Rua Marielle Franco: uma proposta de análise semântica


resumo resumo

Deborah Pereira



1. Introdução

Em março de 2018, a vereadora Marielle Franco (do Partido Socialismo e Liberdade – Psol) e seu motorista, Anderson Gomes, foram assassinados na Lapa, no Rio de Janeiro, ao saírem de um evento organizado pela Casa das Pretas. Marielle era formada em sociologia pela PUC-RJ e mestra em administração pela Universidade Federal Fluminense. Sua dissertação analisava politicamente a segurança pública na cidade do Rio de Janeiro e, durante seu mandato como vereadora, representou uma série de minorias sociais e coordenou a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos.

Como símbolo de luto à morte da vereadora, uma placa de rua com a inscrição “Rua Marielle Franco” foi colocada na Cinelândia, em frente à sede da Câmara Municipal de Vereadores, espaço político-institucional ocupado por Marielle no período em que foi assassinada. A placa foi colada por cima do letreiro oficial que nomeia a praça como Praça Floriano Peixoto1. Além de “Rua Marielle Franco”, há uma breve biografia da vereadora na placa: “(1979-2018) Vereadora, Defensora dos Direitos Humanos e das minorias, covardemente assassinada no dia 14 de março de 2018”. No entanto, em outubro de 2018, durante um comício realizado no centro do Rio de Janeiro, dois candidatos ao cargo de deputado estadual pelo Partido Social Liberal (PSL), Rodrigo Amorim e Daniel Silveira, quebraram a placa em memória à Marielle. A ação de depredação da placa foi amplamente divulgada nas redes sociais por meio de fotos e vídeos. Flávio Bolsonaro, em apoio aos dois candidatos, caracterizou a conduta como uma “restauração da ordem” e, de acordo com o Jornal UOL2, afirmou o seguinte:                 

 

Havia uma placa de [praça] Marechal Floriano. O PSOL acha que está acima da lei e pode mudar nome de rua na marra. Eles só tiraram a placa que estava lá ilegalmente. Se o PSOL quer fazer uma homenagem para a Marielle, apresenta um projeto de lei, pede à prefeitura para, ao construir uma rua, uma praça, botar o nome, dar homenagem a ela. Agora não pode cometer um ato ilegal como esse. (UOL, 2018)

 

Dias após este ocorrido, um ato de repúdio à destruição da homenagem foi organizado na Cinelândia e mil placas urbanas com o enunciado “Rua Marielle Franco” foram distribuídas pela praça. Além disso, foi criado um site (o ruamariellefranco.com.br) que possibilita o download e impressão da placa para que, assim, ela seja colocada em qualquer localidade. De acordo com o site, “mais de trinta mil placas foram produzidas e espalhadas pelo mundo”. Um ano após a morte da vereadora, diversas cidades da Europa começaram a discutir propostas de nomear ruas, praças e outros locais com o nome de Marielle; cidades brasileiras, como Fortaleza, São Paulo, Belo Horizonte, Distrito Federal e São Carlos, também propuseram nomear espaços públicos em memória à história da vereadora. Até dezembro de 2020, de acordo com levantamento feito pelo Correio Braziliense3, mais de 150 lugares públicos receberam, oficialmente, o nome de Marielle Franco.

 

 

 

Imagem do ato de repúdio à destruição da placa de Marielle Franco. Fonte: brasildefato.com.br

 

 

Assim, à luz da Semântica do Acontecimento tal como formulada por Eduardo Guimarães (2002), tento refletir acerca do enunciado “Rua Marielle Franco” e pensar, principalmente, a respeito da multiplicação de placas de rua com este enunciado. Deste modo, para compreender o objeto proposto aqui, articulo a maneira como Guimarães (2002,2018) trabalha as noções de acontecimento, reescritura, cena enunciativa, texto e enunciado aos estudos de Orlandi (2004) que discutem a ordem e a organização da cidade.

