A demanda de Marcovaldo: apropriando-se do banco-cama na cidade


resumo resumo

Fernanda Cristina de Paula
Eduardo Marandola Junior



Apropriando

Qual o sentido, ou quais os sentidos da experiência geográfica? Esta pergunta perpassa o interesse geográfico pelas geograficidades vividas, pelas maneiras próprias das pessoas estabelecerem relações espaciais originárias que, em última análise, implicam sua própria existência (DARDEL, 2011).

A experiência nos intriga. É uma busca, é uma perseguição que nos induz, nos provoca. Experienciar o espaço, desenhando geografias, é elementar. Mas nesta frase geral, ampla, ocultam-se muitos sentidos: intencionalidades que ajudam a compreender as muitas formas de ser-no-mundo.

Interessa-nos, neste ensaio, refletir sobre os sentidos espaciais e geográficos que fundamentam, no sentido heideggeriano do fundamento sem fundo, sem origem (HEIDEGGER, 2009), estas formas de ser-no-mundo. Trata-se, portanto, de perguntar-se sobre os fundamentos geográficos da existência (MARANDOLA JR., 2012) – expressos na relação homem-espaço.

Podemos pensar nesta questão como ampla, profunda e filosófica, ao mesmo tempo que, fenomenologicamente, ela é prosaica, cotidiana e mundana. Trata-se de refletir sobre as maneiras como, na facticidade do mundo, buscar hermeneuticamente a compreensão dos fenômenos tal como se manifestam, tal como se mostram no mundo vivido. E ao atentar à facticidade do mundo, recorre-se aqui, novamente, à terminologia da analítica existencial de Heidegger (HEIDEGGER, 2012).

Se compreendermos a espacialidade como dimensão própria do Ser, a geograficidade pode ser compreendida, como propôs HOLZER (2011), constituinte de nossa maneira de ser, como modo geográfico de existência (MARANDOLA JR., 2012). Neste sentido, a relação homem-espaço, tematizada também pelos filósofos CASEY (1993) e MALPAS (2008), não se configura como um assunto de uma disciplina (como a geografia, ou a arquitetura), mas se apresenta, antes, como uma das possibilidades de compreensão dos fenômenos em sua cotidianidade e mundanidade.

A experiência geográfica, portanto, como fundamento da própria existência, possui não apenas um, mas muitos sentidos. Compreendendo a geografia como “vivida em ato”, na ontologia de Dardel (2011), as ações não se dão sobre o espaço, mas elas, propriamente, são constituintes de geograficidades. Dito de outra forma, uma ação pode ser pensada como essencialmente geográfica: constituinte ela mesma de geografias, ao mesmo tempo que é, ela também, manifestação de tais geograficidades.

O caminho para compreender, portanto, os sentidos da experiência geográfica deve ser voltar-se para elas – partir da facticidade do mundo, da sua manifestação enquanto presentação e abertura. No caso deste ensaio, nos detemos mais especificamente em perguntar sobre o sentido da apropriação na experiência geográfica. Ela, a apropriação, tem sido arrolada para explicar a constituição de territórios, não raro associada à produção do espaço (LEFEBVRE, 2000). No entanto, notamos que cotidianamente a apropriação, antes do que um conceito, está presente na nossa forma própria como constituímos nossas geograficidades. O ato de apropriar-se, enquanto ação de tornar algo próprio, poderia ser também compreendido em um sentido existencial, no contexto da constituição de territorialidades vividas? Ou, dito de outra forma, seria possível existir sem apropriar-se do espaço? Seria este apropriar-se manifesto geograficamente por territorialidades?

É procurando a manifestação de tal sentido que buscamos pensar a apropriação a partir da dimensão experiencial, tal como expressa na narrativa de Italo Calvino e um de seus célebres personagens: Marcovaldo. Em Marcovaldo ou as estações na cidade, livro tragicômico (MARANDOLA, 2010). O livro é um conjunto de contos, cômicos, centrados em Marcovaldo: proletário, residente de uma grande cidade, casado, pai de três crianças, vivendo em um cômodo pequeno, com aluguel sempre atrasado. A cada conto, que se passa a cada estação (são cinco os ciclos sazonais no livro), acompanhamos a personagem em suas tentativas sempre frustradas de encontrar e viver uma natureza (a floresta, o colher, o caçar, o som de pássaros) na cidade. Marcovaldo, a cada conto, tem por demanda a “natureza”, a vivência da natureza; demanda que nunca é suprida.

