Fragmentos do discurso de um samba no asfalto


resumo resumo

Dantielli Assumpção Garcia
Lucília Maria Abrahão e Sousa
Marco Antonio Almeida Ruiz



Abre-alas, história pra ninar e acordar

 


“Ô, abre alas pros teus heróis de barracões”[1]

 

O samba-enredo “História pra ninar gente grande”, de autoria de Deivid Domênico, Tomaz Miranda, Mamá, Márcio Bola, Ronie Oliveira e Danilo Firmino, da Estação Primeira de Mangueira, no carnaval de 2019, coloca em circulação um reviramento dos sentidos estabilizados e legitimados como evidentes pela história oficial do Brasil: os nomes próprios de mulheres, a bandeira e outros símbolos nacionais e a narrativa sobre alguns momentos políticos do país.

A escola colocou na avenida uma narrativa que produz deslocamentos dos sentidos já postos em funcionamento pelos considerados ícones notórios da história oficial, tais como Pedro Álvares Cabral, a Princesa Isabel, o imperador Dom Pedro, o marechal Deodoro, trazendo nomes de pessoas comuns que deveriam ser reconhecidos pelo protagonismo que tiveram e, no entanto, foram silenciados e deixados no anonimato. No website da escola[2], o carnavalesco Leandro Vieira (2018) argumenta que:

A proposta é questionar acontecimentos históricos cristalizados no imaginário coletivo e que, de alguma forma, nos definem enquanto nação. Essas ideias de ‘descobrimento’ ‘independência’ e ‘abolição’ postas em cheque ou questionadas para possibilitar o entendimento do desprezo pela cultura nacional e as razões de uma sociedade pacífica ou, porque não, passiva. Para desenvolver o enredo, Leandro Vieira tem consultado historiadores e debruçado em livros e teses, além de uma grande pesquisa iconográfica para o desenvolvimento estético do desfile. Grandes descobertas estarão presentes no desfile da Verde e Rosa. ‘Você sabia que o Ceará aboliu a escravidão quatro anos antes da assinatura da famosa Lei Áurea? Você já ouviu falar em Chico da Matilde? Em Maria Felipa? Sabia da existência de um herói chamado Cunhambebe? A história oficial escolhe quem deve e quem não deve ser lembrado. O desfile da Mangueira é um olhar para isso. Um olhar para quem deveria estar nos livros e porque, os que estão, foram escolhidos para estar’, conta o carnavalesco.

 

Ao marcar que a história “escolhe quem deve e quem não deve ser lembrado”, o carnavalesco coloca-se na posição de duvidar das verdades tidas como oficiais e certas, faz furo nos tópicos que são ensinados e aprendidos sobre a história do país e esburaca os heróis lembrados e cultuados em datas do calendário nacional. Em lugar deles, constrói uma “outra versão” em que as figuras populares cavam suas lutas e pautas coletivas, percorre as “páginas ausentes” dos confrontos liderados por anônimos que nunca foram lembrados; além disso, seleciona e enaltece

heróis ‘dignos’ de serem eternizados em forma de estátuas; ao propagar o mito do povo pacífico, ensinando que as conquistas são fruto da concessão de uma ‘princesa’ e não do resultado de muitas lutas, conta-se uma história na qual as páginas escolhidas o ninam na infância para que, quando gente grande, você continue em sono profundo. (VIEIRA, 2018).

Um arrebatamento pelo que tal enunciado nos ensina sobre o conceito de discurso! Ora, sabemos com Michel Pêcheux que discurso é efeito de sentidos entre interlocutores, o que nos convoca a desenhar as consequências disso em dois gestos de leitura: i) não há completude nos sentidos ditos por tais interlocutores, o que nos permite considerar que o sujeito inscreve apenas pedaços emendados de um dizer que ele supõe todo, mas não é; ii) que, ao gesto de lembrar de certos sentidos e enunciá-los, corresponde o gesto de deixar de lado todos os outros efeitos que ali poderiam residir, mas foram apagados, esquecidos e/ou silenciados.

