Aires da Mata: Autoria lexicográfica, cidade e história


resumo resumo

José Horta Nunes



“Aires dicionário,

sem empáfia sem ares, maneiro

mineiro ladino”

 

“Em louvor de Mestre Aires”

Carlos D. de Andrade (1975)

 

Introdução

Em meados do século XX ampliaram-se as publicações de dicionários monolíngues no Brasil2. Ao lado dos grandes dicionários, como o Novo Dicionário Brasileiro Melhoramentos Ilustrado. (Prado E Silva, 1964) e o Novo Dicionário da Língua Portuguesa (Ferreira, 1975), proliferaram-se artefatos menores, voltados ao ensino e ao público geral. Um destes é o Dicionário Didático e Popular da Língua Portuguesa (daqui em diante DDP), de Aires da Mata Machado Filho (Machado Filho, 1965)3. No prefácio assinado por Eduardo Sucupira Filho, temos a seguinte apresentação:

 

A obra registra as peculiaridades linguísticas de inúmeros vocábulos de sentido controverso, e enumera, exaustivamente, as expressões sinonímicas e de sabor vernáculo. Nesse particular, inserem-se no léxico as mais variadas construções semânticas comuns às diversas regiões pátrias – de norte a sul. Foi possível dar maior desenvolvimento a um certo número de termos de sentido impreciso ou dúbio, e incluir os mais recentes brasileirismos impostos ao quotidiano pelo ditame popular. (Machado Filho, Prefácio, p. VII)

 

Observando os verbetes do DDP, percebe-se que, além de definições sucintas, são contemplados “sentidos figurados” e “dizeres populares”, como se nota no verbete rua abaixo:

 

 

 

 

 

 


 

 

 

 

 

(Machado Filho, 1965, p. r52)

 

Após as três definições iniciais do verbete rua, que significam espaço (“caminho”), objeto (“casas”) e sujeitos (“habitantes”), temos a marcação de sentido figurado (“fig.”), que abre para uma subentrada: “Plebe”, seguida de uma definição específica: “classe inferior da sociedade”. No restante do verbete são introduzidos dizeres populares que têm em comum a presença da lexia “rua”, indicada pelo uso de traços (—), como em “arrastar pela — da amargura”, correspondendo a “arrastar pela rua da amargura”. Essas palavras, locuções, sinonímias, interjeições, são tratadas, no prefácio de Eduardo Sucupira, como “peculiaridades linguísticas”, “vocábulos de sentido controverso”, “sabor vernáculo, “dizeres populares”, enquanto modos de dizer do “povo”. Nota-se também uma tendência a sentidos pejorativos, de modo que tanto os sujeitos como os espaços e as situações estão suscetíveis ao maldizer, o mal-estar e a situações tensas ou extraordinárias. Enquanto as definições apresentam uma normalidade administrativa de inquestionável, o cotidiano urbano apresenta-se sujeito a falhas.

Relacionando o dicionário com a cidade e os conhecimentos linguísticos, interrogamos como os sujeitos, os espaços, as situações, as práticas urbanas se apresentam na instrumentação lexicográfica. Que ideias linguísticas sustentam historicamente essa busca de sentidos figurados e populares? Como se chegou a esse formato de verbete que distingue a normalidade definidora das significações controversas em um mesmo dicionário popular? Quais são os sentidos de povo aí envolvidos?

Considerando que o prefácio do DDP não se estende em discussões teóricas e históricas, optamos por montar um corpus e realizar uma análise da autoria do DDP. Em uma primeira. etapa distinguimos as obras conforme as temáticas propostas. Depois, efetuamos recortes para uma melhor compreensão da autoria do DDP. De acordo com Guimarães e Orlandi (2001), consideramos a autoria como uma das funções enunciativas do sujeito falante:

Podemos pensar essa unidade que se faz a partir da heterogeneidade e que deriva do princípio da autoria como uma função enunciativa. Teríamos, então, as várias funções enunciativas do sujeito falante, como segue, e nessa ordem: locutor, enunciador e autor. Onde o locutor é aquele que se representa como ‘eu’ no discurso, o enunciador é a perspectiva que esse ‘eu’ assume enquanto produtor da linguagem. O autor é, das dimensões enunciativas do sujeito, a que está mais determinada pela exterioridade (contexto sócio-histórico) e mais afetada pelas exigências de coerência, não contradição, responsabilidade etc. (GUIMARÃES & ORLANDI, 2001, p. 61)

 

Com base nessas considerações, propomos neste trabalho atentar a aspectos da autoria como: a) Produção de autoria: textos de reivindicação, escrita de artigos e livros, seleção de temáticas, elaboração de artefatos linguísticos, registros de obras artísticas, manuais de ensino e divulgação, uso de abordagens (didática, científica, jornalística, prática, memorial); b) Atribuição de autoria: assunção de autoria, colaboração, revisão, anonimato; c) Circulação da autoria: publicação, reedição, difusão, ensino, perfil de leitor, censura, silenciamento e resistência de autoria d) Tendências sócio-históricas e políticas: urbanização, popularização, industrialização, relações de trabalho e lazer, preconceito e inclusão, processos de escolarização, culturalização e civilização, mudanças de regimes políticos.

 

Obras de Aires da Mata: um corpus voltado aos estudos da linguagem

Para a montagem de um corpus de 22 obras de Aires da Mata4, foram reunidas seis séries de livros, distinguindo-se temáticas de história das ideias linguísticas e outras que se mostraram pertinentes para os estudos urbanos e lexicográficos.

No Anexo 2 deste artigo, apresentamos as obras de Aires da Mata que consultamos, distribuídas nas seis séries: 1) Linguagem, deficiência, superação; 2) Língua, etnografia, folclore, cidade, história; 3) Ensino, jornalismo, língua, literatura; 4) Instrumento linguístico, ortografia, dicionário; 5) Folclore, universidade, sociologia, linguística; 6) Depoimento, jornalismo, autoria. Nos próximos itens, com exceção do DDP/Série 4, analisaremos reum livro de cada série, a saber: Série 1) Educação dos Cegos no Brasil (MACHADO FILHO 1931); Série 2) O Negro e o Garimpo em Minas Gerais (Idem, 1943); Série 3) Em busca do termo próprio (Idem, 1947); Série 4) Dicionário Didático e Popular da Língua Portuguesa (Idem, 1965); Série 5) Linguística e Humanismo (Idem, 1974); Série 6) Memória do Jornalismo Mineiro- Depoimento (Idem, 1995).

O DDP (Série 4), que abordamos na Introdução, será retomado na Conclusão.

 

Série 1:

Educação dos Cegos no Brasil

(1931)

Em Educação dos Cegos no Brasil (MACHADO FILHO, 1931), Aires da Mata se apresenta em uma cena nacional e institucional, marcada pelos sentidos de trabalho e industrialização. Acumulando a posição de cego5, professor e representante de uma instituição de apoio aos cegos, ele assume o trabalho de divulgação da “causa dos cegos:”

 

Como cego e professor do Instituto São Rafael, coube-me a desvanecedora honra de o representar, na IV Conferência Nacional de Educação. Tirei em folheto o trabalho então apresentado por se me afigurar que sua divulgação pode importar em serviço prestado à causa dos cegos (MACHADO FILHO, 1931 p. 50)

 

Dirigindo-se ao grande público e acenando para as instâncias governamentais, Aires da Mata exibe um “esboço de um plano nacional de educação dos cegos”, propondo ideias e reivindicações. Uma delas é a da “substituição de sentidos” (visão/tato), com base na área de Educação Física: “Antes de mais, visa a educação física sistematizar a natural substituição dos sentidos.” (MACHADO FILHO, 1931, p, 51). Para isso, propõe uma educação por “formas táteis”, conforme a proposta de Montessori, que trata da diversidade de formas por meio da “analogia”. “imaginação” e “reprodução miniatural”:

 

“A importância da educação do aparelho sensorial, posta de manifesto por Mme. Montessori, cresce de ponto em se tratando dos cegos. Cumpre familiarizar a criança cega com todas as formas tateáveis, fazendo-a imaginar pela analogia e pela reprodução miniatural, aquelas que se lhe não acham ao alcance da mão.” (MACHADO FILHO, 1931, p. 53)

 

Nota-se aí uma questão de linguagem, envolvendo os sentidos e seus efeitos na educação dos cegos, assim como um afastamento em relação a abordagens que não consideram a exterioridade da língua ou do pensamento. Ao lado dessas diretrizes educacionais, que visam a uma certa autonomia pelos alunos, o esboço de Machado Filho clama por direitos para cegos enquanto cidadãos:

 

“É, pois, um cidadão como qualquer outro que deve entrar na posse plena de todos os direitos políticos, de cujo livre exercício não é lícito privar a quem de bom grado cumpre todos os deveres.

