Cidade de aço: sentidos sobre o digital no espaço urbano


resumo resumo

Dantielli Assumpção Garcia
Vitória Delpino de Castro



A cidade de aço e os sujeitos que não são de ferro

 

Imagem 1 - A cidade, ela é de aço, mas ninguém é de ferro.

Fonte: Olhe os muros, Facebook, 2020.

 

A relação entre cidade, sujeito e digital estão presentes na vida cotidiana e aparecem integradas a muitas práticas que involucram o espaço urbano de hoje. Especulações como a de que o digital substituiria o material, ou a de que o corpo em vida sofreria um processo de desmaterialização, embora ainda correntes em nossa sociedade, seguem no campo das tecnofantasias. Na complexa trama da cidade, porém, alguns vestígios desse processo histórico podem ser vislumbrados a partir de discursos que metaforizam aquilo que é da ordem da vida na cidade: ecos de vida que resistem, com a própria diferença, às práticas homogeneizantes do digital, a lembrar que há possibilidades de histórias outras.

“A cidade, ela é de aço, mas ninguém é de ferro”, assim materializa a escritura urbana que nos convida à escrita deste texto. Retornemos aos significantes “aço” e “ferro”. De saída, dois elementos químicos, por assim dizer, a apontarem algo sobre o sujeito e a sua zona de não ser no espaço urbano. Um sujeito, às vezes, fora; outras, dentro, lá, em algum lugar à deriva na cidade. Fato é que quanto mais complexas se tornam as nossas sociedades, mais propensas a gerar paradoxos como esse: “a cidade é”, mas “o sujeito não é”. Sendo assim, em um mundo que permanece mais do que nunca através da conectividade, é sintomática a duplicidade pela qual surfa o sujeito de nosso tempo, como na tentativa de encontrar alguma moderação aristotélica para sobreviver à onda que se assemelha o viver em tempos tão tecnológicos.

Diante de um mundo mais rápido onde se escuta, se olha e se toca menos, curioso é reparar o caminhar dos habitantes urbanos que, mesmo subordinados à conjuntura ciberespacial significada pelo imediatismo das redes digitais, perseguem em sua trilha pelo espaço citadino, revelando de um lado resíduos de vida, de outro, as estranhezas que esse mesmo viver anuncia à atualidade digital. Diante do oceano tecnológico que banha o sujeito na cidade, um espaço urbano outro veleja, passa a ser visto, fotografado e documentado frente a uma atualidade cada vez mais cibernética. Mas, afinal, o que tem esse mar tecnológico que, ao mesmo tempo que banha o sujeito, o aprisiona tanto ao ponto de ele nos revelar, na cidade, a sua inquietação mais genuína: “aqui, ninguém é de ferro”?

Ao cruzarmos a cidade de aço, dar margem e voz aos seus habitantes que não são de ferro, e suas múltiplas formas de existência no espaço urbano, iremos perceber como, a partir de um conjunto de escrituras urbanas, circulam hoje alguns sentidos possíveis para pensarmos o funcionamento do digital em nosso tempo. Pela via de uma escrita um tanto quanto poética, tais escrituras irrompem como um furo a essa condição de produção dominante imposta pelas tecnologias, constituindo outras condições de existência possíveis para o sujeito no espaço urbano, permitindo-o ora compor parte desse corpo social afetado pelas redes, ora romper com o funcionamento de sua estrutura metálica.

 

Linguagem: a escrita como forma de inscrição na cidade

 

Figura 2 - Existe vida.

Fonte: O que as ruas falam, Instagram, 2019.

Dizer, mas não dizer por dizer, produzir efeitos. Eis o desafio que constitui caminhar sobre um território ocupado pelo funcionamento da linguagem. Nesse território ruidoso, armadilhas podem nos fisgar exatamente onde podemos escapar. Paralelamente, é no escape que vamos constituindo e nos constituindo sujeitos, sempre assujeitados às impossibilidades de um trânsito orientado por nossa vontade. O desafio coloca-se para o sujeito, pois, no se enlaçar ao outro, há a linguagem: materialidade que faz uma espécie de rede e vai possibilitando, no próprio enredamento, um lugar de singularidade. É a partir desse funcionamento engenhoso da linguagem, rendendo-se à narrativa que ela encerra, que nos permitiremos, ao longo da escrita dessa parte de nosso texto, retomá-la, brevemente, para que seja possível explicitar a urgência de considerá-la quando articulada à temática da cidade, do sujeito e do digital; três instâncias que, cada qual a seu modo, sinalizam o desafio que supõe o trabalho com a materialidade que se faz a linguagem.