 

 

2. A Semântica do Acontecimento

A Semântica do Acontecimento é uma teoria desenvolvida por Eduardo Guimarães (2002) que inaugura um novo modo de conceber os estudos semânticos por entender que “o sentido das expressões linguísticas não é referencial” e, portanto, essas expressões “significam no enunciado pela relação que tem com o acontecimento em que funcionam” (p. 5). É importante salientar que o autor se insere numa perspectiva materialista, não tomando a linguagem como transparente (nesta concepção, a relação da linguagem com o real é histórica). Assim, a Semântica do Acontecimento opera considerando a enunciação como prática política e, por isso, promove um deslocamento em relação às outras semânticas, já que se apropria das noções de político e de sentido pensando-as historicamente, “e não como uma ação particular numa situação particular” (p. 6). O autor, em Semântica do Acontecimento: Um Estudo Enunciativo da Designação, livro no qual desenvolve esta teoria, afirma que o seu trabalho mantém um diálogo com

 

domínios como a filosofia da linguagem, notadamente a teoria dos atos de fala, a pragmática, a semântica argumentativa. Por outro lado, mantém também um diálogo decisivo com a Análise de Discurso tal como praticada no Brasil e que se organiza e desenvolve a partir dos trabalhos de Pêcheux. (GUIMARÃES, 2002, p. 8).

 

 Ou seja, Guimarães, ao tomar a constituição histórica do sentido, concebe uma semântica que se formula como uma disciplina do campo das ciências humanas, independentemente de suas relações com a lógica ou a gramática – ele vai além daquilo que é pensado apenas como matematizável ou como uma estrutura determinada biologicamente. Assim, a enunciação, para esta perspectiva teórica, é um acontecimento no qual se dá a relação do sujeito com a língua “sem remeter isto a um locutor” (p. 11), a um sujeito como centro do que diz.

 

2.1 O acontecimento

O acontecimento, para Guimarães (2002), “não é um fato no tempo”. Ele não é um fato novo, diferente de qualquer outro fato que já tenha existido antes, mas, sim, é aquilo que temporaliza. Essa temporalidade, como formula o semanticista, se constitui por um presente e um passado: o presente abre uma “latência de futuro” sem a qual não há significado, não há interpretável, não há projeção de sentidos; o passado faz com que essa latência de futuro signifique já que ele recorta um passado específico como memorável. É por conta disso que Guimarães afirma que “o acontecimento é a diferença na sua própria ordem”, ele funda sempre “uma nova temporalização, um novo espaço de conviviabilidade de tempos, sem a qual não há sentidos” (p. 12).

Um ponto importante para o entendimento do acontecimento é o modo como locutor é concebido: a temporalidade do acontecimento não é a mesma do tempo do locutor, daquele que diz “eu”; o locutor é capturado pela/na temporalidade do acontecimento. Assim, “falar, enunciar, pelo funcionamento da língua no acontecimento, é falar enquanto sujeito” (p. 14). E falar enquanto sujeito é falar afetado pelo interdiscurso, por uma memória de sentidos e por filiações ideológicas que constituem este sujeito sem que ele tenha pleno controle sobre elas; ao submeter-se à linguagem para significar, o sujeito está, segundo Guimarães, em uma memória, e não no tempo (em sua dimensão empírica).

Assim sendo,

 

a temporalidade do acontecimento constitui o seu presente e um depois que abre o lugar dos sentidos, e um passado que não é lembrança ou recordação pessoal de fatos anteriores. O passado é, no acontecimento, rememoração de enunciações, ou seja, se dá como parte de uma nova temporalização, tal como a latência de futuro.

 

Com isso, para o autor – e para este trabalho, que toma o enunciado ‘Rua Marielle Franco’ como um acontecimento –, uma grande questão é poder descrever como se dá, como se constitui este acontecimento de linguagem. É por conta disso que as noções de espaço de enunciação – “espaços de funcionamento de línguas que se dividem, redividem, misturam, desfazem, transformam por uma disputa incessante” (GUIMARÃES, 2002, p. 18) - e cena enunciativa – “especificações locais nos espaços de enunciação” (p. 23) – também são fundamentais.