A potência dos sentidos do desfile da Mangueira produz torções inesperadas, deslocamentos e confrontações, faz falhar a engrenagem do discurso dominante e escancara, com cores e em brilhos, outros modos de contar, dizer e recompor a nossa história, no caso, pelo avesso dela, pelos espaços interditados, melhor dizendo, pelos resíduos que sobraram dos processos de dominação política, econômica e cultural.

Em “Brasil, meu nego, / Deixa eu te contar / A história que a história não conta / O avesso do mesmo lugar / Na luta é que a gente se encontra.”, o pedido “Brasil, meu nego, deixa eu te contar” é quase um chamego amoroso dito entre íntimos que conhecem de fato (e na pele) os sentidos do que não é o registro oficial da nossa “descoberta”, colonização e atualidade; e tal enunciado funciona discursivamente de modo a produzir um efeito explicativo e carinhoso a partir da posição de um sujeito que se atreve a contar, relatar, fazer as contas e dizer de outro lugar.

 

Descrição: Resultado de imagem para enredo da mangueira 2019

Figura 1: O rosto do samba-enredo

Fonte: Website da Mangueira (2018)[3]

 

Se estamos no âmbito de outra contação de história e da História, não vale aqui o recurso imaginativo de alimentar a nossa fantasia de criança, mas  trata-se sim de ninar os adultos, de fazê-los ficar atentos naquela vigília que antecede o sono, de mantê-los acordados a ouvir nomes de personagens que não são de castelos e/ou de mundo encantados pela ficção, mas homens e mulheres de carne e osso, que viveram a realidade da opressão, da violência e da revolta, e fizeram disso combustível para a luta, já que é “na luta que a gente se encontra”. Os rostos de pessoas que existiram são geometricamente cortados, coloridos e colados um aos outros de modo a produzir uma confrontação de posições em litígio e/ou filiação na trama histórica, indiciando que, longe de tomar a história como uma verdade única, há trajetos interrompidos, vozes caladas em descontinuidade com outras que tiveram visibilidade, biografias tomadas como heroicas sem, contudo, haver razão para tal; enfim, uma grande trama de oficialidade, mas que não conseguiu – e nem consegue – silenciar a diferença, a contradição, a desigualdade de poderes em dizer ao longo de toda a nossa historiografia.

O trajeto do nosso artigo prevê passear por alguns momentos do desfile e analisar discursivamente, a partir do que Michel Pêcheux formulou, o movimento dos sentidos inscritos em fotografias colhidas na rede digital e em enunciados do samba que pipocaram em alegorias e dizeres que saltaram da avenida para as mídias, em especial, para as redes. Nosso batimento do material de análise para a teoria com idas e vindas pendulares, e vice-versa, intenta tocar o modo como o postulado maior da Análise do Discurso nos convocou a trabalhar aqui: tomando como farol a assertiva de que não há dominação sem resistência. Ou seja, nenhum processo de opressão é todo, inteiro e compacto de tal modo que possa impedir que algo escape e deixe rastros da resistência, da luta e da canção de ninar contada pelos oprimidos.

 

Evolução da escola, um enredo com a luta de mulheres


“Dos Brasis que se faz um país de Lecis, Jamelões”

 

Começamos pela inscrição das empurradoras na avenida, nomeadas como tal e marcante presença feminina, que não discursiviza a mulher como comumente é repetível e regularizado pelos sentidos de/sobre o carnaval, a saber, como fetiche de corpo belo, sensual, erotizado a ser olhado e desejado, mas, nesse caso, a mulher é tomada, dando-a visibilidade e colocada como mão de obra trabalhadora, corpo que sua a camisa, empurra, tem força física para tocar o carro alegórico e a própria escola. Bem diferente de algo que também regulariza os efeitos de/sobre o feminino, o sexo frágil. Em um lugar de trabalho geralmente ocupado por homens, a imagem abaixo faz falar o sexo não frágil, destituindo os sentidos estabelecidos em nossa sociedade, há muito tempo, que mostra(ra)m a mulher como um ser “se, força” e “sensível”, por exemplo.

