possamos dar início à nossa análise, é preciso considerar, primeiramente, que as relações entre o enunciado [eso que llaman amor és trabajo no pago]8 produzido em contexto de divulgação científica enquanto obra da intelectual Silvia Federici e o enunciado que compõe as intervenções urbanas são de duas ordens, que se complementam, mas não se confundem: a relação intertextual e a relação interdiscursiva.
Conforme Indursky (2001, p. 29), o conceito de intertextualidade, em uma perspectiva discursiva, aponta, ao mesmo tempo, para “a noção de discurso fundador” e “igualmente para outros textos que se inscrevem na mesma matriz de sentido”. Já as relações interdiscursivas “aproximam o texto de outros discursos, remetendo-o a redes de formulações” provenientes do interdiscurso (INDURSKY, 2001, p. 29). Dessa forma, ao deslocar o enunciado para a intervenção urbana, a artista inscreve sua obra em uma relação intertextual com a obra de Federici que, no plano textual, assume o lugar de “discurso fundador”; e, ao mesmo tempo, inscreve-se em uma rede discursiva – na qual já não é mais possível reconstruir sua origem – que atualiza os sentidos em disputa sobre o que deve ser considerado trabalho, uma vez que, conforme aponta Orlandi (2015, p. 37), “não há um começo absoluto ou um ponto final para um discurso”, pois ele se constitui a partir de relações de sentido que, ao mesmo tempo em que se sustenta em um já-dito, também aponta para dizeres futuros.
Tendo em vista as duas relações mencionadas, buscaremos, em nosso gesto analítico, interrogar os enunciados, verbais e visuais, que compõem a intervenção artística, buscando trabalhar as relações entre a materialidade discursiva e sua exterioridade. Para isso, recortamos o corpus, composto por duas Figuras, conforme exposto em (01), em três SD: uma sequência discursiva (SD1) e duas secções discursivas9 (SD2 e SD3), possível de ser observado em (02). Importante mencionar que as duas imagens selecionadas buscam representar todas as intervenções elaboradas por Possamay nos muros da cidade de Buenos Aires.
(01) Figuras que compõem o corpus do trabalho.
Figura 1
Eso que llaman amor es trabajo no pago (roxo)10
Figura 2
Eso que llaman amor es trabajo no pago (vermelho)11
(02) Sequências e Secções discursivas recortadas do corpus para análise:
SD1 Eso que llaman amor es trabajo no pago.
SD2 imagem da mulher servindo a mesa (Figura 1).
SD3 imagem da mulher aspirando o chão (Figura 2).
Comecemos o processo de descrição-interpretação da materialidade em análise pela SD1. Estruturalmente, ou, melhor dizendo, gramaticalmente, poderíamos apontar que o enunciado em questão se organiza em uma predicação nominal. Temos uma oração principal [Isso é trabalho não pago], na qual o pronome [Isso] assume função de sujeito da oração e a sequência [trabalho não pago] funciona como predicativo do sujeito. Trata-se, contudo, de um período composto por subordinação, pois há a presença de uma oração subordinada adjetiva restritiva referida ao sujeito [Isso]. Assim, é preciso considerar, ainda, a sequência [que chamam de amor], que, como oração adjetiva restritiva, funciona, a partir da classificação gramatical, para restringir o núcleo do sujeito [isso], ou seja, o dêitico [isso] é significado pela relação com a oração subordinada adjetiva e, também, pela relação estabelecida com o predicativo do sujeito. Essa classificação, embora não nos diga sobre os sentidos colocados em circulação pelo enunciado, servirá, em um primeiro momento, para a organização das paráfrases que seguirão.