 

2.1.1 Cena Enunciativa e Espaço de Enunciação

A cena enunciativa “se constitui pelo agenciamento do falante a dizer” (GUIMARÃES, 2018, p. 71). Isto acontece num espaço de relação entre línguas, ou seja, no espaço de enunciação, que é um espaço político, já que a distribuição de línguas, bem como a de agenciamento de falantes, ocorre de maneira desigual. Dentro deste quadro, Guimarães (2018) salienta que o falante é agenciado em Locutor através do funcionamento da língua no acontecimento de enunciação e, deste modo, o Locutor fala sempre para alguém (seu locutário). Além de se dividir em Locutor, o falante se divide em alocutor – que também diz a alguém, seu alocutário. O alocutor é sempre um alocutor-x4, ou seja, ele é “a cada acontecimento especificado por uma caracterização própria do acontecimento enunciativo” (p. 56). O alocutor corresponde ao lugar social de dizer. Então, enquanto o Locutor é o responsável pelo dizer, pela unidade do dizer, do texto, o alocutor “significa, no confronto com o Locutor, a significação da não unidade, da não intencionalidade de quem diz. De outra parte, o dizer de um alocutor, por exemplo, está em conflito com o dizer de outros lugares de alocutor” (GUIMARÃES, 2018, p.58).

Além disso, o autor salienta que o elo entre Locutor, locutário, alocutor e alocutário se estabelece em relação à maneira como o Enunciador é agenciado como individual, genérico, coletivo, universal. O Enunciador individual é aquele que se apresenta como origem, dono daquilo que diz, como se estivesse independente da história; o coletivo é “um nós que fala do lugar do conjunto, “que se caracteriza por ser a voz de todos como uma única voz” (GUIMARÃES, 2002, p. 38) – ele fala representando um grupo, uma corporação, uma coletividade; já o enunciador universal tem como característica trazer o Locutor como estando fora da história (ou acima dela), é um lugar a partir do qual se diz sobre o mundo, submetido ao regime do que é verdadeiro ou falso; por último, o enunciador genérico é aquele que diz o que “todos dizem”, o que “todos sabem”, ele é o lugar da repetição.

 

2.2 A Reescritura

Antes de tratar propriamente a respeito da reescritura, é necessário entender que o sentido de uma expressão pode ser analisado a partir da maneira como ele integra um enunciado – enquanto elemento de um texto. Para a Semântica do Acontecimento, todo enunciado é, portanto, uma unidade integrativa de uma unidade maior e mais ampla, o texto. Então, a reescrituração é, para Guimarães, própria da textualidade e pode ser compreendida como um procedimento de deriva de sentidos (fenômenos como a catáfora, a anáfora e a repetição são postos como exemplos deste processo). Guimarães esclarece que toma a deriva de acordo com Pêcheux (1999), ou seja, como aquilo que é característico do sentido e possibilita que ele se torne sempre outro, que ele derive, que ele se desloque. Para o semanticista, não existe texto sem processo de deriva, sem reescrituração; é a “deriva enunciativa incessante” que constitui os sentidos do texto (p. 28). Nesta perspectiva, os procedimentos de reescritura são aqueles nos quais “a enunciação de um texto rediz insistentemente o que já foi dito”, de modo que os sentidos e a textualidade existem por conta da “reescrituração infinita da linguagem que se dá como finita pelo acontecimento (e sua temporalidade) em que se enuncia” (p. 28). Ao reescriturar, ao fazer com que algo seja interpretado como diferente de si, um predicado é atribuído ao reescriturado e essa atribuição é aquilo que “a própria reescrituração recorta como passado, como memorável” (p. 28-29).

A reescritura, o ato de redizer, produz movimento. Redizer não é simplesmente dizer novamente o mesmo; na repetição que não cessa, existe uma diferença. A reescrituração, assim, projeta um futuro – e projeta sentidos – sobre o que é dito de novo. Com isso, podemos entender que a reescrituração é um acontecimento uma vez que significa pelo recorte de um memorável e por uma latência de futuro; a reescritura projeta sentidos no que é dito novamente e funda, assim, uma determinada diferença em relação ao já-dito. É por esta via que Guimarães nos ensina que o acontecimento é “a diferença na sua própria ordem”: ao temporalizar, uma reescrituração (ou um enunciado) é sempre nova, “diferente de si mesma”.