 

Tela de computador com jogo

Descrição gerada automaticamente

Figura 2: As empurradoras

Fonte: G1 (2019)

 

Durante muito tempo, as mulheres não conseguiram ocupar grandes cargos econômicos, políticos, administrativos, entre outros. Seu corpo era condição para menosprezar e superestimar suas habilidades, sua inteligência e sua capacidade, justamente por acreditarem que eram incapazes e não teriam condições de suportar grandes pressões. No Brasil, por exemplo, a primeira mulher a ocupar o mais importante cargo do país, Dilma Rousseff, foi eleita presidenta apenas em 2010. Nesse sentido, os discursos que circularam (e ainda circulam, infelizmente) reproduziam o estigma socialmente construído por meio de estereótipos e preconceitos que há muito as mulheres lutam para acabar, impondo-lhes certas regras de comportamento, modos de se vestir ou agir. Seu corpo sofreu todo tipo de violência, que não se resumiu apenas na forma física, mas também na emocional e na psicológica, além de permitir a construção de um imaginário perverso, atrelando a sua posição ou a sua condição feminina, a um lugar específico, isto é, ao “conforto” do lar e ao domínio do privado, ao contrário do homem, que ocupa o setor público, é viril e o responsável pelo sustento da casa.

Mesmo diante de tantos discursos afirmando o contrário, a mulher ainda sofre diversos tipos de violência todos os dias. As lutas em favor dos seus direitos e a militância em relação à sua liberdade de expressão ainda precisam ser constantemente revisitadas e reafirmadas socialmente diante de um conjunto de imaginários e pré-construídos machistas que insistem em retornar em razão das condições de produção de discursos de líderes autoritários, que “autorizam”, de certo modo, a disseminação de imaginários cristalizados. Assim, podemos dizer que há um forte autoritarismo no Brasil contemporâneo que tem proporcionado a retomada desses tipos de discursos, de formações discursivas (FD) dominantes, misóginas e preconceituosas em relação à posição da mulher e ao seu lugar de fala, reforçando, ainda mais, a necessidade da luta diária para garantir seus direitos e seu espaço, uma conquista na história que insistem em “apagar”.

Como militantes e em busca por igualdade, as mulheres saíram às ruas, seus corpos tornaram-se discursos que trazem o “avesso” da história de dominância e proporcionam outra memória contra o machismo e ideias pré-determinados. Em 2013, movimentos sociais em todo o Brasil deram voz às mulheres, seus corpos, pintados e marcados, produziram discursos que irromperam uma nova história, de resistência e de uma luta constante contra certas imposições e rótulos, a Marcha das Vadias, por exemplo, foi uma manifestação bastante expressiva no país a fim de representar novas instâncias de produção de discursos com o objetivo de reafirmar a sua condição, ser mulher, e instaurar uma outra memória diante de um contexto sumariamente misógino.

Desse modo, a mulher passou de uma condição pouco valorizada, do lugar privado, a uma que tenta ocupar lugar no espaço público. Ela adquiriu voz e corpo em posições sociais muito significativas. Vadia, agora, é sinônimo de ser livre, da mulher que luta diariamente por igualdade, por um lugar legitimado na sociedade patriarcal e pelos seus direitos nessa mesma sociedade que insiste em silenciá-la. De corpo terno e sereno recluso ao lar ao corpo “livre” e resistente no espaço da rua, a luta das mulheres para ocuparem um lugar páreo ao homem, e a tentativa de promover um furo em uma memória estabilizada sobre a mulher a partir dessas outras condições de produção de discursos produzidos na atualidade, quais sejam, as que permitem as mulheres dizerem de si, de seus corpos, de seus desejos e lutas. E agora, na imagem que apresentamos e com a nomeação das “empurradoras”, as mulheres empurram a escola no sentido estrito e metafórico, ocupando um lugar de dizer que antes lhes fora negado.

 

Brasil, meu dengo, a Mangueira chegou

Com versos que o livro apagou,

Desde 1500, tem mais invasão do que descobrimento!