Assim, em busca do sentido da apropriação, nos inspiramos em Todorov (2010), para quem a literatura pode ser compreendida como uma forma de compartilhamento de experiências, buscando nas experiências narradas de Marcovaldo elementos para pensar o sentido existencial da apropriação e seu sentido geográfico. Nos “apropriamos” assim da narrativa literária, buscando os sentidos que reverberam da demanda de Marcovaldo: a natureza na cidade, o lugar primitivo (primitivo, pois anterior à cidade), mas que ele nem conheceu. Marcovaldo quer o lugar primitivo, a natureza. É um querer que almeja se materializar territorialmente, que depende da apropriação para que haja a possibilidade de se constituir. Neste caminho, a própria demanda é revelada por outra: a necessidade de uma cama. A cama se mostra essência do sentido de abrigo, e do ser próprio, fundamento da real demanda de Marcovaldo: espaço que o permita ser ele mesmo, que permita realização do desejo de uma certa maneira de ser, em outras palavras, território.

Marcovaldo e sua demanda: natureza e apropriação do espaço

O livro pode ser visto como uma série de contos tragicômicos que retratam uma só demanda: a busca de Marcovaldo pela natureza na cidade. Os contos se desenrolam em tentativas sucessivas e frustradas de encontrar a natureza na cidade: um cogumelo nascido nos vãos da calçada, o rio azul para pescaria, a cidade vazia transformada em natureza primitiva. Marcovaldo anseia e busca esta natureza, desejando uma outra vida, que não a sua, que não a escassez de sua existência e a ausência de sentido no repetir enfadonho de suas tarefas como operário da cidade industrial. Todas as situações dos 20 contos do livro, portanto, surgem do descompasso entre o que Marcovaldo quer e o que ele de fato encontra, resultando sempre em frustração.

O que move Marcovaldo nesta demanda, de forma incansável, é a necessidade de apropriar-se do espaço: torná-lo próprio para que ele possa ser ele mesmo. Para refletirmos sobre este sentido de apropriação, a partir desse descompasso, nos detemos no conto “Férias num banco da praça”, que se passa no verão.

Há duas imagens fortes neste conto, ligadas a dois ambientes flagrantemente opostos, que chamamos aqui de espaço do desconforto e espaço da tranquilidade (dada a força descritiva a partir da qual são apresentados e contrapostos). O primeiro é sua própria casa: pequena, quente, mal construída; o segundo é a praça que ele vê todos os dias, indo para o trabalho, mais especificamente, um determinado banco desta praça.

Marcovaldo sonha com a praça pela qual passa todos os dias após cumprir as oito horas de labor e, provavelmente, se deixar ficar para as horas extras. Ele sonha com essa praça, justamente por compará-la ao seu espaço do desconforto; esse espaço não é apenas extensão material de coisas: é composto por situações, pessoas, sons, tarefas a serem realizadas, atitudes a serem aturadas. Marcovaldo está cansado desse espaço.

Quando esse espaço é descrito, as palavras utilizadas deixam entrever uma voz irritada, reclamona, enfastiada. Esse espaço é a família: Domitilha (a esposa) sempre reclamando, o bebê Paulino (filho) sempre chorando. Esse espaço é também a casa; mais especificamente, a casa no verão: o quarto de teto baixo e quente, as luzes dos postes se infiltrando pelas persianas, os cinco (ele, a esposa, os filhos) sob o mesmo teto. E o desconforto é ainda mais acentuado porque esse é o espaço do cotidiano: os berros de Paulino, os estribilhos de Domitilha, o despertador. Ruim é ser desconforto, pior é ser um desconforto diário.