Contudo, as relações semântico-discursivas que determinam o dêitico [isso] não se circunscrevem somente no interior do enunciado analisado. Os efeitos de sentido são estabelecidos em consonância com os elementos que formulam as imagens nas quais estão inseridos. [Isso] é não só [que chamam amor], tampouco [trabalho não pago], pois [Isso] também é o que está acontecendo em cada uma das imagens colocadas nos muros. [Isso] é servir a mesa (SD2) e aspirar o chão (SD3). Em substituição às duas imagens, em relação parafrástica, poderiam ter sido expostas outras imagens, que saturam os sentidos possíveis de serem estabelecidos pelo não-dito: cuidar dos filhos, lavar a louça, estender a roupa, passar a roupa, varrer o chão, limpar o banheiro, lavar vidros, fazer a comida. Tudo o que não está dito funciona como pré-construído relacionado ao trabalho de reprodução social, o trabalho não pago executado pelas mulheres na formação social capitalista. As intervenções se colocam, portanto, como formulações que rompem com os sentidos hegemonicamente previstos na formação social para o que é considerado amor de mulher. Ou seja, as intervenções dizem: isso não é amor. Isso que dizem que é amor é trabalho não pago. Isso que todo mundo sabe que é amor é trabalho não pago. Na afirmação de Federici, reproduzida nas imagens de Possamay, há a negação do pré-construído “o trabalho de cuidado é trabalho de amor”.
Conforme Orlandi (2015), em seu gesto de análise, o analista se propõe a compreender de que forma o político e o linguístico se relacionam no processo de constituição dos sujeitos e dos sentidos. Nesse modo de considerar a produção de sentidos, é preciso ter em vista que eles se constituem historicamente, pelo trabalho da memória. Esse processo, contudo, não se dá sem falhas: “é porque a língua é sujeita ao equívoco e a ideologia é um ritual com falhas que o sujeito, ao significar, se significa” (ORLANDI, 2015, p. 35). É trabalho do analista, para compreender esse processo, colocar em tensão o que foi dito com aquilo que foi silenciado, ou, ainda, com outras formas de dizer. Sendo assim, propomos, para a compreensão do funcionamento do enunciado em análise, algumas paráfrases que nos permitirão delimitar os limites da formação discursiva a partir da qual o enunciado foi produzido.
Retomando as considerações acima colocadas, focaremos na indeterminação do dêitico isso (núcleo do sujeito). Levando em consideração a relação intertextual com a obra de Federici, podemos chegar às seguintes paráfrases, conforme exposto em (03):
(03) Paráfrases construídas para preencher a indeterminação semântica do pronome isso:
P1 Trabalho doméstico é trabalho não pago.
P2 Trabalho de cuidado é trabalho não pago.
P3 Trabalho reprodutivo é trabalho não pago.
Isso que chamam amor é trabalho não pago, diz o enunciado de Silvia Federici. O dêitico [Isso], ao estabelecer uma relação anafórica com as duas imagens expostas nos muros, e, da mesma forma, ao estabelecer uma relação catafórica com a oração subordinada adjetiva, pode nos levar às seguintes formulações possíveis: (i) Trabalho reprodutivo é trabalho não pago; (ii) Trabalho não pago é amor a partir de uma determinada posição; (iii) Da minha posição, trabalho reprodutivo não é amor. Com esse gesto, Possamay, juntamente com Federici, instalam uma tensão no processo de significação do trabalho reprodutivo, a qual não aceita as verdades evidentes referentes a tal atividade destinada às mulheres. A arte no espaço público convoca a cidade a pensar sobre aquilo tomado como uma evidência, mas efeito de um trabalho sócio-histórico-ideológico que vincula gênero a um papel fixo na reprodução da ideologia dominante: o papel da produção da força de trabalho.
