Da janela do hospício: Um vago olhar encontra outros na paisagem urbana


resumo resumo

Pedro De Souza
Dante Albuquerque Salles



Introdução

Depois de percorrermos antigas clínicas e hospitais para doentes mentais no Rio de Janeiro algumas hoje transformadas em museu ou memorial por conta da pesquisa que realizamos acerca dos diários produzidos em situação de internamento por escritores que foram pacientes psiquiátricos - nos ocorreu partilhar algumas reflexões em torno da loucura tornada hoje livremente exposta na paisagem urbana. De que liberdade se trata, depois da queda dos muros das instituições psiquiátricas, onde para serem tratados os loucos tinham que ser apartados de seu corpo onde linguagem alguma era reconhecida. Eles não podiam ser escutados. Disso, Michel Foucault foi testemunha e fez do que viu e ouviu o leitmotiv de sua tese sobre a história da loucura. No prefácio à primeira edição de seu livro, ele relata:

 

Aconteceu que, por razões biográficas, eu conheci o que era um asilo; eu ouvi aquelas vozes ali, e fiquei, creio eu, como qualquer outra pessoa, perturbado por essas vozes; eu disse qualquer um e, como dizia, com exceção dos médicos, e quando digo com exceção dos médicos e psiquiatras, quero dizer que o seu funcionamento estatutário os filtra tanto que deve ter havido gritos nas palavras de um louco que eles não ouviam mais que a parte inteligível do discurso. A forma escrita teria passado pelo filtro de seu conhecimento estabelecido (Foucault, 1961, p. I-Xl, tradução nossa)3

 

Nesta apresentação, o filósofo logo deixa claro de que maneira escutava, nas vozes dos loucos, uma linguagem que não cabia na sintaxe do discurso psiquiátrico. Depois, em entrevista e artigos menores, falando sobre esta sua obra, ele declarou que o que fez, na verdade, foi fazer falar o louco. No seu livro, reportando-se aos primeiros momentos de estabelecimento dos asilos no período moderno, Foucault faz um contraponto com o estado de liberdade em que se encontra o louco fora do hospício, quando tem espaço para exercer, ainda que sob controle, e ser sujeito da própria linguagem:

 

(...) A liberdade internada cura por si mesma, como logo o fará a linguagem liberada na psicanálise, porém através de um movimento exatamente contrário: não permitindo aos fantasmas que se materializem em palavras e se permutem entre si, mas obrigando-os a apagar-se diante do silêncio pesadamente real das coisas (Foucault, 1972, p. 477)

 

Foucault descreve assim a maneira como o discurso psiquiátrico elabora sua definição de loucura. Tudo se passa com base nas “relações que a liberdade pode manter consigo mesma. O que ele ressalta é o princípio do impedimento da liberdade para o louco. Este é internado para ser observado na loucura, laboratorialmente examinada in vitro, ou seja, desde uma partitura de escuta que não é da própria linguagem do louco, sim a do discurso psiquiátrico.

Mas, na linha da história da loucura que vem da época clássica até os dias de agora, nossa questão diz mais respeito ao que resta dos ditos loucos quando são derrubadas as paredes dos manicômios. Haveria uma saída para gerir o amparo daqueles lançados à solidão de seu modo incontornável de se relacionar consigo mesmo e com os outros, a não ser pela partilha da linguagem?

Em História da loucura, no capítulo sobre o bom uso da liberdade, quando Michel Foucault relata o problema de como garantir que a sociedade fosse protegida contra os loucos, inclusive antes da criação dos hospitais por volta do ano de 1791, Michel Foucault assinala as condições de interação entre loucos e não loucos numa nova forma de internamento:

O louco e o não-louco estão, rosto descoberto, um na presença do outro. Entre eles não há mais nenhuma distância, salvo a avaliada imediatamente pelo olhar. Mas, embora imperceptível, ela é sem dúvida ainda mais intransponível; a liberdade adquirida no internamento, a possibilidade de daí extrair uma verdade e uma linguagem são para a loucura apenas o outro lado de um movimento que lhe dá um estatuto no saber (Foucault, 1978, p. 483)

 

Vê-se que o filósofo francês, em atitude de enunciação que o leva a distanciar-se do discurso psiquiátrico ao qual se refere, atenta para o que, na tentativa de resolver o holocausto em que se tornou o hospital geral, as novas formas de tratamento convertem a loucura, de coisa percebida como aparição ameaçante, em fenômeno olhado sem medo, mas sendo coisa investida pela linguagem médica. Não é que, uma vez reunida no mesmo espaço de internamento, a loucura não mantenha com a razão uma distância a se temer bem mais. (...). Eis o cenário que mistura loucos e razoáveis, onde a loucura nada mais é que um objeto de saber (Foucault, 1978, p. 483-484)

Nesta minuciosa narrativa tratando da primeira etapa da constituição do asilo moderno, Foucault ressalta a intenção de introduzir no mundo do internamento as técnicas médicas e farmacêuticas. Este é o tempo em que o espaço do internamento, ao ser adaptado e reservado à loucura, poderá revelar sua própria potência e mostrar-se capaz de eliminar a loucura.

Não se trata de revestir o internamento com práticas que lhe são estranhas, mas de, arrumando-o, forçando uma verdade que ele ocultava, estendendo todos os fios que nele se cruzam de modo obscuro, dar-lhe um valor médico no movimento que conduz a loucura à razão. (Foucault, 1978, p. 483-484)

 

Nesta passagem de História da loucura, ressalto a maneira com que Michel Foucault, à guisa de propor o internamento como forma de cura, expõe criticamente novas e necessárias condições de divisão social entre loucos e não-loucos. Supera-se assim a ideia em vigor de que a internação só fazia sentido se os cuidados médicos falhassem: Somente após terem-se esgotado todos os recursos possíveis é que se permite consentir na necessidade incômoda de retirar a liberdade de um cidadão.

Importante atentar aqui para a ideia de liberdade que, segundo Foucault, se aplica a este novo modelo de internamento. Não se trata mais (...) de uma maneira rigorosamente negativa, abolição total e absoluta da liberdade. Deve ser, antes, liberdade restrita e organizada.

Fixemo-nos nesta ligação entre liberdade e possibilidade de autoexpressão da loucura. Acontece que tal permissão de abertura não visa escutar o louco e deixá-lo falar livremente desde uma posição de enunciação que só dele pode vir. O espaço de liberdade de expressão, desafogado no novo tipo de internamento, só se vinculava à linguagem dentro da qual o discurso psiquiátrico concebe a loucura como objeto de saber apartado do louco. Neste, a fala delirante é o que põe o louco em relação com o indivíduo razoável, por isto se exclui qualquer possibilidade de escuta da expressão subjetiva do louco.