Nos grandes centros de civilização, os cegos votam e são elegíveis, principalmente depois da Guerra, e não vivem, como entre nós, em eterna minoridade deprimente.

Deve o Estado, como é de lei na Inglaterra, considerar ‘o cego adulto como um cidadão e a criança cega como um cidadão em potência.’

A situação jurídica dos cegos é, pois, matéria que deve entrar nas cogitações da próxima Constituinte. Esperemos.” (MACHADO FILHO, 1931, p. 74-75)

 

Dentre as reivindicações levantadas, estão a obrigatoriedade do ensino primário: “O ensino primário é indispensável, e mister se torna fazê-lo obrigatório” (MACHADO FILHO, 1931, p. 58), e a criação de bibliotecas especializadas: “A desejada eficiência da cultura intelectual depende precipuamente de uma biblioteca constituída de livros escritos no sistema Braille” (Idem, p. 62). São propostas que reforçam a luta por direitos para os cegos desde o Império.

Em uma conjuntura em que avançam as questões do trabalho, da industrialização e da urbanização, são indicadas necessidades dos cegos diante dos preconceitos que sofrem: “Demais, é fácil verificar que em toda a grande ou pequena indústria há trabalhos ao alcance dos cegos, bastando apenas que se dissipe a névoa de preconceitos que tolda, por vezes, a mentalidade dos industriais.” (Idem).

 

2.2 Série 2:O Negro e o Garimpo em Minas Gerais(1943)

 

Na Advertência do livro O Negro e o Garimpo em Minas Gerais (MACHADO FILHO, 1943, p. 7), a narração de Aires da Mata alterna lazer e trabalho no espaço da mineração, em um distrito de Diamantina (MG). Os sentidos do “ouvido” evocam a memória do garimpo, onde o trabalho, a música e a língua africana se reúnem:

 

“Em 1928, indo em gozo de férias a S. João da Chapada, município de Diamantina, chamaram-me a atenção umas cantigas em línguas africanas ouvidas outrora nos serviços de mineração. Fui ter com um dos conhecedores, o meu bom amigo João Tameirão, que, com solicitude, satisfez a minha curiosidade de aprender as cantigas. Tomei notas apressadas, que vim depois a rejeitar. E, nas curtas estadas naquele aprazível e tranquilo arraial, nunca deixei de observar alguma coisa sobre os tais cantos de trabalho, cuja importância foi crescendo em meu conceito, à medida que fui adquirindo conhecimentos novos. Entendi, posteriormente de realizar, de vez, o velho plano de recolher os ‘vissungos’ como lhes chamam, reunindo ainda o vocabulário e a gramática da ‘língua de banguela’, certamente transformada em nosso meio.” (MACHADO FILHO, 1943, p. 7)

 

De início, o narrador está “indo em gozo de férias a S. João da Chapada”, arraial do município de Diamantina. A atenção às “cantigas em língua africana ouvidas outrora” evoca os tempos e espaços dos “serviços de mineração”. Na sequência, ao lado das reminiscências do “tranquilo arraial”, surgem aos poucos os traços da observação e da pesquisa. Inicialmente são “notas apressadas”, depois “observar”, “conhecimentos novos”, “recolher”, “reunir”. Finalmente, vem o “realizar de vez”, o “recolher” e os resultados efetivos já marcados com termos especializados: vissungos (cantigas, cantos de trabalho), vocabulário e gramática da “língua de banguela”. Esses traços marcam os deslocamentos do sujeito do conhecimento nos espaços urbanos.

Uma vez assentadas as condições para a pesquisa, Machado Filho assinala a área de conhecimento concernida: a do “folclore da mineração”, denominando os sujeitos falantes/trabalhadores como “faiscadores” e apontando os procedimentos de documentação relativos ao “dialeto crioulo”:

 

(MACHADO FILHO, 1943, p. 9)

 

Nota-se aí o papel da descrição linguística ligada ao folclore e à espacialidade do território, com auxílio do “amigo João Tameirão, o que chamamos de “informante”. Como resultado da reunião de materiais, são transcritas as cantigas (vissungos6) e elaborados os vocabulários, tal como se mostram abaixo:

 

Transcrição de uma cantiga ou vissungo (MACHADO FILHO, 1943, p. 98)

 

Vocabulário do dialeto crioulo no linguajar local (MACHADO FILHO, 1943, p. 127)

 

A variedade de materiais e artefatos levam a diferentes tipos de registro. No caso dos vissungos são “letra, tradução, música” (65 cantos); e no caso do dicionário são verbetes (com palavras de entrada, definições, exemplos com falas ou versos, etimologias). Há também comentários e citações de especialistas em estudos afro-brasileiros, como Jacques Raimundo, Renato Mendonça, Gilberto Freyre, Nina Rodrigues, Artur Ramos, ou de áreas como o folclore, a sociologia e a geografia. Além do vocabulário de “vestígios de dialeto crioulo no linguajar local”, há também o “Vocabulário do dialeto crioulo sanjoanense”, relativo ao crioulo africano, também comentado à época por estudiosos:

 

 

Vocabulário do dialeto crioulo sanjoanense (MACHADO FILHO, 1943, p. 111)

 

Passemos, por fim, a mais um direcionamento dos relatos sobre os negros e o garimpo. São observações históricas e etnográficas que tratam de questões ligadas à povoação do território. Relacionando memória e atualidade (“foi e é”), marca-se a posse das primeiras casas do arraial, habitadas por negros ligados ao trabalho no garimpo:

 

(MACHADO FILHO, 1943, p. 9)

 

Ligado a essa cena de ocupação territorial e habitacional, o relato traz um vocabulário da “faisqueira”, ou seja, um “pequeno serviço de mineração”, tal como se apresentava “à moda antiga”. Observemos um trecho em que o autor fala das faisqueiras, por meio de definições, comentários e termos considerados desconhecidos, salientados por meio de aspas:

 

(MACHADO FILHO, 1943, p. 31)

Além dos vocabulários e letras de cantigas, destaca-se também uma terminologia comentada historicamente. Trata-se de um discurso sobre o trabalho cotidiano, sobre os espaços em que as atividades são realizadas e as etapas a cumprir. São descritas também as ferramentas e os modos de uso e manutenção, indicando-se os termos menos conhecidos.