Com essas considerações, compreendemos que o enunciado, ao ser deslocado da obra de Federici e passar a circular a partir de novas condições de produção, aponta para outras formulações possíveis, tal como ocorrido com o enunciado On a gagné, trabalhado por Pêcheux (2006) na obra O discurso: estrutura ou acontecimento. Na análise do autor, a formulação migrou do campo esportivo para o campo político: quando os times de futebol venciam uma partida, a torcida entoava o enunciado em uma determinada cadência, a qual não pode ser separada do processo de produção do sentido. O pronome On, assim como o [Isso] do enunciado aqui analisado, também funciona como dêitico, somente ganhando sentido a partir das relações com os elementos das condições de produção que configuram a circulação do enunciado. On só pode ganhar sentido se relacionado com aquele que entoa o grito: a torcida do time vencedor da partida. No campo político, há o mesmo funcionamento, mas sob condições sócio-histórico-ideológicas que coordenam a emergência de um acontecimento.
Conforme foi exposto, propomos relacionar o dêitico [isso] às imagens que compõem a intervenção (SD2 e SD3), por compreendermos que a materialidade em questão funciona, conforme Quevedo (2014), como um texto sincrético, isto é, uma materialidade na qual formulações verbais e visuais se imbricam no processo de produção de sentidos. Partindo disso, chegamos à seguinte paráfrase: P4 Trabalho exercido por mulheres em seu lar é trabalho não pago.
Nesse sentido, podemos pensar que a imagem preenche a indeterminação. Isso aponta para a relação entre a sequência discursiva e as secções discursivas. No contexto artístico, enunciado verbal e não-verbal produzem sentido juntos, de modo que o núcleo do sujeito ganha determinação pela imagem de mulheres executando atividades domésticas, trabalho doméstico; quer dizer, isso que chamam de amor, o trabalho doméstico executado pelas mulheres em suas residências, é trabalho não remunerado. Questionamos, então, como os sentidos de amor e de trabalho estão articulados nessa produção. Parece haver uma dicotomia entre trabalho por amor (não remunerado) e trabalho pago, de modo que é possível dizer que aquilo que é feito por amor não é pago e não é pago porque é feito por amor. Assim, o trabalho por amor não é trabalho (e é por isso que não é remunerado).
Isto é, cuidado é amor; logo, cuidado não é trabalho (e não pode nem deve ser pago). Esse pressuposto naturalizado e compartilhado socialmente é da ordem da ideologia dominante capitalista e patriarcal. Nele parece haver a incidência de um saber naturalizado que todo mundo sabe, independente da formação discursiva de identificação do sujeito sobre o que é amor e o que é trabalho. A esse ‘“sempre-já-aí’ da interpelação ideológica, que fornece-impõe a ‘realidade’ e seu ‘sentido’ sob a forma da universalidade”, Pêcheux (1997, p. 164) chama pré-construído, conforme já havia sido adiantado.
O cuidado e o amor são elementos que fazem parte da rede de saberes sobre a feminilidade construída pelo patriarcado, de modo que é esperado que “naturalmente” as mulheres demonstrem o amor e o cuidado por seus familiares, e isso se manifesta por meio do trabalho doméstico. Como o amor está à parte das relações de produção, ele não pode ser remunerado. Talvez seja possível dizer que o trabalho realizado por amor é trabalho pago com amor; de qualquer modo, a retribuição financeira não aparece como uma opção para esse trabalho. É possível dizer que a construção do amor maternal e da família nuclear burguesa são essenciais à reprodução do trabalho doméstico não pago, ao capital e ao patriarcado; amor/trabalho estão sujeitos à exploração do capital, ainda que a ideologia dominante faça circular os sentidos de que amor é cuidado, ou seja, amor não é trabalho/exploração nem se paga pelo amor. Não se paga pelo amor, mas se paga pelo trabalho. Afinal, como pagar pelo amor maternal?
