A escrita subversiva de “n. d. a.”: um corpo desgarrado e grotesco
João Batista Costa Gonçalves Marcos Roberto dos Santos Amaral
[...] as palavras não são mais concebidas
ilusoriamente como simples instrumentos, são
lançadas como projeções, explosões, vibrações,
maquinarias, sabores: a escritura faz do saber uma
festa (BARTHES, 1987, p.21).
Introdução
Neste artigo, pretendemos demonstrar como escritas contemporâneas, antes que se estruturar por relações de sentido arquitetadas por ideais de clareza, linearidade e estabilidade, se orientam pela assunção de relações de sentido que os subvertem, a partir do recurso a imagens corporais e à desvinculação entre palavra e fonte original. Para tanto, propomos um diálogo entre Derrida (1972) e Bakhtin (1987). Acreditamos que este diálogo é proveitoso, porque ambos se interessam pela crítica de culturas conservadoras e, ao mesmo tempo, porque apresentam uma leitura da produção discursiva pautada na sua constitutividade de elementos marginais, não logocêntricos, e da linguagem ordinária e cômica.
Com tal proposta, destacamos que a escritura de “n. d. a.”, de Arnaldo Antunes, é uma expressão própria das formas atuais de conceber a produção escritural, enquanto ato descentralizador de formas hegemônicas de escrita, como se vê a seguir.
Segundo Derrida (1972, p. 354), a estrutura de qualquer escrita é composta por, além da ausência de destinatário, sobretudo, ausência de emissor em relação à “marca que abandona, que se separa dele e continua a produzir efeitos para além de sua presença e da atualidade presente do seu querer-dizer, mesmo para além da sua própria vida”. É nesse sentido que o autor apresenta, para delinear o conceito de escrita, a figura de uma máquina produtiva independente da ação presente do operador. Nas palavras do filósofo, “escrever é produzir uma marca que constituirá uma espécie de máquina produtiva, que a minha desaparição futura não impedirá de funcionar e de dar, de se dar a ler e a reescrever” (DERRIDA, 1972, p. 357).
Escrever seria, portanto, caracterizado pela (re)inscrição de uma marca, que essencialmente irá derivar-se, na medida em que atravesse diversos contextos de produções escritas. Essa “deriva essencial da escrita” constitui-se da prescindibilidade radical da presença do autor “original”, bem como da “não-presença do meu querer-dizer, do meu querer comunicar-isto, na emissão ou na produção da marca” (DERRIDA, 1972, p. 357).
Desse modo, a escrita seria uma expressão estruturada pela possibilidade de iterabilidade, a qual se define enquanto uma marca que pode “ser repetida na ausência de seu referente, de um significado determinado, da intenção de significação atual e mesmo de qualquer intenção de comunicação presente” (DERRIDA, 1972, p. 359). Por sua vez, uma marca configura-se como “a permanência não-presente de uma marca diferencial separada da sua pretensa ‘produção’ ou origem” (DERRIDA, 1972, p. 359, destaque do autor). Em estando o acontecimento possibilitado pela relação entre seu surgimento e a intervenção de um enunciado citado (DERRIDA, 1972, p. 368), essa separação faz com que toda escrita, enquanto uma marca que repete e rompe com enunciados alheios, faça acontecer qualquer efeito de sentido apenas por poder privar-se de um referente independente, do significado pleno, do contexto saturável.
É o que Derrida (1972, p. 360) chama de crise do sentido, destacada pelo filósofo como um estado de anomalia de uma condição estável de escrita, sendo mesmo este a sua própria possibilidade inescapável de constituição. Tal estado de crise estrutural delineia-se conforme se apresente através de uma força de ruptura, a qual é referida pelo autor como:
O intervalo que constitui o signo escrito: intervalo que o separa dos outros elementos da cadeia contextual interna (possibilidade sempre aberta do seu isolamento e do seu enxerto), mas também de todas as formas de referente presente (passado ou futuro na forma modificada do presente passado ou futuro), objetivo ou subjetivo (DERRIDA, 1972, p. 358).
Em outras palavras, a escrita, no sentido derridiano, delineia-se enquanto uma força de ruptura do “conjunto das presenças que organizam o momento da sua inscrição” (DERRIDA, 1972, p. 358). Logo, a escrita como uma estrutura de uma marca define-se pela possibilidade de isolamento e enxerto em outros contextos escriturais, possuindo um estado essencial de deriva, que se realiza pela sua condição citacional, isto é, de deriva constitutiva. Esta ocorre por entre diversas produções de escrita, que irão deslocar todos os sentidos que possam se estabilizar, fundamentalmente, a partir de pretensão de uma identidade entre escrita e fonte contextual.