Conforme aponta a linguista Eni Orlandi (2004), a cidade constitui-se como um espaço de linguagem, pois, para o nosso tempo, ela figura “uma realidade que se impõe com toda sua força” (Orlandi, 2004, p. 11), de modo que nada pode ser pensado sem os seus movimentos como pano de fundo. A autora vai além, e explicita como o espaço urbano tem, assim, o seu ecossistema, seus “flagrantes urbanos”, semelhante a um enigma a ser decifrado. Do pixo ao lambe-lambe, do grafite às imprecisões de um stencil, o espaço urbano carrega, em si, “flagrantes”, textos urbanos a circularem, através da linguagem, os mais variados discursos. O artista cria uma linguagem intencional para interferir naquilo que não é tido como previsto para circular no território explorado e, assim, o faz, interfere, produz efeitos. Lembremo-nos da escritura “Existe vida”, materializada no início dessa parte de nosso texto. Tendo como suporte, ao que parece, a parede de alguma cidade afora, a escritura urbana comparece como inscrição, intervém como texto, interfere.

Para Orlandi (2004), é justamente a partir dessas interferências produzidas na cidade que se pode tocar o funcionamento da linguagem em seu entorno. Isso porque, nas palavras da autora, é na e pela linguagem que se entreve “o deslocamento e a transformação do homem e da realidade em que ele vive” (Orlandi, 2015, p. 13). Enquadrar a cidade a partir dessa perspectiva de transformação, de enigma a ser decifrado, de texto a ser lido, lembra-nos Rolnik (2004), significa também refletir o espaço urbano a partir da relação homem/natureza. A autora afirma que “[...] para fixar-se em um ponto para plantar é preciso garantir o domínio permanente de um território” (Rolnik, p. 7, 2004). Aqui, os significantes “domínio” e “território” comparecem como categorias pertinentes à medida que, quando ocupamos o território da cidade, a cidade nos ocupa, de modo que formamos e transformamos o seu território até torná-los os reflexos de nós: territorialidades que expressam a ligação entre a vida e a atividade humana de produção dos meios de existência, que culmina nesse ecossistema revelador de modos de vida que é a cidade.

Nesses termos, é verdade que adentrar o espaço urbano a partir de uma perspectiva discursiva, na tentativa de compreender os seus mistérios mais profundos, pressupõe cautela. Isso porque, como demonstramos, a linguagem atravessa a cidade, é engenhosa e desafiadora. No espaço urbano, trabalhar com tal materialidade nos impele, portanto, a considerar os sujeitos que habitam o território citadino enquanto seres simbólicos e histórico-sociais; e a escrita por eles praticada como processo discursivo que produz efeitos em nossa sociedade. Diante de um território onde somos impulsionados a jogar com a imprevisibilidade da linguagem, cruzar com a discursividade que corta o espaço urbano é tarefa árdua para, nós, sujeitos assujeitados ao seu funcionamento. O espaço urbano, essa instância constituída por tantas vozes, é quem dá a condução necessária, por meio de seus escritos, para vislumbrarmos, como assim teorizou o geógrafo Milton Santos (1996, p. 258), “[...] o mais significativo dos lugares”, que é a cidade e o seu ecossistema vivo.

 

Alguns saberes teóricos sobre o espaço urbano e a tecnologia digital

 

Figura 3 - Não quero saber, quero sentir.

Fonte: Olhe os muros, Facebook, 2019.