Essa contradição ganha forma material na sequência [trabalho não pago]. De acordo com Indursky (2013, p. 261), a negação “é um dos processos de internalização de enunciados oriundos de outro discurso”, podendo, assim, indicar a existência de diversas operações discursivas. A autora aponta que, quando um sujeito produz um discurso, a partir do lugar discursivo que assume, o faz por uma predicação afirmativa, identificando seu dizer com os saberes da FD que o afeta. Quando ocorre uma predicação negativa, essa operação linguística lineariza um discurso-outro retomado pelo sujeito para negá-lo. Assim, o enunciado [trabalho não pago], ao mesmo tempo em que reivindica um novo sentido para trabalho, o faz colocando em circulação a evidência dominante de que trabalho é trabalho remunerado.
A partir do exposto, a contradição se materializa na SD1 na forma de um enunciado dividido, em que aquilo que vem antes do verbo ser [isso que chamam de amor] e o que vem depois do verbo [trabalho não pago] apontam para duas formações discursivas antagônicas, ou, em outras palavras, colocam em confronto dois sentidos opostos sobre o que deva ser considerado trabalho: de um lado, o trabalho reprodutivo pode ser considerado trabalho e, portanto, deve ser remunerado; por outro lado, o trabalho reprodutivo é amor, e, em função disso, não pode ser considerado trabalho (tampouco pode ser remunerado).
Courtine ([1981] 2014, p. 191) propõe pensar que esse tipo de formulação, os enunciados divididos, representam “no interior do funcionamento da língua os efeitos da luta ideológica”. Ao colocar em contraste, em uma mesma formulação, sentidos oriundos de formações discursivas antagônicas, esse tipo de formulação marca a contradição inerente aos processos discursivos e coloca em evidência a disputa pelo lugar hegemônico no processo de circulação dos sentidos que se tornarão evidentes. Como explica Vinhas (2020, p. 85), o processo de identificação dos sujeitos discursivos é dependente de relações de alteridade, “efeito de um processo enraizado na contradição: a formação discursiva é constitutivamente perseguida por seu outro, e esse princípio básico da operação da FD é materializado pelo enunciado dividido”.
O elemento que parece funcionar de maneira determinante no estabelecimento do enunciado dividido está formulado na oração subordinada adjetiva. Ao empregar o verbo chamar sem sujeito, se instala uma indeterminação que dialoga com o funcionamento do pré-construído, também indeterminado, como algo que todo mundo sabe. Se o enunciado fosse [Isso que eles chamam amor é trabalho não pago] ou, ainda, [Isso que a sociedade chama amor é trabalho não pago], o funcionamento discursivo seria diferente. No enunciado analisado, a indeterminação do sujeito da oração corrobora a formulação da negação do pré-construído. Aqui, neste enunciado dividido, temos, por um lado, o saber hegemônico, representado pelo pré-construído, e o saber dominado, advindo do discurso feminista anticapitalista. A partir dessa posição (FD2), seria possível dizer: alguém chama o trabalho reprodutivo de amor, mas nós não o chamamos assim. Para nós, trabalho reprodutivo é trabalho não pago.
Com base nas considerações supracitadas, no enunciado em análise, percebemos o funcionamento de duas formações discursivas. A FD1, que organiza os sentidos colocados em circulação na primeira sequência do enunciado dividido [isso que chamam de amor], é a FD dominante, pois reproduz os sentidos regulados pela ideologia dominante, da ideologia capitalista e patriarcal, que, para se sustentar, depende do assujeitamento das mulheres em relação ao sentido de que trabalho doméstico é amor e não trabalho. A segunda metade do enunciado [trabalho não pago], por sua vez, sustenta a posição-sujeito de quem produz a intervenção urbana, posição esta que aponta para o processo de resistência ao sentido dominante sobre trabalho, colocando em circulação a evidência de que trabalho doméstico não é amor, é trabalho, logo, deveria ser remunerado.