A compreensão, por conseguinte, da escrita como o abandono de uma marca a uma deriva essencial que dissemina diversos sentidos pelo deslocamento de relações de “fontes”, “assinaturas” e “marcas escriturais”, estabelece um choque entre concepções logocêntricas de conceber o ato de escrever/ler, sobretudo, como um ato que implica contiguidade e homogeneidade.
Este ato estaria associado à função de representação transparente de um sentido dado por uma atividade autoral original e absoluta, uma vez que a lógica logocêntrica estimularia a compreensão de que a comunicação constituir-se-ia tão-somente como um meio de transporte do sentido, uma troca de intenções e quer-dizeres conscientes e recuperáveis (DERRIDA, 1972, p. 371).
Essa força de ruptura corporifica-se em formas de escrita que assumem visões de mundo, rebelde às visões ortodoxas, normativas, autoritárias, as quais estão associadas especialmente, nos termos de Bakhtin (1987, p. 2), às formas da cultura cômica popular. Segundo o autor, o aspecto cômico, que, nos termos da cultura popular da Idade Média e Renascimento, opõe-se, criativamente, à cultura oficial dogmática, o qual se manifesta, por exemplo, nas formas das festas públicas carnavalescas, dos ritos e cultos cômicos especiais, dos bufões, tolos, gigantes, anões, monstros, palhaços e da literatura paródica. Bakhtin (1987, p. 4) divide estas manifestações, de cujas formas heterogêneas inter-relacionadas se entrevê o aspecto cômico do mundo, em três categorias, a saber:
1. As formas dos ritos e espetáculos (festejos carnavalescos, obras cômicas representadas nas praças públicas, etc.);
2. Obras cômicas verbais (inclusive as paródicas) de diversa natureza: orais e escritas, em latim ou língua vulgar;
3. Diversas formas de gênero do vocabulário familiar e grosseiro (insultos, juramentos, blasões populares, etc.) (BAKHTIN, 1987, p. 4, destaques do autor).
Para a análise que fazemos da obra de Arnaldo Antunes é importante frisar das categorias enumeradas o princípio subjacente de incorporação de formas populares marginais, tais como linguagens e formas vulgares para o gosto canônico. Esta incorporação, de fato, organiza-se pelo que Bakhtin (1987, p. 16) observa como princípio da vida material e corporal, que se delineia a partir de imagens do corpo, da bebida, da comida, da satisfação de necessidades naturais, e da visa sexual, tematizadas exagerada e hipertrofiadamente. Destaque-se que, aqui, o corpo não se confunde com o organismo biofisiológico, nem a individualidade egoísta burguesa; é uma prática emancipadora coletiva.
Tais imagens são herança de uma concepção estética da vida prática, convencionalmente chamada por Bakhtin (1987, p. 17) de realismo grotesco, singularizado pelo princípio material e corporal unificado formalmente numa totalidade viva e indivisível alegre e benfazeja, isto é, com sentido positivo afirmativo, que indicia, fundamentalmente, formas de fertilidade, de crescimento, de renovação e de abundância, ao contrário do princípio conservador de acabamento estabilizador que exclui e abstrai formas não ideais canônicas.
Para Bakhtin (1987, p. 17, destaque do autor), “o traço marcante do realismo grotesco é o rebaixamento, isto é, a transferência ao plano material e corporal, o da terra e o do corpo na sua indissolúvel unidade, de tudo que é elevado, espiritual, ideal e abstrato”. Esse rebaixamento define-se não pela oposição formal antinômica entre alto-melhor x baixo-pior, mas pela transformação em corpo e terra, como princípio de absorção e renascimento, sendo o alto representado pela cabeça e o baixo pelas genitálias (BAKHTIN, 1987, p. 19).
Nesse sentido, uma escritura realista grotesca seria aquela que apresenta imagens cômicas orientadas para uma crítica de formas estáveis consagradas, promovendo um choque entre visões de mundo, do qual as formas marginalizadas seriam elevadas e as centrais rebaixadas, a fim de se permitir a renovação de formas de produção de sentido.
Esse choque é peculiar a expressões como a de “n. d. a.”, de Arnaldo Antunes, que se estrutura por relações escriturais que dispensam imperativos de legibilidade pautados no rastreamento de uma fonte produtora e um sentido estável, através de um percurso consagrado da tradição logocêntrica caracterizado por um modo de leitura, fundamentalmente, da direita para a esquerda e de cima para baixo, na própria folha, e de uma página de cima para as de baixo, no livro. Essa prescindibilidade é possível na medida em que esta expressão incorpora, tendendo ao paroxismo, imagens corporais de protuberâncias e orifícios. É o que problematizamos neste artigo[1].
