A cidade, de Massimo Cacciari


 

A cidade, de Massimo Cacciari

The city, by Massimo Cacciari

Júlia Marchesin Caetano[1]

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2284-4645

Resumo:

Apresenta-se nesta resenha, uma síntese da série de seminários apresentados por Massimo Cacciari no Centro Sant´Apollinare de Fiesole, transcrita e editada por Tonino Rasuto. A obra, de título A cidade, traz reflexões acerca do que o autor entende como a origem das configurações urbanas, mais precisamente o que classifica como a pós-metrópole, a cidade-território, que tem sua formação ligada aos princípios da pólis grega e da civitas romana. Por fim, o autor define o potencial de lugar e da geografia de acontecimentos, a partir de um caminho metodológico de entendimentos dos fenômenos que foram capazes de ressignificar o sentido de cidade para o ser humano.

Palavras-chave: Cidade; Cacciari; pólis; civitas; metrópole; pós-metrópole.

Abstract:

This review presents a summary of the series of seminars presented by Massimo Cacciari at the Centro Sant´Apollinare de Fiesole, transcribed and edited by Tonino Rasuto. The work, entitled The city, brings reflections on what the author understands as the origin of urban configurations, more precisely what he classifies as the post-metropolis, the city-territory, which has its formation linked to the principles of Greek polis and of the Roman civitas. Finally, the author defines the potential of place and the geography of events, based on a methodological path of understanding the phenomena that were able to reframe the meaning of the city for the human being.

Keywords: Cities; Cacciari; polis; civitas, metropolis; pos-metropolis.

O texto nasce da transcrição de uma série de seminários trazidos pelo filosofo italiano Massimo Cacciari, no Centro Sant´Apollinare de Fiesole. Cacciari foi prefeito de Veneza entre 1993 e 2000 e novamente de 2005 a 2010. O autor possui diversas análises no campo da filosofia política e da arquitetura e do urbanismo. Neste texto, ele nos traz uma leitura do que conhecemos como cidade, suas possíveis origens e seus resultados na contemporaneidade.

No primeiro capítulo o autor introduz as diferenças entre a cidade grega e a cidade romana, nos atentando para o caráter distinto de cada uma: a cidade grega nasce com um teor religioso e político acentuado, sendo a união de pessoas do mesmo “génos” o que nos aproxima mais do termo “pólis”. Em Roma, o sentido da cidade é percebido muito mais através do termo “civitas”, que de acordo com o autor, é “aquilo que é produzido pela reunião de várias pessoas sob as mesmas leis para lá de qualquer especificidade étnica ou religiosa”. Portanto, a partir destas definições o autor contextualiza o que ambos significados trouxeram como marca histórica para as cidades futuras.

Desse modo, nos indagamos a pensar como devemos conceituar a cidade; a partir dos elementos fortemente étnicos e religiosos ou a partir do sentido de civitas - pessoas reunidas através de leis. Neste mesmo modelo o autor infere outras ideias, trazendo um possível objetivo que rege a civitas: “vivemos juntos pois, através da concórdia produzida pelas nossas leis, podemos almejar um grande fim, Roma mobilis”, que nada mais seria a capacidade móvel que as cidades podem alcançar. Sendo assim, a principal característica desse modelo seria a capacidade de ultrapassar os limites da cidade, - “de-lire”, no sentido de “delinar”, “superar”.

De acordo com Cacciari, a lei que rege, portanto, o funcionamento da civitas é na verdade a lei de divisão de terras: “a lei é, na sua origem, aquele processo mediante o qual se reparte a terra, a terra de pastagem”.

No segundo capítulo o autor traz essas leituras para compreender a cidade europeia construída, relembrando que nossa concepção de cidade está muito mais ligada à civitas romana, e que, portanto, enxergamos a cidade como a confluência de pessoas que aceitam serem regidas por um conjunto de leis. Porém, ao enxergarmos também a cidade como lugar (habitar), trazemos resquícios do significado da pólis grega, o que introduz uma contradição a qual a cidade não consegue resolver. “Nós achamos que a cidade para ter dimensões humanas deve, de certa maneira, recordar a pólis”.

O autor sintetiza então o valor da cidade como uma dualidade, por um lado queremos que ela represente o lugar de troca humana, onde seja possível residir, nos encontrar, por outro lado a enxergamos como instrumento base para fazer negócios, estabelecer trocas da maneira mais eficaz possível.