Uma última observação está relacionada a algumas transformações do léxico. Para tratar delas, são mobilizadas noções lexicológicas e semânticas, como a nomeação, a designação, a analogia e a sinonímia, bem como funcionamentos como a substituição e o reconhecimento. É o que vemos nessa breve abordagem da palavra “garimpeiro”, ao lado de outras que também singnificam sujeitos em atividades de garimpo, como “explorador”, “comprador”, “capangueiro”, “faiscadores”:

 

“Porque o nome de garimpeiro não foi substituído por outro e ficou designando o pequeno explorador das lavras, que, agindo em liberdade e dentro da lei, jamais perdeu suas características inconfundíveis, encarnando um dos tipos mais interessantes de nossa terra. Jamais deixou de chamar garimpos a seus pequenos serviços e o comprador dos diamantes que tira é conhecido por capangueiro. Por analogia, emprega-se hoje como sinônimo de garimpeiro o termo faiscador, que outrora se aplicava a quem fazia a mineração do ouro.” (MACHADO FILHO, 1943, p. 11)

 

Como veremos no próximo item, esse modo de tratar as relações entre as palavras, em busca dos sentidos que vão se diferenciando ou trasformando de vários modos, está na base de outros trabalhos de Aires da Mata.

 

Série 3:

Em Busca do Termo Próprio

(1947)

O livro Em busca do termo próprio (MACHADO FILHO, 1947) trata de variados “assuntos de linguagem”. como significações de palavras, ortografia, vocabulários, neologismos, histórias de palavras, questões de sintaxe, regência, conjunções, concordância, colocação de pronomes, aspas, crase etc. São respostas a perguntas feitas por leitores do jornal. Esse tipo de seção era frequente na imprensa jornalística, como complemento ao ensino regular. O autor descreve assim sua participação: “Quem o propõe é o próprio leitor. Serve-se de matéria para estudo. O resultado a que chegar, vira artigos, em resposta às perguntas que me foram dirigidas”. Comparando as perguntas em sala de aula com as que são feitas na seção de jornal, Aires da Mata comenta que; “Em aula, muitos se acanham de fazê-las. Aqui, podem ser formuladas sem reserva nem restrição. Dispensam assinatura e comportam o emprego do pseudônimo.” (MACHADO FILHO, 1964, p. 10).

A questão do termo próprio, colocada no título da obra, é uma das que se apresentam com frequência. São estudos palavras ou grupos de palavras com significações próximas ou duvidosas (protocolar e protocolizar; basculante e outras janelas; tomara e outras dúvidas). Segundo Aires da Mata, “o termo próprio, tormento de escritores, também preocupa a todos em geral pois responde a necessidade de ordem utilitária. Daí as respostas a consulentes, notas de jornalismo gramatical, que emendei ou refundi para enfeixar neste volume.” (MACHADO FILHO, 1964, prefácio)

Além de mobilizar relações entre palavras, diferenças, sinonímias, o termo próprio pode decorrer de uma adequação ao “ambiente”, “ditos felizes”, “surpreendente”, “convincente”, poderíamos dizer apropriados a uma situação:

 

“Pela escolha do termo próprio e da expressão adequada, apura-se o quilate do artista. Uma de suas habilidades está em surpreender, na conversa, certas frases que alcançaram suma eficácia, à força de repetidas, a tal ponto se adaptam ao momento e ao ambiente. Não me refiro aos provérbios, mas a ditos felizes de linguagem caseira, imagens elementares e convincentes que, para brilharem na linguagem escrita, só esperam o prosador capaz de estilizá-las.” (MACHADO FILHO, 1964, texto prefacial)

 

Na relação com o ambiente e o momento, as expressões, as frases, os ditos, as conversas, estão sujeitos a certos graus de eficácia, força, adaptação, enfim a elementos condicionantes das relações entre a língua e sua exterioridade situacional. São cenários múltiplos: casa, rua, trabalho, estrada, cidade, região etc.

Um dos ditos populares analisados por Aires da Mata é a expressão “são horas”, considerada um regionalismo mineiro. Como exemplo, o autor cita uma ocorrência “São horas, e eu aqui nessa madraçaria”7 para em seguida comparar com o uso citadino: “superior em concisão e eficácia ao frouxo e citadino está na hora”. A expressão regional ou popular (são horas) é considerada superior em comparação com o “uso citadino” (está na hora).

Em outra seção, buscando ainda o termo próprio, Aires da mata seleciona uma a tríade lexical: passeio, calçada e “footing”. Ao comentar significações desses termos, são consideradas diferentes espacialidades: citadinas, regionais, internacionais, bem como obras, instituições e especialistas em matéria línguas e legislação urbana:

 

 

 

 

 

“Passeio, calçada e “footing”

 

Para o citadino estrangeirado, footing traduz um mundo de ideias e sensações que passeio a pé ou simplesmente passeio não podem expressar. Julgo insubstituível esse anglicismo made in France. Mais hoje mais amanhã algum jornalista ousado grafará futingui, a exemplo de futebol, aportuguesando o que o Vocabulário da Academia de Ciências e Artes de Lisboa já consagrou: ‘Vamos a um passeio, vamos passear?’. Por que não dizer assim o suave convite? É vernáculo singelo e adequado.” (MACHADO FILHO, 1964, p. 49)

 

“É de notar que o termo passeio, aliás o preferível, é o adotado em Belo-Horizonte. O Decreto-lei nº 84, de 21 de dezembro de 1940, que aprova o Regulamento de construções da Prefeitura de Belo Horizonte, traz no art 1º esta definição: ’Passeio´- parte do logradouro público destinado ao trânsito de pedestre’.” (MACHADO FILHO, 1964, p. 50)

 

“À parte da rua destinada aos pedestres chamam calçada e passeio, em lugar de trottoir.

 

“francesismo inútil”, conforme os vernaculistas portugueses Vasco Botelho do Amaral e Silva Bastos” (MACHADO FILHO, 1964, p. 50)

 

Essas questões linguísticas, trazidas para a reflexão sobre o sentido público, pode ser remetido ao processo de urbanização e seus efeitos nas descrições e normatizações em diferentes esferas, inclusive na administração pública e no senso comum. Na posição de polêmica, Aires da Mata toma partido diante das nomeações em circulação.1953

 

2.4 Série 5:Linguística e Humanismo(1974)

O livro Linguística e Humanismo (MACHADO FILHO, 1974), apresenta uma história das ideias linguísticas para leitores brasileiros, quando a linguística vinha ganhando espaço nas universidades. Ele pode ser visto como um manual introdutório, como outros que surgiam nesse período, mas também como divulgação para um público mais amplo. O título aponta a posição a partir da qual é elaborado: uma perspectiva humanista das ideias linguísticas8. Em nossa leitura, vamos nos deter em alguns posicionamentos teóricos, a fim de uma melhor compreensão do DDP (1965).

A seção inicial do primeiro capítulo do Linguística e Humanismo, denominada “ideias linguísticas na antiguidade clássica”, é bem reduzida e crítica em relação perspectiva lógica: “A primeira teoria das partes do discurso não passa da aplicação das categorias de Aristóteles. Urge, aliás, refazê-la inteiramente, para libertar da tirania da lógica a realidade mesma da língua, valor autônomo e criação psicológica” (MACHADO FILHO, 1974, p. 9-10). Em seguida, após uma rápida passagem pela linguística medieval, pelas academias setecentistas e pela gramática racionalista, Aires da Mata volta a expor sua crítica ao logicismo: “Se, rigorosamente, não houve linguística na antiguidade, muito menos nos séculos XVII e XVIII. Por esse tempo, os gramáticos timbram em evidenciar a maneira como a língua exprime as relações lógicas.” (Iden, p. 16).

