O Monstro no Divã:
El Monstruo en el Diván:
Reane Lisboa [1]
ORCID: https://orcid.org/0009-0003-6137-2588
Resumo: O filósofo e escritor Paul B. Preciado apresenta o manifesto "Eu sou o monstro que vos fala: Relatório para uma academia de psicanalistas", que documenta o discurso proferido em 17 de novembro de 2019, em Paris, perante a Escola da Causa Freudiana. O texto detalha as repercussões desse evento, no qual Preciado confronta o binarismo sexual e a psicanálise tradicional, denunciando a violência epistemológica que redefine a saúde mental como mera adaptação à norma. O manifesto propõe uma reconfiguração radical do pensamento e da prática clínica, reivindicando a insubordinação como o verdadeiro caminho para a subjetividade e a liberdade.
Palavra-chave: Performance, Gênero, Psicanálise, Saúde Mental, Memória.
Resumen: El filósofo y escritor Paul B. Preciado presenta el manifiesto “Yo soy el monstruo que os habla: Informe para una academia de psicoanalistas”, que documenta el discurso pronunciado el 17 de noviembre de 2019 en París, ante la Escuela de la Causa Freudiana. El texto expone las repercusiones de este acontecimiento, en el que Preciado confronta el binarismo sexual y la psicoanálisis tradicional, denunciando la violencia epistemológica que redefine la salud mental como mera adaptación a la norma. El manifiesto propone una reconfiguración radical del pensamiento y de la práctica clínica, reivindicando la insubordinación como el verdadero camino hacia la subjetividad y la libertad.
Palabras-clave: Performance, Género, Psicoanálisis, Salud Mental, Memoria.
Em novembro de 2019, o filósofo e escritor Paul B. Preciado subiu ao palco do Palais des Congrès de Paris diante de 3.500 psicanalistas reunidos pela Escola da Causa Freudiana. O tema do encontro era “Mulheres em Psicanálise”, mas o que se seguiu não foi uma conferência — foi um terremoto discursivo. Enquanto Preciado lia seu texto, um manifesto encarnado, a plateia se dividia: metade aplaudia, a outra gritava impropérios. Um dos presentes chegou a exclamar: “Não deveríamos permitir que ele falasse, ele é Hitler” (p. 9).
A intensidade da cena ultrapassou o auditório. O discurso foi filmado por dezenas de celulares, e fragmentos começaram a circular online “sem nenhum cuidado com a exatidão das palavras ou a qualidade das traduções” (p. 10). Essa dispersão evidencia aquilo que Zumthor (2007) identifica como crise da escuta e da presença: na cultura da recepção imediata, a palavra encarnada corre o risco de ser capturada, fragmentada e esvaziada de sentido. O acontecimento performático, em vez de escutado, é consumido — transformando o corpo falante em ruído.
Diante dessa volatilidade e da hostilidade simbólica que marcou sua recepção, a decisão de publicar o texto integral não se limita a uma busca por precisão, mas constitui um ato de reconquista da escuta. Preciado retoma o controle de sua própria enunciação, reconduz o discurso ao campo do pensamento e restabelece o vínculo entre voz, corpo e sentido. A publicação é, portanto, um gesto político de restituição da presença: transformar o ruído da rede em memória escrita, assegurar que o monstro fale por si e que sua palavra não se dissolva na cacofonia do presente. O texto se torna um dos marcos potentes da filosofia contemporânea sobre corpo, memória e saúde mental.
O que se viu em Paris não foi apenas um confronto teórico, mas um ato que colocou em crise a própria representação do eu no espaço público. O corpo que a psicanálise tentou silenciar voltou para narrar-se, reivindicando o direito de existir e de falar. Esse gesto dialoga com a teoria de Goffman (2002), segundo a qual a interação social exige a manutenção de uma fachada e de uma definição de situação para que o indivíduo possa ser acreditado em seu papel. Preciado, ao recusar a performance de paciente ou de sujeito normativo, expõe o delírio da normalidade e rompe a cena socialmente esperada, demonstrando que a rigidez da apresentação do eu constitui um custo psíquico altíssimo.
A intervenção do “monstro” configura um momento de desacordo político, no sentido proposto por Rancière (2005): a política emerge quando aqueles que foram excluídos da partilha do sensível, os “sem parte”, irrompem no espaço comum e tornam audível o que a ordem hegemônica insiste em silenciar. Ao tomar a palavra, Preciado interrompe o consenso da partilha do sensível, expondo a violência da exclusão epistemológica e obrigando a academia a enfrentar a hierarquia de saberes que exclui sua voz.