 

“As tecnologias são produto de uma sociedade e de uma cultura” (Lévy, 2003, p. 22), assim já nos prenunciava Pierre Lévy (2003), expoente filósofo da ciência da informação. Dando-nos algumas pistas sobre o que seria o habitar dos sujeitos na sociedade dita “em rede”, digitalizada, o autor, já na virada do século XXI, indicava-nos como o avanço tecnológico configurava, antes, um fenômeno resultante da própria ação humana. De um lado, era o domínio do sujeito diante da produção de sua técnica, que carregava a ilusão do mundo ao alcance de suas mãos. De outro lado, o temor do criador diante de sua própria criatura, que apontava os mistérios da vida artificial e o poder de seu descontrole.

Vinte anos se passaram desde que Lévy (2003), por assim dizer, teorizou algo em torno da técnica a embalar o universo tecnológico. Na atualidade de nosso tempo, enquadrar os movimentos tempestuosos instaurado pelo funcionamento do digital nos impele a prosseguir questionando a rede e as suas artimanhas. Mais ainda, a considerar o trabalho de uma engrenagem que parece ser a vez, a saber, o capitalismo. Torna-se imperativo relembrar como, para se manter de modo hegemônico no poder, o sistema capitalista é capaz de se reestruturar e reorganizar a sua lógica de produção e de consumo quando pensado no âmbito das tecnologias. Desossar o indivisível do corpo que se mostra o digital; fragilizar, ou mesmo aniquilar, a comunicação humana, ao transformar o sujeito em suco, estão entre algumas das formas de o capitalismo navegar sobre o mar tecnológico. Na imensidão desse grande oceano, máquina digital e máquina capital colidem, fazendo flutuar a lógica das fronteiras eliminadas; das distâncias, magicamente, encurtadas; das pessoas lado a lado, próximas, mesmo distantes. Ao menos é o que supõe a lógica capitalista digital, contrariando o sujeito que faz presença em nosso tempo: “Não quero saber, quero sentir”, assim a escritura urbana apresentada no início dessa parte de nosso texto faz o alerta.

Embora toda a mestria propiciada pela tecnologia à sociedade, é certo: o crédito real por trás de seu sucesso está nas relações sociais radicais que ela também declara, como efeito à atualidade, a começar pela desconsideração do “tempo” do sujeito que, parece-nos, revela-se outro que não a do tempo imediatista tecnológico. Diante de uma sociedade que se constitui pautada pelo funcionamento das redes, e estruturada pelo sistema econômico vigente capitalista, a tecnologia digital, lembra-nos Dias (2016), irrompe como um acontecimento simbólico em nosso tempo. No entanto, não se trata de uma eventualidade, de uma causalidade ou mesmo de um acidente imprevisto pela ciência. Mas de um acontecimento que desloca o sujeito e a sua “relação da ordem simbólica com o mundo” (Dias, 2016, p. 9) à medida que o afeta subjetivamente. Em uma formação social como a cidade, o acontecimento digital, já podemos inferir, não sobrevém sem consequências, e revela-se na medida em que a tecnologia ocupa um lugar significativo no cotidiano urbano, configurando as marcas de um processo histórico do que hoje se apresenta como realidade e as possibilidades do que pode vir a ser.

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, ao refletir sobre o sujeito que navega sobre o oceano tecnológico de nosso tempo, afirma que “O homo digitalis é tudo, menos um ninguém” (Han, 2018, p.12). Enquadrar o sujeito digital, para o autor, implica, pois, considerá-lo um “alguém penetrante” (Han, 2018, p.12), um sujeito situado sócio-historicamente capaz de agir, de pensar e de produzir sentidos por si mesmo, mas, inevitavelmente, um “já sujeito” penetrado, nesse caso, pelo atravessamento das redes tecnológicas digitais, e desse atravessamento não se pode escapar.

Dias (2011), nessa direção, ajuda-nos a resgatar esse homo digitalis teorizado por Han (2018) à medida que revela os meandros da relação entre o digital e o espaço urbano de hoje, explorando como o sujeito digital se sobrepõe à cidade de tal forma, significando-se junto à tecnologia. O homo digitalis, teorizado por Han (2018), estaria operando dentro de uma engrenagem maior, a qual Dias (2011) intitula e-urbano. Mas, pensemos, por que “e-” urbano? Nas palavras da autora,

 

[...] “e-”, de eletrônico, passa a constituir o espaço urbano em sua própria formulação. Dessa forma, quando nos referimos a uma série de palavras que fazem parte hoje da nossa urbanidade, tais como e-book, e-learning, e-busines, e-gov e outras como, e-comércio, e-cidadania, e-compras, estas são tomadas, de modo geral, na evidência do sentido, como se o eletrônico fosse um sentido natural para todos (Dias, 2011, p. 11).