Assim se acrescentou à figura do louco uma modificação que fez dele a base codificadora a definir quem deve entrar e quem deve sair do mundo dos loucos. Isto só se encontra na cultura ocidental, lembra Michel Foucault, aludindo ao lugar da literatura como espaço de reconhecimento e escuta da fala do louco. Em seu texto A loucura, a linguagem e a literatura, o filósofo afirma: (...) Mesmo que não se propusesse constranger os indivíduos a serem loucos, (...) ela assume daqui por diante a mesma responsabilidade pelos critérios que permitem dizer quem é louco e quem não é louco.

Neste artigo, vamos nos ater ao problema da não escuta do sujeito diretamente envolvido em todas estas questões que dizem respeito ao tipo de tratamento dado aos doentes mentais nas instituições psiquiátricas. O problema liga-se ao fato de não se considerar o saber que os próprios loucos detêm, desde sua experiência vivida como internados. Não aludimos tanto à forma exotérica do saber da fala dos insanos que Foucault não deixou de tratar ao aludir aos dizeres loucos que continha segredos que só advinham a eles em certa condição de videntes ou visionários. Em vez disso, no que devemos desenvolver a seguir, queremos investigar a possibilidade de a fala do sujeito, na intermitência entre o dentro e fora de si, poder ser levada em conta, direta ou indiretamente, na denúncia das precárias condições das instituições psiquiátricas e na reivindicação de modos outros de tratamento.

Começamos este texto por expor o que, nas palavras de Michel Foucault, motivou este filósofo a desenvolver sua tese acerca da história da loucura na época clássica. Escrever uma tese foi o que Foucault fez com os gritos que nunca deixaram de ressoar em seus ouvidos depois ter passado um tempo numa clínica psiquiátrica. Depois de ter publicado seu livro Doença Mental e Psicologia em 1954, era chegada a ocasião de ir mais longe no questionamento e na análise histórica e social do fenômeno da loucura. Partindo do que viu e ouviu, o tempo de desenvolver sua tese foi mais que oportuno para criticar o modo com que as vozes da loucura e as da razão historicamente não podiam se misturar. O discurso dominante não deixava que a linguagem da loucura não interferisse em sua “parte inteligível. Foucault bem que quis fazer ser ouvida a alocução do louco em sua irredutível e insana experiência, mas, na sua investigação histórica, ora nas formas figurativas da pintura, ora como expressão satírica ou de angústia, os atos insanos de fala só se expunham à margem da discursividade dominante em cada época. Não que a palavra do louco fique em segundo plano nas suas análises. Foucault até expõe expressividades intensas e diversas da loucura nas artes plásticas, no teatro, na literatura, mas nunca enquanto reconhecida expressão da experiência da loucura por si mesma. Ou seja, como o próprio filósofo admitiu, a fala do louco não está em primeiro plano, mas aparece como um objeto de análise no interior do discurso que a rejeita. Se o louco fala, situando-se cenicamente na rua ou no hospital, não é para se referir a si com a razoável coerência esperada na linguagem límpida da medicina. Neste espaço discursivo, o que se ressalta é a cabeça vazia do louco, obstinada tal como fala dela o discurso médico na época moderna. Da fala insana, só se pode colher o avesso contradito e irônico da linguagem que o saber instituído preconiza e impõe à revelia da experiência autodenunciada seja na forma de qualquer delírio ou nas formas plásticas ou literárias em que a fala do sujeito só pode ser reconhecida na exterioridade do discurso sério da medicina.

A literatura pode conter a experiência do louco sendo transmitida, mas nunca passível de ser escutada fora da contraparte decifrável dominante no saber psiquiátrico. De modo que é sempre, em desatino, que a fala do louco pode transmitir alguma sabedoria. Foucault localiza como no espaço literário da Renascença aparecem temas alusivos à loucura.

Na obra de Shakespeare, são as loucuras que se aparentam com a morte e o assassinato. Na de Cervantes, as formas que se entregam à presunção e a todas as complacências do imaginário. Mas trata-se aqui de altos modelos que seus imitadores diminuem e desarmam. E são sem dúvida, um e outro, mais as testemunhas de uma experiência trágica da Loucura nascida no século XV do que as de uma experiência crítica e moral do Desatino que, no entanto, se desenvolve em sua própria época. (Foucault, 1978, p. 45)

 

Criar personagens servindo-se do artifício discursivo literário para expor o que se pode descrever como loucura é também constante na literatura brasileira. O personagem principal do romance Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, figura a loucura escancarada na forma de falas excêntricas ou de atitudes de nacionalismo extremo. Machado de Assis, em O Alienista, adentra mais fundo na discussão entre os limites da razão e da loucura, construindo ficcionalmente a figura de um homem diagnosticado como louco. Costa, o personagem suposto insano, não demonstra sinais de desvario, mas termina por ser internado num hospício. Em O Alienista, o fato é que a narrativa questiona os limites da razão e da loucura, inclusive confrontando o autoritarismo da medicina.

No entanto, queremos atentar para a escrita literária que faz a fala do louco questionar o discurso psiquiátrico, mas expondo a si mesmo, em primeira pessoa. Beirando o gênero da autobiografia ou da autoficção, aí advém o lugar do sujeito enunciando desde sua imediata experiência com a loucura. Lima Barreto, por exemplo, com seu livro Diário de Hospício, tem sido estudado nesta perspectiva.

Não temos aqui espaço para desenvolver toda a fortuna crítica que tem legado alternativas discursivas de fazer falar o louco cuja voz em carne e osso ganha contornos de escrita de si no espaço literário. Por isso, entre tantas outras, vamos nos ater à voz e ao sujeito que fala na obra Hospício é Deus, de Maura Lopes Cançado, escrito que ela criou de dentro do hospício. Isto o faremos na direção de pensar se é possível a fala do internado em asilos participar da crítica e da revolta que diz respeito ao que vivem precariamente na situação segregada pacientes psiquiátricos.