Por isso Marcovaldo sonha, e ao sonhar, deseja. Passa todos os dias pela praça e sonha com a tranquilidade que ela deve oferecer. Quando a praça é descrita, as palavras são suaves, mais rebuscadas, a descrição é claramente o oposto do outro espaço (que é a família, que é a casa, que é casa no verão, que é casa no verão com a família espremida sob o mesmo teto). O espaço da tranquilidade:

Indo a pé todas as manhãs para o trabalho, Marcovaldo passava sob o verde de uma praça arborizada, um quadrilátero de jardim público recortado no meio de quatro ruas. Erguia os olhos entre as copas dos castanheiros-da-índia, onde eram mais densas e só deixavam dardejar raios amarelos nas sombras transparentes de seiva, e ouvia o alarido dos pássaros desafinados e invisíveis nos ramos. Pareciam-lhe rouxinóis; e dizia consigo mesmo: [...] “Oh, quem me dera dormir aqui, sozinho em meio a esse verde tão fresco, e não naquele quarto baixo e quente; aqui no silêncio, não entre os roncos e conversas durante o sono de toda a família e correria de bonde na rua, aqui na escuridão natural da noite [...]; oh, quem me dera ver folhas e céu ao abrir os olhos!” (CALVINO, 2008, p. 11)

Esse espaço da tranquilidade, esse quadrado verde, é escape: da artificialidade e correria da cidade, da família, do cotidiano. Entre os sonhos com esse quadrado verde, Marcovaldo nota na praça um banquinho escondido, isolado, sob um castanheiro. “E Marcovaldo o escolhera como seu” (CALVINO, 2008, p. 11). Este banco constitui o centro do desejo de Marcovaldo: torná-lo seu se torna ideal de conforto e o objetivo de sua demanda.

Nas noites de verão, quentes, espremido no interior do sono agitado de sua família, Marcovaldo sonhava com o banco. Por um tempo, aquilo foi o suficiente para lhe oferecer conforto: a imagem da tranquilidade oriunda do espaço da tranquilidade. Até que uma noite, silenciosamente, pegou o travesseiro e se dirigiu à praça, a fim de dormir em seu banco. Ele busca materializar o conforto, apropriando-se do banco.

Marcovaldo escolhera o banco como seu, no entanto, ao chegar à praça, se depara com um casal de namorados, sentados em seu banco. Marcovaldo fica incomodado, ultrajado. Não pensa em nenhum momento em buscar outro banco, pois o seu banco era aquele, ocupado no momento por namorados. Dessa forma, resolve dar voltas pela praça, esperando para que a hora avançada da noite faça os namorados irem embora. Já neste ponto, Marcovaldo pondera que esperar para conseguir dormir em seu banco, estraga a doçura; mas ele persiste na demanda.

Marcovaldo, espreita-os para calcular quando iriam embora. Os namorados brigam:

Ele dizia:

— Mas você não quer admitir que dizendo o que disse sabia estar me provocando um dissabor em vez de um prazer como dizia acreditar?

Marcovaldo percebeu que continuariam por muito tempo.

— Não, não admito. – respondeu ela, e Marcovaldo já esperava por isso.

— Por que não admite?

— Jamais vou admitir.

“Ai”, pensou Marcovaldo. (CALVINO, 2008, p. 12)

Marcovaldo dá mais voltas, retorna a seu banco e a discussão dos namorados sobre admitir ou não se inverteu e ganhou uma complexidade hilariante. O desejo de dormir no banco arrefece, mas Marcovaldo persiste. Por que a persistência?

Quando finalmente consegue acesso a seu banco, não é este o fim de sua demanda. A cada momento um novo fator vem perturbar sua tranquilidade.

Deitou-se no banco e procurou a melhor posição para dormir. Sentia certo pesar porque, ao deitar, não possuía somente vista das copas de árvores; a natureza esperada. Entre as árvores apareciam paredes onde estavam colados cartazes, a espada da estátua do general no meio da praça e, mais ao fundo, a luz intermitente de um semáforo. Estando ruim o sistema nervoso de Marcovaldo, a luz do semáforo o impedia de dormir. Para tapar a luz do semáforo passou por diversas peripécias: andar escondido, fugir do guarda noturno, se pendurar na estátua para colocar um ramo de folhas na espada, o qual escondesse a visão do semáforo.