Pretendemos demonstrar, com isso, que as relações escriturais em textos como os de “n. d. a.” exigem a desconstrução de práticas de leitura clássicas, propondo novos modos de relação com ela.
Nesse sentido, observamos, na próxima seção, a escritura de “n. d. a.”: desconstrução e citabilidade no espaço público popular, de que maneira o discurso antuniano apresenta relações de sentido segundo a ruptura constitutiva de todo contexto dado, conforme engendre outros contextos de criação discursiva também insaturáveis, bem como segundo afirmação de formas transformadoras de qualquer cânone conservador. Já na seção seguinte, “n. d. a.”: a deriva essencial e as aberturas do corpo, problematizamos a forma como esta escritura desestabiliza concepções de escrita logocêntricas e propõe alternativas contra-hegemônicas, na medida em que se apropria de movimentos de escrita e permite leitura que não os lineares; do mesmo modo que assimila imagens do princípio material e corporal.
Por fim, destacamos o fato de que relações escriturais, como as dos poemas de “n. d. a.”, descentram práticas discursivas de produção de escrita e leitura organizadas pela identificação unilateral de uma intenção autoral a um texto, além de subverterem relações de sentido, pretendidas objetivas e transparentes.
A escritura de “n. d. a.”: desconstrução e citabilidade no espaço público popular
Pode-se dizer que “n. d. a.” é constituído pela relação entre formas de práticas sociais e verbais características de cotidianos urbanos e formas poéticas, movimentando-se através da tensão entre heterogêneas esferas discursivas literárias e não-literárias. Tal posicionamento justifica-se, uma vez que sua obra, em geral, situa-se em diálogo com formas discursivas consagradas – sonetos, redondilhas, haicais – e discursos urbanos não canonizados, como pichações, murais, outdoors, fotografias, Pop Art, colagens, etc. Conforme explica Amaral (2009, p. 75), a obra de Arnaldo Antunes “surge já imersa em uma atmosfera em que a noção de especialização encontra-se em xeque, como resultado justamente dessa mistura de linguagens que tomou forma e corpo na década de 1960”. Silva (2014, p. 31) observa, a este respeito, que Antunes “vive proliferando linguagens, sejam elas a do barulho, a do silêncio, da imagem, da poética, do palco, da música, do livro ou de outros variados modos”.
Nesse processo de reflexão sobre os limites da linguagem e suas práticas discursivas, destacamos que Arnaldo Antunes tem uma preocupação singular com temáticas que envolvem a discussão sobre o status (social, cultural, místico, político, acadêmico) do poema e do sujeito que a faz, sobremaneira, a respeito de quem pode fazê-la e qual material pode ser utilizado para tal fim, o que se vê, especialmente, em “n. d. a.”, sob diversas formas, desde a inclusão da assinatura de uma fotografia, a retomada da parte de um poema em outro, até a reprodução quase integral de texto/imagem alheia, sobretudo, os encontrados nos espaços urbanos marginais.
A obra “n. d. a.” é composta por três seções, a saber, “n. d. a.”, “cartões postais” e “nada de dna”. Esta seção, inclusive, já havia sido publicada no livro “Como É Que Chama O Nome Disso”, pela Publifolha, em 2006. Com efeito, há uma espécie de recursividade entre os títulos que gera diversos efeitos semióticos que operam a subversão de sentidos estabilizados.
As interações entre esferas discursivas que se estabelecem a partir do termo “nada”, por exemplo, com a expressão inglesa non-disclosure agreement (acordo de não divulgação), atravessadas pelas siglas “dna” (ácido desoxirribonucléico) e “n. d. a.” (nenhuma das alternativas – a orelha/poema do livro), nas quais as mesmas letras, a pontuação e o espaçamento apresentam efeitos de ruptura de sentidos dados.
orelha (ANTUNES, 2010)
A seção “Cartões Postais”, por sua vez, é formada por uma coleção de enquadres de imagens fotografadas nas ruas da cidade[2], que são inscritas no discurso poético, de modo a permitir a criação de novas relações de sentido. Esta seção, em diálogo com as outras duas, promove constante instabilização dos limites formais dos modos de produção discursiva da escrita poética em tensão com outras escritas distintas, como as midiáticas ou as das artes plásticas ao mesmo passo que ocasiona uma legibilidade descentrada. Esta instabilização estilística escritural configura-se pelo enxerto no poema de marcas retiradas de suas fontes.