Daqui retiramos a questão que deverá nortear nossa reflexão. Será que uma escrita vinda de um paciente internado pode conter elementos do saber inusitado do sujeito, prenunciando no contexto da luta antimanicomial, antes do fechamento dos hospitais psiquiátricos, o encontro possível entre loucos e não loucos sendo vistos e escutados sem temor na cidade? Mesmo que não possamos responder a esta questão, de toda maneira, nos interessa neste trabalho, desenvolver a escuta do sujeito lá onde sua voz está reduzida ao silêncio. Mirando a marca intensiva do testemunho que Foucault expressa no prefácio à primeira edição de História da Loucura: “o que quis fazer foi uma história do louco, ou seja, a história desta personagem real, destas personagens que falam, que gritam e que ninguém as escuta porque todo mundo as leva ao silêncio.” (Foucault, 1999, p. 140). Deste modo, entendemos que a escrita de Maura Lopes pode ser lida como uma interferência dirigida aos loucos, com os quais vivia: dúbios, eternos, santos, doentes. Com estas palavras, Maura remete-se também indiretamente à diversidade da loucura, de modo a discursivamente reforçar a busca de uma forma de tratamento não segregado, como preconizou o movimento antimanicomial. Ante a impossível articulação da voz dita dos loucos com a linguagem estabelecida no discurso psiquiátrico, antevemos aí um furo borrando limites. Seus irredutíveis escritos os de Michel Foucault e os de Maura Lopes Cançado, tomados na devida distância de seus estatutos discursivos de função-autor na filosofia e na literatura respectivamente tentam abrir espaço para uma outra linguagem. Se a voz do louco não chega a fazer laço com o interior da discursividade, há que se achar um modo de atravessar a linguagem socialmente instituída. No caso específico de Maura Lopes, o abismo na sua singular escritura já traz para fora a loucura que passeia nas ruas.

 

Perigosa presença

Iniciamos por lembrar o que Foucault notou sobre a adoção da proposta de um "diário do asilo". Esta ideia substituiu o silenciamento das cenas do desatino no cotidiano do sistema clássico de internação. Só que desse período, segundo as investigações foucaultianas, nada ficou registrado das casas de internamento. De certa forma, o diário de Maura Lopes Cançado, Hospício é Deus, funciona como uma espécie de documento do cotidiano de terapêuticas psiquiátricas com anotações registradas não por médicos e enfermeiros, mas por uma internada que sofre no corpo estas intervenções. Não é o que acontece com Maura. Não temos acesso aos prontuários da sua passagem pelo Centro Psiquiátrico Nacional, nem no Hospital Penitenciário, como constatamos. Podemos entender que este registro prontuários dos pacientes internados está disponível em antigas instituições psiquiátricas brasileiras. Só que tanto de forma a preservar quanto a apagar a memória do que ali se passou.

No fundo destes registros oficiais de instituições passadas, ainda se descobrem vestígios da fala do louco. Foi o que restou preservado como acervo depositados nos arquivos museais, guardando a história da psiquiatria no Brasil. A propósito, numa das salas do Memorial da Loucura, pavimento contíguo ao Museu de Imagens do Inconsciente, legado de Nise da Silveira, ouve-se a voz de Stella do Patrocínio, contando sua vida na Colônia Juliano Moreira, mesmo lugar onde esteve Arthur Bispo do Rosário.

Assim é que, pensando com Michel Foucault, dos anônimos, muito pouco ficou sobre a linguagem e a multiplicidade dessas existências delirantes. Em muitas passagens de seu livro Hospício é Deus, Maura Lopes escreve, em tom de desabafo e denúncia, o que viveu em cada lugar em que ficou internada. Ela chega a distinguir a diferença entre existir em um e outro modo mais ou menos rigoroso de internamento quando faz referência à Colônia Juliano Moreira, onde estava Stella do Patrocínio: Colônia, que horror. Todas as doentes a temem, ficam boazinhas se ameaçadas de transferência para lá. É para onde vão os casos crônicos, de onde não se volta (Cançado, 2016, p. 95)

De todo modo, o seu projeto de escrever um livro sobre o hospício acabou por se tornar o registro do que pode o desatino quando encontra lugar para falar com liberdade e se fazer ouvir, embora com desconfiança, no âmbito da linguagem própria do status quo do discurso psiquiátrico.

 

Gostaria de escrever um livro sobre o hospital e como se vive aqui. Só quem passa anonimamente por este lugar pode conhecê-lo. E sou apenas um prefixo no peito do uniforme. Um número a mais. À noite, em nossas camas, somos contadas como se deve fazer com os criminosos nos presídios. Pretendo mesmo escrever um livro. Talvez já o esteja fazendo, não queria vive-lo. Maura Lopes (op. cit, p. 58)

 

Tendo a escuta como posição da falta dentro e fora do hospício, esta escritora recorre ao seu desejo de escrever, estando ainda na condição de interna, almejando não só ser escritora, mas até narrar honestamente o que é um hospital de alienados, contradizendo o discurso mentiroso que divulga os hospitais como lugar de bom tratamento, pretendendo mostrar que tudo se tem feito para minorar o sofrimento dos doentes”. Deste discurso, Maura toma distância e contradiz: E eu digo: É MENTIRA (em caixa alta no original da autora) (Cançado, op. cit., p.49).

Pode parecer sem sentido que venhamos agora fazer referência à situação insustentável dos loucos internados nos hospitais para loucos psiquiáricos no Brasil da segunda metade do século XX. Mas nos parece possível estender o panorama de fundo da história do asilo, no final do século XVIII, que Michel Foucault descreveu, e tocar agora na urgência de acabar com o espetáculo de animalidade no internamento clássico, conforme a proposta de nova modalidade hospitalar para doentes mentais. O filósofo recorda o momento em que, graças a procedimentos médicos, o louco foi abstraído de sua loucura e colocado na vitrine. Todos podiam olhá-los sem temê-los. Neste mesmo período, por conta das regras rigorosas para prescrever o internamento, cabia a qualquer cidadão comum vigiar comportamentos tidos como estranhos e providenciar o pedido de internação.

Contudo, no limiar entre o dentro e o fora da loucura experimentada no hospício, a palavra e o rosto podiam escapar. Maura Lopes escreve a maneira como, de dentro do hospital, via e era vista pela gente na calçada. Ela vai até a janela, com os ouvidos atentos ao que lhe chega de fora, mantém contato com a rua. Quando isso não basta, ela telefona para alguns poucos amigos, pula o muro ou cruza os portões para encontrar outros. Não se contenta em esperar visitas. Do fundo interno de sua reclusão, ela anota em seu diário:

 

Passo longo tempo na janela, olhando a rua: casas velhas, sem esperança. Subúrbio. Nada me é dado. Nem o espetáculo de casas bonitas e alegres, cortinas levianas de pernas soltas dançando no ar, cortinas leves, bailarinas inconsequentes. Cortinas jovens e brincalhonas. Ou até velhas, pesadas, imponentes.