Quando consegue se deitar novamente, passa a escutar e se irritar com o som da solda dos operários noturnos, em uma esquina próxima. Querendo sons naturais e tranquilizantes, de novo se lança em aventura de fugas e esconde-esconde para ligar o chafariz da praça. Novamente consegue dormir. Sonha com um banquete com a família, mas a comida do banquete se transforma em carcaças de rato. Abre os olhos e percebe o caminhão de lixo passando pela rua, exalando seu cheiro e intrometendo-se no seu conforto.

O guarda noturno, depois do susto de ver um ramo surgir na espada do general e de ver o chafariz de repente ligado, pensa ser uma alucinação o vulto de alguém de quatro entre os arbustos, arrancando ramos do chão. Marcovaldo, sorrateiramente, volta para o banco da praça com um maço de ranúnculos sob o nariz, a fim de tapar o cheiro do caminhão de lixo.

O banco não forneceu a natureza e a tranquilidade esperada. Seu espaço de tranquilidade, sonhado, se mostrou outro tipo de espaço de desconforto. Longe de conseguir efetivar a sua apropriação, tornado seu aquele espaço, ele teve, em outra escala, um desconforto como o de sua casa.

Quando conseguiu, de novo, dormir já estava perto do amanhecer. Acorda com o sol estourando, impiedoso, sobre seus olhos; com as máquinas de irrigar da praça quase o molhando; com a cidade (seus sons, seus veículos, suas pessoas) bombardeando-o visual e auditivamente. Com o corpo dolorido e a vista cansada, sai correndo (se arrastando) para o trabalho.

“E Marcovaldo o escolhera como seu”

É latente o contraponto entre “escolher como seu” e “tornar seu”. A escolha de Marcovaldo não se concretizou na apropriação daquele espaço. Por quê?

Tornar seu é tomar posse, é tornar próprio, é trazer algo que não era seu para si. Quando Marcovaldo escolhe o banco como seu, ele realiza um primeiro movimento de apropriação, no campo simbólico. É a ação intencional do self em direção ao objeto que deseja, ele o busca (SACK, 1997).

Intencionalidade é a ação de direcionar-se a um objeto, sendo esta a maneira como, cognitivamente, a mente se direciona ao mundo circundante (HUSSERL, 2006). Isso significa que os objetos não estão passivos, nem nossa percepção ocorre de forma aleatória: nos direcionamos aos objetos, e eles resistem a nós; nessa relação há o acontecer fenomênico. Isso implica uma ação, que inclui a escolha e as intenções (juízos, na visão de Merleau-Ponty (1971)) de um sujeito consciente, presente no mundo. A constituição do mundo é a existência de multiplicidades de coisas, possibilidades, ações. E o sujeito é dotado de intencionalidade e volição, as quais movem nossas trajetórias, ou seja, todos temos uma ou mais demandas que orientam nossas ações e nossas relações com o mundo. Algumas são claras, outras obscuras, algumas são sequenciais, outras caóticas. Mas o lançar mão das coisas do mundo intencionalmente é uma das maneiras próprias de nos colocarmos nele, conforme mostra o filósofo M. Heidegger sobre o ser simplesmente dado (das coisas presentes independentes de seu uso) e o ser à mão (que são as coisas que estão prontas para o uso, que tem um sentido de instrumento básico) (HEIDEGGER, 2012).

A intencionalidade expressa, portanto, uma consciência voltada para o mundo, com vistas a manejar um instrumental que permite a manipulação da facticidade do mundo. Assim, a demanda de Marcovaldo, ao escolher o banco como seu e se esforçar por apropriar-se dele, pode se realizar por meio da ação que concretiza seu desejo.

A demanda de Marcovaldo é face da relação sujeito-intencionalidade-mundo. E a demanda de Marcovaldo seria satisfeita ao lançar mão deste instrumento, banco. Para alcançar a tranquilidade almejada, Marcovaldo precisa de um outro lugar, um espaço da tranquilidade (banco-verde-escape) que o permita deixar o espaço do desconforto (casa-família-cotidiano). Mas é necessário notar que o espaço do desconforto não é apenas o espaço privado, da casa: o desconforto é todo o constructo urbano, toda uma forma de ser-e-estar-no-mundo. É a cidade, com sua artificialidade, agitação, nervos à flor-da-pele, frenesi, labor. Esse espaço do desconforto impulsiona Marcovaldo à correria, coloca seu corpo em contato com sons e atitudes que lhe despertam irritação, que envolvem problemas/deveres dos quais é responsável por resolver e dos quais está saturado. E isso tudo no calor de uma habitação precária, apertada, quente.

