“Um saber nas ruas: o discurso histórico sobre a cidade brasileira”, de Carolina Fedatto


Rogério Modesto [1]



Carolina Fedatto em seu livro um saber nas ruas: o discurso histórico sobre a cidade brasileira apresenta-nos uma reflexão bastante refinada sobre os modos de inscrição e institucionalização cotidiana do saber no discurso sobre a cidade. O livro resulta de sua tese de doutorado em Linguística pela Unicamp, trabalho que foi laureado com o Prêmio Capes de melhor tese na área de Letras e Linguística em 2012. Trata-se de um estudo de extrema consistência que se estabelece teoricamente nos entremeios da análise de discurso materialista e a história das ideias linguísticas, atravessadas pela perspectiva que relaciona saber urbano e linguagem.

Seu texto é inteiramente redigido com letras minúsculas. Gesto com o qual a autora põe em jogo a relação de seu objeto de estudo, o saber, com o funcionamento do institucional do/no/e o cotidiano. Fedatto produz uma quebra de ritual e isto seria, pois, a corporificação de uma metáfora que tensiona o corriqueiro justamente para salientar os modos de inscrição do saber no cotidiano: os gestos repetitivos que estabilizam os saberes, o trabalho do imaginário que nos faz esquecer, naturalizar e sedimentar tais saberes, a estranheza causada quando algo, certamente incomum, nos põe frente à diferença.

Além do preâmbulo ao estranhamento em que a questão acima está posta, o trabalho contém ainda mais cinco partes: a introdução, intitulada o saber na história da cidade; o primeiro capítulo, dos fundamentos teóricos à elaboração das questões; o segundo capítulo, pontos de parada na discursividade urbana; o terceiro capítulo, a produção do espaço no brasil; e, por fim, a conclusão que leva o nome o saber urbano e o alhures.

Na introdução, Fedatto retoma os modos de constituição de um domínio de saber, a fim de pôr em diálogo o saber sobre a língua, o saber sobre a cidade e a construção da nacionalidade dada a partir da constituição do institucional e do cotidiano. A autora traz luz para a constituição mútua entre língua, o espaço e os saberes vinculados a eles. Esta é a compreensão que leva Fedatto a indicar que “a história do saber não é desvinculada do espaço de onde sua produção se efetiva nem das condições sócio-históricas que tornam possível a demanda por um determinado tipo de saber” (p. 22). E, diante de tal tese, seu estudo tem como objeto “a espacialização de saberes na cidade e sua interferência nos processos de identificação do sujeito urbano-nacional” (p. 23).

Há ainda, frente ao objeto dado, a pergunta pelo papel do cotidiano e do institucional na construção dessa nacionalidade que imbrica língua e espaço. Pontua a autora: “há um gesto oficial que não deixa de significar os saberes instituídos nesses detalhes prosaicos dos trajetos urbanos e sempre há um traço de trivialidade naturalizando os dizeres institucionais” (p. 25). Gestos que produzem pontos de referência e também o efeito de localização na organização do espaço e dos sentidos de povo.

O primeiro capítulo nos faz ver que arquivo, memória, história, metáfora, sujeito, resistência e poética costuram um percurso teórico próprio a partir do qual a autora empreende sua compreensão em torno do modo como o saber se inscreve no discurso da cidade, bem como sobre a construção do espaço nacional tal como este está textualizado na história, na literatura e nas fotografias analisadas.

Fedatto assume que “a cidade é um arquivo” (p. 36), “arquivo com memória” (p. 37). E disso resulta, como consequência, o fato de que: “a cidade inscreve no hoje um acúmulo, manifesto e velado, de outros cotidianos como alteridades que vacilam pela tensão dos sentidos que se inscreverão(am) na história.” (p. 36). Arquivo: sentido, espaço e linguagem como forma de compreender a cidade como objeto discursivo.

Reafirma-se o primado da metáfora sobre o sentido e o sujeito como histórico, logo, dividido e descentrado, para que fique posta a resistência como possibilidade de deslocamento implicada no simbólico. Em outras palavras, reafirma-se uma concepção de sujeito de linguagem: sujeito sempre histórico, suporte do simbólico, da cadeia significante sempre pronta para a possibilidade de irrupção de sentidos outros.