 

Esta é a escrita da paisagem exterior vista de dentro do hospício onde a escritora se encontrava internada. Em linguagem de estranha lucidez, pode-se imaginar como um louco podia se fazer visível sem que sua discreta presença pudesse ser percebida como perigosa. Ao contrário: o olhar, assim colocado em palavras, fazia a sua loucura se misturar a muitas outras, cada uma em sua singularidade solta no cotidiano da rua e das casas. Inclinando-se para o lado de dentro, ainda se mantendo no limiar entre estar dentro e fora do internato, da janela do dormitório, a certo momento, Maura nota, à distância, a outra janela do quarto da colega, logo abaixo da sua. Neste instante, uma amiga e paciente da seção Cunha Lopes, do Centro Psiquiátrico Pedro II, no Engenho de Dentro, conversava com as meninas na rua, moradoras das redondezas. Maura desvia sua atenção dali para ouvir alguém lhe perguntando: “Qual seu nome?”. Cenas de uma liberdade não tão suficientemente vigiada

Dessa maneira, o espaço manicomial desta época em que se situa Maura Lopes enquanto escreve torna-se metáfora de uma exterioridade contígua a uma interioridade inapreensível. Não queremos com isso falar do sujeito que existe antes e independente do seu ato de escrita, mas, sim, do processo de subjetivação como efeito de linguagem pelo qual Maura Lopes deixa-se flagrar tendo algum acesso ao que corresponde existir dentro e fora de si. É o que é provável entrever na interlocução que entretém com quem está do lado de fora. Quando responde a uma das meninas que da rua perguntou seu nome, não só responde como também abandona, por instantes, o universo sui generis de si mesma e se inclina empaticamente ao mundo externo dos outros reputados não loucos:

 

Respondi, ela pediu-me uma revista. Corri a procurar, não encontrei nenhuma. Então, era demais necessário, tomei um livro caríssimo de dona Dalmatie, todo encadernado e ilustrado, com danças de índios, escrevi depressa uma dedicatória e atirei para a menina bonita desconhecida. (Cançado, op. cit., p. 83)

 

Durante sua primeira internação, em um sanatório de Belo Horizonte, Maura Lopes se questionava quando saía à rua, acompanhada por alguma enfermeira: “Como podem viver livres e desprotegidas? Como se sustentam em vida? Como viver no mundo sem sofrer, se é tudo tão perigoso e inusitado?” (Cançado, op. cit., p. 67)

Quando fizemos agora uma pequena incursão pelos antigos hospitais psiquiátricos, antes de serem abolidos pela ação antimanicomial, foi interessante notar o estado da clínica onde ficou Maura Lopes. Ali onde agora é o Instituto Municipal Nise da Silveira existia o antigo Pavilhão Anna Nery, hoje o chamado Memorial da Loucura, inaugurado em 2021. Desde 2018, esse espaço é sede da exposição permanente “Memórias da loucura: trajetórias e desconstrução do hospício”, propondo, sob a ótica do movimento da Reforma Psiquiátrica, um recorte histórico da instituição até a conclusão de suas atividades. Como consta no material informativo do Memorial: “O patrimônio apresentado é composto por diferentes acervos, como livros, instrumentos médicos, mobiliários originais da época, itens inéditos e réplicas de prontuários sob guarda da instituição”.

Entretanto, percorrendo as outras clínicas psiquiátricas pelas quais passou Maura Lopes Cançado, inclusive o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Heitor Carrilho atual Instituto de Perícias Heitor Carrilho , instituição em que ficou presa por seis anos acusada de um crime, é surpreendente que em seus registros, ali nesse mesmo lugar onde hoje está instalado o Museu Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro, nada consta sobre a passagem dela por esta instituição. Tampouco no Memorial da Loucura, situado no bairro Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, sediado onde antes era o Centro Psiquiátrico Nacional, depois nomeado Centro Psiquiátrico Pedro II. Apesar de ter sido internada neste centro, não se acha ali qualquer vestígio da memória da escritora. Alguns dos funcionários contratados, depois do fechamento dos manicômios, nunca ouviram falar em Maura Lopes Cançado.

Esta memória do que ficou da vida nas instituições psiquiátricas pode ainda ser acessada no diário de Maura Lopes Cançado. Mas, no trabalho que aqui desenvolvemos, retomando uma pesquisa mais longa, nosso intuito não é tanto vasculhar vestígios do cotidiano de suplício vivido pelos loucos que tiveram sua liberdade confiscada. Queremos sim observar na escrita de Maura Lopes rastros de um processo intermitente de subjetivação apontando para ângulos invisíveis em que singularmente ela deixa uma porta entreaberta e se insinua misturando o espaço dos desatinados com os do que viviam suposta ou imaginariamente em estado de razão. Em contato ocasional com a obra de Nise da Silveira, ela já prenunciava que a loucura podia ser partilhada por qualquer um quando escutada na perspectiva da arte. No complexo psiquiátrico onde Maura se encontrava, funcionava o serviço de ocupação terapêutica, sob a coordenação da enfermeira Dalmatie.

Sua percepção lúcida deste serviço também se atesta no movimento para fora, expresso na dedicatória que Maura Lopes escreveu em seu livro para a médica psiquiatra, Nise da Silveira, que revolucionou o tratamento da doença mental no Brasil:

 

Esta beleza que nunca gostou de mim porque eu era fútil, o grande amor de quem jamais soube falar disto aos outros. Talvez porque não fosse fútil, mas carente de palavras e ansiosa demais para conseguir verbalizar seus sentimentos. Em memória do tempo em que me senti parte da família, Grande Mãe. Beijos, (Cançado. Rio, 27 de maio)4

 

Apesar de Maura Lopes tecer no diário duras críticas ao serviço oferecido no Pedro II, expressa admiração à Nise da Silveira. Supunha que a psiquiatra não tinha conhecimento de como se portavam as auxiliares do serviço durante sua ausência:

 

Lá tem música, muito material para trabalho, pintura, museu, mas as funcionárias não possuem nenhum preparo para lidar com os pacientes. Tratam todos como se tivessem os mesmos problemas, não indagam o grau de instrução de nenhum, tentam obrigar-nos a fazer trabalhos chatíssimos: bordado, tricô e outras cretinices. (Cançado, op.cit. p. 56-57)

 

Lê-se na escrita de Maura Lopes o ato de fazer falar, para fora dos muros do manicômio, a loucura silenciada na instituição psiquiátrica. Para além de seu tempo, Maura Lopes registra um tempo a vir: o tempo em que a loucura geral pode coabitar a praça pública, após a queda dos muros que o movimento antimanicomial lutou para fazer acontecer.