 

Juntamente com Dias (2011), podemos perceber como a questão tecnológica se apresenta, muitas vezes, como um “já lá” para o homo digitalis, produzindo-se como evidência. Entretanto, ao pensar o digital como parte constitutiva do espaço urbano, Dias (2011) nos lança ao desafio de olhar para a tecnologia não na conjuntura meramente sócio-histórica e ideológica da sociedade dita “em rede”, digitalizada, como uma questão puramente técnica. Antes, a autora nos permite confrontar o funcionamento do digital na própria materialidade da cidade, em seu cotidiano. Somos impelidos, então, a pensar a discursividade do digital; e, mais ainda, e aqui chegamos à questão norteadora de nosso texto, a compreender os sentidos que estariam sendo produzidos hoje pelos sujeitos sobre o digital no cotidiano da cidade. Como alerta Dias (2011),

 

[...] somos todos, em todos os lugares, afetados pela discursividade do eletrônico. Ela não está nos objetos, na relação entre eles, ou no acesso a eles, nem mesmo no acesso à internet. Está no processo histórico e ideológico de significação da nossa sociedade contemporânea, do modo como estamos nela, como significamos os espaços e somos por eles significados (Dias, 2011, p. 14).

 

Dias (2011) é categórica. Tentar desviar, ocultar ou negar a onipresença das tecnologias digitais em nosso tempo já não cola. Sob uma perspectiva discursiva, no entanto, é possível recrutá-la e trazê-la para perto de nós na tentativa de compreendê-la além de suas evidências. Se, na cidade de aço, somos confrontados pelo caminhar de um sujeito que diz “aqui, ninguém é de ferro”, torna-se necessário refletir o digital para além de uma questão tecnológica na cidade, embora essa dimensão seja importante, mas enquadrá-lo a partir de uma perspectiva discursiva, voltando-se para os sentidos que são produzidos hoje no espaço urbano sobre o seu funcionamento.

De fato, os saberes teóricos mobilizados nessa parte de nosso texto apontam que não há uma dissociação entre cidade e digital. Entretanto, quais as condições dos laços? A constatação de que não há uma cisão entre espaços não disfarça a assimetria entre dois territórios, aparentemente, distintos: a volatilidade de um; a rigidez do outro. Nesses termos, embora o digital se coloque como parte constitutiva de nossa sociedade, em paralelo, numa relação de sobreposição, a conjuntura histórica que aponta o viver em um tempo tão tecnológico endereça o modo como duas materialidades distintas, a saber, cidade e digital, relacionam-se hoje, e, mais, onde essa relação toca o sujeito no espaço urbano e seus modos de viver em uma sociedade perpassada pela rede. De que modo os sujeitos percebem o digital no cotidiano da cidade?

 

Do percurso teórico-metodológico à condução das análises

 

O questionamento que norteia a escrita deste texto suscita um arcabouço teórico-analítico que o sustente. Acreditamos, assim, que a perspectiva teórica que melhor conduz os questionamentos engendrados a partir de nossa escrita é a teoria da Análise de Discurso francesa (AD). Isso porque a AD nos permite alçar um gesto analítico de questionamento sobre a linguagem; seja ao nos permitir inquerir os sujeitos, direcionando-nos aos sentidos e às suas supostas evidências, ou ao nos levar a desconfiar senão das palavras, dos discursos que delas emanam e constituem os sentidos.

Para que possamos pensar, então, acerca de alguns pontos pertinentes a esse lugar teórico ao qual o nosso texto se filia, damos voz, outra vez, à Orlandi (2015), que aponta como a AD entra em cena justamente para mostrar que devemos ter “uma relação menos ingênua com a linguagem” (Orlandi, 2015, p. 08). Em outros termos, a autora nos convida a pensar como essa materialidade que é a linguagem não se constitui fechada em si mesma, mas é atravessada por estilhaços de fatores históricos, filosóficos, do inconsciente e da sociedade. Esses estilhaços, para a AD, devem ser questionados, atendo-se ao motivo pelo qual uma palavra é dita em um dado contexto de produção e não outras, e não todas.