O espaço do desconforto promove o estado permanente de descentração do self (GIDDENS, 2002), que se sente desconfortável, deslocado. Se partirmos da ontologia que nós somos nossos lugares (MARANDOLA JR., 2012), o sentido de buscar um espaço de tranquilidade, livrando-se do desconforto significa que no espaço do desconforto não é possível ser plenamente, não é possível cumprir o desejo de um modo de ser. Dito de outra maneira, Marcovaldo não consegue ser ele mesmo enquanto está em sua casa, e não consegue dormir por tudo aquilo que o incomoda lá. Por isso ele busca um outro espaço que possa ser seu lugar, onde ele possa ser ele mesmo: um outro espaço (de preferência, com características flagrantemente opostas) permitiria um outro modo de estar e de ser. Para Marcovaldo o banco (e com ele, o verde, a natureza) vai permitir ao self um estado de tranquilidade. É por isso que Marcovaldo sonha.

O sujeito, dotado de intencionalidade, baseando-se em seu conhecimento experiencial e nas suas estruturas de significados, busca entre as coisas/eventos/possibilidades do mundo uma porção do espaço que se con-forme ao seu contexto. “E Marcovaldo o escolhera como seu” (CALVINO, 2008, p. 11).

Assim, apropriar o banco corresponde a manejar o próprio (o self) de Marcovaldo. Os lugares onde nossa identidade está inalienavelmente engajada participam do nosso próprio, do self. No entanto, poderíamos perguntar: mas a casa-família-cotidiano já não é o próprio de Marcovaldo? Por que só a relação dele com o banco da praça deveria ser explorada para refletir sobre apropriar o espaço?

Para responder, ponderemos sobre o sentido dado por Marcovaldo ao banco: ele escapa de seu espaço do desconforto, durante a noite quente de verão, em busca de um lugar de repouso, e faz do banco da praça sua cama. Bollnow (2008) mostra o sentido essencial de abrigo que a cama expressa, como um possível centro da casa mais forte na modernidade, em substituição aos tradicionais fogão (hearth) e à própria mesa. Segundo o autor, hoje, com a individualização das trajetórias e a importância do espaço privado e dos indivíduos, é possível que a cama simbolize de forma mais completa, ou mais específica, a força da casa como abrigo. É na cama que nascemos e morremos, é nela que nos refazemos, a cada dia: é a cama o espaço mais íntimo da casa, onde o homem está mais vulnerável, por estar mais protegido.

Bollnow (2008) mostra como o sentido de cama resguarda o centro da ideia de abrigo, que está associada à casa. É na cama que os heróis vinham se refazer, é na cama que recobramos nossas energias, é na cama que resguardamos a nós mesmos, dentro de uma casa que resguarda. O sentido de abrigo, revelado por Heidegger (2001) no sentido do habitar (dwelling), assim, estaria simbolizado em Marcovaldo na ação intencional de fazer do banco da praça sua cama: o lugar de tranquilidade que permitiria a ele ser ele próprio.

A demanda de Marcovaldo é perfeitamente expressa pelo fazer do banco sua cama, expressando o “característico anseio das pessoas por encontrar, na cama, uma paragem inabalável dentro do mundo [...]” (BOLLNOW, 2008, p.178). Marcovaldo esperava, portanto, encontrar naquele banco-cama o pilar que centralizasse o seu mundo, dando tranquilidade.

A postura deitada está em oposição ao homem ereto, que expressa a “tensão entre homem e mundo” (BOLLNOW, 2008, p.182). Ereto, o homem precisa esforçar-se para continuar nesta posição, contra todas as forças que o impelem ao solo. Deitar-se é abandonar esta tensão, este enfrentamento; é um entregar-se, e por isso precisa ser realizado no abrigo.