 

Loucos à solta

Tem-se, nesta obra literária de Maura Lopes, as linhas de enunciação que, em vez de propor procedimentos de contenção violenta, propõem a escuta como meio de liberdade, já que se trata de ouvir o sujeito que fala na pessoa em desatino. E, como já disse o Foucault que mencionamos antes: a linguagem liberada ao modo como se a põe em ato pela escuta em psicanálise atenua por si mesma, mas não segundo os procedimentos adotados no internamento em que se libera o louco de sua loucura, mas nunca se o escuta, sequer deixa-o falar. Desta forma, os fantasmas nunca podem se materializar em palavras: são apagados e relegados ao silêncio pesado da realidade das coisas que compõem a solidão da pessoa em desvario.

Retomando o texto de Maura Lopes, não é que ela não percebesse o sofrimento que era viver em uma clínica psiquiátrica. Entretanto, numa das ocasiões em que considera a possibilidade de sair, a escritora constata o dilema de ter de escolher viver dentro ou fora do hospício. É quando ela constata sua complicada situação no manicômio: “Odeio este hospital – e não posso evitá-lo. Para onde ir? Lar – que palavra. Mas lar? Lar, lar, lar? Soa esquisito e remoto.” (Cançado, op. cit., p. 57). E se questiona: “O que me traz para aqui? Será desejo de justiça? Analiso cada passo meu. Sofro cada gesto. Odeio estar aqui – mas vim. O medo de estar só me levaria a morar com os mortos. Mas não têm estado todos mortos para mim?” (Cançado, op. cit., p. 50). Malgrado o ambiente hostil de onde escreve, Maura de certo modo se sente atada a esse lugar, porém sem deixar de especular sobre uma (im)possível saída dali. Ela escreve:

 

Estou na seguinte situação, eu que procurei o hospital espontaneamente: presa, sem apelação. O mais eloquente discurso só viria complicar-me. Diriam: está agitada. A força física de nada me valeria caso eu tentasse transpor a porta que leva à saída do hospital. Seria detida imediatamente. Insistindo, presa. Se chegasse ao desvario de discutir, alegando ter vindo sozinha, portanto, com direito também de sair sozinha, terminaria no quarto-forte, depois de passar por várias humilhações, físicas e morais. Amanhã, uma informação lacônica ao médico: a Maura se agitou. Felizmente não sinto desejo de sair daqui. (Cançado, op. cit., id).

 

Por outro lado, Maura também reflete sobre sua condição subjetiva: ao mesmo tempo ignorada e discriminada fora do hospício e tratada como louca no hospital. Disto se deu conta após sua internação no hospício do Engenho de Dentro. Internada, ela sentiu que o tratamento das pessoas mudou em relação a ela:

 

O que me intriga é minha situação aqui: sou tratada como a louca mais inconsciente (quem sabe serei?), depois de vestir este uniforme. Antes de me fazer internar era a mesma, ninguém demonstrava perceber qualquer anormalidade em meus atos. Creio que me conduzia com certo equilíbrio, pelo menos aparente. (Cançado, op. cit., p. 49-50)

 

Para além do dilema entre internar-se ou não, nossa ideia é pontuar aqui a maneira como a escritora se vê vivendo entre outros dentro e fora do hospício. Admite até que na clínica seja a louca mais inconsciente. Ela não sabe, porém, se é mais difícil viver aprisionada sendo considerada louca, ou ser ignorada fora do hospício. Por certo, se escuta nesta sua fala seu verdadeiro dilema: o de não ser percebida como uma diferença subjetiva entre outras, ou seja, Maura, de fato, percebe que qualquer anormalidade em seus atos era apenas mais uma em meio a tantos outros loucos tidos como são perambulando pela rua. Esta é enfim a razão por que nos detemos aqui nas pontuações escritas de Maura Lopes Cançado sobre ela mesma, situada dentro e fora de si.

Quem sabe essa escritora já nos transmita, muito antes do fim da era em que os tidos doentes mentais eram encarcerados, a experiência de loucos e não loucos transitando na paisagem urbana? Sobre esta sua postura crítica acerca da separação, no mundo, entre os mentalmente normais e anormais, não resta dúvida. Ela escreve questionando o muro dos hospitais como pretensa fronteira entre o espaço da anormalidade e o da razão:

 

Estar internado no hospício não significa nada. São poucos os loucos. A maioria compõe a parte dúbia. Verdadeiros doentes mentais lutam contra o que se chama doença quando justamente esta luta é que os define. Sem lado entre o mundo dos chamados normais e a liberdade dos outros. Não conseguem transpor o Muro", segundo Sartre.” (Cançado, op. cit., p. 71).

 

Nathalia Timerman, no posfácio à última edição de Hospício é Deus, elucida com precisão o modo como Maura Lopes se exprime, identificando-se, mas não inteiramente implicando-se ou se admitindo como louca: O que me assombra na loucura, escreve Maura Lopes, é a distância. Os loucos parecem eternos. (Cançado, 2024, p. 278)

Timerman destaca esta passagem e do diário de Maura Lopes para alcançar aí o espaço corporal através do qual as palavras lhe servem de cajado para trilhar no limite entre a loucura em que se sente imersa e a desordem que esta mesma loucura pode proporcionar. Do mesmo modo em que se encontra com loucos, organiza-se para se afastar deste mundo e fora dele persistir na exterioridade de sua construção de si. Não seria também plausível pensar que Maura vislumbra um mundo em que loucos partilham experiências irredutíveis num espaço sem fronteira?

Não afirmamos que, objetivamente, Maura tenha participado dos ideais que mobilizaram o ativismo pelo fim do internamento em instituições psiquiátricas. É no momento em que se encontra no hospício que Maura se captura e não se captura ao escrever "Instante”, seu primeiro poema publicado em 1958, no Diário Carioca (Salles, 2017, p. 25). Pensamos, contudo, que a palavra instante intitulando esta criação poética pode nos conduzir ao movimento subjetivo de Maura em que, no hospital, o instante do escrever é a ocasião para ela colocar em cena a atmosfera vivida num momento em que o ato de escrever é o que ela tem nas mãos para transformar, simultaneamente, o espaço onde escreve e sua existência no tempo imediatamente a vir. Por isto, reiteramos, ela se acha constantemente no limiar entre o dentro e o fora, o que comporta toda a dimensão das condições históricas de tratamento da loucura baseada na segregação. Dizemos então que os registros escritos de Maura no seu diário apresentam um furo no que seria da ordem da separação entre fato e ficção.