A linguística é considerada “a rigor” somente no século XIX, com os estudos que comparam o sânscrito com as línguas conhecidas: “O descobrimento do sânscrito viria ampliar imprevisivelmente os horizontes desses estudos” (MACHADO FILHO, 1974, p. 16). Aires da Mata valoriza o método comparativo e a proliferação das pesquisas sobre as origens das línguas:

 

“Aplica-se francamente o método comparativo, que ressalta semelhanças e diferenças, enquanto as pesquisas históricas se inspiram na procura de origem comum para as línguas então conhecidas. Funda-se a linguística e reconstitui-se o indo-europeu, peça a peça, num engenhoso esforço de paleontologia linguística.” (MACHADO FILHO, 1974 p. 17)

 

Após uma passagem por autores comparatistas como Bopp, Grimm, Diez, Meyer-Lübke, Spitzer, Aires da Mata ressalta o positivismo de Augusto Comte, quando as especulações sobre as causas são evitadas, abrindo espaço para as “leis linguísticas”. É em resposta a essa conjuntura de “cientificismo” e “abstração” que Aires da Mata aponta uma virada:

“No fim do século XIX, a linguística dominada pelas exagerações do positivismo, do cientificismo, esterilizava-se na secura do abstrato. A nada podia conduzir a especulação sobre o esqueleto do vocábulo, complexo de sons duros e vazios como ossos, sem deixar entrever a eficácia expressional, os anseios do indivíduo falante, o caráter do povo e da civilização. A ciência não podia limitar-se à consideração pura e simples dos fatos, abstraídos da realidade viva.

Partiu a reação de um filósofo, Benedetto Croce, que, em sua Estetica come scienza dell’espressione e linguística generale publicada em 1903 encara a língua como objeto de arte. Na esteira luminosa do crítico italiano, navega a fecunda audácia de Vossler. Marca os limites teoréticos do comparatismo, um dos produtos mais típicos do positivismo em linguística. Inaugura a corrente idealista. Proclama a verdade simples e fecunda de que a vida dessas palavras que se associam, brota da sensibilidade e da inteligência do indivíduo falante. Pesquisa, na linguagem, em todas as suas manifestações, essa marca pessoal psicológica. Causa eficiente da linguagem. Vossler humanizou a linguística.” (MACHADO FILHO, 1974, p. 23)

 

Com essa máxima autoral: “Vossler humanizou a linguística”, Aires da Mata acena para sua posição humanista em matéria de história das ideias linguísticas, ressaltando a inserção da “eficácia expressional”, “os anseios do indivíduo falante”, “o caráter do povo e da civilização”. São exaltados, em Benedetto Croce, a “língua como objeto de arte” e a ”estética”; e em Vossler, o “idealismo”, os “limites teoréticos”, a “vida das palavras”, “a marca pessoal psicológica”. Decorrem também o alcance da filologia e os estudos estilísticos e literários: “O âmbito da filologia amplica-se cada vez mais. Cresce a importância da história literária, à luz das investigações estilísticas de Vossler, Spitzer, Curtius” (Idem, p. 26). E também os estudos socias em diversas direções: “A linguística é encarada do ponto de vista sociológico e psicológico. Estuda-se de vez a vez, e com propósito definido, a língua individual, a familiar, a regional, a popular, a especial, a escrita, a literária.” (Idem, p. 26).

Para concluir esta rápida e reduzida leitura do “Linguística e Humanismo”, salientamos o capítulo IV, que trata da “Dialetação”. Nele, Aires da Mata menciona seu próprio livro O Negro e o Garimpo em Minas Gerais (1943) e indica as influências de estudiosos da dialetação:

 

“No meu livro O Negro e o Garimpo em Minas Gerais, apresento uma tentativa de vocabulário de diamante, quase nos moldes indicados pelo grande linguista citado. Mostra tudo isto o primado da sociologia sobre a geografia, entre as ciências auxiliares da linguística” (MACHADO FILHO. 1974, p. 65)

 

O autor citado é o espanhol Amado Alonso (189-1952) que, segundo Aires da Mata, propõe que:

 

“O ponto é relacionar os vocábulos. Não simplesmente pela ordem alfabética, mas segundo classificação que mostre os parentescos especiais dos atos e fatos em vista, evidenciando se assim as afinidades e disparidades semânticas, situadas em determinada área geográfica e principalmente valorizadas pela indicação de alcance social, sem esquecer elementos de natureza afetiva” (AIRES DA MATA, 1974, p. 65)

 

Um outro conceito da dialetologia que Aires da Mata menciona, é o da Isoglossa, que se apresenta de modo polêmico em relação a Saussure:

 

“Entre língua e isoglossa não há diferença essencial. Assim como F. de Saussure distinguiu linguagem e língua, dizendo que aquela é múltipla e heteróclita, sobreposta a diversos domínios, ao passo que a língua é em si e princípio de classificação, assim também, analogicamente, a língua é múltipla e heteróclita, enquanto a isoglossa é um todo em si e um princípio de classificação. (Revista Filológica, nº 17, p. 68).” (MACHADO FILHO, 1974, p. 66)

 

Considerando que “o estudo do nosso léxico se tem feito de forma desarticulada.”, Aires da Mata aponta uma diretriz para os estudos da dialetologia brasileira, como um programa de pesquisa:

 

“Nada, pois, de sínteses apressadas. Estudem-se as isoglossas, uma a uma, em monografias modestas mas acabadas. Construa, pedra a preda, em harmônica divisão de trabalho, o edifício da dialetologia brasileira. Elaborem-se vocabulários especiais de acordo com as regiões, distribuídas pelo tipo do trabalho, pelas características da atividade. Apliquem-se os métodos correntes na descrição e na análise. Tudo isso sem nativismo sentimental, mas antes inserindo as contribuições no âmbito da dialetologia portuguesa e, por esse intermédio, no quadro geral da linguística românica. Sonho? Não é só de poetas o privilégio de sonhar.” (MACHADO FILHO. 1974, p. 66)

 

Encerrado esse itinerário conceitual de ideias linguísticas, que sustenta alguns trabalhos de Aires da Mata, trazemos a menção a estudos de semântica por Said Ali, como mais uma fonte trazida pelo autor para os estudos das palavras e dos dicionários:

 

“A contribuição de Said Ali à semântica está, principalmente, no seu livro Meios de Expressão e Alterações Semânticas e uma conferência intitulada “O purismo e o Progresso da Língua”, inserta em Dificuldades da Língua Portuguesa. O que o preocupa no primeiro desses livros são as alterações semânticas por que passaram várias palavras da língua. Mostra as épocas em que as acepções diferiam das atuais e explica, sempre que pode, as causas das mudanças. Faz história de palavras, valendo-se de copiosa documentação, enquanto, na aludida conferência preconiza a importância de serem assinaladas em dicionários, as datas do aparecimento dos vocábulos e das novas significações adquiridas, com isso antecipando as modernas exigências acerca da etimologia.” (MACHADO FILHO, 1974, p. 154)

 

Esses estudos de Said Ali, publicados em 1930, assim como outros anteriores e posteriores, acumulam subsídios para o ensino, a divulgação de ideias linguísticas no Brasil e a elaboração de instrumentos como gramáticas, dicionários e materiais didáticos. A documentação das alterações semânticas fomenta o registro de brasileirismos, regionalismos, neologismos, etimologias, locuções, expressões idiomáticas etc. Note-se que Said Ali é o único brasileiro a receber uma seção separada no Linguística e Humanismo.

 

2.5.Série 6.Depoimento/Memória do Jornalismo Mineiro(1995)

A publicação Memória do Jornalismo Mineiro traz depoimentos de 5 jornalistas com atuação em Minas Gerais, dentre eles Aires da Mata. A finalidade foi a de contribuir para a preservação da memória cultural e produzir material de estudo e pesquisa para os estudantes e profissionais de jornalismo. Os depoimentos foram colhidos em 1982, depois recuperados e editados graças a uma iniciativa do Departamento de Comunicação Social da PUC/MG, da Secretaria Municipal de Cultura de Belo Horizonte e do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Minas Gerais.