O texto Eu sou o monstro que vos fala, de Paul B. Preciado, desloca o eixo tradicional da clínica, centrado na normalização do indivíduo, para uma leitura política e histórica do sofrimento psíquico. Ao transformar o corpo em um arquivo vivo de experiências e o discurso em ato de resistência, Preciado propõe que a saúde mental não pode ser compreendida fora dos regimes de poder que moldam o que é considerado “são” ou “patológico”. Sua fala rompe o pacto de silêncio que isola o sofrimento e o inscreve na memória social, permitindo que outras narrativas, antes silenciadas pela norma, passem a compor o repertório coletivo de sentido. Assim, a obra opera como um gesto de cura simbólica e de recordação política, em que lembrar-se torna-se um ato terapêutico e comunitário: lembrar o que foi apagado, reconhecer os corpos que resistiram e reescrever, a partir deles, uma nova história da mente e da humanidade.
Preciado fala “de dentro da jaula”. Uma metáfora que refere-se tanto à condição social e histórica dos corpos trans, aprisionados em narrativas patologizantes, quanto à estrutura simbólica que delimita quem pode falar sobre o inconsciente. Homem trans e corpo não binário, ele se apresenta como “o monstro que vos fala”, espelhando a narrativa do macaco Pedro Vermelho, personagem de Um Relatório para uma Academia, de Franz Kafka. Assim como Pedro aprendeu a língua dos humanos para sobreviver, Preciado aprendeu “a língua de Freud e Lacan, a língua do patriarcado colonial” — uma língua que o classificou como impossível, “além da neurose, à beira ou mesmo na psicose”. A partir dessa enunciação, o corpo torna-se lugar de saber — um corpo que pensa, fala e recorda, desafiando a neutralidade científica que o patologizou.
Ao tomar a palavra, o autor inverte o vetor do saber: o paciente se transforma em analista, o objeto em sujeito. Sua fala é, simultaneamente, testemunho e teoria, um gesto que funde experiência e filosofia. O “monstro” não representa uma anomalia biológica, mas o sintoma revelador do delírio normativo. Ele encarna a tensão entre corpo e linguagem, lembrando-nos de que a produção do “normal” depende da exclusão de tudo aquilo que ameaça suas fronteiras.
O núcleo conceitual do texto está na crítica ao que Preciado chama de epistemologia política do corpo. Para o autor, a diferença sexual, geralmente tratada como um dado biológico ou uma estrutura simbólica universal, constitui uma tecnologia política e econômica que organiza o mundo de acordo com o regime patriarco-colonial.
Essa máquina epistêmica fabrica dicotomias (masculino/feminino, razão/emoção, mente/corpo) e distribui valores e violências com base nelas. Nesse sentido, a psicanálise clássica, longe de ser neutra, atua como dispositivo de conservação desse regime. Ao nomear a transição de gênero como “impossível”, ao associar a diferença sexual a uma lei simbólica imutável, a teoria freudiano-lacaniana mantém viva a ficção da norma. Preciado propõe, assim, uma reviravolta: não é o corpo trans que é patológico, mas o sistema que o define como tal.
[...] permitam-me recorrer e me abrigar nos ombros do mestre de todas as metamorfoses, o melhor analista dos excessos que se escondem por trás da fachada da razão científica e da loucura que atende pelo nome comum de saúde mental: Franz Kafka. (p.12).
O autor mostra que os custos psíquicos da normalidade são altíssimos: angústia, melancolia, dissociação e culpa. A psicanálise, nesse contexto, é a “terapia necessária para que o sujeito patriarcal continue funcionando apesar da violência indescritível desse regime”.
A saúde mental, nessa perspectiva, deixa de representar adaptação e passa a expressar insubordinação à norma. O sujeito considerado “sadio” é, na verdade, aquele que foi domesticado para sustentar um sistema de violência simbólica. Preciado propõe repensar a saúde não como adequação, mas como ato de resistência. Para ele, o perigo não está na transição, e sim no medo social de atravessá-la. A verdadeira ameaça é o regime da diferença sexual, que converte a multiplicidade em crime simbólico. Em contrapartida, a experiência de transição é descrita como “uma das coisas mais belas e alegres” que o autor já viveu, desmontando o paradigma clínico da dor e afirmando outra ideia de saúde: viver sem o terror de ser anormal.
A passagem pela transição é, também, uma passagem pela memória. Preciado recusa o pacto da masculinidade normativa, que exige silêncio e esquecimento. Para ser reconhecido, dizem-lhe, é preciso apagar o passado, “misturar-se ao magma naturalizado da masculinidade”. Mas ele resiste:
As memórias da minha vida passada como mulher não foram apagadas como restam vivas em meu espírito, de modo que, ao contrário do que acreditam e preconizam a medicina e a psiquiatria, não cessei completamente de ser Beatriz para me tornar Paul. (Preciado, 2022 p. 35).
Essa permanência do vivido transforma o corpo em arquivo vivo, o que ele chama de somateca, um repositório de experiências políticas e afetivas em constante mutação, onde o passado e o presente coexistem.