Nesse sentido, é interessante o fato de que diversos poemas desse livro são enxertados, citados em outros. É o caso da produção da própria capa, cuja arte se utiliza do poema “ponto e vírgula”.
Eis o projeto de capa:
capa, lombada e contracapa, ANTUNES, 2010
Os recortes de imagens não são o único caminho estilístico que explora a deriva essencial da marca escritural. Este recurso repete-se com temas e com uma espécie de desgarramento/trazimento de partes de alguns poemas para outros. Ilustra-o a estrofe inicial do poema “pra continuar” (ANTUNES, 2010, p. 71) e os poemas “fora dentro” (ANTUNES, 2010, p. 35) e “pedra cristal” (ANTUNES, 2010, p. 78), respectivamente, mostradas a seguir:
sai para andar, anda.
vai, volta ao mesmo lugar,
não adianta, cai
parece que vai desmaiar,
levanta, fica no ar
descansa, cansa
pra continuar. (ANTUNES, 2010, p. 71)
pedra cristal. (ANTUNES, 2010, p. 78)
Todos eles tratam da imagem/tema (marca) “dentro e fora”. Já o poema “galinha, ovo” (ANTUNES, 2010, p. 29) retoma tanto estes temas, quanto o recurso aos sinais gráficos ponto e vírgula.
galinha, ovo. (ANTUNES, 2010, p. 29
Os poemas “tu do eu” (ANTUNES, 2010, p. 42) e “yousoyyou” (ANTUNES, 2010, p. 43) são uma espécie de tradução de si.
tu do eu. (ANTUNES, 2010, p. 42)
Yousoyyou. (ANTUNES, 2010, p. 43)
São múltiplas as possibilidades de ler estes poemas. Todas elas se delineiam segundo a possibilidade de citabilidade intrínseca de toda marca, a qual, segundo Derrida (1972, p. 362), rompe todo contexto saturável dado, engendra infinitamente outros contextos não menos insaturáveis, isto enquanto constitutividade geral da escrita e enquanto afirmação positiva (BAKHTIN, 1987) de formas que renovem qualquer cânone conservador.
Assim, a escrita constituída no poema antuniano em “n. d. a." apresenta-se explorando sua constituição inescapável de escritura, no sentido derridiano do termo. Tal constituição delineia-se na medida em que a escrita não se define tão-somente como antítese da fala, mas, antes de tudo, como uma inscrição de uma marca, o que dispensa tal oposição.
Nesta escrita poética, certamente, a desconstrução, o deslocamento de formas consagradas de conceber conceitos históricos como o de escrita – e leitura – sugere um descentramento dos próprios limites entre uma marca e seu contexto autoral.
Podemos percebê-lo conforme a constituição dessa obra oriente-se para a possibilidade de citação de uma marca, que, por ora, caracteriza um poema, em outro. Esta “citabilidade” opera-se a partir da indistinção que se estabelece nelas entre a não-vinculação absoluta de uma assinatura a uma marca, assim como da determinação de um sentido estável, isto porque são concebidas na sua dimensão escritural que se dissemina[3].
Exemplo dessa relação está no que se pode chamar estilística de deriva de marcas-temas recorrentes na obra. De fato, sua escrita constitui-se conforme se desestabeleça a relação entre a marca e a sua fonte, origem, assinatura, radicalizando esta relação ao ponto de não se precisar captar a legibilidade dessa marca de acordo com os imperativos da relação com uma pretensa originalidade e consciência absoluta da sua produção.
Então, nesse processo de reflexão sobre os limites da linguagem e suas práticas discursivas, tal escritura apresenta uma preocupação singular com temáticas que envolvem a discussão sobre a possibilidade de produção e leitura do poema, em especial a respeito dos imperativos decorrentes da relação entre quem produz, a situação de produção, o material que pode ser utilizado e a estrutura que permite a legibilidade dessa produção.