Vamos ressaltar aqui algumas observações que Aires da Mata faz a respeito da profissão de jornalista, sobretudo sua atuação como “escritor” de textos jornalísticos, tendo em vista também as avaliações que ele tece sobre suas obras publicadas como livros.

Se o jornal é “efêmero por definição”, e os textos jornalísticos, em sua maioria, demandam uma escrita rápida, por outro lado alguns jornalistas “sonham em pôr em livro tudo quanto escrevem”. Juntando-se a esses últimos, Aires da Mata sustenta uma posição intermediária, que conecta as duas facetas:

 

“Nós temos exemplos de grandes escritores que escreveram para jornal e escrevem muito bem. Agora e sempre. Não há esse conflito e por isso mesmo a matéria literária pode aparecer primeiro no jornal e acabar, se não consagrada, pelo menos ancorada em livro. O livro é sempre uma esperança de duração. O jornal é efêmero por definição e tem de ser.” (MACHADO FILHO, 1995, p. 132).

 

“Quantos e quantos livros de autores importantes são constituídos exatamente de trabalhos avulsos para pronta entrega, que é uma definição que podemos dar de trabalhos jornalísticos.” (MACHADO FILHO, 1995, p. 134).

 

Além das práticas de escrita internas, Aires da Mata distingue também o “jornalista lateral”, que vem de outra profissão para colaborar com o jornal, do jornalista que atua também em “profissões auxiliares”, como o magistério:

 

“O jornalista lateral é, por exemplo, um advogado bem situado na profissão, que gosta de escrever e que manda seus artigos para determinados jornais, onde consegue publicar com facilidade, porque aquilo não custou nada para a empresa” (Idem, p. 133)

 

“No caso do escritor, como é o meu caso, o jornalismo e o magistério atuam como profissões auxiliares, ou que outro nome tenha. O João Ribeiro trata disso muito bem no ensaiozinho chamado Profissão Literária.” (Idem, 133)

 

Passemos aos comentários sobre alguns livros autorais. No depoimento, Aires da Mata fala sobre as avaliações e críticas:

“Não sou a pessoa mais indicada para fazer avaliação da importância de meus livros. [...] Mas me baseando em avaliações das críticas, posso citar o meu livro O Negro e o Garimpo em Minas Gerais, de 1943, que contém um material muito rico, original, pela primeira vez recolhido. Ele recebeu o prêmio João Ribeiro, da Academia Brasileira de Letras, teve duas edições, poderia ter tido mais repercussão, mas sempre teve alguma, Eu o considero um livro importante. Outro é o chamado Crítica de Estilos, editado pela Agir e esgotado há muito tempo. Foi considerado, na época, o melhor livro de crítica literária. Eu, escritor do mato, fiquei surpreendido com isso.” (MACHADO FILHO, 1995, p. 149-150).

 

“Se é lícito eu dar exemplos meus, posso dizer que dos meus 40 e tantos, quase 50 livros publicados, quase tudo saiu primeiro em jornal. O que não saiu primeiro em jornal? O Negro e o Garimpo em Minas Gerais; um livro chamado ‘Arraial do Tijuco, Cidade Diamantina’, assim mesmo lá há umas duas coisas que foram primeiro crônicas; e os livros sobre Diamantina, talvez. Mesmo o livro Linguística e Humanismo – que teve uma sorte muito triste, porque eu pensava que prestasse e ele acabou vendido como papel velho -, saiu primeiro no jornal.” (p. 134)

 

Além de tratar de fronteiras fluidas entre jornalismo e escritor, é interessante observar que os comentários de Aires da Mata apontam para uma certa contradição entre a aceitação de alguns livros e a rejeição do Linguística e Humanismo. Talvez porque este último seja voltado mais a questões teóricas e metodológicas, como um manual especializado. De qualquer modo, essas observações levam a fomentar outros estudos sobre o autor e sua obra.

 

Conclusão

Retomando o DDP (1965) como corpus de referência, temos condições agora de observar alguns efeitos de memória e atualidade em sua elaboração. Apresentado como um dicionário que proporciona ao brasileiro “familiarizar-se com o modo de escrever e falar em nosso país”, o DDP relaciona a brasilidade com a subjetividade do “povo”. A marca de “popular” está ligada a diversas categorias: “peculiaridades linguísticas”, “vocábulo de sentido controverso”, “expressões sinonímicas e de sabor vernáculo”, “construções semânticas comuns às diversas regiões pátrias – de norte a sul”, “termos de sentido impreciso ou dúbio”, “brasileirismos impostos ao cotidiano pelo ditame popular”. Ou seja, a língua apresenta uma unidade do povo, mas também especificidades linguísticas e extralinguísticas: nacionalidade (“nação”); regionalismo (“regiões pátrias – norte a sul”); situacionalidade (“cotidiano”). Decorre que em alguns verbetes há marcações de brasileirismos e regionalismos. Sem indicações de etimologia nem menção a um passado da língua, prevalece uma imagem de atualidade no cotidiano e uma representação por região e nacionalidade.

A leitura livro Linguística e Humanismo mostrou que há uma relação do DDP com os estudos e procedimentos de dialetação no Brasil. Porém, é preciso considerar que o projeto de dicionário consiste em um trabalho de arquivo, que lida com as fronteiras entre memória e atualidade. Se, nos primeiros trabalhos de Aires da Mata, prevaleceram os estudos de grupos étnicos, folclóricos, sociais, com atenção à divisão do trabalho em espaços citadinos e seus arredores, nos limites do estado federativo (Minas Gerais), no DDP os cenários do nacional e do regional é a que prevalece. Há dialetação, mas ela é representada nos limites do regional. A esse respeito, convém salientar o conceito de “língua comum”, que Aires da Mata expõe também no livro Linguística e Humanismo, com base na concepção do francês Vendryes:

 

“Mas, ainda que se contemple a contribuição das circunstâncias exteriores, cabe acentuar que a constituição do dialeto provém do jogo natural de fatores linguísticos. A língua comum, ao contrário, é o produto de forças externas de natureza extralinguística. Seja qual for a sua origem, resulta de motivos políticos, sociais e econômicos, que a mantêm. Extensão de um poder político organizado, influência de uma classe social preponderante, supremacia de uma literatura, tais os fatores que a determina, ao que indica Vendryes” (VENDRYES, apud MACHADO FILHO, 1974, p. 126).

 

Enquanto um dicionário geral, acompanhado de normas ortográficas e gramaticais, a determinação do Estado se apresenta pela busca da unidade nacional, admitindo-se variações regionais. Apesar de Aires da Mata ter tratado, em alguns de seus livros, de questões de literatura, não encontramos no DDP exemplos literários ou outros com base em posições de “autoridades” em matéria de língua. Como expomos anteriormente, uma parte dos verbetes traz, após as definições, séries de “sentidos figurados”, “peculiaridades linguísticas”. Trata-se de unidades de língua em circulação (“construções semânticas comuns às diversas regiões pátrias – de norte a sul). São esses elementos linguísticos que marcam a(s) identidade (s), tanto do “povo” em suas divisões assumidas ou silenciadas, quanto da língua nacional.9

No DDP, as sequências de expressões populares nos verbetes resultam da descrição lexicográfica e não de exemplos de autoridade. Nessa direção, Aires da Mata mantém a postura linguística de descrição dessas unidades, tal como fez em seus primeiros trabalhos sobre as letras dos vissungos e os vocabulários, embora sem os comentários teóricos e as identificações de espaços citadino e grupos restritos de falantes. Ou seja, permanece o resultado da descrição oral/escrita, porém sem a indicação de falantes, grupos étnicos e sociais, espaços urbanos ou de trabalho. Isso faz com que as “peculiaridades linguísticas” funcionem ao modo do anonimato, como uma esfera de falares populares da nação, espécie de comunidade nacional, admitindo-se somente variações regionais10. Isso leva a dizer que os sentidos de “língua comum” apresentam especificidades conforme as diretrizes dos projetos de verbetes e de seu funcionamento discurso.