Por isso é tão desconcertante, para Marcovaldo, descobrir que no seu lugar de tranquilidade, no banco transformado em cama, a tensão não cessa: ela permanece obrigando-o a levantar-se; ato combativo que expressa a permanência da tensão com o mundo, que se nega a ceder à necessidade de conforto de Marcovaldo. Ao invés do distanciamento tranquilizador do mundo, o mundo invade sua cama, tornando clara a não apropriação daquele espaço: ele continua um sonho, um desejo não completo que, assim como sua própria casa, lhe causa desconforto, impedindo-o de abrigar-se.

A cidade é um espaço hostil, que não acolhe, mas repele. Este desconforto, essência da cidade na perspectiva que Calvino desenrola no livro, impede a constituição de tranquilidade em qualquer espaço que seja concreto: Marcovaldo só encontrará refrigério em seus sonhos, e na sua demanda, ele sempre se frustrará.

O dia amanhece, Marcovaldo mal dormiu. Sem abrigo, levanta-se, e volta a enfrentar o mundo.

“‘Ai’, pensou Marcovaldo”

Por que Marcovaldo, apesar de todos os percalços, insiste em dormir no banco da praça? Ainda, se o espaço é estratégia para poder ter outra existência, por que esse peso do espaço sobre a determinação do ser? Por que Marcovaldo não tenta criar a tranquilidade no espaço desconforto?

Sobre essas questões, podemos observar uma situação paralela. O filósofo Jean-Marc Besse faz uma reflexão sobre o poeta Petrarca; o qual foi considerado inaugurador de uma perspectiva moderna (pois, dessacralizada e curiosa) sobre a paisagem. Besse (2006) trabalha sobre a carta em que Petrarca inauguraria essa perspectiva. A carta versa sobre os tormentos da alma de Petrarca (sua acídia, que seria certa indolência, certa preguiça ou indeterminada tristeza que o impede de transformar suas vontades em verdadeiras ações). Considerado tomado de uma fraqueza espiritual, Petrarca concebe que o esforço físico de subir o Monte Ventoux seria também uma ascensão espiritual. Sofrer os transtornos da subida e ter a sensação de ser recompensado, no cume, pela leveza do ar, pela experiência visual da altura (a paisagem, lá do alto): a peregrinação do corpo (subida) e o êxtase do corpo (paisagem nunca vista) corresponderiam à ascensão e êxtase espiritual (BESSE, 2006). Tal como Marcovaldo, para resolver a inquietação ou angústia, Petrarca se volta para o espaço.

No entanto, é preciso notar que Petrarca, ao chegar ao cume, não encontrou a ascensão espiritual que almejava.

A contemplação a partir do cume não cria as condições de um êxtase, mas antes reconduz o poeta a um movimento de introspecção em relação a sua própria vida e à volubilidade de seus desejos. [...] Ele não descobre, nem reencontra, no cume, o centro e a unidade de sua existência [...]. E a bem dizer, o que caracteriza a reflexão do poeta é que, longe de tornar possível uma reapropriação do próprio eu, longe de realizar a unidade do eu, ela [a topografia visual, a paisagem] deixa subsistir a distância e a opacidade (BESSE, 2006, p. 6)

A leveza das alturas e a paisagem distante deveriam gerar êxtase. Mas não geram. O que a vista de cima do Monte Ventoux faz brotar no poeta é uma reflexão em relação à separação do eu e do mundo (distante, opaco, visto de cima) e uma dupla angústia: essa gerada pela separação eu-mundo e a outra vinda do fato de não conseguir a ascensão espiritual.

Diante disso, Petrarca, a partir (e junto) das cartas de Santo Agostinho, condena o espaço. Porque a peregrinação, a viagem, a busca de lugares seriam uma fraqueza da alma, uma divisibilidade da alma. A alma forte (una) deve encontrar em si a paz de ser, e não no espaço (BESSE, 2006). Do ponto de vista de ambos, deveríamos condenar Marcovaldo pela sua demanda.

Ainda que concorde com Santo Agostinho e condene o espaço como uma fraqueza da alma, Petrarca segue viajando, buscando espaços. O poeta realça que seu constante viajar é penoso e doce; e que pararia com esse movimento perpétuo se encontrasse um lugar agradável em que colocaria todo o seu coração e sua perseverança para fazer dele seu lar (apropriar) (BESSE, 2006).