Nesses termos, tomar a teoria da AD como filiação teórica significa romper a película da evidência que envolve a língua em sua materialidade histórica. Significa duvidar, suspeitar e ousar pensar por si a linguagem, praticando a não ingenuidade de que fala Orlandi (2015). Para o analista de discurso, aquele quem pratica a AD, não é confortável se ajeitar nas evidências que a língua promulga, sendo preciso ir além daquilo que está dito, incluindo-se aí o não dito e/ou o que não pôde ser dito. Também, refere-se à noção basilar para essa teoria, que é o fato de que não se é “indivíduo” empírico numa dada formação social, mas “sujeito” assujeitado a ideologias pré-moldadas. Ideologias essas que colocam os sujeitos sempre em relação de obviedade com aquilo que dizem, não dizem ou acham que tenham dito.

Pode-se dizer que a AD se constitui, assim, enquanto uma teoria que produz gestos de leitura acerca dos discursos, buscando apreender não o conteúdo de tais discursos, mas os efeitos de sentido[1]. Em um de seus escritos, presente no ensaio O discurso: estrutura ou acontecimento?, Pêcheux (2008), filósofo da linguagem e mentor da AD francesa, deixa entrever que essa teoria se configura como uma disciplina de interpretação, na qual os dizeres estão alvoroçados à espera de um gesto analítico. Então, compete ao analista de discurso a não ingenuidade diante da linguagem, a ousadia de remar em direção aos sentidos que parecem evidentes, a fim de reinterpretá-los. A singularidade da teoria reside no fato de que essa noção de reinterpretação não se atém ao plano dos conteúdos dos discursos, por assim dizer, mas sinaliza os processos de produção dos sentidos, compreendendo, a partir da teoria, os gestos de interpretação que o analista empreende ao longo de suas análises. Interessa, pois, tocar a historicidade de tais discursos que cruza tanto os sujeitos quanto constitui os sentidos.

Pelo fato de a AD propor uma intersecção entre a língua, o sujeito e a história, volta-se para a exterioridade, para o contexto de produção que convoca questões como: o que se diz; quando; como; onde; porquê; inaugurando um dispositivo teórico-metodológico analítico que se preocupa em investigar os rastros deixados pelos sujeitos ao longo de seu exercício de dizer e não dizer. Entra em cena a linguagem, e, com ela, a sua incompletude e o seu impossível tudo dizer. Também, a irrupção de um sujeito que é de base psicanalítica, por isso, um ser marcado pela contradição e pelo equívoco. Orlandi (2008), no prefácio do ensaio de Pêcheux (2008), em O discurso: estrutura ou acontecimento?, pontua que

 

[...] o que se pode depreender do percurso de Michel Pêcheux na elaboração da Análise de Discurso é que ele propôs uma forma de reflexão sobre a linguagem que aceita o desconforto de não se ajeitar nas evidências e no lugar já-feito. Ele exerceu com sofisticação e esmero a arte de refletir nos entremeios (Orlandi, 2008, p. 07).

 

É considerando que a AD não se ajeita nas evidências da linguagem, que acreditamos que essa teoria sustenta a construção de nosso texto, ajudando-nos, em nossa empreitada analítica, a compreender como sentidos sobre o digital são construídos hoje pelos sujeitos e circulam no cotidiano da cidade.

 

Escrituras urbanas: o recorte de um corpus em movimento

Nosso corpus de análise foi composto a partir da seleção de um conjunto de escrituras urbanas que foram publicadas em duas redes sociais. Uma no Facebook, intitulada Olhe os Muros, e a outra, no Instagram, nomeada O que as ruas falam. Por se tratar de um material cuja materialidade é imagética, a seleção foi realizada a partir de capturas de tela, de modo que, após alguns gestos preliminares de análise, optou-se pelo recorte das imagens capturadas, considerando que as análises discursivas recairiam, principalmente, sobre a “cena” urbana; em outras palavras, sobre a materialidade da escrita.