Especialmente em “n. d. a.”, isto ocorre sob diversas formas, seja: 1) a incorporação integral ou não de um texto ou imagem de um quadro, mural, grafite ou poema; 2) a inclusão da assinatura de outro autor (um fotógrafo) que não seja o poeta; 3) até a retomada da parte de um poema em outro, de Antunes ou não. Estas formas estão, respectivamente, ilustradas, nos poemas abaixo:
cartão postal (ANTUNES, 2010, p. 159)
dna. (ANTUNES, 2010, p. 169)
ponto e vírgula. (ANTUNES, 2010, p. 28)
galinha, ovo. (ANTUNES, 2010, p. 29)
Essa discussão sobre as possibilidades da criação poética é organizada, peculiarmente, por causa da assimilação de imagens alheias, estranhas a formas canônicas de poemas[4], desafeitas às imagens vulgares de ovos e galinhas, fachada prosaica de cemitério, patas de inseto, escrita fragmentada, etc. Todas estas imagens são vulgares, marginais ao centro ortodoxo do gosto clássico, e sua rebeldia a tal centro estabelece-se, nos termos bakhtinianos, por uma postura cômica transgressora de cânones oficias conservadores que a cultura popular permite. No caso desses poemas, através de sua, por assim dizer, “sintaxe ordinária verbo-visual”.
Destaque-se que discursos cotidianos, como os que vemos em muros, marquises e outdoors nos espaços públicos populares da cidade, apresentam-se com sobreposição de imagens, textos; enunciados anônimos; sintaxes truncadas, prolixas, incompletas; ruídos marcados – à semelhança da lógica do realismo grotesco – pela contradição criativa afirmativa com imagens hegemônicas de texto, principalmente, as de caráter claro e sério.
Especialmente, no que toca à composição dos poemas estudados, a representação que se faz desta, em “n. d. a.”, é a da que procura se avizinhar, fundamentalmente, da fala coloquial, encontrada, nos diversos espaços da cidade, no que ela tem de característico das formas de interação verbal e social urbanas. Esta composição se estrutura na assimilação de diversos gêneros populares urbanos, como os publicitários, gêneros advindos de outras artes, de conversas familiares, etc.
Nesse processo criativo, as formas populares vulgares promovem uma abertura para criações alternativas, na medida em que encontra seu material naquilo que é mais comum nas interações coloquiais urbanas, o desvio criativo, ruído de formas canônicas. De fato, há uma busca, no discurso antuniano de “n. d. a.”, por modos de organização do discurso poético institucional, a partir da sua relação com signos cômicos populares.
Certamente, relações hierárquicas conservadoras discursivas, como as posições de dominância entre narrador e personagem, letra e imagem, poema e prosa, erudição e coloquialismo são redimensionadas nos poemas que ora se analisam.
Findas as considerações a respeito do caráter transformador de ordens dogmáticas nos poemas estudadas, passamos, a seguir, à reflexão sobre a desestabilização da concepção oficial de escrita.
“n. d. a.”: a deriva essencial e as aberturas do corpo
Os poemas estudados podem ser descritos (disseminada, sempre escapando ao horizonte da unidade de sentido (DERRIDA, 1972, p. 364)), enquanto uma experiência de vertigem, por contada oscilação entre marcas e diversas assinaturas caracterizar suas composições. Também porque implica o desfalecimento de lógicas tradicionais de experimentar conceitos históricos como o de escrita, especialmente no que tange seu exercício de produção e legibilidade, que, como se sabe, pretende-se que se desenvolva, unicamente, através de um percurso de leitura linear partindo de cima-esquerda para direita-abaixo, verificando uma relação de autenticidade intencional.
Estes poemas podem ser descritos, ainda, enquanto experimentação do valor positivo de formas que indiciem sentidos de fertilidade, de crescimento, de renovação e de abundância, através da absorção e subversão de signos conservadores e engessados,pelos princípios do realismo grotesco, que estão integrados afirmativamente às manifestações populares dos espaços públicos.
Em “n. d. a.”, os movimentos lineares são deslocados, pois as marcas a que se recorre nesses diversos poemas movimentam-se em deriva, isto é, não necessitam de seguir um caminho determinado aprioristicamente, nem uma linearidade homogênea. Ao contrário, estes poemas permitem sua legibilidade pela persecução dos rastros de cada marca, que surgem de diversas direções, acima de tudo, as descontínuas.