Fraqueza ou não da alma, o que permanece das considerações de Petrarca é que o espaço participa ativamente da condição existencial dos homens. Esta participação é também observada por outros autores, mas não como condenação do espaço e sim como o reconhecimento da dimensão ontológica do espaço (DARDEL, 2011; HEIDEGGER, 2012; SARAMAGO, 2008).

Por exemplo, quando Rousseaux (2005) explana sobre porque amamos alguns lugares, ele diz que essa afinidade eletiva vem do encontro e da co-incidência entre o ser-geográfico e os convites do lugar. Dizer ser-geográfico é partir do pressuposto que o espaço é inerente ao ser; e os convites que os lugares fazem são aqueles: de propor formas de estar e de se dispor o corpo, formas de interagir com os outros, convites para disposições do humor. O espaço convida. Poderíamos então dizer que Marcovaldo sonhava com o banco-cama, aceitando ou imaginando certos convites?

Petrarca afirmou que persistiria em fazer de um lugar agradável um lar, caso o encontrasse. Persistir porque seria a co-incidência entre seu ser-geográfico e o lugar, seria onde encontraria um abrigo para a paz de ser quem ele é ou quem ele almeja ser.

Marcovaldo persiste em ficar em seu banco-cama porque este também lhe parece o lugar onde encontraria paz para o que almeja ser. Porém, Marcovaldo parece compreender os lugares de forma inocente; pois, mesmo pelas tantas desventuras que lhe acometem, ele insiste na sua demanda, permanece no banco-cama, até o amanhecer.

Em todos os contos, a busca pela natureza termina em fracasso, e por isso a demanda de Marcovaldo nunca se realiza completamente. Mas talvez não seja por inocência que ele não recue de sua demanda, nem a reconheça como vã. A força que o move é a do desassossego do espaço do desconforto, mais do que a atração dos espaços da tranquilidade. Talvez seja esta força que o impele: a impossibilidade de ser onde está, e a continuidade da busca se dá pela impossibilidade do abrigo. Em outras palavras, sem conseguir apropriar-se verdadeiramente de um espaço, tornando-o seu (ou seja, ele mesmo), a demanda prossegue, indefinidamente.

Apropriações

Quando se fala do homem e do espaço, entende-se que o homem está de um lado e o espaço está de outro. O espaço, porém não é algo que se opõe ao homem. O espaço nem é um objeto exterior e nem uma vivência interior. Não existem homens e além deles espaços.

Martin Heidegger, 2001

Na quarta-capa da edição brasileira de Marcovaldo ou as estações na cidade, lemos que na medida em que o leitor acompanha Marcovaldo, acompanha também as formas como ele vai descobrindo as misérias da existência. Sua existência é miserável porque o espaço que quer apropriar, não existe – ou porque o espaço que ele tem, sua casa, não pode ser apropriado inteiramente por ele. Há miséria existencial porque lhe falta certa porção de espaço próprio.

O filósofo M. Heidegger, na conferência “Construir, habitar, pensar”, coloca o habitar (para além do morar em uma casa) enquanto traço essencial do homem. Traço essencial que diz respeito, necessariamente, à relação inalienável entre homem e espaço. Quando dizemos homens, Heidegger defende, já estamos dizendo espaço: “Não existem homens e além deles espaços” (HEIDEGGER, 2001, p. 130 – grifos do autor). Para o filósofo, habitar já é sempre um construir, é um dar instância e circunstância aos nossos traços essenciais nos espaços e lugares. Acompanhar a arqueologia do sentido de habitar clarifica a reflexão sobre o apropriar o espaço:

Mas em que consiste o vigor essencial do habitar? Escutemos mais uma vez o dizer da linguagem: da mesma maneira que a antiga palavra bauen, o antigo saxão “wuon”, o gótico “wunian” significam permanecer, “de-morar-se”. O gótico “wunian” diz, porém com clareza ainda maior, como se dá a experiência desse permanecer. Wunian diz: ser e estar apaziguado, ser e permanecer em paz. A palavra Friede (paz) significa o livre, Freie, Frye, e fry diz: preservado do dano e da ameaça, preservado de..., ou seja, resguardado. Libertar-se significa propriamente resguardar. Resguardar não é simplesmente fazer nada com aquilo que se resguarda. Resguardar é, em sentido próprio, algo positivo e acontece quando deixamos alguma coisa entregue de antemão ao seu vigor de essência, quando devolvemos, de maneira própria, alguma coisa ao abrigo de sua essência, seguindo a correspondência com a palavra libertar (freien): libertar para a paz de um abrigo. Habitar, ser trazido à paz de um abrigo, diz: permanecer pacificado na liberdade de um pertencimento, resguardar cada coisa em sua essência. O traço fundamental do habitar é esse resguardo. (HEIDEGGER, 2001, p. 129 – grifos do autor)