Outro critério que adotamos ao delimitar o material coletado foi considerar aquilo que, na trama das escrituras urbanas, funcionasse na ordem da repetição e da regularização dos sentidos. Desse modo, em nosso corpus, dentre outras regularidades, iremos perceber o funcionamento do poético como repetição. Isso porque, lembra-nos Orlandi (2004),

 

Para falar em cidade, fala-se em violência, em primeira instância. [...] em outra perspectiva: se a gente compreender o que está silenciado e não ficar só convergindo para a discursividade da violência vai encontrar outros sentidos para a cidade, para o social, para a história, para nós. O discurso da violência é homogeneizante e nem o social, nem a cidade, em seu real, tem homogeneidade (Orlandi, 2004, p. 29).

 

Outros sentidos possíveis. O encontro com formas poéticas de enunciar o digital no espaço urbano possibilitou o tecer de outras discursividades para a cidade. Assim, como pontua a socióloga Claudine Haroche (2011), “para que haja dor, é preciso que haja um sujeito capaz de sentir” (Haroche, 2011, p. 374). Agarremo-nos a esse significante que é o sentir. Diante das condições de produção impostas pelo digital, como é que os sujeitos têm sentido, na duplicidade que o termo carrega, o digital no cotidiano da cidade? Esta é a questão norteadora de nosso texto que sustentará, a seguir, os gestos analíticos por nós realizados.

 

Toque, touch, pele: um modo poético de enunciar o digital no espaço urbano

 

Figura 4 - Toque somente o necessário.

Fonte: Olhe os muros, Facebook, 2020

 

Nessa escritura urbana, logo de saída somos instados a questionar o que se faz necessário de ser tocado no espaço urbano contemporâneo: tocar o quê; quando; em que contexto; necessário para quem. Tais questionamentos levam-nos à reflexão sobre como, pelo efeito ideológico da evidência, a palavra “toque”, nesse contexto de enunciação, age como sinônimo de “tato”, “contato”, de modo que, ao lado do advérbio de exclusão “somente”, particulariza a ação de tocar (n)a cidade. Por meio desse movimento tenso e contraditório entre “tocar” e “tocar somente”, apenas o “necessário”, um furo nos sentidos estabilizados sobre o toque no urbano irrompe, inaugurando o impensável, o inesperado e o impossível para esse lugar. Tal impossível emerge para trazer o não visto, para dar a ver o esquecido, para entrecortar o efeito de inteireza da cidade e do imaginário de que, nesse espaço, tudo se pode e tudo se deve tocar. Nesse contexto, uma posição sujeito se manifesta na cidade, metaforizando aquilo que é da ordem do “não é tudo”. Esse movimento gera um confronto com o simbólico que se dá a ver pela discordância, pelo outro sentido que se funda e pelo outro sujeito que emerge, que não aquele pleno do funcionamento ritualístico que a cidade seria capaz de sustentar ou prever. Deriva, desse deslocamento, um sujeito da instância do diferente desse cotidiano, por vezes, tão imediatista.

 

Figura 5 - Muito touch na tela, pouco toque na pele.

Fonte: Olhe os muros, Facebook, 2019.

 

O que nos chama atenção nessa escritura urbana são os significantes “tela” e “pele”. No balanço desses dois significantes, diz-se, novamente, sobre o toque na cidade e sobre como esse gesto é da ordem daquilo que extrapola o touch da tela. Esse efeito de sentido, sustentado a partir de uma memória já historicamente constituída em torno do toque do/no digital, corrobora a noção de que a tela, essa superfície para a qual se deseja a rapidez, a mobilidade, a brevidade das relações, já não suporta os vínculos demandados pelos sujeitos d(à) cidade, os quais desejam romper, justamente, com o toque gélido, com a lisura e dureza presentes nessa superfície. Desse modo, na cidade, a partir dessa escritura, emerge o toque de pele, esse toque advindo de um órgão sensorial, que, como supõe o sujeito da escritura urbana anterior, é o “toque necessário”, quiçá, o único possível para se constituir o sentido do tato e das relações com o outro no urbano.

 

Figura 6 - Quanto mais a tecnologia nos aproxima, mais a gente se afasta da gente. Poste no poste.

