É intrigante constatar que, décadas à frente da Constituição Federal de 1988, quando se delineou caminhos na direção da Política Urbana Brasileira, o cenário das cidades ainda é constituído de fenômenos recorrentes de exclusão socioespacial, supervalorização de regiões urbanizadas em detrimento de periferias carentes de condições básicas de infraestrutura e serviços urbanos, entre outras “mazelas”. Como corolário, identifica-se os 14 anos decorridos desde a aprovação do Estatuto da Cidade (Lei federal n. 10257/01), considerado, igualmente, um significativo avanço na regulamentação dos artigos 182 e 183 da Constituição brasileira, por subsidiar as gestões municipais na implementação de instrumentos urbanísticos de controle dos problemas cotidianos das cidades.
Nesta conjuntura se insere o livro “Para Entender a Crise Urbana” (2015), obra mais recente de Ermínia Maricato que abarca 3 textos e uma entrevista da autora, com formatos diversificados, porém, conteúdo análogo. O primeiro artigo intitulado “Cidades e luta de classes no Brasil”, segundo a autora, tem caráter acadêmico no sentido da revisão bibliográfica que o embasa e, também, um viés empírico propiciado por sua vivência e articulação com movimentos populares. Em relação à estrutura deste capítulo, Maricato (2015, p.11) considera “três tempos”: a síntese de análises da cidade como mercadoria resultante das forças capitalistas; questões específicas da cidade no capitalismo periférico; o cenário recente da política urbana brasileira, em especial, diante das transformações ocorridas a partir do período ditatorial até a Reforma Urbana.
Maricato (2001) anunciara o que em seu mais recente livro denomina “a crise urbana”, debruçando-se sobre questões que tangenciam o cotidiano nas cidades como: as controvérsias nos processos de Planejamento Urbano, particularmente, nos planos diretores e/ou estratégicos; a emergência – na ocasião – de intervenções de reabilitação dos centros urbanos; algumas referências de participação popular. O Orçamento Participativo é uma destas referências contextualizadas por Maricato (2001, p. 184) como “alternativa paliativa ou construção da democracia participativa?”.
Na obra “Para Entender a Crise Urbana”, a temática da participação é realimentada pela autora, no contexto da inclusão de referências de administrações inovadoras, aliás, com repercussão internacional. Entretanto, ao entender a crise urbana, o leitor é capaz de ponderar que há interpretações equivocadas acerca do desenvolvimento nas cidades brasileiras. Na visão da autora, a busca desenfreada pelo status de cidades desenvolvidas, tem acarretado ônus significativos por não se focalizar o provimento de habitação e a destinação democrática da terra urbana.
Nesta esfera de análise, a obra retoma a distribuição desigual das camadas sociais no solo urbano, refletindo-se sobre a segregação socioespacial característica dos processos de urbanização excludentes no Brasil. Deste modo, a terra urbana, bem como a habitação, assume a condição de mercadoria, consolidando a promoção de renda aos grupos que se beneficiam da lógica deste mercado. Cita-se, no primeiro texto de “Para entender a Crise urbana”, a visão de Harvey (2005), quando aborda o valor de uso e o valor de troca que a propriedade urbana possui. Na condição de uso, o território da cidade tem valor imensurável, por se tratar de uma necessidade básica do cidadão e, sincronicamente, o mercado imobiliário comercializa esta mercadoria tendo, como base, seu valor de troca.
Observa-se, portanto, que a dinâmica das transformações no solo urbano ocorre por indução, ainda que haja manifestações espontâneas de uso e ocupação através de atos irregulares, enquanto soluções emergenciais decorrentes da primordialidade de se “viver no urbano”. Maricato (2001, p.16) menciona que tais manifestações promovem um “gigantesco movimento de construção de cidade” imbuído do atendimento às necessidades de sobrevivência da população e “bem ou mal, de algum modo, improvisado ou não” esses habitantes moram em cidades.
Precedentemente, a autora trouxe à tona a problemática desses fenômenos no âmbito das metrópoles, em particular, na cidade de São Paulo. Em sua obra “Metrópoles na Periferia do Capitalismo” (1996), abordou a inter-relação entre a desigualdade social enquanto premissa da configuração espacial nessas metrópoles e a marginalização em periferias. Maricato (1996) revelou, com pragmatismo, os índices de pobreza e criminalidade identificados nos subúrbios paulistanos, em que pese as manifestações culturais e artísticas também demonstradas, enraizadas na vivência de membros dessas comunidades.
Na ocasião, a autora sugerira a análise comparativa entre a distribuição territorial da população de menor renda no município de São Paulo – SP e índices de densidade domiciliar, analfabetismo e violência, método intitulado pela mesma de evidência cartográfica. Como se pode prever, há evidente semelhança entre os mapas apresentados, pois registram altos índices de criminalidade e baixa qualidade de vida urbana nas regiões periféricas da capital, demonstrando a iniquidade socioeconômica na ocupação do solo urbano.