Publicado em 1964, o DDP é um dos dicionários voltados a estudantes e trabalhadores que se expandem antes do golpe militar no Brasil. Vimos que o DDP não traz Aires da Mata como prefaciador. É Eduardo Sucupira que ficou responsável pelo prefácio e pela revisão do DDP. Consultando obras e biografias de Sucupira, notamos um percurso profissional semelhante ao de Aires da Mata. Assim como este, Sucupira foi jornalista, escritor, filólogo, filósofo e professor universitário. Escreveu o livro Do Trabalho à Civilização (1962), três anos antes na publicação do DDP. Em sua atuação como professor, publicou, já próximo ao final do regime militar, o livro Leituras Dialéticas – uma interpretação Materialista do pensamento Filosófico (1987), dedicado aos jovens11. Na contracapa dessa publicação, temos a seguinte observação sobre Sucupira:

 

“Com o golpe militar de 1964 a Filosofia foi banida dos currículos escolares dos cursos médios e passou a ser estudada apenas no circuito fechado dos poucos cursos universitários a ela dedicados.” (SUCUPIRA FILHO, 1987, texto de contracapa sem autoria)

 

“Eduardo Sucupira Filho – escritor, jornalista e ex-professor universitário – já publicado pela Editora Alfa-Ômega o livro Introdução ao pensamento dialético – O materialismo, da Grécia clássica à época contemporânea. Trata-se do primeiro texto de autor brasileiro, desde 1964, a focalizar o tema da evolução do pensamento filosófico sob a óptica do materialismo dialético, numa linguagem especialmente dirigida ao público jovem, não familiarizado com o estudo da Filosofia.” (SUCUPIRA FILHO 1987, texto de contracapa)

Tais observações sobre a conjuntura brasileira a partir do 1964, leva a considerar o que Eni Orlandi (1992) concebe como política do silêncio. Trata-se de uma das formas do silêncio, em que, sob certas condições, “fala-se para não dizer (ou não permitir que se digam)”. Dentre as questões levantadas pela autora, atentamos aqui à relação do silêncio com a autoria e a censura: “A censura tal como a definimos é a interdição da inscrição do sujeito em formações discursivas determinadas, isto é, proíbem-se certos sentidos porque se impede o sujeito de ocupar certos lugares, certas posições” (ORLANDI, 1992, p. 107). No caso que analisados, temos uma censura de publicações relacionadas a uma área de conhecimento: a filosofia. Esse modo de censura, ao focar não diretamente o autor, mas sim a circulação de conhecimento, produz um silêncio local que impede que o autor transite em direção a certos públicos leitores, no caso os estudantes de ensino médio

Por meio da análise discursiva e da remissão à história das ideias linguísticas, procuramos fomentar os estudos urbanos com apoio na lexicografia discursiva. Como diz Orlandi:

“Quando pensamos a cidade, introduzimos de imediato uma relação com a nação. Porque a cidade é pensada em relação ao ‘droit de cité’, introduzindo assim a dimensão jurídica na consideração do cidadão. Uma nação, por outro lado, é uma entidade abstrata, enquanto que uma cidade tem dimensões, formas visíveis, sendo perceptível em primeira instância.” (ORLANDI, 2004, p. 11).

 

O contato com algumas obras de Aires da Mata fomenta estudos sobre diferentes grandezas citadinas, na relação com estados federativos, regiões, a nação e o Estado. Algumas iniciativas têm retomado trabalhos do autor. A propósito dos vissungos, a publicação organizada por N. Freita de Q, Queiroz (FREITA & QUEIROZ, 2015) reúne estudos elaborados por artistas e pesquisadores, inclusive com participação de linguistas. Há uma gravação de alguns vissungos no álbum “O Canto dos Escravos”, lançado em 1982 pela gravadora Eldorado, com interpretação de Clementina de Jesus, Geraldo Filme e Dona Doca da Portela. Sobre os estudos das línguas africanas no Brasil, as descrições de Aires da Mata em O negro e o garimpo em Minas Gerais (1943) têm sido consideradas em estudos mais recentes, como no livro Cafundó – a África no Brasil, de Carlos Vogt e Peter Fry, que tratam de uma comunidade rural (o cafundó) formada nos tempos da escravidão e que sobrevive até hoje, falando uma língua com léxico de origem banto – quimbundo, em particular.12 Nos estudos de termos de origem africana no léxico do português do Brasil, temos também menções a Aires da Mata. Como mostra Margarida Petter (PETTER, 2002, p. 130), a obra O Negro e o Garimpo em Minas Gerais é apresentada como um dos primeiros trabalhos especializados no rastreamento de africanismos, em um período em que expandiam os debates sobre as especificidades da língua nacional a partir dos anos 1930. O livro O Educação dos Cegos no Brasil (MACHADO FILHO, 1931) foi transcrito para o formato digital pela ACAPO - Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal (Delegação de Coimbra) e pode ser consultado online (acapo.pt). No site da ACAPO, além dessa publicação, há materiais literários, cinematográficos, artísticos e legislativos para cegos. Dentre as obras disponíveis, salientamos aqui o Dicionário de Conceitos, Nomes e Fontes para a Inclusão (2018), que traz um verbete sobre Urbanismo e Inclusão13.

 

Referências:

ANDRADE, C. D. de. Em louvor de Mestre Aires. In. A. da M. Machado Filho. O enigma do Aleijadinho e outros estudos mineiros. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975. 149 p.

AUROUX, S. Histoire des Idées Linguistiques. Liège-Bruxelles: Pierre Mardaga,1989.

DICIONÁRIO DE CONCEITOS, NOMES E FONTES PARA A INCLUSÃO. Humanizar a Vida em Cidadania e no Prazer Solidário de Existir Augusto. Deodato Guerreiro (Diretor Científico) Almada - Portugal, Junho de 2018.

FERREIRA, A. B. de H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa, 1a ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1975.

FREITAS, N.; QUEROZ, Q. Cantos Afrodescendentes em Minas Gerais. 3ª ed. Revista e ampliada. Belo Horizonte, FALE/UFMG, 2015.

GUIMARÃES, E.; ORLANDI, E. Unidade e dispersão: uma questão do texto e do sujeito. In: E, Orlandi> Discurso & Leitura. 6ª ed. São Paulo: Cortez; Campinas: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 2001a.

GUIMARÃES, E. História da Semântica: sujeito, sentido e gramática no Brasil. Campinas: Pontes, 2004.

MACHADO FILHO, A. da M. Educação dos Cegos no Brasil. Belo Horizonte: Os Amigos do Livre. 1931b. (publicado por MJA. https://www.deficienciavisual.pt/txt-educ_cegos_Brasil-Aires_Mata_Machado.htm).

MACHADO FILHO, Aires Mata. O negro e o garimpo em Minas Gerais. Documentos brasileiros, 42. Rio de Janeiro: José Olympio, 1943.

MACHADO FILHO, Aires Mata. Em busca do termo próprio. Rio de Janeiro: Agir, 1947. 220 p.

MACHADO FILHO, A. da M. Dicionário Didático e Popular da Língua Portuguesa. [Revisão de Eduardo Sucupira Filho]. São Paulo: Editora Brasiliense, 1965.

MACHADO FILHO, Aires Mata. Linguística e Humanismo. Perspectivas linguísticas, 11. Petrópolis: Vozes, 1974. 200p.

MACHADO, A. da M.; AULICUS,. C.; MACHADO, E. da M. ETIENNE FILHO, J.; MENDONÇA, J. Memória do Jornalismo Mineiro. Belo Horizonte: Departamento de Comunicação Social da PUC/MG, Secretaria Municipal de Cultura de Belo Horizonte e Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Minas Gerais, PUC/MG : UFMG, 1995.