 

Pela teoria discursiva, os sentidos não se fixam aleatoriamente, mas são determinados pelo modo como a conjuntura ideológica disponibiliza certas regiões de poder, saber e dizer. Nesses termos, existe uma regularidade no embate de forças historicamente constituídas no e pelo discurso e que situa certos modos de dizer (e calar), de lembrar (e esquecer) de endereçar autorizações (e interdições) que afetam os sujeitos, posto que pelo efeito ideológico de evidência normatizam onde os sentidos devem e podem se assentar. Quando o verso do samba postula que “tem mais invasão do que descobrimento!”, estamos diante de um sujeito que (d)enuncia o horror da colonização brasileira sob o peso da cruz e da espada, violenta e saqueadora. Assim, o livro com a narrativa oficial “apagou” que, antes da chegada dos portugueses, existiam comunidades indígenas organizadas aqui, que elas tinham cultura e língua próprias, que a terra lhes servia como condição de vida. Esse apagamento, que se dá, desde 1500, em consonância com a imposição da cultura escrita lusitana sustentada pela religião e pelo capitalismo mercantil, é tomado como enganoso pelo sujeito que o nomeia como invasão, o que é uma marca importante para estabelecer a narrativa às avessas que se pretende, mostrando como o dizer da história oficial é um discurso que escolhe o lado do opressor/invasor para narrativizar o que se passou nas terras brasilis no começo do processo colonizatório.

Em trabalhos anteriores (SOUSA, 2018), marcamos a inscrição do político na língua a partir do litígio discursivo materializado no confronto entre invasão e ocupação no tocante à questão agrária brasileira. A ordem da divisão dos sentidos está posta no samba de modo a marcar que a terra tinha dono e foi invadida e que, assim, a história oficial deu rosto, nome e visibilidade a homens e mulheres que foram escolhidos para estar lá, nos livros.

A proposta de Pêcheux (1969), na esteira dos estudos althusserianos, foi levar o conceito de ideologia ao estatuto de chave para a compreensão dos discursos, já que as posições imaginárias que os sujeitos atribuem-se são pautadas pela evidência do sentido único. Esse processo de interpelação ideológica afeta todo sujeito quando enuncia e silencia os sentidos que, tidos como indesejáveis, devem ser afastados, refutados e/ou impedidos de circular em dadas condições sócio-históricas. Logo, dizer invasão ou ocupação ou descobrimento não nos remete às mesmas formações ideológicas, pois a representação que o sujeito toma para si, para o outro e para o objeto discursivo coloca diferentes modos de os sentidos parecem naturais.

O discurso produzido no desfile da Mangueira indicia o modo como a história é retomada como forma de resistência ao discurso dominante que faz circular os sentidos postos em funcionamento pelo colonizador, que enaltece a história dos nomes estrangeiros, da classe abastada e detentora da terra e do saber das épocas retratadas nos carros alegóricos. Trata-se, pois, de uma ressignificação da memória social, elencando fatos que reforçam as lutas, os protagonistas anônimos, os heróis sem rosto nas páginas dos livros lidos e adotados nas escolas, enfim, a escola de samba instaura uma nova situação de enunciação. É chegado o momento de rever e resistir a essa ideologia dominante promovida e refletida ao longo da história, é preciso buscar como as ideologias dominadas funcionam (PÊCHEUX, 1990). É, pois, o momento de olhar o dizer no/do corpo como fonte de textualização de outros sentidos sobre a história, os heróis e a mulher, que ressignificam o já dito e instauram outros dizeres sobre resistência e luta.

No caso dos dados que iremos analisar a partir de agora, trata-se, assim, de deslocar e compor uma outra escritura promovida no/do corpo como uma “outra discursividade na sociedade sobre a mulher, mostrando que [ela] não é só ‘carne’, mas um corpo que [res]significa no espaço social” (GARCIA, 2019, p. 78) e que traz consigo uma história militante contra discursos estigmatizados e hegemônicos. Em outras palavras, é a história da violência não apenas refletida no/do corpo feminino, atravessado por uma memória, promovida pelo discurso social – corpo como objeto de prazer do homem, o sagrado, o feminino frágil –, mas como sua ressignificação, por meio do que a escola canta, grita, dança e produz com as expressões artísticas. Elas – em forma de alegoria, carros, dizeres e imagens – permitem outro batimento das redes de filiação de sentidos estabilizados e cristalizados por força das condições de produção da colonização, abolição da escravatura e ditadura militar; é justamente nessa trilha que iremos analisar e descrever os sentidos em jogo.