Nestes termos, o instante no poema de Maura Lopes não apenas intitula um texto poético, mas uma escolha para transmitir a experiência de se transportar para uma experiência de liberdade não acessível aos loucos, mas que poeticamente ela capta existindo. Pode ser que ninguém veja, mas esta invisibilidade é a condição possível da invenção do mundo desejado no plano de sua escrita. Isto nos faz ver a escrita de Maura atuando num processo de ficcionalização que não está fora da história na qual está incluída como louca. A propósito, vale lembrar aqui Jacques Rancière, quando situa o instante como o núcleo da “(...) revolução ficcional moderna;

 

um tempo feito de instantes que se estendem ao infinito e se interpenetram ao invés de suprimirem uns aos outros na corrida para atingir o ponto final. O que a ficção moderna torna autônomo não é a arte ou a linguagem, é o instante como meio puro sem começo nem fim. (Ranciere, 2021, p.41)

 

Portanto, o instante, no sentido que nos traz Rancière, descreve o que dele gera ficção, essa tomada como “... a vida reinventada, diferente da vida ordinária, mas que, no entanto, não cessa de circundá-la. E a tarefa do escritor é a de inventar narrativas que as façam coincidirem.” (Rancière, 2021, p. 31). Tudo isto que diz respeito ao instante - medida temporal de átimos de segundos de invenção - encontramos em Maura Lopes ao, por exemplo, numa passagem de seu diário, escrever situando-se entre o agora e o depois da parada no tempo: Estou brincando há muito tempo de inventar, e sou a mais bela invenção que conheço. Antes me parecia haver um depois. Agora não me parece haver além de agora. Há muito tempo o tempo parou. — Onde? Sou o marco do esquecimento. (Cançado, op. cit., p. 123).

Desse modo, tanto a narrativa do acontecimento ordinário no cotidiano do hospício em que vive indica, não só a revolta e a denúncia das condições enfrentadas ali, mas sobretudo a possibilidade em ato de transformar, notadamente de quebrar a barragem que separa o que seria normal, do que seria anormal. O tempo em que viveu em Minas e no Rio de Janeiro são instantes pontuais que servem de fio condutor, no diário que escreve, para estender o espaço da ficção ao espaço do que torna cada vez mais insuportável na experiência da loucura cujo tratamento era baseado no confinamento.

Maura registra em seu diário acontecimentos vivenciados em situações diversas. Há instantes em que lembra os dias vividos antes ou depois de internada. Em outros, ela escreve sobre os momentos em que vai à janela de seu quarto no hospício e espia a vida das pessoas do lado de fora. Contudo, na maioria dos relatos, o hospício é o cenário principal das coisas que Maura conta. Neste ponto, observamos o incômodo de Maura ao olhar as colegas e ver nelas, à revelia de sua resistência, a extensão de aspectos abjetos de sua própria loucura. Vinha-lhe um sentimento de indignação. Foi o que houve numa festa de Natal oferecida aos internados na seção de Ocupação Terapêutica. Conta que, além de ganhar presentes, comer doces, naquela noite natalina, “houve baile para malucos, homens e mulheres. Apartada da cena, ela comenta escrevendo em seu diário: Considero isto indecente. Não quis ir. Sinto-me insultada (Cançado, op. cit., p. 155).

Maura, portanto, se recusava a entrar naquela roda (Não quis ir). Por mais que a intenção institucional fosse de acolhida, talvez em Maura se tenha surtido o efeito de ridicularização, já que no hospício aqueles homens e mulheres insanos apenas exibiam o destino de terem sido escorraçados e afastados de suas casas.

Embora nestes momentos em que recuava ao fundo de sua solidão irredutível, o certo é que, de maneira singular, própria de seus sentimentos, no preciso instante do ato de escrever, Maura Lopes lança marcas do modo como mantinha relação não apenas com a sua, mas também com a loucura de outros. Se compara sua situação mental com a das colegas, é sempre para constatar as diferentes perspectivas nas quais cada uma experimenta sua própria loucura. Tomando distância, refere-se aos companheiros de hospício em terceira pessoa, operando uma clivagem entre o seu eu e o eles da loucura alheia: Verdadeiros doentes mentais lutam contra o que se chama doença quando justamente esta luta é que os define”.

Não obstante, seu problema é para além do confinamento, as condições precárias em que é submetida ao ser tratada como louca no hospital. Mesmo tendo buscado a internação, não deixa de questionar a violência no tratamento que é oferecido ali. Basta lembrar as passagens em que se sente tratada como uma criminosa no asilo: “À noite, em nossas camas, somos contadas como se deve fazer com os criminosos nos presídios” (Cançado, op. cit., p. 70). Em outros trechos, é o espaço do hospício que ele rejeita, comparando os maus-tratos que recebe com os aplicados aos detentos: “Considero a palavra ‘guarda’ completamente agressiva. É como se estivéssemos num presídio. Também a palavra ‘doente’ contém a mesma dose de agressividade. Sinto-me constrangida ao usá-la” (Cançado, op. cit., p. 185).

É verdade que Maura inicialmente vê na internação uma saída, na busca de um lugar de proteção, onde pudesse escrever. Na primeira vez em que decide se internar em sanatório para doentes mentais, em Belo Horizonte, mesmo sem saber o sentido da internação, declara: O sanatório parecia-me romântico e belo, havia certo mistério que me atraia (Cançado, op. cit., p. 67)

Mas, por outro lado, ao longo da sua trajetória por sanatórios e instituições psiquiátricas, ela vai perdendo a ilusão. Vejamos como aqui ela se refere à internação na clínica do Alto da Boa Vista, nas circunstâncias em que lá sofreu uma crise.

 

Hoje, depois de conhecer hospitais do Governo, e haver sofrido pelas menores 'faltas' cometidas, avalio o quanto fui bem tratada naquele sanatório. Agredia quem se aproximasse de mim. Jamais usavam violência comigo. Riam fazendo alusões às minhas valentias. Quando me achava melhor, perguntavam rindo: Maurinha, por que você me deu um soco, hein'. Se se viam obrigados a me segurarem à força, faziam-no de jeito a não me machucar. Agora, compreendo que o dinheiro suaviza tudo: até a loucura. Nos últimos hospitais que frequentei não tive uma crise que ao menos se aproximasse desta. Mas, com o tratamento dispensado, não resistiria, estou certa. (p. 109)

 

No diário, percebemos o registro de circunstâncias em que sua revolta vai se tornando cada vez mais intensa. Ela não ameniza a dose de palavras acusatórias ao relatar que, por vezes, os pacientes acabam por nem conseguir se alimentar.