Por exemplo, o tema, a marca, do “ovo” pode ser lido partindo-se da leitura da contracapa, passando pela leitura do poema na página 29, indo para a capa e tornando à página 28 (ou segundo qualquer outro movimento). É possível, assim, abrir a esmo o livro e folhear seus poemas. Neste caso, é provável que se perceba a retomada do tema/marca da “circularidade” no poema “cromossomos” (ANTUNES, 2010, p. 197) – a seguir –, nos poemas “tu do eu” (ANTUNES, 2010, p. 42) e “yousoyyou” (ANTUNES, 2010, p. 43) e no poema/orelha do livro, que traz a ideia de circularidade/repetição/transformação – apresentados, acima:
cromossomos. (ANTUNES, 2010, p. 197)
Neste poema, tem-se o termo “cromossomos”, com o qual é possível se vê/ se lê “cromo”, “(h)omo”, “osso”; e, concomitantemente, temos o termo “cosmos”, que abre a possibilidade para se vê/ se lê “osmo”, que pode ser o radical do termo “osmose”. Assim, a (de)composição destes termos e seus sentidos promove, ao mesmo tempo, a sua fusão, por conta da aglutinação das formas gráficas e lexicais, o que, inevitavelmente, remete para o constitutivo imbricamento de diversas esferas de produção de sentido, a que estes poemas recorrem para se organizarem e para estabelecerem o diálogo entre suas formas poéticas e as da cidade. Desse modo, a circularidade e a transformação das práticas sociais são tematizadas, por exemplo, no contato tenso entre seus seres humanos/homo, suas semelhanças e diversidades, suas perspectivas – cores/cromo, seus corpos/osso e mundos/cosmo.
Pode-se, ainda, ler o poema “ponto e vírgula” (parafraseando os versos “de ponto a ponto/de alto a baixo/da base ao topo”) partindo dos sinais gráficos dispostos ao longo do texto, sem necessariamente respeitar o movimento cima-esquerda-baixo-direita, para se apropriar dos efeitos – vertiginosos – da relação entre os grafemas (, ), ( . ).
Dessa forma, pode-se partir do último verso “galinha, corvo” e saltar-se para o primeiro “galinha, ovo” e tomar as “estrofes” “.” e “,” ou os versos “e de n/ovo”, a fim de perseguir a constitutividade dessa escritura marcada pela deriva que os traços, rastros – letras e desenhos – assumem, fazendo surgir efeitos de sentido não-convencionais, não-logocêntricos, enfim, descentrados, marginais e/ou grotescos.
A leitura desses poemas pode, além disso, ser atualizada pela citabilidade que uma marca pode ter, em se desgarrando de seu contexto momentâneo e atravessando outros contextos que, porventura, lhe transformarão algum sentido. Com efeito, considerando, de acordo com Bakhtin/Volochínov (2014, p. 203, destaque nosso), que “toda a atividade verbal consiste, então, em distribuir a palavra de outrem e a palavra que parece ser a de outrem”, a rebeldia desses poemas decorre justamente desse movimento constitutivo de desvelamento da “aparente” relação unilateral entre a palavra e o seu autor, o qual, em última instância, apenas, pretende esta palavra como sua, não podendo nunca absolutamente dizer: esta palavra é minha, tão-somente.
Desse modo, o tema da abertura, do fechamento/ponto e vírgula, do dentro e fora vão descentrar as relações entre assinatura e marca que se estabelecem nas escrituras de “n. d. a.”. Por exemplo, a legibilidade do cartão postal da página 159 (apresentado acima) pode ser “contaminada” pelos sentidos de cada acontecimento proporcionado pela citação de tal tema nos vários poemas que compõem o livro, apoiando-se justamente na constituição de um estado de desgarramento de seu contexto, da fonte e, por conseguinte, dos sentidos estáveis.
A forma da abertura é corporificada verbo-visualmente pelo recurso a imagens e formas gráficas redondas, como se vê no poema “cromossomos”, “tu do eu”, “yousoyyou”, “ponto e vírgula”, bem como a imagens e formas pontiagudas, como o “desenho” triangular que as palavras formam nos poemas “galinha, ovo” e “fora dentro”, além das protuberâncias das “patas” em “dna”. Essas formas são comuns às extremidades do corpo, as quais estão associadas a zonas erógenas, de fertilidade, o que se associa à renovação das formas vivas.
Nesse sentido, a imagem do cemitério, juntamente com a construção sintática nela inscrita, assume um sentido característico do realismo grotesco de indistinção entre início, vida (abc) e fim, morte (do cemitério), que afirma as vicissitudes da existência oscilando entre vida e morte.
Neste poema, o recorte da fachada de um cemitério – realidade no horizonte produtivo do universo de necessidades sociais (p. ex. sepultamento) – perde seu valor de contiguidade metonímica e ganha, por conta da impossibilidade da visão total do cemitério, uma realocação dos sentidos do sintagma “cemitério do abc”, de cuja locução preposicional “DO ABC”, surgem novos sentidos, marcados por um tom grotesco e irônico, a saber: o da morte; o do espaço de descanso e memória; juntamente com o de despojos do alfabeto/palavra/discurso.