Tomamos a sério a assertiva de que é preciso questionar o pré-construído inscrito numa formação discursiva dominante, preconceituosa, misógina, racista e fazer circular outros efeitos da realidade social e outros efeitos de memória que estão inscritos numa FD contrária cuja base são os movimentos de militância e arte.

 

Brasil, chegou a vez

De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês!

 

Nesse verso, os nomes próprios de mulheres fazem falar a luta contra a violência sofrida por elas ontem e hoje, indicando que elas representam formas de resistência ao horror e de luta por direitos que lhes foram interditados. No caso das “Marias”, nome bastante comum no país, inferimos que elas são tantas que já compareceram em várias músicas nacionais (“Choram Marias e Clarices no solo do Brasil” e “Maria Maria, uma força que nos alerta”, citamos essas duas apenas a título de passagem) constituindo uma rede de filiação de sentidos sobre o feminino a indiciar os efeitos de trabalho, luta e resistência. No caso do samba, ao lado de Mahins – nome de uma escrava que participou do levante de escravos na Bahia do século XIX –, Marias é palavra que faz falar um discurso de luta combativa em prol de direitos civis, sociais e políticos de tantas e tantas mulheres no país, submetidas ao julgo escravagista ontem e machista/racista hoje.

A memória, segundo Michel Pêcheux (2010b, p. 50), não deve ser interpretada no sentido psicologista enquanto uma “memória individual”, mas por meio de sentidos “entrecruzados da memória mítica, da memória social inscrita em práticas, e da memória construída do historiador”. A memória discursiva é condição do legível e os sentidos são estabilizados por redes de repetição parafrástica, que tendem a cristalizar verdades, naturalizar sentidos e, pelo efeito ideológico, produzir uma suposta verdade a ser replicada. A partir desses sentidos estabilizados, o sujeito pode inscrever o mesmo ou fazer furo no mesmo; no nosso caso, o samba marca uma posição sujeito que estabelece rupturas e reviramentos nesse espaço da memória, produzindo um efeito de luta e resistência a partir de nomes de mulheres.

 

Imagem relacionada

Figura 3: Lute como Marielle

Fonte: Grellet e Nunes (2019)

 

Marielle entra na série de tantas outras mulheres guerreiras que lutaram por direitos e instala uma posição representativa de hinos de luta e de força contra qualquer discurso de intolerância e ódio. “Lute como Marielle” e “Marielle vive”, com o rosto da vereadora assassinada publicamente no Rio de Janeiro estampado em enormes bandeiras nos permite indagar:

O que é produzir memória? Como a memória se institui, é regulada, provada, conservada, ou é rompida, deslocada, restabelecida? De que modo os acontecimentos – históricos, mediáticos, culturais – são inscritos ou não na memória, como eles são absorvidos por ela ou produzem nela uma ruptura? (DAVALON, 2010, p. 50).

 

No caso da vereadora, periférica, negra, lésbica, militante de um partido de esquerda e defensora de direitos e causas sociais, o nome Marielle opera de modo a corroborar com a visibilidade de uma rede de sentidos que resistem e insistem em apontar a desigualdade no país. Mais do que um nome isolado de uma mulher em especial, “Lute como Marielle” representa a circulação da formação discursiva que historiciza a segregação dos pobres, a ação das milícias no Estado e a violência contra as camadas populares, inclusive aquela endereçada a mulheres. A partir do bárbaro assassinato de Marielle Franco, essa formação discursiva ganha outra forma de circulação, posto que algo pôde ser nomeado como horror e luta.

Essa negociação entre o choque de um acontecimento histórico singular e o dispositivo complexo de uma memória poderia bem, com efeito, colocar em jogo a nível crucial uma passagem do visível ao nomeado, na qual a imagem seria um operador de memória social, comportando no interior dela mesma um programa de leitura, um percurso escrito discursivamente em outro lugar (PÊCHEUX, 2010b, p. 51).

