Ao meio dia





Maria Lúcia Nardy Bellicieri[1] (ilustrações)

Fernanda Nardy Bellicieri[2] (texto)



Meio-dia e não quis enxergar.

Protegeu-se de lentes baratas, que ao longe, até passariam por marca de grife, dessas de vender conceito e modus vivendi.

Sol sobre as cabeças, e quis tolerar-lhe a presença.

Exceto pelas sombras espalhadas, multiplicando multidões e a temperatura febril; o ânimo da rua era impassível. Inverno ou verão, as expressões, percursos e princípios era sempre os mesmos. Nenhuma alegria sobressalente pelas roupas mais libertas; nenhum pedinte em menor auto-flagelo; nenhuma aflição poupada. Tudo mais claro e contrastante à luz radiante do meio-dia.

Será que era aquela a intenção do Sol? Sadismo? Melhor mesmo proteger-se dos raios UVB, ultraviolentos. Iluminar o escurecido é quase crime. Sol condenado...

Talvez a cidade não quisesse mostrar-se assim tão nua. Total invasão de privacidade!

A cidade combinava com noturno, quando se podia atentar mais aos faróis, aos luminosos, aos medos de assalto e afins. A cidade estaria protegida de julgamentos; e os mais lúcidos, seguros de não serem acometidos por consciências contundentes.



O meio-dia era sacana, com seus meios-termos e permissividades de convivência surreal: em uma mesma calçada, flores e pestes. Não, não ratos; homens rastejantes.

Se meios-dias prestassem, não admitiriam tal convivência.

Então os óculos escuros, os mesmos de Raul, tinham outro significado: eram mais que proteção; substituíam lágrimas.

O nó na garganta crescendo de amídalas. A porra dos óculos estavam sendo menos eficientes do que esperava. Ar restrito, de poluentes e alvéolos semi-produtivos.

Ao meio-dia, tudo a meio-termo; nem corpo capaz de ser involuntário. Cada célula deveria ser vigiada; caso contrário, a meia-vida seria instituída.

Não queria mais viver ao meio-dia, o meio-termo da meia-vida, a meia-foda das lentes cinqüenta por cento funcionais. Ultraviolentas... Talvez as lentes compartilhassem da tramóia luminosa de fazer saltar verdades permissivas de flores e pestes. Viventes de mesma calçada.

Nó garganta. Tinha a impressão de que seria necessário bisturi. Impressão de que seria necessário arrancá-la.

E foi uma gota, evaporada assim que lhe tocou os cabelos ardidos; que nem chegou a refrescar pensamentos. Uma ponta indolor de um úmido interrogativo. Aonde, afinal, haveria espaço sobrevivente fluido, no desenho da cidade? E a gota parecia pura; ao menos o tocara como bênção. Uma gota incidindo pensamentos.

Olhou para cima, esquecendo-se do meio-dia a pino. Encarou lentes ultraviolentas, a intensidade certeira dos meios-termos de Sol; as verdades parciais da luz, admitindo convivência compartilhada, entre seivas e cinzas.



Foi espantoso; esperava visões de fim, punição de cegueira absoluta. Esqueceu-se de que talvez sóis fossem imprevisíveis, apesar de esconderem-se em repetitivos crepúsculos e entardeceres. Sóis jamais projetam as mesmas sombras.

E Sóis não antevêem cenários não iluminados. Aquele meio-dia chorava, gelo seco cutucando idéias sob lentes. Lágrima sobressalente. Talvez não tivesse sido proposital expor, ao meio-dia, felicidades forjadas daquela gente, cinqüenta por cento oxigênio, cinqüenta por cento fuligem. Apenas um terço de alvéolos.

Um Sol decepcionado, quase eclipse voluntário. Um luto e única gota gélida escolhendo, ao acaso, o observador que tentava poupar-se das visões meio-flores, meio-pestes.

Um Sol envergonhado, desculpando-se por dar a luz às aberrações desvendadas às doze horas. Meio percurso.

Todos aqueles urbanos na mira de um Sol desolado; guiados às cegas e lentes violentas, por uma estrela desorientada. Afinal, fora em parte responsável pela denúncia dos meios-termos da justiça humana. Afinal, fora frustrada a tentativa de colorir o caos. Uma pena... O Sol não esperava falhar.

Pingou única gota; e se chovesse em milhões, seria indiferente. E se chovessem milhões, ainda assim se cumpriria a miséria. Inverno ou verão traziam os mesmos passos, percursos e expressões.

Por isso o Sol poupou-se: uma única gota. Escondeu-se entre nuvens e qualquer outro pretexto. Apagou-se, empalidecendo em alguns tons a paisagem.

Ninguém notou, exceto o observador escolhido, escorrido pela gota herdeira.

O homem iluminou-se; entendeu, agradecido, as mazelas de luzir. Sentiu-se até aliviado; afinal, seu problema único eram os olhos mais hábeis. Qualquer cegueira inventada, ou mesmo pálpebras, funcionariam. Já o Sol, pobre Sol... e sua culpa de fazer gelar. A.Sina: expor, indefinidamente, flores e pestes, equivalentes, sobre o mesmo concreto.





[1] Artista plástica e ilustradora, com ênfase em criação de personagem, ambiência para performances com linguagem projetiva e logotipia (suportes analógico e digital), graduada pela FAAP. Trabalho de pesquisa e produção especialmente voltados à transcrição entre as linguagens verbal e imagética, através do desenho. Email: fernandavns@yahoo.com.br

[2] Graduada em Publicidade e Propaganda - hab. Marketing pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Mestre e Doutoranda em Educação, Arte e História da Cultura pela mesma instituição, atriz, bailarina e escritora. Professora-pesquisadora voltada ao trânsito entre linguagens e códigos, em diferentes suportes, com ênfase em hipermídia e corpo