 

3. Proposta de análise: a Rua Marielle Franco

Parto, nesta análise, da consideração de que “Rua Marielle Franco”, inscrita em uma placa de rua azul típica do cenário urbano carioca, é um enunciado. Ou seja, para a teoria com a qual me filio aqui, “Rua Marielle Franco”, enquanto enunciado, faz parte de um texto, integra um texto: “não há como considerar que uma forma funciona em um enunciado, sem considerar que ela funciona num texto” (GUIMARÃES, 2002, p. 7). Com isso, me pergunto: que texto é esse? Guimarães, ao analisar os nomes de rua da cidade de Cosmópolis, os concebe como enunciados que fazem parte do texto “Mapa da cidade de Cosmópolis”. Seguindo esta mesma linha, o mapa da cidade do Rio de Janeiro poderia ser o nosso texto? Poderia ser o texto que integra “Rua Marielle Franco”? Até o momento, eu diria que não. “Rua Marielle Franco” não está presente no mapa oficial da capital carioca; o nosso texto é a própria cidade – a cidade na sua ordem e não na sua organização (ou, posso ainda dizer, a cidade na sua desorganização), por isso a chamarei aqui de “texto-cidade”.

 

3.1 Inauguração da Placa ‘Vereadora Marielle Franco’: uma cena enunciativa

Antes de me aprofundar neste texto-cidade, afetado por uma ordem própria, vale fazer algum apontamento sobre o mapa da cidade do Rio de Janeiro, especialmente sobre a ausência de ‘Rua Marielle Franco’ no mapa oficial desta cidade. Marielle, como já dito na introdução, foi uma importante vereadora carioca assassinada em março do ano de 2018. Mesmo após inúmeras manifestações que buscam respostas sobre o que de fato aconteceu na noite de seu assassinato – incluindo a distribuição de milhares de placas urbanas com a inscrição do seu nome –, não há nenhuma via pública que receba o nome de Marielle. Em março de 2021 o atual prefeito da capital fluminense, Eduardo Paes, inaugurou uma placa na qual está escrito “Vereadora Marielle Franco”, em frente à Câmara dos Vereadores, na Praça da Cinelândia. 

 

 

 
Placa inaugurada pela prefeitura carioca em março de 2021. Fonte: https://prefeitura.rio/cidade/prefeitura-inaugura-placa-na-cinelandia-em-homenagem-a-marielle-franco-nos-tres-anos-de-sua-morte

  

  

Como gesto oficial da administração da cidade do Rio de Janeiro, temos uma placa que presta uma homenagem à Marielle mas não nomeia, de fato, nem uma rua e nem uma praça com o seu nome – no mapa, a praça permanece nomeada como Praça Marechal Floriano Peixoto. Neste sentido, é válido lembrar que Guimarães (2002) entende que o mapa é antes uma “indicação de acessos ao mundo do que uma descrição” (p. 60) e, assim sendo, o mapa é um acontecimento, ele não pode ser mapa sem uma latência de futuro. O que, então, Praça Marechal Floriano Peixoto, presente no mapa, projeta como futuro, sobretudo após a inserção (e a quebra) da placa ‘Rua Marielle Franco’?

É possível dizer que o prefeito, no ato de inauguração da placa acima, fala do lugar social de dizer alocutor-administrador, apresentando um enunciador genérico uma vez que mantém, ou, em alguma medida, apenas repete o nome oficial da Praça. Vale pontuar que embora o prefeito não diga, efetivamente, “esta praça se chama Praça Marechal Floriano Peixoto”, o gesto de inaugurar uma placa que recebe o nome de Marielle apenas como homenagem, mas que não muda os mapas e documentos oficiais da cidade, reafirma que aquela localização já tem um nome e ele será mantido. E este nome preservado é o nome de um militar, que foi o segundo presidente do Brasil, considerado um símbolo nacional. A manutenção desta designação recorta como memorável, portanto, o próprio litígio em torno de quem pode nomear, o litígio entre quem é visível e homenageável com o próprio nome em um espaço urbano (heróis militares); como futuridade, esta manutenção reafirma a organização administrativa da cidade e o silenciamento em relação a quem tem, como pauta, os Direitos Humanos e questiona, justamente, a organização vigente.