Ora, tal passagem do visível ao nomeado foi posta em discurso a partir do modo como Marielle Franco foi executada barbaramente com tiros no rosto, à luz do dia, em uma rua de grande circulação na capital fluminense, após sair de uma reunião de trabalho. As cenas do carro baleado materializaram o horror do inominável da violência e da morte, que foi dito, redito, bordado e deslocado para diferentes formas de expressar repúdio, inconformismo e indignação. Os atos no país e fora dele se espalharam como um rastilho de pólvora com enunciados regularizados por “Marielle vive” e “Marielle presente”. Na avenida, com os tons de verde e rosa, eles comparecem em outras condições de produção, destituídos de seus sentidos originais produzidos em atos políticos em sentido estrito, agora integrando um espetáculo multimidiático cujo enredo tematiza a violência desde a invasão do Brasil. Marielle está presente.

 

Descrição: Resultado de imagem para fotografias do desfile da mangueira 2019

Figura 4: Presente

Fonte: Carnavalesco (2019)

 

Uma imagem contendo mulher, foto, edifício, homem

Descrição gerada automaticamente

Figura 5: Os rostos negros

Fonte: G1 (2019)

 

Presente em outras condições de produção, e aqui vale destacar que este é um dos conceitos basilares da Análise do Discurso pecheutiana, em que vemos constantemente o jogo de forças e relações constituintes resultantes do processo discursivo. É por meio delas e da realização do processo discursivo em três níveis que podemos dizer que há uma reatualização da memória de violência contra as mulheres por meio dos movimentos sociais, as expressões artísticas e as lutas por igualdade: a constituição, a formulação e a circulação (ORLANDI, 2002).

Segundo a autora, a constituição do dizer é estabelecida por meio de uma memória na qual se marcam discursivamente os efeitos de sentidos relativamente estabilizados, advindos de pré-construídos e discursos outros, já-ditos; em relação à formulação, ela efetivamente acontece a partir do momento em que as condições de produção desses dizeres se ligam, direta ou indiretamente, às circunstâncias da enunciação. Todavia, a transformação da memória acontece apenas no nível da circulação, pois há uma atualização, fazendo intervir os sujeitos e o jogo de sentidos como encontro sempre tenso de uma memória e sua atualização em dadas condições de produção e emergência de discursos, que refletem e refratam cada tempo e cada formação social. Orlandi (2002) ressalta a importância desses três níveis discursivos como um processo, em que

A constituição determina a formulação, pois só podemos dizer (formular) se nos colocamos na perspectiva do dizível (interdiscurso, memória). Todo dizer, na realidade, se encontra na confluência dos dois eixos: o da memória (constituição) e o da atualidade (formulação). É desse jogo que tiram seus sentidos (ORLANDI, 2002, p. 33).

No nosso caso, a circulação de “Lute como Marielle” e “Presente”, quase um ano após a execução da vereadora, sustentada pelas mãos de uma menina negra vestida com uniforme escolar, dentro de um carro alegórico cheio de fotos de homens e mulheres com turbantes e cocares (referências explícitas a negros e índios), marcam a continuidade dos sentidos históricos de luta e resistência. É no nível da circulação desse tipo de discurso, por sua vez, que há a atualização da memória que ratifica a intervenção de sujeitos que se inscrevem entre a memória e a atualidade por meio de condições do discurso como resultado de cada tempo e cada ressignificação. É porque há ainda discursos como esses – de resistência, denúncia e luta – na sociedade que a instauração de outros efeitos de memória, sustentada pela constante atividade dos movimentos sociais; isso se marca discursivamente nos versos abaixo.

 

Tem sangue retinto, pisado

Atrás do herói emoldurado,

mulheres, tamoios, mulatos,

eu quero o país que não tá no retrato!


 

Mulheres, tamoios, mulatos com seu sangue retinto e pisado estão postos aqui como herança, inclusive para sustentar o samba da Mangueira. Sangue que vai escorrendo pelo asfalto em forma de letra, canto e ritmo inclusive de atabaques e aparece em vários momentos da avenida no gesto de erguer a mão com o punho cerrado em um chamamento de e à luta.

 

Brasil, o teu nome é Dandara

E a tua cara é de cariri

Não veio do céu

Nem das mãos de Isabel

A liberdade é um dragão no mar de Aracati.