Ainda no texto inicial de “Para entender a Crise Urbana”, expõe-se cronologicamente os desdobramentos da Política Urbana anunciada pela Constituição de 1988, atrelados a décadas anteriores, quando os movimentos migratórios para as cidades direcionavam as ações de algumas lideranças, entre políticos, entidades profissionais, ONGs, etc., sobre o destino das cidades. As reflexões culminam na conjuntura atual, fragilizada por desvincular a retomada de investimentos públicos em programas sociais e de aceleração do crescimento, do enfrentamento de questões urbanas importantes que, apesar da diminuição da condição de pobreza, mantém esta base da pirâmide social brasileira carente de efetiva política habitacional e urbana.
A temática dos centros urbanos, debatida por Maricato (2001) no campo da Reabilitação, é conteúdo do texto 2 da obra atual, tendo-se como objeto de estudo o caso do centro de São Paulo. No texto, a autora comenta a luta pelo direito à cidade, por parte dos moradores dessa região, alocados em condições de submoradia, com a precariedade previsível dos cortiços ali existentes e que permanecem legados ao modelo de gestão que prioriza o poder econômico: “A centralidade é a produção do espaço urbano e a mola propulsora, a renda imobiliária”. (MARICATO 2015, p. 63)
A autora prossegue nas reflexões sobre o impacto do poder econômico na lógica de comercialização, uso e ocupação da terra urbana, no texto 3 do livro, intitulado “Globalização e Política Urbana na Periferia do Capitalismo”. Maricato (2015, p. 67) introduz o texto estabelecendo diversas considerações a respeito do quadro da produção capitalista a partir do fim do século XX e, na sequência, discorre separadamente sobre a Globalização e seus impactos nos PCCs e PCPs[2]. Ao tratar das cidades periféricas, a autora coloca que as metrópoles evidenciam contrastes típicos desses impactos, o que fora o cerne de sua obra “Metrópole na Periferia do Capitalismo” (1996).
A habitação ou, melhor dizendo, a escassez e problemática habitacional constituem o foco de análise desses impactos, uma vez que “as alternativas de habitação, que incluem infraestrutura e serviços urbanos, demandadas pela maior parte da população não são encontráveis nem no mercado, nem nas políticas públicas. ” (Maricato 2015, p. 81). Consequentemente, a ilegalidade torna-se habitual na ocupação do território urbano, em áreas ambientalmente frágeis e na dispersão dessa camada da população expulsa dos centros urbanizados.
São sinalizadas por Maricato (2015), neste texto 3, algumas condições assertivas nos processos de planejamento de cidades dos PCPs, embora não excluam a necessidade de constante feedback. Destaque-se a criação de debates democráticos acerca dos conflitos existentes nas cidades e a primordialidade do envolvimento e participação do cidadão na gestão urbana, questões estas contidas no Estatuto da Cidade.
O livro é finalizado com a entrevista “Movimentos e Questão Urbana no Brasil”[3], na qual a autora dialoga sobre as mobilizações brasileiras em torno da crise urbana, expondo suas conclusões a respeito do ideário para a Política Urbana brasileira que resultou no paradoxo de cidades que pioraram muito. São abordadas a Reforma Urbana, as intervenções ocasionadas por megaeventos nacionais e a conjuntura da violência nas diversas formas de ocupação do solo urbano.
Em “Para Entender a Crise Urbana”, observa-se a consolidação do entendimento de que a paisagem das cidades brasileiras - assim como seus contextos social, econômico e ambiental - é dinâmica, suscetível a transformações frequentes. Contudo, curiosamente, é previsível, em certa medida, até redundante como objeto de análise. Não obstante, Maricato (2015) reitera a conjectura, também antevista, de que a propriedade urbana cumprirá sua função social, na medida em que o cidadão for o protagonista da história das cidades. Quantas décadas mais serão necessárias para esta façanha?
Referências Bibliográficas
HARVEY, D. A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume, 2005.
MARICATO, E. Metrópole na Periferia do Capitalismo: ilegalidade, desigualdade e violência. São Paulo: Hucitec, 1996.
_____________. Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana. São Paulo: Vozes, 2001.
_____________. Para Entender a Crise Urbana. São Paulo: Expressão Popular, 2015.
Data de Recebimento: 14/09/2015
Data de Aprovação: 03/11/2015
[1] Arquiteto e Urbanista com Pós-doutorado pelo Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo; Doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo; Mestre pela Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo; Pesquisador do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo IMED – Faculdade Meridional (Passo Fundo/RS); Docente e Pesquisador da Universidade de Marília – UNIMAR. Danila Martins de Alencar Battaus Rua Antonio Carlos Cecolini Perez, 225 - Parque das Esmeraldas II - Marília/SP
[2] PCC – países capitalistas centrais; PCP – países capitalistas periféricos.
[3] Entrevista concedida à Revista América Latina em movimento (v.38, 2014, p. 19-23)