Ou seja, continuamos a pedir duas coisas diferentes à cidade. Mas isso é característico da própria história da cidade: quando ela se desilude em demasia e se torna unicamente negocio é então que começa a fuga da cidade, como tão bem testemunha a nossa literatura: a arcádia, a nostalgia de uma idade mais ou menos não-urbana; por outro lado, quando, ao invés, a cidade assume realmente as características da agorá, do lugar de encontro rico do ponto de vista simbólico e comunicativo, então, imediatamente nos apressamos a destruir esse tipo de lugar, pois contrasta com a funcionalidade da cidade como meio, como máquina (CACCIARI, 2010, p. 26).

Com este parágrafo o autor observa a evolução que ocorreu nas cidades europeias ao longo do tempo, nas suas devidas proporções de tempo e intencionalidade, porém alcançando uma mesma consequência: a violência que a indústria e o mercado impactaram no espaço urbano.

O autor conclui essa sessão nos indagando: o que queremos da cidade? E nos colocando a assumir que é preciso enxergar essas duas faces que o urbano nos traz. Ao mesmo tempo, Massimo Cacciari nos atenta a simultaneidade dessa expectativa que criamos sobre as cidades, confluindo em espaços cada vez mais esquizofrénicos.

No terceiro capítulo o autor traz análises a respeito da metrópole, que para ele são aquelas que “deliram”, ultrapassam os limites da cidade enquanto termo, destruindo a sua concepção ao ser regulada por dois princípios fundamentais: a indústria e o mercado. São as exigências da indústria e do mercado que estabelecem os padrões urbanos, estipulando tipologias habitacionais e zoneamento, criando corpos rígidos e fixos. Enfatiza-se que essa evolução só foi possível porque o modelo de cidades no qual vivemos está de acordo com a civitas romana, tomando a cidade como centro, e as trocas como papel central desempenhado pelas mesmas.

O autor finaliza este trecho traduzindo o que essa evolução pode trazer como consequências para a cidade primeira, aquela que surge. “É assim que nasce o centro histórico: enquanto a cidade se desenvolve, agora, em conformidade com as presenças de produção e de troca – dominantes e centrais -, a memória torna-se museu e cessa, assim, de ser memória...” (CACCIARI, 2010).

No capítulo quatro o autor contextualiza então o momento no qual ele define que estamos, o da pós-metrópole, a cidade-território, que para ele nada mais é que a evolução indefinida da cidade, que se torna homogênea, indiferente, na qual a civitas não é mais a regra, as regras são ignoradas. Ao mesmo tempo em que a memória é tomada pela rapidez das transformações: não temos tempo para criar memória.

O que define a pós-metrópole:

vastíssimas áreas indiferenciadas do ponto de vista arquitetônico, a regurgitarem de funções de representação financeiras, de governação, cercada por áreas periféricas residenciais, “guetizadas” umas em relação às outras, áreas comerciais de massa, “resquícios” da produção manufatureira (CACCIARI, 2010, p. 34).

Em seguida temos cinco subtemas para compreendermos os diferentes pontos de vista cabíveis dentro do termo pós-metrópole, ou cidade-território.

Em um primeiro momento o autor nos põe a pensar por que precisamos do lugar, no sentido de pertencer a uma natureza. O espaço nos obriga a racionalizar o lugar, os edifícios têm que desempenhar uma tarefa definida: “a energia que o território pós-metropolitano liberta é essencialmente ‘desterritorializante’, anti-espacial”.

No segundo subtema, o autor traz as discussões sobre espaços abertos e espaços fechados, caracterizando a pós-metrópole em uma concentração de espaços fechados, rígidos, corpos que representam seus próprios organizadores. São espaços “crônicos”, desempenham apenas uma função. A cidade americana representa esse fenômeno de forma mais clara ao se adaptar as gated communities. O objetivo, agora, é a segurança, se sentir protegido na morada, outra característica intrínseca da cidade-território. “Essa necessidade de comunidades fechadas provavelmente responde a uma exigência profunda da nossa psique, uma vez que não é fácil viver na mobilização universal, viver numa métrica simplesmente temporal.”

Porém o autor salienta onde nasce a contradição: como podemos exigir da cidade um sentimento de pertencimento, de comunidade ao mesmo tempo em que exigimos privacidade? “Como podemos falar de cidade, tentando dar a esse termo uma valência comunitária, se a cidade é regulada pro formas de direito privado?”