A história aponta para uma ambiguidade inscrita em seu próprio nome que permite perceber uma dupla direção: científica (História) e literária (história). Daí porque a necessidade em compreender não só o discurso histórico, mas o literário como efeito metafórico imbricado à (re)produção do imaginário sobre a história da cidade e do modo como o sujeito se relaciona com este espaço.

Esse efeito metafórico produzido pelos textos literários é tomado como “poética da identificação pelo urbano” (p. 60). Tal poética permite perceber, nos recortes dos romances analisados[2], o modo como as referências urbanas produzem no sujeito pontos de identificação, já que essas referências urbanas acabam se confundindo com (ou se tornando propriamente) as referências subjetivas do sujeito. Fedatto mostra-nos, assim, uma inevitável imbricação entre sujeito e cidade, corpo social e corpo urbano.

A produção das referências na cidade, a relação incontornável entre língua e urbanidade, e a produção de um nós nacional pela identificação com os monumentos e patrimônios dão o tom do segundo capítulo. Assume-se a tese de que um ponto de referência é um lugar no espaço da cidade que é duplamente afetado pela temporalidade. Ao mesmo tempo em que cria, no aqui e agora, um imaginário de localização que permite ao sujeito dizer “estou aqui e não lá”, o ponto de referência também produz um imaginário de retrospecção marcando a diferença por sua relação com o retorno a outro tempo-espaço.

O imaginário de localização põe, frente ao ponto de vista teórico da autora, uma relação com a produção dos referentes pela linguagem: a simbolização do espaço urbano, o valor de uma construção em relação a uma outra etc. O imaginário de retrospecção, por sua vez, demanda a reflexão sobre o processo de textualização na construção das cidades: há uma trajetória a ser percorrida, um direcionamento dos gestos de interpretação, um antes e um depois, imbricado à produção dos sentidos para os sujeitos via pontos de referência.

No que toca à relação da língua com o urbano, Fedatto chama atenção para o paralelismo entre o imaginário de localização e a língua nacional. Ambos produzem estabilidade: a interpelação do indivíduo em sujeito (cidadão) pelo Estado, permitindo a ele não só um saber sobre por onde se anda, mas o saber sobre uma língua. Literatura e instrumentos linguísticos trabalham para/pela unificação da língua e, consequentemente, para/pela instituição de um território nacional. Essa relação estabelecida entre urbanização e gramaticalização põe a construção da cidade como parte de um processo histórico perpassado por variados ideais[3] de cidade. E isso permite concluir que: “o todo originário da nação, antes mesmo de haver estado, só é possível pela construção de saberes urbanos que se centralizam como um saber nacional marcado amiúde em detalhes, ruínas e grandezas” (pp. 87-88).

A relação entre pontos de referência, monumentos e patrimônio, sobre a qual Fedatto debruça-se para finalizar este segundo capítulo, fortalece ainda mais sua compreensão sobre as representações e produção do nós nacional. Como ponto de referência, um monumento (histórico) projeta no espaço urbano uma presença, uma memória que, ao se imbricar com a ideia de patrimônio, demanda “cuidado” e “preservação”. Assim, o monumento, compreendido como patrimônio (bem comum, propriedade, herança, representação da antiguidade nacional...), irrompe no imaginário nacional como ponto de referência, evidência do nós. Nesse contexto, o patrimônio passa a textualizar um imaginário de unidade nacional a partir das cidades, já que ele “é um bem cuja enunciação de propriedade constrói um nós fundador da nação” (p. 97).

No terceiro capítulo três patrimônios são analisados pela autora. A igreja (e o convento) de São Francisco, localizado em Salvador, a Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro e o Colégio Culto à Ciência, em Campinas, não por acaso são tomados como objeto por Fedatto: os colégios, as bibliotecas e as igrejas institucionalizam, na trivialidade cotidiana, o saber nacional, tornando-se ponto de interpelação para o sujeito-urbano. Esses patrimônios textualizam a história da produção do espaço citadino brasileiro: espaço oriundo de um intenso processo de colonização que, ao contrário das cidades europeias, é inaugurado pela ação militar e em seguida pela presença cotidiana das instituições que representam o poder.