Fonte: Olhe os muros, Facebook, 2019.

 

No verso acima, o sujeito faz deslocamentos com a língua. Vale-se da polissemia do significante “poste”, referindo-se tanto ao verbo “postar” quanto a um elemento do urbano, uma estrutura de concreto e de aço da cidade. Desse modo, como supõe a escritura, “postar”, em outras palavras, ocupar a cidade em sua dimensão física e concreta, torna-se a via possível para romper com as distâncias supostamente existentes nesse lugar. Partindo-se de que a cidade se constitui afetada pelo digital, podemos perceber como a instantaneidade advinda dessa materialidade significante, que, ilusoriamente, encurta as distâncias entre os espaços, no urbano, apaga a dimensão física dos sujeitos, aniquila a presença, “afasta gente”, como assim diz a escritura. Deste modo, o enunciado corresponde a uma tomada de posição do sujeito que faz furo nessa noção da ubiquidade, nessa noção homogeneizante de se estar concomitantemente presente em toda parte do urbano. Nessa perspectiva, na escritura, é interessante perceber como o sujeito, por meio deste dizer, faz ranger, na cidade, a poesia como forma de resistência a esse cotidiano dominante. Como ele impele os demais sujeitos (n)à cidade à ousadia de “postar”, de posicionar-se, provocando lacunas que apontam o “algo a mais” da cidade. Nos rasgos desses sentidos, a escritura vem fazer valer a relação entre presença e distância no espaço urbano, não referidas diretamente à presença física dos sujeitos, mas à onipresença, essa presença imaginada de pessoas, informações, objetos em múltiplas conexões que não se baseiam apenas em relações de proximidade, mas da possibilidade de ocupar diversos lugares ao mesmo tempo, e, paradoxalmente, não ocupar lugar algum; da possibilidade de estar próximo aos outros sujeitos, mas, paradoxalmente, sentir-se longe, afastado.

 

Figura 7 - Desligue o cel e olhe o céu.

Fonte: O que as ruas falam, Instagram, 2019.

 

Na escritura acima, observamos certo modo de inscrever sentidos de ruptura em relação ao “olhar” na cidade. Um jogo entre o que pode e deve ser visto, assim como um jogo entre o que não pode e não deve (ou quer) ser visto, se estabelece. Algo da ordem estrita do sujeito da “conexão” estaria ali no campo do visível, mas protegido pelo “céu” do urbano. Percebe-se, com isso, como o “olhar” – essa potente câmera do sujeito que registra cada vez com mais rapidez, e armazena em uma memória, cada vez mais diluída, os apelos efêmeros da cidade –, está assujeitado ao espetáculo, às variações contínuas das “coisas”, dos “cels” e ao caráter opaco de uma percepção em movimento acelerado. Por meio dessa escritura, podemos, assim, compreender como, na urbe, o olhar é afetado, conforma-se à velocidade, à multiplicação dos objetos, mas, paradoxalmente, reage às intensidades e aos deslocamentos repentinos. Nesse contexto, embora a cidade seja marcada pelo caráter da fragmentação, o olhar captura o ambíguo, o efêmero, o excessivo e o contraditório da vida cotidiana. O interessante é perceber como, na linguagem, essa captura se materializa, ou melhor, como esse “olhar” se metaforiza pela via do interdiscurso, daquilo que, no sujeito, fala antes e independentemente.

 

Figura 8 - Aluga-se olhar longe do celular.

Fonte: O que as ruas falam, Instagram, 2019.

 