Em sintonia com Halbwachs (2006), o autor revela que toda lembrança se apoia em quadros de referência sociais: lembrar é um ato coletivo, e o esquecimento imposto é também um instrumento de dominação. Ao reativar essas memórias silenciadas, Preciado reorganiza a partilha do sensível, no sentido proposto por Rancière (2005): redistribui o que pode ser visto, dito e sentido, devolvendo ao espaço público os corpos que a norma empurrou para fora do campo do visível. Seu discurso é, portanto, um ato de insubordinação epistemológica, que transforma a dor em linguagem e a memória em política. A memória, nesse contexto, é o que impede a colonização total do sujeito. Descolonizar o corpo é também descolonizar a lembrança, extrair da memória o medo da diferença e reescrever as narrativas que sustentam a dor.
[...] abolir o terror de ser anormal, semeado no meu coração ao longo da infância. É necessário detectar, isolar e extrair esse terror da memória. (Preciado, 2022 p. 33)
A saúde mental, aqui, passa a ser entendida como memória viva, como o direito de narrar-se fora da patologia. Lembrar-se é um ato de sobrevivência.
A epistemologia da diferença sexual, fundamento da psicanálise e da biologia moderna, já não responde às transformações do humano, está em colapso. Desde meados do século XX, os movimentos feministas, queer e antirracistas vêm desestabilizando as fronteiras entre corpo, linguagem e política. A própria ciência reconhece agora a fluidez das identidades e a plasticidade das formas de vida. Preciado observa que essa antiga epistemologia tornou-se “recalcitrante, nociva, deletéria”. Diante desse esgotamento, ele lança um ultimato: ou a psicanálise permanece guardiã da norma ou se reinventa como tecnologia de invenção de subjetividades dissidentes, capaz de despatriarcalizar e descolonizar o inconsciente.
Como apontaria Zumthor (2007), toda mutação epistemológica implica também uma transformação da escuta e da presença — o modo como o corpo produz, transmite e recebe o saber. O discurso de Preciado inscreve-se exatamente nesse ponto de virada: o corpo falante emerge como lugar de enunciação e como acontecimento sensível, rompendo o pacto entre palavra e poder.
O livro é mais do que um manifesto: é um ato de memória e reconstrução simbólica. O “monstro” é o corpo que sobreviveu à exclusão e que agora devolve ao mundo o seu arquivo vivo. Sua fala rompe os limites da clínica, atravessa a filosofia e atinge o terreno da política e da arte. Ao transformar o trauma em conhecimento, Preciado faz da lembrança um gesto de cura: lembrar-se é resistir, nomear-se é reexistir.
Em tempos de farmacologização crescente das patologias psiquiátricas e de mercantilização da mente, o texto de Preciado propõe um gesto de resistência: lembrar-se do que o sistema tenta apagar. A obra constitui um lembrete urgente de que não há sanidade sem liberdade de ser, denunciando que a manutenção do regime da diferença sexual e o delírio da normalidade custaram caro demais à saúde mental coletiva. O sofrimento psíquico nasce das estruturas que o definem, como o regime patriarco-colonial que a psicanálise ajudou a sustentar.
Para o campo da memória e da saúde mental, a contribuição de Preciado é decisiva: o corpo, visto como somateca, torna-se o lugar onde a memória se faz e se refaz, um arquivo político vivo, onde o inconsciente se escreve de novo. O "monstro" que fala é a nova forma de pensamento que emerge das ruínas do binarismo e anuncia a crise da epistemologia da diferença sexual.
Ao dirigir-se à comunidade psicanalítica, Preciado lança um desafio histórico: ou a psicanálise se despatriarcaliza e se descoloniza, entrando em um processo crítico com o transfeminismo, ou se torna responsável pela violência que o velho regime produz. A saúde mental coletiva começa, portanto, onde a memória se recusa a ser apagada, convidando o leitor a lembrar o que se foi e inventar a nova epistemologia que se pode ser.
Referências:
GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Tradução de Maria Célia Santos Raposo. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. 2. ed. São Paulo: Centauro, 2006.
PRECIADO, Paul B. Eu sou o monstro que vos fala: relatório para uma academia de psicanalistas. [Tradução de Carla Rodrigues]. São Paulo: Zahar, 2020.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Tradução de Mônica Costa Netto. São Paulo: EXO experimental org.; Ed. 34, 2005.
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
Data de Recebimento: 20/09/2025
[1] Mestrando em Comunicação e Práticas do Consumo pela ESPM/SP. E-mail: reanelisboa@gmail.com.

Paul B. Preciado confronta a Psicanálise e desafia a noção de Saúde Mental
Paul B. Preciado confronta el Psicoanálisis y desafía la noción de Salud Mental
Data de Aprovação: 31/10/2025