Há, assim, nesta cena enunciativa da inauguração, uma disputa entre dois alocutores: o alocutor-administrador que, após três anos do assassinato de Marielle, insere na praça uma placa, mas não produz nada que provoque uma desestruturação oficial na cidade; e o alocutor-manifestante, que preenche a cidade com milhares de placas com o enunciado ‘Rua Marielle Franco’ na tentativa de dizer (n)a cidade através da sua desorganização.

 

3.2 A Ordem da Cidade e a ‘Rua Marielle Franco’: reescrituração

Para falar a respeito da desorganização, como já venho mencionando no tópico anterior, é preciso considerar a ordem da cidade. Neste ponto, tomo os estudos de Eni Orlandi (2004) que, em Cidade dos Sentidos, distingue ordem e organização na relação com o citadino. A ordem, para a autora, tem a ver com o real da cidade, com as suas possibilidades de movimento, com a sua forma histórica. Já a organização está ligada ao imaginário projetado sobre a cidade pelos seus habitantes, administradores, urbanistas etc. A organização corresponde a um planejamento da cidade que regula e sistematiza este espaço de acordo com objetivos específicos e, em geral, silencia e ignora as “reais necessidades histórico-materiais do espaço enquanto instância real” (p. 69). A autora salienta que

a cidade, significada pelo que chamo discurso (do) urbano, abriga o social – o polido – que, no entanto, se realiza administrativamente como o policiado, referido à (manutenção da) organização urbana.

[...]

A materialidade simbólica da cidade é contida na/pela urbanização. Há, assim, uma redução significativa da cidade e do social ao urbanizado. A imagem que o sujeito-citadino tem da cidade é atravessada pela discursividade urbanista que não deixa trabalharem muitos dos sentidos que materializam politica e simbolicamente a cidade. (ORLANDI, 2004, p. 64).

Portanto, o fato de a cidade estar afetada por uma organização, ancorada na urbanização, permite5 que Flávio Bolsonaro afirme que “o PSOL acha que está acima da lei e pode mudar nome de rua na marra”, entendendo a placa de Marielle na Praça da Cinelândia como ilegal. A fala de Flávio Bolsonaro retoma um locutor-oficial (da administração pública da cidade) e um enunciador universal, “que coloca a enunciação dos nomes no mapa como nomes para todos e para sempre” (GUIMARÃES, 2002, p. 44).

Mas, a organização da cidade – a sua “injunção a trajetos, a vias, a repartições, a programas, a tratados e traçados” (ORLANDI, 2004, p. 63) – é acompanhada por uma desorganização. Para Orlandi, “as relações sociais (urbanas) se significam na reprodução e na ruptura” (p. 63) e a desorganização, que pode ser observada através das falas desorganizadas6, rompem com sentidos estabelecidos e com a organização social. A desorganização perturba os sentidos já cristalizados pelo planejamento e administração da cidade e, deste modo, funda outros (novos) sentidos. É através da desorganização constitutiva da ordem do citadino que podemos entender a cidade como “espaço real de significação sujeito à transformação” (p. 64).

Tendo isso em mente, posso dizer que o gesto inicial de elaboração e colagem de uma placa de rua com o enunciado “Rua Marielle Franco” – no lugar da placa Praça Marechal Floriano Peixoto – se institui como um modo de desorganização da cidade do Rio de Janeiro, como algo que desequilibra a ordenação das vias públicas da capital e, justamente por isso, transforma este espaço. Há, cabe apontar, um jogo de deriva de: Praça Marechal Floriano Peixoto → Rua Marielle Franco → Vereadora Marielle Franco (de modo que se tem praça → rua → vereadora). “Vereadora” se estabelece pela posição de organização da cidade (por meio da homenagem) e “Rua” surge como esta reescrita incessante através dos movimentos militantes. É curioso, ainda, notar que a própria inscrição “Rua”, em um local que é significado como praça, já demonstra, por si só, uma desorganização da organização da cidade. Assim, entendo que o enunciado “Rua Marielle Franco” é um acontecimento que recorta como memorável dois pontos: i) a história de luta política de Marielle Franco pelos Direitos Humanos (e tantas outras pautas) e ii) o fato de ela e Anderson terem sido vítimas de um crime-execução que, até hoje, permanece sem respostas.7