Os processos de nomeação e designação dos espaços também interessam à Fedatto na medida em que a produção de uma referência na cidade toca propriamente a simbolização do espaço da cidade. Na produção do saber no discurso histórico sobre as cidades brasileiras, a maneira como os nomes identificam e recortam um espaço traz à baila não somente os processos de institucionalização dos saberes, mas também os efeitos de sentidos disponibilizados no cotidiano das cidades.

Desse modo, a autora mobiliza a nomeação como entrada analítica que a permite perceber que as ruas, a igreja, o colégio e a biblioteca em análise produzem, por suas designações, uma particularização e pertencimento que os constituem como próprios de uma cidade. No batimento entre nomeação como processo de simbolização do espaço e a própria cidade, estabelece-se uma tensão que (de)organiza as identificações do sujeito com o espaço (nacional) a que ele está atado.

Em suas considerações acerca da Igreja de São Francisco, por exemplo, ficam forte as tensões ressaltadas pela autora (sobretudo quando está analisando as fotografias) entre a imponência, o belo e o antigo frente às contradições sociais que este patrimônio testemunha. As imagens da fachada da igreja em variadas perspectivas destacam a autoridade do discurso religioso que permanece, projetando no presente, um passado “em que se declara o acontecimento de um lugar como sendo referência nacional” (p. 138). Tal referência nacional encontra hoje um ponto de ancoragem no discurso patrimonial que sustenta o discurso turístico, produzindo assim a interpelação do sujeito em sua posição de turista.

Os diversos prédios da Biblioteca Nacional bem como seus diferentes nomes constroem o caminho do “saber urbano nacional letrado” (p. 148) que tece para a nação sua cultura e tradição letrada. Ao percorrer esses momentos de transição e mudança pelos quais tal patrimônio histórico passa, Fedatto empreende uma reflexão sobre os sentidos de nacional que estão imbricados aí. Sentidos que mexem com o imaginário nacional, pois os deslocamentos (físicos e institucionais) pelos quais a biblioteca passa produzem simbolicamente (re)arranjos no saber urbano letrado brasileiro.

De igual modo, o colégio “Culto à Ciência” textualiza no corpo urbano um dos modos de interpelação do sujeito em cidadão. Tal colégio, sendo ponto de referência de seu entorno, produz não somente uma referência espacial, mas também se torna referência de um projeto nacional da construção de uma cidadania pautada pela cientificidade positivista cuja nomeação “culto à ciência” lhe faz juz. “Culto à ciência”, desse modo, como mostra Fedatto, não é apenas o nome de um colégio, mas um projeto próprio na construção da nacionalidade que se torna, ainda hoje, (ponto de) referência para o social.

No fechamento de seu trabalho, o esforço de compreensão da autora em torno do discurso histórico sobre as cidades brasileiras é arrematado pela consideração de que tais sentidos se deslocam em função da historicidade do processo a partir do qual o saber se institui. Fedatto chega assim a um ponto extremamente relevante para a perspectiva discursiva, pois ela desnaturaliza o paralelo imediato cidade-cidadão-civilidade, mostrando que processos históricos diferentes sustentam os sentidos de cada um destes termos em sua relação com a construção da nacionalidade. Mas, mais do que isto, com seu gesto analítico Fedatto desnaturaliza o próprio saber expondo-o à opacidade que sua institucionalização cotidiana trabalha para apagar nas contradições da evidência.


FEDATTO, Carolina P. Um saber nas ruas: o discurso histórico sobre a cidade brasileira. Campinas: Editora da Unicamp, 2013



Data de Recebimento: 22/11/2013

Data de Aprovação: 13/08/2014

 

[1] “Doutorando em Linguística pelo Programa de Pós-graduação em Linguística da Unicamp. Bolsista CNPq (Processo: 140439/2014-5). E-mail: roger.luid@gmail.com Endereço postal: R. Edele Prospero Picoli, N.341, Casa 5, Barão Geraldo, Campinas/SP. CEP: 13084-702.

[2] “Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra”, de Mia Couto; “Istambul”, de Orhan Pamuk; e “Marcovaldo”, de Italo Calvino.

[3] A autora percorre modelos de cidade – a cidade medieval, a cidade renascentista, a cidade da modernidade, a distinção campo e cidade etc. – mostrando que o espaço urbano é o lugar próprio da “convivência entre momentos diferentes representados de maneiras desiguais por meio de processos como sobreposição, ênfase ou destruição” (p. 88)






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