Em um terceiro momento o autor discute o “território indefinido”, que para ele é o lugar que habitamos, indefinido do ponto de vista das funções, superando qualquer tipo de lógica espacial, que se subordina a interesses especulativos e pressões sociais.

O território está em constante transformação:

 Os papeis de centro e de periferia podem substituir-se recíproca e incessantemente; e esta troca reciproca ocorre ocasionalmente ou então, ocorre na base de logicas mercantis e especulativas, que rejeitam toda e qualquer “grelha” pré-definida de funções (CACCIARI, 2010, p. 53).

 Cacciari então infere que não vivemos mais em cidades, vivemos em territórios. O que caracteriza as cidades não existe mais. O território é palco de uma geografia de acontecimentos, mutáveis e de paisagens híbridas. As fronteiras não são espaciais, são fronteiras de comunicação. A fronteira física só existe para ser superada – “delírio”.

O modelo centro-periferia se espalha, tendo suas funções encontradas em qualquer lugar: “toda a métrica tradicional passou de prazo”. O problema central, portanto, é a imprevisibilidade e a falta de possível planejamento. A cidade não pode mais ser programada, desenvolvida com base em uma meta. Pelo contrário domina-se a definição de interesses privados, que especulam e criam lógicas próprias para sua própria satisfação.

Em seguida, o autor trabalha com as noções de tempo dentro do espaço, nos atentando para o fato de que nas metrópoles mede-se o espaço pelo tempo de deslocamento, tornando-se o espaço um obstáculo a ser superado, de forma mais rápida possível. Mais uma vez conseguimos enxergar a contradição colocada no questionamento acerca do que queremos das cidades: por um lado vamos o espaço como “maldição”, algo a ser superado, por outro exigimos que estes espaços também sejam acolhedores, organizados. “Exigimos atravessar a cidade em tempo real, mas também queremos que ela seja bela”.

O autor conclui este quarto trecho salientando que precisamos criar correspondências, entre o lugar (que queremos habitar) e as funções que precisamos que ele desenvolva, para que estes lugares sejam propriamente o termo na vida pós-metropolitana, que “reflitam o tempo, o movimento”.

No último trecho deste capítulo, o autor enfatiza então essa invenção de correspondências, salientando que o urbanista deve ter a capacidade de criar espaços, lugares capazes de serem polivalentes, que concentrem várias funções, se desenvolvendo em nosso imaginário como um lugar, ao mesmo tempo que cumpre as exigências do tempo.

O autor finaliza o capítulo salientando que precisamos compreender essas contradições, que hoje, são gritantes e visíveis, e que, talvez, a polivalência dos edifícios, desempenhando diferenciados funções, sejam um caminho para alcançar o sentido de lugar que a cidade deveria ter.

No quinto capítulo o autor aborda a questão gnóstica do habitar humano, relacionando as vivencias de lugar e de cidade com simbolismos religiosos, nos quais nossa ligação com a terra possui significados etéreos e culturais-religiosos. Esses símbolos se exemplificam na construção das cidades e na manifestação da arte. Neste breve capítulo o autor enfatiza o culto ou a negação ao culto à cidade, relacionando diferentes culturas a diversos padrões de construção urbana, nas quais o valor da cidade muda.

Ao mesmo tempo trabalha-se com o conceito de globalização ocidental, não apenas como um termo geográfico, mas sim como um modo de domínio da técnica. E constata-se que mesmo dentro desse padrão de globalização, dificilmente nos depreendemos dos simbolismos culturais presentes na origem das cidades, fortemente notáveis nas cidades orientais.

O último capítulo traz um esboço sintético a respeito, mais uma vez, das exigências que fazemos das cidades, a principal delas: que a cidade seja bela, ao mesmo tempo que funcional. E mais uma vez, o autor repete a questão central da discussão: o que queremos das cidades? Ainda queremos que sejam belas e funcionais, mesmo que uma característica seja capaz de anular a outra, dentro da forma como nossas cidades têm se desenvolvido nos últimos séculos. O autor conclui inserindo que para emergir uma beleza significativa seria “necessário que nossos edifícios exprimissem plenamente a nossa vida e as suas razões, caso contrário, a beleza torna-se uma coisa incapturável e indefinível.”

 

Referências bibliográficas

CACCIARI, Massimo. A cidade. Barcelona: Gustavo Gili, 2004.

 

[1] Arquiteta e urbanista, FCT Unesp Câmpus de Presidente Prudente. E-mail: julia_marchesin@hotma






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