  Como projeção de futuro, é possível falar do luto público, do luto político que não se restringe ao espaço privado familiar, mas se marca na cidade e presta uma homenagem à vereadora ao inserir seu nome como nome de rua, legitimando sua vida e suas pautas como historicamente importantes para a cidade e para o país. Isto, para alguns sujeitos, filiados a determinadas formações ideológicas, pode produzir efeitos que levam a uma prática de intolerância e violência: a quebra da placa.

Se tomamos a cidade enquanto texto, o ato de quebrar a placa de Marielle é, de alguma forma, uma tentativa de manchar este texto, rasgar uma página, fazer uma raspagem; promove-se uma lesão neste texto-cidade, porém uma lesão que não é da ordem do que é conhecido como “depredação do patrimônio público”, mas, sim, uma lesão na desorganização da cidade, nas suas possibilidades de produção de novos sentidos, de transformação.

Tenta-se interditar e machucar a memória de Marielle mas, também, a movência de sentidos (de Marechal Floriano Peixoto para Marielle Franco; de uma cidade marcada pela violência policial para uma cidade que celebra uma vereadora que lutava por Direitos humanos etc.). E isto acontece não apenas para silenciar Marielle e o que ela simboliza, mas, sobretudo, para mostrar poder sobre este texto, ou seja, sobre a cidade; para mostrar quem tece e administra este espaço (a cidade e, particularmente, a Cinelândia – uma Praça significada por disputas e confrontos políticos). A placa não foi misteriosamente retirada da praça da Cinelândia, às escondidas, ela foi quebrada durante um comício e a foto do ato foi amplamente divulgada colocando os dois candidatos como heróis (ambos foram eleitos nas eleições de 2018). Esses “herois” teriam agido em concordância não só à organização administrativa da cidade (já que, oficialmente, “Marielle Franco” não é nem uma rua e nem uma praça), mas também a uma Formação Discursiva que se instaura contra as pautas reivindicadas por Marielle e que, portanto, procura interditar a inscrição do nome da vereadora na história da capital carioca.

No entanto, existe a reescritura. A quebra do enunciado fez com que muitos deles se repetissem em espaços públicos e privados pelo Rio de Janeiro, por outras cidades brasileiras e pelo mundo. E a repetição deste enunciado não é, e aqui retomo Guimarães (2002), simplesmente a repetição do mesmo, ela funda uma diferença; as reescriturações incessantes de “Rua Marielle Franco”, os milhares de letreiros espalhados pelo mundo recortam um memorável e projetam futuros distintos – e é aí que mora a força simbólica desta placa. O ato de redizer, como vimos, produz movimentos, desloca sentidos. O enunciado reescriturado (“Rua Marielle Franco”), enquanto acontecimento, é o mesmo mas é sempre novo, tem a deriva em seu modo de significar, uma deriva que encontra diferentes maneiras de afirmar a vida e as lutas de Marielle e que, também, opera pela pergunta (bastante reescriturada nas redes): “quem mandou matar marielle? É por isso que este enunciado, inscrito na placa de rua, incomoda tanto. O seu acontecimento projeta uma afirmação e uma interrogação: afirma a importância de Marielle e, ao mesmo tempo, interroga as instituições de poder a respeito do que, de fato, aconteceu com Marielle e Anderson em março de 2018.