Podemos afirmar, a partir disso, que a obra de Possamay assume uma posição de resistência na disputa pelos sentidos sobre trabalho. A autora, ao resgatar o enunciado da obra de Federici e incorporá-lo a suas intervenções urbanas, expande a discussão política sobre o trabalho feminino para além do contexto estrito da divulgação científica. Possamay fala de um outro lugar, o lugar da arte, que permite dizer de uma outra maneira. As palavras, aí, não ganham apenas outro contexto e, por consequência, novos sentidos; elas ganham corpo, através das imagens que, junto com o enunciado, compõem a obra. Através dessa outra forma material, e de outras condições de produção da luta política, a obra de Possamay interpela outros sujeitos e amplia a disputa pelos sentidos de trabalho a partir da intervenção no espaço urbano. Estamos, assim, reparando naquilo que está colocado nas paredes que constituem as discursividades urbanas, ao invés de reproduzirmos o olhar que atualiza os saberes hegemônicos sobre trabalho na nossa formação social12.
Considerações finais
Em filiação à teoria materialista dos processos discursivos, aquilo que é da ordem da disputa, do antagonismo, sempre convoca nosso olhar de modo especial, de modo que, diante da obra de Possamay, é possível dizer que não nos restaram alternativas a não ser registrar, por meio deste texto, aquilo que nos provocou e inspirou. Ver mulheres comuns, nós, nossas mães, nossas avós, bisavós e tantas outras retratadas na arte de Possamay, ver nossa exploração estampada, ver... e reparar. A arte de Possamay permite reparar, e, assim, lança visibilidade, desloca aquilo que vem sendo discutido em espaços formais de conhecimento para espaços em que todas nós circulamos, os espaços da urbanidade.
O centro de nossa discussão foi a disputa para o termo trabalho materializada nas imagens selecionadas. Identificamos uma FD dominante na qual os sentidos para o trabalho executado pelas mulheres de modo não remunerado em suas residências são naturalizados como amor; também identificamos uma FD de resistência, na qual o “amor”, o trabalho doméstico não remunerado, é ressignificado como trabalho não pago, como exploração. As duas FD estão materializadas no enunciado verbal no que pode ser entendido como um enunciado dividido; a FD dominante, no entanto, é retomada para ser negada. Em nossa formação social, aquilo que é da ordem do gênero é tomado de pré-construídos, quando nos deparamos com discursos que questionam, deslocam ou rompem com esses saberes naturalizados e universalizados, isto é, discursos que questionam a evidência. Enquanto analistas de discurso, é necessário lançar um gesto sobre esses processos.
A formação discursiva dominante do capital e do patriarcado tem sido eficiente em sua reprodução. Sabemos, no entanto, que a FD sempre é perseguida por seu outro. Neste texto, buscamos abordar esse outro que emerge como espaço de resistência, como espaço da falha do ritual da ideologia dominante, e, assim, encerramos provisoriamente nossa discussão retomando o clássico aforismo de Pêcheux (1997) segundo o qual “não há dominação sem resistência”.
Referências
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DAVIS, Angela. As mulheres negras na construção de uma nova utopia. Geledés, 1997. Disponível em: https://www.geledes.org.br/as-mulheres-negras-na-construcao-de-uma-nova-utopia-angela-davis. Acesso em: 14 jul. 2020.
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FEDERICI, Silvia. Entrevista concedida à Folha de São Paulo. In: PASSOS, U. O que eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não pago, diz Silvia Federici. 2019. [online]. Disponível em: https://www.geledes.org.br/o-que-eles-chamam-de-amor-nos-chamamos-de-trabalho-nao-pago-diz-silvia-federici/ Acesso em: 20 ago. 2021.
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SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. 3.ed. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2013.
TOLEDO, Cecília. Mulheres: o gênero nos une, a classe nos divide. 2 ed. São Paulo: Instituto José Luís e Rosa Sundermann, 2003.
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PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes, 2006.
QUEVEDO, Marchiori. Do gesto de reparar a (à) gestão dos sentidos: um exercício de análise da imagem com base na análise de discurso. 2012. Dissertação. (Mestrado em Letras - Linguística Aplicada) Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Católica de Pelotas, Universidade Católica de Pelotas, Pelotas, 2012.