 

O ato de cantar/contar história para ninar adultos renomeia o Brasil, aquele meu nego para o qual o sujeito se dirige na tentativa de dizer uma outra versão da História. “Brasil, teu nome é Dandara”, em uma nomeação que faz funcionar o nome da mulher de Zumbi, guerreira negra que lutou pela liberdade e se matou jogando-se de uma pedreira para não voltar à condição de cativa. Preferir a morte à escravidão não nos parece inscrever sentidos outros que não os de combatividade e resistência; ou seja, isso se desloca para a avenida destituindo de verdade a abolição da escravatura no país como sendo um presente da princesa. Não foi presente dado de graça, efeitos outros são produzidos aí. Foi sim com o corpo em luta individualmente, foi com a fuga das senzalas, foi com a organização coletiva em quilombos e foi com o suicídio que se construiu uma rede de línguas espumadas (de vento e ventania...) em prol do fim do pelourinho. E isso foi (e ainda é, posto que os cativeiros hoje são outros e de outra ordem, embora de mesma crueldade) protagonizado por homens e mulheres negros que não aparecem nos livros oficiais, são silenciados, tiveram seu protagonismo roubado e suas lutas não reconhecidas. Agora são trazidos e significados na avenida a dançar, cantar e gritar seus feitos em um samba que consideramos de denúncia.

 

Descrição: A comissão de frente retratou os "grandes nomes da história nacional" que, na verdade, tem um caminho forjado por sangue.  - Créditos: Midia Ninja

Figura 6[4]: A boca tampada

Fonte: Ribeiro (2019)

 

A referência à escrava Anastácia comparece nessa imagem e produz a circulação de sentidos de reação ao sistema escravista e à opressão que os negros sofriam. A beleza física da escrava, a resistência dela aos assédios sexuais de senhores brancos e a máscara de ferro que foi a condenação sofrida por ela diante da recusa em desistir da sua luta significam sócio-historicamente aqui.

É inevitável marcarmos que as formas de calamento que perpassaram as figuras femininas ao longo da história foram tantas e cruéis e levaram muitas mulheres à tortura e à morte. Dandara, Anastácia e Marielle compõem as marcas significantes desse enredo da realidade que aponta o horror, a violência e a morte. Tal modo de compor e fazer circular os sentidos a partir de nomes de mulheres, implicitando suas biografias e deslocando-as para um samba que produz outros efeitos sobre resistência e luta no país, implica considerar o político como divisão, contradição e confronto em que alguns foram eleitos para serem lembrados, outros não. Tal movimento é determinado pela evidência ideológica do sentido único, e é justamente desse lugar que a Mangueira enuncia, desorganiza a narrativa oficial, inserindo aí os furos e as páginas rasgadas por esquecimentos e interdições.

Vale destacar que o samba-enredo e o desfile não apenas sinalizam o que não pôde ser lembrado ou o que teve de ser censurado, mas, sobretudo, marcam um modo de dizer, isto é, instalam as vozes femininas que, a despeito da opressão, não se calaram e não deixaram de lutar e significar com seus corpos e com sua voz. Hildegard Angel que o diga no alto do carro alegórico “Ditadura assassina”. Ela é irmã de Stuart Angel, um jovem estudante e militante de esquerda notoriamente torturado e morto pelo exército durante a ditadura militar brasileira e dado como desaparecido político.

 

Descrição: Resultado de imagem para fotografias do desfile da mangueira 2019 angel

Figura 7: Ditadura assassina

Fonte: Jornal do Brasil (2019)

 

Cargo alegórico com críticas à ditadura durante o desfile da Estação Primeira de Mangueira Foto: Luís Alvarenga / Agência O Globo

Figura 8: Livro aberto

Fonte: O Globo (2019)

 

 

Com fotografias de época no fundo e sob seus pés, a jornalista veste uma túnica preta e está com o colar de crucifixos no pescoço, o mesmo que sua mãe Zuzu Angel usou para manifestar seu luto diante do filho executado pelo Estado. As cruzes são muitas e, mais do que adereço de carnaval, inscrevem a atualização da memória de horror da tortura e do silenciamento à força de tantos e tantas que nem ao menos puderam ser velados e enterrados por seus parentes. A marca “ditadura assassina” significa inicialmente pichada no muro de uma cidade e é atualizada aqui como página de um livro aberto (e reaberto nas condições de produção de 2019? Isso também reverbera...), discursivizando o absurdo da perda de direitos civis e de liberdade; além disso, (d)enuncia a tortura, a morte e a violência empreendidas pelo Estado na mesma medida em que protesta diante dela ontem e hoje.