MARX, K. O Capital. Livro 1, Capítulo VI (Inédito), 1ª edição. Traduzido da edição castelhana na Siglo XXI Editores S/A por Eduardo Sucupira Filho e cuidadosamente corrigido e cotejado com a edição alemã por Célia Regina de Andrade Bruni. São Paulo: Libraria Editora Ciências Humanas LTDA., 1978.

ORLANDI, E. Cidade dos Sentidos. Campinas: Pontes Editores, 2004.

ORLANDI, E. As Formas do Silêncio – no Movimento dos Sentidos. Campinas: Editora da Unicamp, 1992.

PETTER, M. Termos de origem africana no léxico do português do Brasil. In J. H. Nunes e M. Petter (Orgs). História do saber lexical e constituição de um léxico brasileiro. Campinas: Pontes; São Paulo: Humanitas, 2002.

PRADO E SILVA, A. Novo dicionário brasileiro Melhoramentos ilustrado. (com a colaboração e assistência de José Arado, Theodoro Henrique Maurer Jr. E Ary Tupinambá Ferreira) 2.ed. 4V. São Paulo: Melhoramentos, 1964.

REIS, M. de L. C. D. Ayres da Mata Machado Filho. Patrono da Cadeira número 35. Belo Horizonte: Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, 2025.

SUCUPIRA FILHO, E.; BLAY. A. Do Trabalho à Civilização. São Paulo, Editora Fulgor, 1962.

SUCUPIRA FILHO, E. Leituras Dialéticas – uma interpretação Materialista do pensamento Filosófico. São Paulo, Editora Alfa-ômega, 1987.

VOGT, C.: Cafundó: a África no Brasil. Carlos Vogt; Piter Fry; com a colaboração de Robert W. Slenes. 2ª ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2013.

 

ANEXO 1

 

BIOGRAFIA DE AIRES DA MATA MACHADO FILHO

 

Aires da Mata Machado Filho, filólogo, jornalista, escritor, acadêmico, professor e folclorista, nasceu em São João da Chapada, distrito de Diamantina MG, em 24 de fevereiro de 1909. Diplomou-se em Humanidades pelo Instituto Benjamim Constant, no Rio de Janeiro e obteve o título de Doutor em Filologia Românica, pela Faculdade de Letras da UFMG. Foi um dos fundadores do Instituto São Rafael, onde lecionou. Foi professor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da UCMG e na Faculdade de Filosofia, entre outros locais. Pertenceu à Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais, Academia Carioca de Letras, Sociedade Brasileira de Folclore e Academia Mineira de Letras. Produziu programas culturais nas rádios Guarani e Inconfidência de Belo Horizonte. Trabalhou e colaborou no “Minas Gerais”, “Estado de Minas”, “O Diário” e “Folha de Minas”. Entre outras obras, é autor de Educação dos cegos no Brasil (Belo Horizonte, Os amigos do livro, 1931), O negro e o garimpo em Minas Gerais (Rio de Janeiro, J. Olímpio, 1943), O arraial do Tijuco, cidade Diamantina (Rio de Janeiro, ed. Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1945), Crítica de estilos (Rio de Janeiro, Agir, 1956). Traduziu várias obras. Em 1981, recebeu o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua obra. Faleceu em 23 de agosto de 1985.

 

Fonte:

MACHADO, A. da M.; AULICUS,. C.; MACHADO, E. da M. ETIENNE FILHO, J.; MENDONÇA, J. Memória do Jornalismo Mineiro. Belo Horizontes: Departamento de Comunicação Social da PUC/MG, Secretaria Municipal de Cultura de Belo Horizonte e Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Minas Gerais, PUC/MG : UFMG, 1995, pg. 153.

 

 

ANEXO 2

 

REFERÊNCIAS DE OBRAS DE AIRES DA MATA MACHADO FILHO EM

SEIS SÉRIES DO CORPUS


SÉRIE 1 -Linguagem, deficiência, superação

MACHADO FILHO, A. da M. Educação dos Cegos no Brasil. Belo Horizonte: Os Amigos do Livre. 1931.

MACHADO FILHO, Aires da Mata. O enigma do Aleijadinho e outros estudos mineiros. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975. 149 p.

MACHADO FILHO, A. M. O fazendeiro formado. Rio de Janeiro, RJ: MEC, 1957.

MACHADO FILHO, Aires Mata. O caso de Helena Keller. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980. 74p.

 

SÉRIE 2 -Língua, etnografia, folclore, cidade, história

MACHADO FILHO, Aires Mata. O negro e o garimpo em Minas Gerais. Documentos brasileiros, 42. Rio de Janeiro: José Olympio, 1943.

MACHADO FILHO, Aires Mata. Arraial do Tijuco: cidade de Diamantina. Publicações do Serviço do Patrimonio Histórico e Artístico Nacional, n.12. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944. 221p.

MACHADO FILHO, Aires Mata. Dias e noites em Diamantina: folclore e turismo. Belo Horizonte: Maciel, 1972. 113p

 

SÉRIE 3 - Ensino, jornalismo, língua, literatura

MACHADO FILHO, Aires Mata. Em busca do termo próprio. Rio de Janeiro: Agir, 1947. 220 p.

MACHADO FILHO, Aires Mata. Português & literatura: para a 2ª série do curso de formação de professores de acordo com o programa oficial do estado de Minas Gerais. 2. ed. Belo Horizonte: Santa Maria, c1955. 164 p.

MACHADO FILHO, Aires Mata. Crítica de estilos. Rio de Janeiro: Agir, 1956. 245 p.

MACHADO FILHO, Aires Mata. Ideias e poesia. Belo Horizonte: Santa Maria, 1960. 102 p.

MACHADO FILHO, Aires da Mata. Em busca do têrmo próprio nos domínios do vocabulário. Escrever certo, 4. São Paulo: Boa Leitura, 1966. 406 p.

MACHADO FILHO, Aires Mata. A palavra é de ouro: Expressões e termos que dispensam gramática e dicionário. Belo Horizonte: Vega, 1979. 153p

MACHADO FILHO, Aires Mata. Inquietação e rebeldia. Ensaios, v.2. Belo Horizonte/Brasília: Itatiaia: INL, 1983. 283p.

MACHADO FILHO, Aires Mata. Pequena história da língua portuguesa. Educar, n.19. São Paulo: MEC, [19- ]. 51p.

 

SÉRIE 4 – Instrumento linguístico, ortografia, dicionário

MACHADO FILHO, Aires Mata. Ortografia Oficial. 3 ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, n.19. São Paulo: MEC, [1942]. 51p.

MACHADO FILHO, Aires da Mata. Prefácio. In: F. Fernandes. Dicionário de verbos e regimes. Prefácio de Aires da Mata Machado Filho. 10. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Globo, 1953. 623 p.

MACHADO FILHO, Aires da Mata. Dicionário didático e popular da língua portuguesa. 1 v. Revisão de Eduardo Sucupira Filho. São Paulo: Brasiliense, 1965.

 

SÉRIE 5 -Folclore, universidade, sociologia, linguística

MACHADO FILHO, Aires da Mata. Curso de folclore. Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1931. 168 p.

MEIRA, João Antonio. Razões da Faculdade de Filosofia em Diamantina. Coautoria de Aires da Mata Machado Filho. Belo Horizonte: CODEVALE, 1969. 1v.

MACHADO FILHO, Aires Mata. Linguistica e humanismo. Perspectivas linguísticas, 11. Petrópolis: Vozes, 1974. 200p.

