No leva-e-traz da política científica: Uma interrogação sobre as “relações sociais”


resumo resumo

Eni Puccinelli Orlandi



sem ele e com 3 filhos pra Campinas. Mas aqui encontrou uma colega, quase uma irmã, e se ajudaram muito. Depois, soube que o marido estava doente. Trouxe ele para tratar dele e não acha bom que uma das filhas trate mal o pai. Uma filha que ele não queria porque era muié[3]. Ela guardô mágoa.

A vida onde a vida não se mostra em todas as letras. Vem de carona, pega emprestado, arranja uma colega, cata lixo. E sempre alguém ajuda. Esta ajuda é o gesto social mais incipiente, no entanto essencial, o mais necessário, o improvável, mas o que decide. E ele sempre vem, quando ouvimos a história dos sobreviventes. E vem acompanhado de uma voz que se alegra com os caminhos feitos. Não são os resultados que ressaltam: são os caminhos. As saídas. Os encontros. Atravessamentos. Deslocar-se. A própria capacidade de caminhar de uma coisa para outra. A alegria de terminar de falar, dizendo: e eu aqui. Naquele momento mesmo. Mais do que se apresentar, ela está presente.

A costura da vida. Que se dá ao lado, eu diria, ou apesar das relações sociais. Essas formas de relações que são coerções, que condenam, que significam o fracasso, que significam a pobreza. O imaginário da pobreza que nos empanturra de evidências e que nos afasta do que é dito pobreza como o diabo da cruz. Mas quando elas falam “pobre”, na situação de convivência que estabelecemos com nossas presenças e as delas, falam rindo, quase zombando da palavra. Como se ela viesse de fora. Elas não sentem diretamente o sentido do que seja “isso”. Sentidos que fogem. Elas não se sentem fazendo sentido do que seja “isso”. Não se reconhecem quando falam “isso”. Um riso que é quase uma ironia. Nem reconhecem a palavra “sonho”, em nossas formulações: você tem algum sonho que quer realizar? Nem usam a palavra “amiga” (quando cheguei aqui, encontrei uma colega, quase uma irmã). Ajuda sempre tem: do vizinho, dos outros, da muié em que foi trabaiá de doméstica[4].

Narrativa: a memória se dizendo por um fio que escorre pelo olhar, pelo silêncio, pelas palavras atropeladas por risos entrecortados que são a anunciação do sofrimento passado.

Trabalhamos em destaque as falas dessas mulheres em seu funcionamento de narrativas.




[3] Não posso deixar de lembrar aqui uma epígrafe que li em trabalho inspirado em Simone de Beauvoir: “O feminismo nunca matou ninguém. O machismo mata todo dia” (Benoîte Groult).

[4] Esta senhora, encontrou este emprego e a pessoa que a empregou, a ajudou a criar o filho. A colocou na escola. Cata latinhas, mas sabe ler e escrever. Estudou até a oitava série.