Nessa escritura urbana, outra vez, o olhar é enfocado. Nela, o sujeito, com palavras comuns, sem se distanciar do social trivial, do vivido, da rua, enuncia-se. Assim, em “aluga-se olhar”, tem-se um sentido que reverbera o poético, um sentido que só faz sentido nessa instância onde tudo é possível. Na escritura, curioso notar o fato de que o sujeito a enunciar é o mesmo sujeito a “alugar o olhar”, embora haja a partícula “se” intentando apassivar sua inscrição. É, por isso, esse mesmo sujeito, ele mesmo, uma exposição de um pedaço de realidade daquilo que faz parte, é ele mesmo esse “olhar longe”, para, quem sabe, “olhar perto”, e aí poderíamos acrescentar perto/para a cidade, perto/para os demais sujeitos. A partir dessa escritura urbana, marca-se, pois, a ordem de um olhar que anseia captar não o aspecto estático das coisas citadinas, mas, sim, a intensidade que retrata o cotidiano da vida pública e aberta, a dramaticidade momentânea daquilo que não tem permanência ou duração. Desse modo, na divergência com a formação discursiva dominante da cidade, a qual se sustenta pela via do ritmo de vida marcado na/pela circulação frenética e repentina dos movimentos, o enunciado instala, na ordem da cidade, uma denúncia, um dizer outro que, por sua trivialidade, por filiar-se à agitação da vida comezinha, ao “aluga-se”, recorta esse lugar do urbano atravessado pela rede, pelo “celular”, redefinindo-o.

 

Algumas considerações sobre a cidade de aço: sensível

Chegando às considerações finais deste texto, cuja escrita teve como base metodológica a teoria da AD francesa, buscamos produzir gestos de análise a respeito do modo como sentidos sobre o digital são construídos no cotidiano da cidade e circulam a partir de um conjunto de escrituras urbanas. O questionamento que permeou a construção do texto partiu da seguinte questão: “De que modo os sujeitos percebem o digital no cotidiano da cidade?”. Ao trabalharmos com essa temática emergente, o que pudemos inferir a partir dos gestos analíticos apresentados foi a retomada do embate ideológico que tencionou o contexto histórico atual, bem como as condições de produção atreladas às tecnologias digitais. Percebemos, com isso, como as escrituras urbanas apresentadas e analisadas neste texto, ao retomarem certas memórias, se produzem como resposta ao momento histórico no qual nos encontramos, sendo este marcado pelas tecnologias e, também, por certo imediatismo. Um dizer sobre a tecnologia emergiu, assim como alguns sentidos para pensarmos o digital hoje.

Em um tempo de transformações intensas, processadas em velocidade inigualável, os sujeitos produzem demandas singulares que estão para além daquelas que se processam pela via da velocidade da máquina. As escrituras urbanas aqui analisadas, em tempo, irrompem para (re)significar a conjuntura atual, e para (re)inscrever sentidos mais humanizados ao cotidiano, à cidade, ao colocar em cena a importância e a necessidade de se pensar a sensibilidade nessa atualidade permeada pelo tecnológico. Vale dizer, o toque, a pele, as noções de aproximação e de afastamento foram demandas reclamadas por esses sujeitos.

Para além disso, as escrituras urbanas configuraram-se como materialidades produtora e disseminadora de dizeres, que resiste e que se opõe aos dizeres historicamente consolidados e construídos sobre a tecnologia hoje. Nesse viés, a teoria da AD francesa se fez importante neste texto por compreender que os sujeitos e os sentidos se constituem mutuamente na história, lado a lado, em consonância com as posições ocupadas no discurso.

Acreditamos que os exercícios teóricos e analíticos postos neste texto puderam, assim, marcar a singularidade nas formas de, em uma sociedade atravessada pelo digital, tomar o sujeito contemporâneo, apontando para a potência da poesia e da (r)existência na rua, no público, que, como vimos ao longo da escrita deste texto, foi capaz de propor costuras de sentidos mais sensitivos para nossa atualidade. O espaço urbano, que embrulha o aço e o ferro advindos de um tempo tecnológico e imediato, apontou, em seu cotidiano, o sensível como possibilidade para o sujeito fazer furo às forças dessas condições de produção dominante.

 

Referências

 

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PÊCHEUX, Michel. Análise automática do discurso. In: GADET, Françoise; HAK, Tony. (Org). Por uma análise automática do Discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Tradução: Bethania Mariani. Campinas: Editora da Unicamp, p. 61-162, 1990.

ROLNIK, Raquel. O que é a cidade. São Paulo: Brasiliense, 1995.

SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp, 1996 

Data de Recebimento: 31/07/2023
Data de Aprovação: 25/08/2023

 

[1] Para a AD, discurso é definido como o “efeito de sentido entre interlocutores” (Pêcheux, 1990, p. 82).