A locução permite a compreensão de que o “abc” – palavra/discurso/poema – pode ser quem tem a posse do cemitério, sendo quem recebe aquele que faleceu. Nesse caso, palavra/discurso/poema seria uma espécie de lugar de sentido que se constitui por despojos, ruínas do que tivera anteriormente vida, bem como o lugar para onde se vai para rememorar, reconfortar-se, lamentar, esconjurar ou homenagear esta vida. Também esta locução permite a compreensão de que “abc” seja o sepultado deste cemitério. Nesse caso, o “abc”/palavra/discurso/poema seria um cadáver do cemitério para onde se pode ir lamentar, relembrar, etc. sua vida passada. Portanto, neste poema, é construída uma imagem grotesca da produção discursiva, a qual admite e elogia sua constitutividade criativa obscura e acidental.
O limite tênue e renovador entre vida e morte, como forma criativa, ocorre também no poema “galinha, ovo”, em que efeitos de sentido através da relação entre os signos, marcas, “galinha” (corpo vivo), “ovo” (nascimento), “corvo” (morte), “.”, “,”, “linha”, “curva” (zonas limite) a compõem de maneira que “.” (fim) e “,” (recomeço) estejam ambivalentes e antes que se excluem formem uma unidade em metamorfose (galinha, ovo-galinha, corvo).
A forma deste poema “estranha” a um cânone conservador expressa o que Bakhtin (1987, p. 22-3) destaca quando diz que as imagens “ambivalentes e contraditórias, parecendo disformes, monstruosas e horrendas, se consideradas do ponto de vista da estética clássica, da estética da vida cotidiana preestabelecida e completa” são imagens do corpo em desenvolvimento, longe de alguma maturidade plena, formas não depuradas “das escórias do nascimento e do desenvolvimento”, numa forma sempre no limite do nascimento e da morte, para que sempre haja um corpo que dê lugar a outro corpo.
Em geral, pode-se dizer que nestes poemas há não a negação da dimensão informativa da linguagem, a possibilidade de uma leitura linear ou do reconhecimento de uma letra ou desenho, ou, ainda, que um sentido não esteja ancorado numa fonte, mas, especialmente, há a afirmação de que esta possibilidade não é nem o único caminho de legibilidade, como também não é o principal.
Sua apropriação, embora participe da produção da possibilidade de leitura, atua em conjunto com um efetivo trabalho em intersecção, sobreposição e transformação de sentidos dados por meio do deslocamento de formas conservadoras de estabelecer relações de sentido.
Derrida (1972, p. 363), inclusive, destaca que o conceito de comunicação não é apenas o “clássico”, de ordem apenas semiótica, linguística e simbólica; antes de tudo, é a comunicação de um movimento que produz indefinidamente efeitos sobre os sujeitos com quem trava contato. Tal movimento é possível graças a sua possibilidade estrutural de perpetuar-se conforme se descentre.
De fato, a escrita de “n. d. a.” arquiteta-se enquanto exploração de sua constitutividade de construção marcada por uma atividade que se organiza em função de explorar a contradição, aproximação e distanciamento de sentidos, que vão sendo disseminados em diversas formas discursivas trazidas para dentro daquilo que o poema pode reivindicar como poético. Tais contradições, aproximações e distanciamentos são essencialmente encaminhados para a estranheza, por força mesmo de seu caráter de iterabilidade, de ruptura e repetição, impossíveis de serem dissociadas formalmente, de tendência para uma unidade que nunca pode ser uma identidade consigo mesma (DERRIDA, 1972, p. 359).
Assim, acontece – estabelece-se um ato em relação ao proferimento de uma marca citável e citada – uma busca por formas que desestabilizem concepções de escrita logocêntricas e proponham formas de escrita marginais a diversos cânones semióticos. Como se viu, um dos principais cânones que os poemas de “n. d. a.” desconstrói é a imprescindibilidade da absolutização de uma assinatura sobre uma escrita, na medida em que se apropria de imagens do princípio material e corporal, tal qual descrito acima.
Considerações Finais
As relações escriturais que tecem os poemas de “n. d. a.” estabelecem-se explicitando a dimensão essencial de toda escrita de ser uma marca que se abandona para diferentes “impregnações” de assinaturas singulares, ao longo de seus processos iteráveis de produção de sentidos. Nos poemas estudados, os sentidos de diversos temas emergem através de sua repetição e transformação por entre si.