 

4. Considerações Finais

Com esta proposta de análise, procurei investigar o enunciado ‘Rua Marielle Franco’ inscrito na placa de rua típica da capital carioca à luz da Semântica do Acontecimento. Foi possível entender que as reescriturações de “Rua Marielle Franco” desestabilizam a organização da cidade (que tenta controlar os movimentos de sentidos possíveis na ordem do espaço urbano). Além disso, é interessante notar como fica clara a disputa em torno da designação deste espaço público, o que vai ao encontro da tese de Dias (2015), que afirma que “um nome designa algo na medida em que se associa a esse nome uma história de enunciações na qual ele está envolvido em outro tempo e outro lugar” (p. 13). Ou seja, talvez caiba pensar ainda mais acerca das histórias de enunciações que ecoam em Marielle Franco e Marechal Floriano Peixoto, considerando como estes nomes produzem efeitos tanto nas relações sociais quanto, como busquei mostrar aqui, na ordem da cidade.

Como gesto de conclusão, vale dizer que o crime contra Marielle aconteceu em uma via pública central de uma das cidades mais importantes do Brasil. Foi na cidade, lugar pautado pelo discurso urbanístico da organização, recheado de câmeras de vigilância e policiamento e configurado como um espaço que goza tanto da prática de punição a qualquer um que ouse remexer em suas estruturas, que uma vereadora foi vítima de um crime que, anos depois, ainda permanece sem solução. Embora crimes ocorram a todo momento pela cidade, o enunciado reescriturado recorda o Estado de suas falhas – tanto em dar respostas sobre morte de uma figura política quanto em, através da administração citadina, não conseguir conter a ordem da cidade.

 

Referências

DIAS, Luis Francisco. Língua e nacionalidade no Brasil na primeira metade do século XX. Polifonia, Cuiabá, v. 22, n. 31, p. 11-31, 2015.

GUIMARÃES, Eduardo. Semântica do Acontecimento. Campinas, Pontes, 2002.

GUIMARÃES, Eduardo. Semântica: enunciação e sentido. Campinas: Pontes Editores, 2018.

ORLANDI, Eni. Cidade dos Sentidos. Campinas, Pontes, 2004.

PÊCHEUX, Michel. O papel da memória. In: ACHARD, P. et al. (Org.). Papel da memória. Campinas: Pontes, 1999

PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso - uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas, Editora da Unicamp, 1995.

 

Data de Recebimento: 15/09/2022
Data de Aprovação: 11/11/2022


1  “Cinelândia” é o nome popular da praça, mas, oficialmente, ela é nomeada como “Praça Marechal Floriano Peixoto”.

2  Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/2018/10/04/placa-de-marielle-foi-quebrada-para-restaurar-a-ordem-diz-flavio-bolsonaro.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em: 10 set. 2021.

3 Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2019/11/6/interna_cidadesdf/praca-do-setor-comercial-sul-tera-o-nome-de-marielle-franco.shtml. Acesso em: 04 ago. 2022.  

4 Este “x” é uma variável que corresponde ao lugar social de dizer. Ele pode ser, por exemplo, um presidente, administrador, trabalhador etc.

5  Vale dizer que não é somente o fato de a cidade ser constituída por uma organização que permite esta fala de Flávio Bolsonaro. São, também, as formações discursivas nas quais este sujeito se inscreve. Entendo como Formação Discursiva “aquilo que, numa conjuntura dada, determinada pelo estado de luta de classes, determina o que pode e deve ser dito” (PÊCHEUX, 1995, p. 160). Pêcheux, quando formulou esta noção, tinha como bases epistemológicas a Linguística e as teses de Althusser acerca da ideologia; a FD, assim, nos mostra, através da materialidade linguística, a materialidade ideológica que constitui o sujeito. Como coloca Pêcheux, a interpelação do sujeito em sujeito ideológico “se efetua pela identificação (do sujeito) com a formação discursiva que o domina” (p. 163). Com isso, não é apenas em concordância à organização administrativa da cidade que a fala de Flávio Bolsonaro se impõe, mas conta aí também uma relação de identificação com determinada FD.

6  Orlandi (2004) disserta bastante a respeito das falas desorganizadas e as entende como falas que “servem como observatórios que permitem ver esse jogo linguístico-histórico em que o simbólico se confronta com o político nisso que significa o espaço público” (p. 66).