 

Quando estive a primeira vez internada, ainda no IP, sentia-me chocada, saía sem comer do refeitório. Às vezes chorava. Agora tenho um longo aprendizado. Revido imediatamente à agressão. Me deseduco dia a dia. (...) A verdade é que ninguém se incomoda com os maus tratos dispensados aos doentes. As guardas dizem que devemos nos sentir felizes por termos o que comer.(Cançado, op. cit. p. 49)

 

Só que, pelo que escreve Maura Lopes, entende-se que nela vai acabando esse romantismo inicial com que experimentava o internamento. Passa a questionar o isolamento no que tem do tratamento violento e de exclusão. Isto fica claro quando ela faz uma comparação do hospício com o presídio, das guardas como espécies de carcereiras. A própria existência do quarto forte, uma espécie de ‘solitária’ do complexo psiquiátrico, como marca do funcionamento de um presídio. Certo dia, ela registra em seu diário um de seus embates com as enfermeiras, verdadeiras guardas prisionais: "Aplicaram-me injeção para dormir, levaram-me para o quarto-forte. Mais tarde, várias guardas vieram à porta do quarto, rindo divertidas ". (Cançado, p. 55). Tudo isto, sem contar as tentativas de fugir, assaltar os muros, quando dava. São atitudes com ou sem palavras em que Maura Lopes põe em questionamento o regime de segregação no hospício.

No entanto, resta esse entre lugar: a busca por abrigo e, ao mesmo tempo, não suportar viver naquelas condições. Mas se a cada instante, conforme assumimos com Rancière, corresponde um ato mínimo de invenção, então, ao escrever, algo do saber do sujeito em que Maura se torna atua, no plano da ficção, em continuidade com o contexto não só do dia a dia particular vivido pelos doentes mentais, mas também em ressonância com as críticas e revoltas, vindas de fora dos manicômios, contra a crueldade do tratamento psiquiátrico.

De todo modo, vemos aqui a vacilação entre estar dentro e fora de si como marca da que percorre toda a narrativa de Hospício é Deus. Ao vacilar, Maura Lopes desmancha ficcionalmente a fronteira espacial, o que em seu cotidiano a faz escapar de se sentir confinada. De modo que, desde o drama íntimo de sua autoficção, a escritora inventa uma realidade ligada tanto ao estatuto prisional dos internados quanto à possibilidade de a loucura cavar em si mesma nichos de convivência, partilhando diferentes modos de ser louco. Neste território íntimo de infinito singular, é interessante escutar em Hospício é Deus construções subjetivas em processo na escrita, produzindo, entre os muros do hospício, uma ambiência espacial porosa de partilha solidária do cotidiano da loucura.

A linha contínua que Rancière propõe entre a vida cotidiana e a que se constrói na ficção vem bem a calhar para o nosso argumento de que, no fundo, Maura inventa para si, no seu diário, um espaço de proteção e de saída, o que da ficção se estendeu como alternativa hoje vigente para tratar doentes mentais fora dos muros dos hospícios. Apenas que no núcleo desta ideia soprada em muitos trechos de Hospício é Deus não se pode ler o grito que vem, anos depois, exigindo a interrupção definitiva do tratamento em manicômios. Em vez disso, Maura Lopes clama por um outro olhar endereçado a este espaço discursivo, vertendo nele traços linguageiros de prováveis partilhas de um louco com outros quaisquer. Trocando em miúdos, nesta linha de expressão se pode entrever a coincidência com o que um dia sonhou Franco Basaglia, um dos inspiradores da Reforma Psiquiátrica no Brasil: adotar uma modalidade de tratamento psiquiátrico com maior dignidade e liberdade. Neste sentido, o que Maura Lopes escreveu traz, sub-repticiamente, proposições necessárias para entender a loucura não enquanto condição isolada, mas sim parte da experiência humana.

Nesta direção de leitura, entendemos que Hospício é Deus pode ter começado a plantar indiretamente uma semente no terreno do pensamento antimanicomial. Ainda que exponha críticas duras ao ambiente interno do hospício, conclui-se que a obra de Maura Lopes reflete a complexa experiência da loucura a partir de um não-lugar sem, contudo, assumir uma posição explícita sobre o movimento antimanicomial do qual não se sabe se teve notícias, depois de ter publicado seu diário.

 

Conclusão

Tratamos de desenvolver aqui um contraponto entre duas discursividades no campo da crítica ao intolerável regime de tratamento aos doentes mentais baseado no confinamento. Partimos da constatação de que entre a fala do considerado insano e a dos médicos não há coincidência possível. Vimos que, na análise de Michel Foucault, no discurso psiquiátrico não tem lugar a linguagem do louco. Mais tardiamente, em meados do século XX, as constantes manifestações de revolta ao que se passa no interior dos manicômios começam a ser arranhadas pelos rumores que vêm da fala dos internados que ganham escuta ao se enunciarem de dentro do hospício. Maura Lopes é o caso emblemático que escolhemos como fio condutor desta análise, tanto por sua celebrada obra literária, quanto por suas manifestações na imprensa de seu tempo. Compreendemos então que Maura Lopes expõe o silenciamento a que se via exposta enquanto paciente. Ela declara em seu diário não ter sua palavra levada em conta pelos profissionais, e só ser tratada como objeto: “Os médicos não me parecem levar a sério, embora troquem olhares quando falo, como surpreendidos com minha lógica” (Cançado, op. cit., p. 40). Repete a mesma crítica quando comenta o encontro com o médico na sala do diretor do hospital: “Agiu como se tudo soubesse, ou como se fosse desnecessário ouvir-me. Julga que sou oligofrênica?...” (Cançado, op. cit., p. 29).

Interessante notar que sua queixa se refere tanto ao desconforto e maus-tratos no hospital, quanto ao fato de não ser escutada. No dia em que chega ao hospital, em vez de a enfermeira perguntar a ela sobre seus hábitos de higiene corporal, pergunta a outra funcionária: “Em minha presença ela perguntou à guarda se eu costumava tomar banho, se era limpa, se podia dormir num bom dormitório. Perguntei-lhe por que não se dirigia a mim...” (Cançado, op. cit., p. 45)

Trata-se da distância entre a fala de Maura Lopes e o discurso que pretende saber tudo sobre ela a ponto de desconsiderar qualquer argumento vindo de alguém a quem se atribui transtornos mentais. Temos, no trecho mencionado acima, uma pequena amostra da interdição da voz do considerado louco, portanto, incapaz de responder por si. O discurso do louco é colocado em questão, o que invalidaria qualquer coisa que Maura tenha registrado em seu diário ou declarado na imprensa sobre sua vida no hospício. Tomada por esta posição de silenciamento, ela duvida que o leitor possa confiar no relato de uma diagnosticada “psicopata”, psicótica, esquizofrênica ou mesmo criminosa (“... quem sou eu para me pronunciar, se também sou considerada doente?) (Cançado, op.cit, p. 166).