VINHAS, Luciana Iost. Enunciado dividido. In: FERREIRA, Maria Cristina Leandro. (org.). Glossário de termos do discurso. Campinas: Pontes, 2020.
Data de Recebimento: 05/02/2022
Data de Aprovação: 28/03/2022
1 Em filiação à teoria materialista dos processos discursivos, trabalhamos com os processos de produção de sentidos relacionados a posições de classe, que devem ser articuladas à raça e ao gênero. Neste texto, não discutiremos especificamente as questões étnico-raciais, pois elas não fazem parte de nossa pergunta de pesquisa, mas concordamos com Davis (1997, n.p.) em seu argumento de que a “classe informa a raça. Mas a raça, também, informa a classe. E gênero informa a classe. Raça é a maneira como a classe é vivida. Da mesma forma que gênero é a maneira como a raça é vivida”. É possível dizer que pensar o trabalho de cuidado não remunerado é pensar raça, classe e gênero.
2 Na próxima seção do artigo poderemos compreender o funcionamento dos processos discursivos que conduzem a tal interpretação.
3 A explicação detalhada sobre esse processo de transição pode ser resgatada no livro “O Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva”, de Silvia Federici (FEDERICI, 2017).
4 O político não deve ser confundido com a política ou com o discurso político, embora esteja presente nesses campos também (INDURSKY, 2019).
5 Em janeiro de 2020, a organização Oxfam divulgou o “Relatório Tempo de Cuidar”, segundo o qual “o valor monetário global do trabalho de cuidado não remunerado prestado por adolescentes e mulheres na faixa etária dos 15 anos ou mais é de pelo menos US$ 10,8 trilhões por ano - três vezes mais alto que o estimado para o setor de tecnologia do mundo”. Disponível em: <https://rdstation-static.s3.amazonaws.com/cms/files/115321/1579272776200120_Tempo_de_Cuidar_PT-BR_sumario_executivo.pdf>. Acesso em 26 de agosto de 2021.
6 A caracterização do trabalho da mulher na produção social como algo descartável pôde ser melhor observada durante o período pandêmico. Conforme dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios PNAD COVID19, realizada pelo IBGE, em agosto de 2020, no ano de 2020, a taxa de desemprego de mulheres, no Brasil, foi de 16,2%, enquanto a dos homens foi de 11,7%.
7 Tal ponto também é presente na obra “Feminismo para os 99%: um manifesto” (ARRUZZA; BHATTACHARYA; FRASER, 2019), na qual as autoras salientam a necessidade de redefinição sobre o que é considerado trabalho e, também, sobre quem pode ser considerado trabalhador.
8 A partir de agora, utilizaremos a tradução livre do enunciado: isso que chamam de amor é trabalho não pago.
9 Na perspectiva da AD, o recorte da imagem é sempre uma operação realizada pelo analista que seleciona as partes que julga importantes para sua análise, levando em consideração que, na materialidade visual, não cabe recortar o corpus em sequências discursivas, pois o termo “sequência” implica uma noção de linearidade de leitura não coerente com a linguagem imagética. Quevedo (2012) propõe que denominemos como “sequências discursivas” as formulações de natureza verbal recortadas do discurso em análise e como “secções discursivas” as formulações visuais recortadas da materialidade discursiva.
10 Fonte: https://www.facebook.com/hermanasBrasil/photos/argentinaisso-que-chamam-de-amor-%C3%A9-trabalho-n%C3%A3o-remuneradoailen-possamay-%C3%A9-a-art/569953593368422
11 Fonte: https://www.facebook.com/hermanasBrasil/photos/argentinaisso-que-chamam-de-amor-%C3%A9-trabalho-n%C3%A3o-remuneradoailen-possamay-%C3%A9-a-art/569953640035084
12 Sobre a diferença entre olhar e reparar, recomenda-se a leitura de Quevedo (2012).