O habitar corresponde a espaços e lugares que permitam esse próprio: que sejam a instância e circunstância de nossos traços essenciais. Trilhando a relação ontológica homem-espaço de Heidegger, podemos colocar que um apropriar pleno do espaço corresponde a esse habitar digno. Corresponde ao abrigo da paz de ser. O espaço plenamente, satisfatoriamente, apropriado é, ao mesmo tempo, liberdade e resguardo: do ser.

O self se constitui à medida que o homem habita, intencionalmente, os espaços, tornando-os lugares. Mas há intencionalidades concorrentes. Marcovaldo, em seu itinerário tragicômico, busca espaços onde seja possível apropriar-se para habitar, erigindo o abrigo. A cama, feita no banco da praça, pode ser tão efetiva quanto a cama no castelo, mas a cidade não o acolhe. Seria pela própria praça, pela cidade ou pelas imagens de desejo que conduzem Marcovaldo em sua demanda? Em outras palavras: o fracasso na apropriação do banco está na impossibilidade da territorialização ou na inadequação da expectativa da personagem?

Quando Marcovaldo busca o banco, no início, e encontra o casal de namorados, ali a impossibilidade da apropriação é dada pela impossibilidade do ter o banco para si. No entanto, quando ele o conquista e se deita, fazendo o banco-cama, ele não consegue se apropriar por não conseguir ser-estar aquilo que almeja. Apropriação, portanto, refere-se ao ser, não ao ter, e a constituição do self está amarrada a esta possibilidade. Mas em que está amarrada esta possibilidade?

À constituição efetiva de um território apropriado.

Referências

BESSE, Jean-Marc. Ver a Terra: seis ensaios sobre a paisagem e a geografia (trad. Vladimir Bartalini). São Paulo: Perspectiva, 2006.

BOLLNOW, Otto F. O homem e o espaço. (trad. Aloísio L. Schmid) Curitiba: Ed. UFPR, 2008.

CALVINO, Italo. Marcovaldo ou as estações na cidade(trad. Nilson Moulin). São Paulo: Cia das Letras, 2008. 130p.

CASEY, Edward S. Getting back into place: toward a renewed understanding of the place-world studies in continental thought). Indiana: Indiana University Press, 1993.

DARDEL, Eric. O homem e a terra. (trad. Werther Holzer). Perspectiva: São Paulo, 2011.

GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.

HEIDEGGER, Martin. Construir, habitar, pensar. In: Ensaios e conferências. (trad. Emamanuel C. Leão) Petrópolis: Vozes, 2001.

______. Introdução à filosofia. (trad. Marco Antonio Casanova). 2ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.

______. Ser e tempo. (trad. Fausto Castilho). Campinas; Rio de Janeiro: Editora daUnicamp;Vozes, 2012.

HOLZER, Werther. A geografia fenomenológica de Eric Dardel. In: DARDEL, Eric. OHomem e a Terra: natureza da realidade geográfica. 1ed.São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 141-153.

HUSSERL, Edmund. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. 3ed. (trad. Márcio Suzuki) Aparecida: Ideias & Letras, 2006.

LEFEBVRE, Henri. Laproductiondel'espace. 4ed. Paris : Anthropos, 2000.

MALPAS, Jeff. Heidegger’s topology: being, place, world. Cambridge: The MIT Press, 2008.

MARANDOLA, Janaina. O realismo mágico de Italo Calvino e a cidade. In: MARANDOLA JR., Eduardo; GRATÃO, Lúcia H. B. (orgs.) Geografia e literatura: ensaios sobre geograficidade, poética e imaginação. Londrina: Eduel, 2010. p.257-295.

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Data de Recebimento: 20/05/2016
Data de Aprovação: 28/07/2016