O enredo faz falar especialmente os efeitos de recusa do modo horrendo como a ditadura brasileira censurou e matou com requintes de castigos, submissão ao gozo sádico do outro, violência desmedida e dilacerante; ademais, o fato de os corpos dos torturados terem sido jogados ao mar e/ou a áreas de difícil acesso, enterrados e/ou queimados produz um efeito ainda mais cruel nas famílias, o de desconhecer o que houve de verdade e o sumiço do antes tinha nome e corpo de afeto. Coloca finalmente um outro nome de mulher na trilha do que vimos analisando a marcar uma posição de resistência, talvez a mesma (e outra resistência diferente) que os outros tantos nomes de mulheres expressaram; a mesma porque há um fio de violência e morte que as unem, outra porque a cada momento a memória é reordenada ao sabor das condições de produção.

O que é da ordem do repetível no samba que ora cantamos é o reviramento dos sentidos, dados como oficiais e legitimados por força de uma formação discursiva dominante que os cristalizou, para os supostos grandes feitos heroicos da nossa vida de colônia, império e república. Estão eles cá a sustentar o deslocamento, a torção, o diferente e o vir a ser outra coisa, potência maior da noção de discurso tal como Pêcheux fez operar.

 

Na apoteose, uma outra bandeira é possível

 

“São verde e rosa, as multidões”

 

Com tais reviramentos, uma outra bandeira para o país é configurada a partir do verde e rosa (cores da escola que passaram também a nomeá-la) e da composição nova do símbolo nacional.

 

Descrição: Resultado de imagem para fotografias do desfile da mangueira 2019

Figura 9: Outra bandeira escrita na avenida

Fonte: O Globo (2019)

 

Uma imagem contendo pessoa, grupo, rosa, pessoas

Descrição gerada automaticamente

Figura 10: Verde e Rosa

Fonte: Camargo (2019)

 

A mudança das cores desloca os sentidos regularizados de exuberância nacional e das riquezas para falar do próprio nacional, tão repetidos como óbvios desde a Carta de Caminha. Ora, tocar um símbolo poderoso como uma bandeira implica contar uma outra história, no caso “pra gente grande”. O rosa predomina assim como os nomes de mulheres foram marcantes no modo de o samba significar. Agora o lema é realmente algo que produz surpresa: são discursivizadas duas etnias e apenas uma classe social, o que marca o modo como índios e negros foram colocados no lugar de empobrecidos, pobres, relegados a um espaço sem direito e, no entanto, ali não ficaram situados, posto que resistiram com o corpo, com a voz, com seu silêncio grávido de sobrevivência, resistência e luta. Por isso, a escola se situa ao lado deles, lança-os como símbolos de um identitário nacional e canta que “são verde e rosa as multidões”.

 

Referências bibliográficas

 

BEAUVOIR, S. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2009.

CAMARGO, S. Mangueira homenageia heróis da resistência: negros, indígenas e Marielle Franco. Conexão Planeta, 5 mar. 2019. Disponível em: www.conexaoplaneta.com.br/blog/mangueira-homenageia-herois-da-resistencia-negros-indigenas-e-marielle-franco/. Acesso em: 21 de nov. 2019.

 

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Data de Recebimento: 12 /12/2019
Data de Aprovação: 16/04/2020

 

[1] Todas as epígrafes desse artigo foram retiradas do samba-enredo da escola de samba Mangueira (Carnaval 2019). Disponível em: www.mangueira.com.br/carnaval-2019/sambaenredo. Acesso em: 20 nov. 2019

[2] Disponível em: http://www.mangueira.com.br/noticia-detalhada/993. Acesso em: 28 de nov. 2019.

[3] Disponível em: http://www.mangueira.com.br/noticia-detalhada/993. Acesso em: 28 de nov. 2019.

[4] Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2019/03/05/mangueira-mostra-enredo-com-forte-conteudo-politico-e-emociona-publico/. Acesso em 28 de nov. 2019.