Seus efeitos de sentido, portanto, caracterizam-se pela disseminação. Logo, sua legibilidade estrutura-se de acordo com os sucessivos movimentos de desgarramento de uma “fonte original” e sua atualização em outras assinaturas.
A leitura dessa obra descentra a prática logocêntrica de se ler, a qual pressupõe uma atividade teleológica determinada aprioristicamente, linear e homogênea, cuja ordem se configura de acordo com um sentido pleno e uma consciência absoluta, adquiridas pela vinculação a uma autoria única e evidente, original.
Sua leitura, então, propõe novos movimentos que prescindem do tradicional esquerda-direita-cima-baixo, bem como apoia a prática de leitura como forma de crítica das diversas possibilidades de relação entre assinaturas distintas e uma marca. Enfim, tal leitura implica uma relação escritural, no sentido derridiano do termo.
Acreditamos que esta peculiaridade organiza-se, nestes poemas, devido ao diálogo radical com a cultura cômica popular, nos termos bakhtinianos, na sua dimensão do realismo grotesco, com seu princípio material e corporal orientado para a compreensão da unidade viva da cultura como existência renovadora de cânones conservadores, os quais buscam expurgar e estigmatizar, em favor das práticas discursivas hegemônicas, as formas não oficiais, não objetivas e não sérias, ato este que marginaliza os sujeitos e os modos de existências dessas formas.
Referências
AMARAL, J. F. B. Arnaldo Antunes: o corpo da palavra. Dissertação. (Mestrado em Letras Vernáculas, Literatura Brasileira). 2009. 111f. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
AMARAL, M. R. S. Análise dialógica dos signos ideológicos verbo-visuais em poemas da obra “n. d. a.”, de Arnaldo Antunes. 2017. 217 f. Dissertação (Mestrado acadêmico em Linguística Aplicada) – Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada, Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2017.
ANTUNES, A. n. d. a. São Paulo. Iluminuras. 2010.
BAKHTIN, M. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1978.
BAKHTIN, M, VOLOCHÍNOV. V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2014.
BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1987.
DERRIDA, J. Assinatura acontecimento contexto. In: Margens da Filosofia. Papirus Editora, Campinas, São Paulo, 1972.
SILVA, E. R. G.; SILVA, S. S. A memória devoradora no poema de Arnaldo Antunes. In: IV SEMINÁRIO NACIONAL LITERATURA E CULTURA, 4. 2012. São Cristóvão, SEAnais eletrônicos...São Cristóvão, SE: GELIC/Universidade Federal de Sergipe, v. 4. Disponível em: <https://www.yumpu.com/pt/document/view/30554739/a-memoria-devoradora-na-poema-de-arnaldo-antunes/8>. Acesso em: 10 maio 2017.
SILVA, M. G. V. Elementos da cibercultura e suportes performanciais em 2 ou + corpus no mesmo espaço, da Arnaldo Antunes. 2014. 122f. Dissertação. (Mestrado em Letras). Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2014.
Data de Recebimento: 17/12/2018
Data de Aprovação: 14/02/2018
[1] Note-se que esse movimento não linear ou não padrão de leitura, que estamos estudando nos poemas de “n. d. a.”, não é uma originalidade de Arnaldo Antunes, embora seu desenvolvimento seja bastante original. Esse movimento teve no movimento estético-literário do Concretismo brasileiro, pode-se dizer, sua consagração. Antunes é um autor que dialoga fortemente com essa tendência poética. Inclusive, segundo Silva e Silva (2012, p. 12), “Antunes se reconhece como herdeiro da antropofagia oswaldiana, do Concretismo e da Tropicália”.
[2] Ao final desta seção, desenvolvemos mais a relação dos poemas estudados com as imagens da cidade (que circulam em variados contextos e espaços) no que ela tem de fundante de seus diversos efeitos de sentidos. Para um estudo mais aprofundado desta relação, cf. Amaral (2017).
[3] Arnaldo Antunes é um poeta que discute, especialmente, em sua obra, os processos discursivos de construção do poema, tanto o seu, quanto o poema em geral, de sorte que recortes e releituras de obras (dele e de outros poetas) anteriormente publicadas são utilizados para compor suas novas obras. Este expediente retórico está presente nos poemas de Arnaldo desde o início de sua carreira literária.
[4] Por forma canônica de poemas, compreendem-se aquelas que se valem de formas poéticas compostas por versificação canônica (sonetos, redondilhas, etc.) e/ou não-canônica (versos e estrofes livres), enformada, sobretudo, por palavras, num suporte textual – a página em branco – que, tradicionalmente, pouco interfere na construção do sentido poético.