Para além da impossibilidade de falar, Maura Lopes age na contramão do que a interdita. Observamos como sua escrita de Maura Lopes remete a uma experiência que não deixa fora do horizonte de sua escrita uma crítica ao hospício como forma de poder relacionada ao modo como vivencia o internamento. É o caso de considerarmos que tal trabalho de escrita põe em curso a elaboração de um eu, inevitavelmente vacilante, mas que escreve agindo politicamente contra as forças que a submetem na relação consigo mesma e com outros. Tem-se aí um traço do que o movimento antimanicomial vai pautar em seu plano de contestação.

 

Parece-me que toda a humanidade é responsável pela doença mental de cada indivíduo. Só a humanidade toda evitaria a loucura de cada um. Que fazer para que todos lutem contra isto? Não acho que os médicos devam conservar ocultos os pátios dos hospícios. Opto pelo contrário; só assim as pessoas conheceriam a realidade lutando contra ela (Cançado, op. cit. p.160)

 

Notamos que Maura Lopes também se utiliza, na escrita de Hospício é Deus, do próprio discurso psiquiátrico para, a partir de dentro, questionar e fissurar esse saber instituído do qual se via objeto. A escrita, portanto, serve como eixo de enfrentamento ante a desqualificação e interdição do dito “louco”, tal como situa Foucault (1972). Neste ponto, confirmamos nossa questão de partida: Maura Lopes Cançado antecipa assim discussões que viriam a ser centrais no movimento da reforma psiquiátrica, que no Brasil tomou força no final da década de 70.

Em síntese, a escrita de Maura Lopes pode ressoar discursivamente na revolta contra os sistemas de tratamento psiquiátrico vigentes em sua época. Mas para estabelecer uma relação coextensiva entre o que relata a escritora e a pauta do movimento antimanicomial, devemos antes de tudo escutar a experiência subjetiva da loucura que Maura Lopes Cançado transmite. Trata-se de assinalar a impossibilidade de o louco poder vivenciar seus estados mentais de modo não negativamente discriminatório. Importante ouvir o sujeito na medida em que acrescenta a sua à loucura a de muitos outros com quem partilha sua invenção de viver.

Importante é pensar que são instantes em que, transitando pelas calçadas e praças públicas, as pessoas podem parar e perceber de outro modo o que significa situar-se loucamente em liberdade. Só que é ainda preciso lançar sobre a loucura um olhar de cumplicidade. Concluímos propondo que assim se pode cruzar Michel Foucault com Maura Lopes, cada um em seu gênero e estilo de escrita, na construção de um projeto coletivo que derruba o isolamento entre o espaço da loucura e o resto da cidade, abrindo novas possibilidades e modos de olhar para loucos com quem afinal partilhamos mínimas diferenças.

Não por acaso, detectamos muitas passagens em que Maura Lopes, em Hospício é Deus, escreve sobre o longo tempo em que passa na janela. São registros dos instantes em que a escrita de si e o sujeito que daí é derivado acontecem no fluxo fronteiriço entre o dentro e o fora, apontando para algo da ordem de uma atitude provocativa diante dos discursos que a submetiam no espaço manicomial. De passagem, detemo-nos aqui na ocorrência da palavra “janela” a nos remeter ao sentido limítrofe entre o dentro:fora. Em outros termos, Maura escreve fazendo seu leitor se afetar pela musicalidade de sua voz. A melhor dizer, a escritora, mediante a invocação da palavra “janela” anulasse a diferença entre os que estão dentro e fora do hospício, colocasse em cena uma certa paisagem urbana onde se pode ouvir em uníssono o coro da rua cantando, no tom melódico das múltiplas formas de loucura que passeiam à luz do dia na cidade. Aí ela se situa enquanto escreve: “Meu rosto perdido busca inútil, preso à janela, que não é nem janela. (Uma persiana que abre em sentido vertical, não cabe sequer o rosto)” (Cançado, p. 83). A canção de Vitor Ramil, “Espaço”, na voz de Cássia Eller, serve bem para ilustrar aqui este movimento subjetivo: “quarto de não dormir, sala de não estar, porta de não abrir, pátio de sufocar...”5. O ato escrito de Maura Lopes é o de tentar fazer desaparecer todo um mundo de desordem que o internamento causa nela e inventar uma ordem outra, onde o hospício vira apenas uma estação de parada: e entre as janelas do hospício e a rua, Maura Lopes delimitava uma fronteira, deixando aberto o vão de onde se permitia ser observada, do lado de fora.

 

Referências:

CANÇADO, Maura Lopes. Hospício é Deus: diário I. 5. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2016

FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. Tradução de José Teixeira Coelho Neto. São Paulo: Perspectiva, 1978.

FOUCAULT, Michel. Préface; in Folie el déraison. Histoire de la jolie à l'âge classique, Paris, Plon, 1961, p. I-Xl.

FOUCAULT, Michel. História da loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva, 1972.

RANCIÈRE, Jacques. João Guimarães Rosa: a ficção à beira do nada. Traduzido por Inês Oseki-Dépré. Belo Horizonte: Relicário, 2021

SALLES, Anna Flávia Dias. Retratos em Abismo: Poses e posses do diário de Maura Lopes Cançado. (Dissertação de Mestrado) – Faculdade de Letras – UFMG, Belo Horizonte – MG, 2017.

 

 



1  Psicanalista e mestre em literatura pelo Programa de pós-graduação em literatura da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: danteasalles@gmail.com.

2  Este prefácio só figura de modo integral na edição original. A partir de 1972, ele desaparece nas três reedições seguintes.“il se trouvait que pour des raisons biographiques, j’ai connu ce qu’est c’était qu’un asile ; j’ ai entendu ces voix-là, et jetait, je crois, comme quiconque, bourleversé par ces voix; J’ai dit quiconque et comme j’allais dit à l’exception des medecins,et quand je dis à l’exception des médecins et des psiquiatres, je veux dire que leur fonctionnement statutaire filtre tellement ce qu’il peut due avoir des cris dans la parole d’un fou qu’ils n’entendent plus que la part intelligible du discours. La forme écrit il aurait devenue par le filtre forcement de leur savoir institué.” (Foucault, 1961, p. I-Xl).

3  Retirado do programa: TV BRASIL. Arte do Artista. [S.l.], 20 abr. 2016. 1 vídeo (26 min. 21 seg.). Publicado pelo canal TV Brasil. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ja-hV9wAv1g. Acesso em: 10 fev. 2024. Não foi possível localizar o ano desta dedicatória.

4  Cf. álbum de Cássia: Eller, Cássia. Solo – Do Lado do Avesso [CD]. Brasil: Universal Music, 2012. Faixa 8 (2 min 55 s).

5  Pesquisador visitante emérito na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e professor colaborador no Programa de Posgraduação em linguística e do Programa de pós-graduação em literatura, da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: pedesou@gmail.com.






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