 

SÉRIE 6 - Depoimento, memória, autoria


MACHADO, A. da M.; AULICUS,. C.; MACHADO, E. da M. ETIENNE FILHO, J.; MENDONÇA, J. Memória do Jornalismo Mineiro. Belo Horizontes: Departamento de Comunicação Social da PUC/MG, Secretaria Municipal de Cultura de Belo Horizonte e Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Minas Gerais, PUC/MG : UFMG, 1995.

ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

 

 

 

 

 


1  Este artigo está relacionado ao projeto Léxico Urbano no Discurso Lexicográfico dos Anos 1960-70. A finalidade é analisar o discurso lexicográfico nos anos 1960 e 70 no Brasil, atentando também para a cidade na relação com o Estado. (Sede: Laboratório de Estudos Urbanos/NUDECRI/UNICAMP).

2  Ver no Anexo 1 deste artigo uma biografia resumida de Aires da Mata Machado Filho,

3  As obras de Aires da Mata Machado Filho reunidas neste trabalho, em sua maioria, foram consultadas no Acervo de Coleções Especiais e Obras Raras/Biblioteca de Obras Raras Fausto Castilho -UNICAMP (BORA). Agradeço a Fernanda C. Festa Mira, pela organização das consultas, e a Fernanda A. Landim pelo auxílio ao manuseio e informações sobre obras raras. Também foram consultadas algumas obras restritas no Instituto de Estudos da Linguajem e no Centro de Memória da Unicamp.

4  Conforme a biografia de M. de L. Reis, temos a seguinte cena caseira de Diamantina, em que Aires da Mata aprendeu a ler e escrever: “Após alguns anos a família confirmou com grande pesar que o pequeno filho tinha nascido com uma doença congênita: catarata e atrofia do nervo óptico, que já se envolvia por grave cegueira. Foi crescendo cercado de grande carinho familiar e aconchegos. A tia Eponina lia e escrevia para ele em grandes caracteres o que lhe possibilitaria enxergar algumas letras. Desta forma conseguiu, a custo de muita perseverança e apoio familiar, concluir o curso primário, suprindo com os ouvidos a deficiência visual. Mesmo com esta deficiência, já se notava no pequeno menino interesses pela literatura e tendências para temas ligados à liberdade, à justiça social e a dignidade humana” (REIS, 2025, s.p.).

5  Segundo Aires da Mata, “Esses cantos de trabalho ainda hoje são chamados vissungos. A sua tradução sumária é o ‘fundamento’, que raros sabem hoje em dia. Pelo geral, dividem-se os vissungos em boiado, que é o solo, tirado pelo mestre sem acompanhamento nenhum, e o dobrado, que é a resposta dos outros em coro, às vezes com acompanhamento de ruídos feitos com os próprios instrumentos usados na tarefa.” (O negro e o garimpo em Minas Gerais. Documentos brasileiros, 42. Rio de Janeiro: José Olympio, 1943, p. 57).

6  Nota: “madraçaria”, no DDP, de Aires da Mata, significa: “Vida de madraça, ociosidade” (Dicionário Didático de Popular da Língua Portuguesa, de Aires da Mata. São Paulo: Brasiliense, 1965, p. m4)

7  Segundo Sylvain Auroux, desde o século XIX não faltam trabalhos dedicados à história dos conhecimentos linguísticos. Dentre alguns tipos desses trabalhos, ele menciona os que são homogêneos à prática cognitiva de onde eles vêm (por exemplo, o trabalho de um filólogo das línguas clássicas sobre a gramática, a filologia e a lógica grega). (Histoire des Idées Linguistiques, Liège-Bruxelles: Pierre Mardaga,1989). O livro Linguística e Humanismo, de Aires da Mata, pode ser considerado nesse tipo de trabalho de filólogo, porém com a especificidade tratar de noções e conceitos em vista do território brasileiro e considerando-se também a produção de conhecimentos linguísticos no Brasil.

8  Lembremos os estudos de Said Ali sobre as expressões e alterações semânticas, citados por Aires da Mata no livro Linguística e Humanismo. Acrescentamos aqui a reflexão de Eduardo Guimarães sobre os estudos de Said Ali, considerando a as divisão políticas e sociais envolvidas: “Assim se seu estudo de mudanças semânticas e de aquisições de novas (ou seja, de sua semântica lexical) opera relativamente a um sujeito psicológico da linguagem, opera por outra parte relativamente a um sujeito social que ora se divide em torno de uma divisão política das nações em que o sujeito é o povo, ora se divide em torno de uma divisão social entre o formal e o vulgar, o científico e o geral, etc” (História da Semântica: sujeito, sentido e gramática no Brasil, Campinas: Pontes, p. 76).

9   Listadas nos verbetes, as construções semânticas indicam ainda uma outra função: a de marcar a pejoratividade das expressões, que geralmente aumenta na medida em que elas são arroladas em direção ao final do verbete. Nesse caso, as expressões populares não variam por oposições estrita, mas sim por grandezas escalares, por gradações de sentidos figurados que afetam a sociabilidade silenciosamente.

10  Eduardo Sucupira também foi um dos tradutores de Karl Marx no Brasil (K. Marx. O Capital. Livro 1, Capítulo VI. Inédito, 1ª edição, São Paulo: Libraria Editora Ciências Humanas LTDA., 1978).

11  Sobre Aires da Mata Machado Filho como um dos estudiosos de africanismos no Brasil, Vogt e Fry explicitam os procedimentos diretos e indiretos adotados na pesquisa sobre o cafundó: “Ocorre que nem sempre os elementos morfemáticos pertinentes ao Banto são facilmente identificáveis em muitos itens lexicais do Cafundó. Palavras como amoé, do quimbundo muhatu, “mulher”, não apresentam qualquer traço que nos leve a identificar o seu étimo africano. Para resolver esses casos, adotamos o procedimento de Jean Pierre Anguenot, que, ao compor o seu glossário de palavras brasileiras oriundas do africano, utiliza fontes escritas. Ele distingue as fontes em diretas e indiretas. As diretas são as obras específicas sobre a questão dos africanismos no português do Brasil, que apresentam formalmente as palavras como sendo de origem africana. O autor faz constar nesse grupo o levantamento contido em obras de Renato Mendonça, J. Raimundo, Machado Filho e Dornas Filho, Y. Pessoa de Castro e A. Brandão. As fontes indiretas incluem trabalhos de etnólogos e folcloristas cujo objetivo não é propor uma origem especificamente africana dos termos levantados. Entre esses estão obras de Bastide e Edison Carneiro, especialistas de cultos afro-brasileiros. Servimo-nos ainda de vários dicionários de línguas africanas montados ‘por missionários em exercício em várias regiões da África’” (C. Vogt & P. Fry, Cafundó – a África no Brasil. Com a colaboração de Robert W. Slenes. 2ª ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2013).

12   *URBANISMO E INCLUSÃO: Sucintamente, deverá abranger questões que se prendem com localização e acessibilidade; pavimentos das vias públicas, passeios/lancis e interiores, com a necessária acessibilidade e usabilidade; ecologia comunicacional urbana inclusiva, observando-se também o legislado para se cumprir nos planos da arquitetura; sinalética urbana audiovisual e táctil, designadamente em todas as passadeiras e em lugares de referência; transportes públicos equipados com informação sonora nos pontos mais indicados para uma melhor audibilidade; paragens de transportes públicos com informação audiovisual e táctil. (ADG) (Dicionário de Conceitos, Nomes e Fontes para a Inclusão, Deodato Guerreiro [Diretor Científico] Almada - Portugal, Junho de 2018).

13  Doutor em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas. Pós-doutorado na Ecole Normale Supérieure de Lyon (França). Pesquisador no Laborátorio de Estudos Urbanos da Universidade Estadual de Campinas. E-mail: johnunes@unicamp.br.






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